Artigo Tradução Intersemiótica - Lavoura Arcaica

May 29, 2017 | Autor: B. Tannuri Maluf | Categoria: Translation, French Semiotics
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Universidade Federal Fluminense- Mestranda em Estudos da Linguagem - Trabalho de conclusão da disciplina de Tradução Intersemiótica da Prof.ª Dr.ª Renata Mancini
Neste trabalho, entende-se texto sob a perspectiva semiótica, como objeto de significação nas mais variadas manifestações, "quer se manifestem verbalmente, visualmente, por uma combinação de planos de expressão visual e verbal, etc." (FIORIN, 1995, p.167)
"Do ponto de vista do enunciatário, a isotopia constitui um valor de crivo de leitura que torna homogênea a superfície do texto, uma vez que ela permite elidir ambiguidades. Pode, entretanto, acontecer que a desambiguização se faça, por assim dizer, às avessas, por exemplo, no caso de uma leitura intertextual(...) em que um texto encontra-se encaixado em um discurso mais amplo." (GREIMAS, A. J.; COURTÉS. J., 2016,p.278).
"o tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; o tempo está em tudo." (NASSAR, 2016, p.52) – sermão do pai.
"o tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo (...), era um tempo só de esperas." (NASSAR, 2016, p.93)- reflexões de André.





BARBARA TANNURI MALUF


LAVOURA ARCAICA – A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA
E O VALOR DO ACONTECIMENTO
Das páginas para o cinema




NITERÓI
2016

Barbara Tannuri Maluf

Lavoura Arcaica – A Tradução Intersemiótica
e o Valor do Acontecimento
Das páginas para o cinema

"(...) o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto?" (NASSAR, 2006, p.97)
Do objeto de análise
Raduan Nassar produziu três livros ao longo de sua carreira literária. Lavoura Arcaica, o primeiro, foi considerado um clássico desde a sua publicação em 1975. É uma narrativa lírica em que a prosa poética nos envolve em um emaranhado de sensações e questionamentos que remetem a inquietações da alma, do homem como ser social e cultural. Revestidos de metáforas e analogias, os temas abordados ultrapassam as barreiras do tempo e do espaço, e o trabalho laborioso com a linguagem confere à obra uma camada sensorial e sinestésica, oferecendo ao leitor uma experiência profunda sobre o ser humano e suas paixões e conflitos no mundo.
Embora o autor tenha resistido a traduções de suas obras ao longo dos anos - e até mesmo à publicação de seus livros (sua primeira obra só foi publicada depois que uma cópia foi enviada para uma editora sem a sua permissão) - em 2001, Luiz Fernando Carvalho adaptou a obra para o cinema, e, em 2016, foi a vez da versão em inglês para uma das mais renomadas casas editoriais britânicas, a Penguin Modern Classics. Nosso trabalho se concentrará na adaptação fílmica do romance, sua recriação das páginas para a tela do cinema, ou seja, a tradução intersemiótica. Durante esse processo, o tradutor, segundo as considerações de Júlio Plaza, "sofre as influências não somente dos procedimentos de linguagem, mas também dos suportes e meios empregados", (PLAZA, 2003, p.10) influências essas que reverberarão na obra de chegada.

Dos objetivos e da metodologia
O que nos interessa neste trabalho é traçar um protocolo de ações para a análise comparativa dos elementos no plano discursivo das duas obras, a fim de estabelecer as possíveis mudanças e/ou manutenção do argumento final da obra de partida. Acreditamos que as ações acometidas de valor de acontecimento são responsáveis pelo desencadeamento da narrativa, pois modulam e transformam o sujeito, e consequentemente, os efeitos de sentido pressupostos no projeto enunciativo. Segundo Tatit, "O sujeito passional é o que sofre os efeitos de ações anteriores que de algum modo o imobilizam pragmaticamente, na mesma medida em que o estimulam do ponto de vista sensível e afetivo." (TATIT, 2002, p.193).
Será uma análise da tradução tanto como o processo dessa atividade e também o produto resultante dela. A semiótica nos possibilita delinear uma definição formal para esses dois termos, pois o conceito de texto como unidade de sentido é duplo - é unidade de significação, onde analisam-se as relações internas dessa imanência – e assim o vê como produto; e também as dependências internas que nos ajudam a entender o processo. Nessa dualidade, traduzir é também interpretar, analisar criticamente uma obra, assim como postula Haroldo de Campos em seu artigo, Da Tradução como Criação e como Crítica. A nós, analistas do processo para entender o produto, cabe desenvolver a metodologia semiótica:

"A análise de qualquer texto tem sempre dois movimentos: um de desconstrução, outro de reconstrução. Separar, fragmentar, classificar são procedimentos de desconstrução; reunir, sistematizar, agrupar são formas de reconstituir o texto, para enfim interpretá-lo."(TEIXEIRA, apud SOUZA, 2012)




A partir dessa dualidade, emana-se então o perfil do tradutor – como novo enunciador e também enunciatário - à luz da noção de fidelidade: quanto mais fiel aos parâmetros estabelecidos para a tradução, maior o foco no produto; ao passo que quanto mais "infiel" for o tradutor, maior o foco no processo. Na "passagem" de uma linguagem para outra sob a baliza da fidelidade, cabe aqui considerarmos algumas questões; Haroldo de Campos postula que o importante é "ser fiel ao 'espírito', ao 'clima' particular da peça traduzida; acrescentando-lhe, como numa contínua sedimentação de estratos criativos, efeitos novos ou variantes, que o original autoriza em sua linha de invenção." (CAMPOS, p.25). Ainda em Campos encontramos considerações de Pound no qual esse último afirma que, traduzir é "dar nova vida ao passado literário", "make it new"; no processo, o artista se apodera da obra, interpretando-a, manuseando-a de modo a lhe dar um novo sopro de vida, possibilitando-a atravessar fronteiras, abarcar novas culturas, novos enunciatários. E é esse o caso da retomada deste clássico da nossa literatura, tanto para o cinema, quanto para outras línguas. O tradutor assume uma perspectiva ativa, reconstruindo a experiência com a obra, recriando-a em uma nova linguagem sob uma nova perspectiva. Esse movimento nos leva ao seguinte questionamento: como a liberdade do tradutor nesse processo, que é criativo, interfere nos efeitos de sentido da argumentação final da obra?
Analisaremos, então, a proposta enunciativa da tradução através do mapeamento de elementos elencados em um protocolo de análise, o qual deverá identificar as isotopias temático-figurativas, os eixos narrativos e a hierarquização dos programas na narrativa que foram mantidos ou modificados na obra de chegada.
Através da identificação das ações revestidas de valor de acontecimento nas duas obras, evidenciaremos as mudanças que elas suscitam no projeto narrativo final, pois como já dito anteriormente, são ações capazes de transformar percursos e modalizar sujeitos; o acontecimento entendido tensivamente é, em essência, da ordem da concessão, do inesperado, e carrega consigo a carga tensiva entre o estabelecimento e a ruptura do fluxo da narrativa. Nas palavras de Zilberberg, "o acontecimento dá como certa a modalidade concessiva que instaura um dado programa como irrealizável e um contraprograma que, no entanto, levou a cabo sua realização." (ZILBERBERG, 2011, p.177). O objeto-acontecimento adentra o campo de presença do sujeito e sua percepção modifica o estado das coisas, e consequentemente, os eixos narrativos que afetam drasticamente a argumentação principal do texto. Talvez seja este o espírito de uma obra, a teia dos acontecimentos pontuais que impelem o sujeito a se transformar, moldando assim sua narratividade, o ritmo do texto, através das rupturas e dos estabelecimentos dos contratos entre os actantes da narrativa.
Por hora, faremos apenas a identificação das ações com valor de acontecimentos nas duas obras, e não uma análise tensiva mais profunda de cada uma dessas ações, tendo em vista a coerção imposta pela extensão deste trabalho.

Da análise das isotopias temático-figurativas
É na fusão entre o erótico, a natureza, o mítico e o religioso que Nassar aborda algumas questões universais do ser humano; a inserção de parábolas, passagens bíblicas e analogias mitológicas no texto suscita uma interpretação multifacetada dos simbolismos e semissimbolismos acerca dos temas engendrados no discurso; temas esses figurativizados por representações do mundo natural. Estamos no nível discursivo, onde devem ser enquadradas as relações entre temas e figuras (semântica discursiva) determinadas pela mesma enunciação. (GOMES; MANCINI, 2007). A fim de chegarmos aos temas subjacentes a essa rica narrativa, analisaremos os elementos da superfície textual, as figuras – revestimentos que dão concretude às formas abstratas –, e também as isotopias - "a reiteração, a redundância, a repetição, a recorrência de traços semânticos" (FIORIN, 2014) presentes na narrativa. A semiótica greimasiana percebe a semântica discursiva como uma metodologia de análise que nos permite entender como se dá o processo de construção de efeito de sentido da obra. "Cabe, portanto, ao procedimento da figurativização concretizar os percursos temáticos abstratos, atribuindo-lhes traços de revestimento sensorial a partir da construção de figuras do mundo." (MANCINI, 2011, p. 194 - grifo da autora). As isotopias, por sua vez, categorizam e organizam os elementos na concretude da manifestação textual, construindo um crivo de leitura. Por tratar-se de uma narrativa recheada de lirismo e subjetividade, a identificação das isotopias nos conduzirá ao universo ideológico no nível mais profundo do texto; reiterando, Barros explica:

"A teoria semiótica examina a enunciação enquanto instância pressuposta pelo discurso, em que deixa marcas ou pistas que permitem recuperá-la. (...) é sobretudo no nível das estruturas discursivas que a enunciação mais se revela, nas projeções da sintaxe do discurso, nos procedimentos de argumentação e na escolha dos temas e figuras, sustentadas por formações ideológicas." (BARROS, 2005, p.78).




Vamos à análise: os personagens do livro foram mantidos na adaptação: o pai, a mãe, Pedro - o irmão mais velho, Lula - o caçula, as irmãs Rosa, Zuleika, Huda e Ana, e André, personagem que sincretiza o protagonista da história e também o narrador. Ambientada no campo, a história mostra a vida de uma família libanesa de estrutura patriarcal, cujo pai encarna o papel de transmissor de valores tradicionais de rigidez moral, sempre passados à família na hora da refeição, através de sermões e parábolas bíblicas. A própria disposição dos integrantes da família à mesa é, em si, uma figurativização; a metonímia da família pode ser entendida como a própria sociedade culturalmente moldada:

"Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anômala, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família." (NASSAR, 2006, p.154,155)




Sentado à direita do pai, Pedro, o irmão mais velho, responsável por manter os valores perpetrados ao longo das gerações, vem seguido das irmãs Rosa, Zuleika e Huda, submissas às regras e aos mandamentos do pai; mulheres que internalizam os preceitos e as tradições morais, vivenciando e perpetuando o status quo. A inferioridade e a submissão da mulher também são reforçadas ao longo da narrativa, pela ausência de diálogos entre o pai e as figuras femininas, pela ausência de expressão verbal em Ana, que em momento algum utiliza-se do verbo e só externaliza seus sentimentos através da dança e de suas atitudes (ou da falta delas), e também da sanção ao final do seu percurso, quando o próprio pai lhe tira a vida ao saber de sua relação incestuosa com o irmão, sanção essa não infligida ao personagem de André .
O fluxo contínuo, o discurso implicativo, o lado direito do pai representa a permanência, a tradição às raízes, a obediência às leis, onde cada um sabe seu lugar no mundo, sua posição social pré-definida e imutável, reforçada pelos valores e tradições passadas de geração em geração.
O lado esquerdo, encabeçado pela mãe, é o lado 'defeituoso' da família. Com seu afeto demasiado, a mãe instaura a desordem na estrutura familiar, macula o sacro, instaura o humano e suas vicissitudes, "(...) se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição" (NASSAR, 2006, p.134). É a partir da mãe que se dá a ruptura das relações familiares, entendidas aqui como representações das relações sociais e culturais. Todos os membros da família subsequentes a ela são tortos, peças que não se encaixam nos moldes da moral e dos bons costumes, suas trajetórias na narrativa mostram o revés da história, da tradição. A ruptura do fluxo contínuo, a quebra de paradigmas, a instauração do concessivo. A sexualidade retratada nas relações de André com a mãe, com sua irmã Ana, e com seu irmão caçula figurativiza a transgressão às regras e a subversão aos valores morais impostos pela sociedade. André tematiza o excluído, pois não se adapta ao sistema, seus questionamentos revelam o avesso da família, das relações sociais; simboliza também o pervertido, pois entrega-se às paixões mundanas dando vazão aos seus instintos mais primitivos; simboliza o transgressor, pois ultrapassa os limites do dizível, vocifera contra o sacro, desobedece as leis e comete o mais profano dos pecados. André não se reconhece como ser social, pois não compartilha dos valores familiares, dos saberes e das tradições transmitidas pelo pai. É incapaz de refrear seus instintos, domar o lado instintivo e animal do ser; é epilético, e através dos seus discursos verborrágicos revela em seu turbilhão de pensamentos toda a angústia de não pertencer a lugar algum, de não se reconhecer no outro.
Dos ensinamentos do pai sobre as bem-aventuranças do tempo, André o desafia, mostra seu avesso,e assim como a família, o tempo é a figurativização da prisão moral que o atormenta e que desperta nele o desejo de liberdade que o consome.

Do valor dos acontecimentos nas páginas e na tela
Da narrativa densa e metafórica fielmente mantida na adaptação, seria possível perceber os temas mais abstratos aqui expostos brevemente através das isotopias no nível discursivo. Contudo, apesar do cuidado em se manter os diálogos quase que totalmente intactos, o valor de acontecimento conferido a certas passagens da história muda drasticamente o eixo narrativo na adaptação, e consequentemente toda a argumentação final.
A sexualidade de André é, talvez, o grande pivô na mudança do projeto enunciativo entre a obra literária e sua adaptação fílmica. No livro, há uma progressão crescente do conflito resultante da relação indivíduo, lei, sociedade e cultura através do afloramento da sexualidade do personagem; a princípio, ela se mostra incipiente durante a infância, representada na excessiva afetividade em sua relação com a mãe, mas que divide espaço com as práticas religiosas do menino André:

"e só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes "acorda coração" e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que eu, que fingia dormir agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol, e eu ria com ela cheia de amor me asseverava num cicio "não acorda teus irmãos coração", e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada quente do seu ventre e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos, e assim que eu me levantava Deus estava do meu lado em cima do criado mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e que eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na igreja feito balão, era boa a luz doméstica da nossa infância" (NASSAR, 2006, p.25)





Em seguida, a sexualidade é consumada pela primeira experiência sexual de André com a cabra da fazenda, "(...) circundavam seu quarto agreste de cortesã: eu a conduzi com cuidado de amante extremoso, (...) Schuda, paciente, mais generosa, quando uma haste mais túmida, misteriosa e lúbrica, buscava no intercurso o concurso do seu corpo." - (descrito no capítulo 4, suprimido no filme).
A ausência desse acontecimento no filme acentua e tonifica a próxima ação dessa cadeia -a relação incestuosa entre André e sua irmã- ao invés de mostrar que esse traço da personalidade do personagem já poderia ser percebido então com um desajuste, um limite entre a civilidade e o primitivo, instinto e razão; antes mesmo que a irmã fosse eleita como objeto de desejo. No livro, o incesto é o ápice de um encadeamento de fatos que vão se sobrepondo uns aos outros. E quando finalmente há o acontecimento, ele simboliza a ruptura total com toda e qualquer convenção, regra, lei. É o ato maior da transgressão que já vinha se acumulando ao longo de tantos outros acontecimentos que permeiam a narrativa; é, de fato um acontecimento de valor, pois está no topo da intensidade, e entra no campo de presença do sujeito de forma a arrebatá-lo, surpreendê-lo, destruí-lo, até. Porém, a relação com Ana não é o tema central da narrativa, não é a partir dele que os programas narrativos vão se moldando, se transformando.
A outra relação incestuosa entre André e seu irmão mais novo relatada posteriormente no livro vem a ratificar o verdadeiro desejo de André, o de se rebelar, de arrebentar as amarras que o impedem de seguir adiante, de ser dono do próprio destino. Ao aliciar o irmão, André desqualifica o mote da narrativa como sendo seu amor pela irmã, para instaurar seu verdadeiro objeto de desejo, sua busca pela liberdade. Já no filme, a cena de André com Lula assume uma nova perspectiva, ambígua, menos explícita, velada, que pode inclusive passar despercebida aos olhos do enunciatário. Mais uma vez, a supressão de um acontecimento de valor implica em mudança na hierarquização dos programas narrativos. Ao pensarmos no programa do sujeito André, suprimindo os dois acontecimentos relatados anteriormente, enxergamos a busca do sujeito pelo amor de sua irmã, cuja ausência é a fonte de toda sua angústia. Haveria, então, o programa narrativo do sujeito da falta, que deseja a conjunção com seu objeto, e só ele poderia torná-lo pleno. Porém, ao tomarmos consciência de toda a trajetória da sexualidade de André, pensamos em sua relação de incesto com a irmã sob uma perspectiva diferente; André é o sujeito do excesso, o insatisfeito, é um sujeito que anseia por rupturas; toma as leis e os valores do pai e os vira pelo avesso, a fim de apontar para a hipocrisia das regras sociais e culturais, obedecidas cegamente. No trecho a seguir, o personagem tenta convencer a irmã de que a relação entre eles é perfeitamente aceitável e digna, pois concretiza os ensinamentos do pai; é pelo excesso que André desconstrói as verdades, pois leva ao extremo todos os preceitos paternos:

"foi um milagre descobrirmos o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade (...) foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites da nossa própria casa, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família;" (NASSAR, 2006, p.118).




A todo momento, André questiona a autoridade do pai, faz sua reflexão crítica sobre o que lhe é imposto, entende o verbo proferido como ponto de partida para suas considerações, e não como verdade absoluta e universal. Da parábola milenar do faminto, utilizada pelo pai para ressaltar que "a paciência é a virtude das virtudes" (NASSAR, 2006, p.60), André, mais uma vez, questiona, subverte, toma para si e submete ao seu entendimento: "como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história oriental?" (NASSAR, 2006, p.80). O sujeito do excesso anseia pelo revés da situação, pois se sente saturado; nas palavras de Tatit, "quando a saturação já está instalada de acordo com um determinado julgamento, só resta ao sujeito dispensar o excedente e promover uma espécie de crescimento às avessas em busca de uma medida mais moderada (menos mais)" (TATIT, 2011, p.38 - grifo do autor). André, então, tomar as rédeas da própria vida "eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos!" (NASSAR, 2006, p.80 e p.88). André foge de casa, não por causa da impossibilidade da consumação do seu amor pela irmã, mas para se ver livre das amarras morais e autoritárias do sistema ao qual está inserido contra a sua vontade. A ruptura física do contrato fiduciário entre André e a família gera também a quebra da 'espera fiduciária'- baseada na confiança – (GREIMAS, apud TATIT, 2002, p. 193) na relação bidirecional entre mãe e filho. Pois a partir dessa relação é que se instaura a desconstrução dos moldes arcaicos, moralistas e hipócritas, até, na percepção do sujeito:

"Não tinha ainda abandonado a nossa casa, Pedro, mas os olhos da mãe já suspeitavam minha partida (...) e me ocorreu que eu pudesse também dizer não aconteceu mais do que eu ter sido aninhado na palha do teu útero por nove meses e ter recebido por muitos anos o toque doce das tuas mãos e da tua boca; eu quis dizer é por isso que deixo a casa, é por isso que parto (...) ouvi dos teus olhos um dilacerado grito de mãe no parto, senti seu fruto secando com meu hálito quente (...) mesmo assim não era possível dizer, por exemplo, eu e a senhora começamos a demolir a casa (...)" (NASSAR, 2006, p. 64-66).


André retorna à casa, trazido por seu irmão Pedro, em uma alusão à parábola do filho pródigo, "aquele que tinha se perdido tornou ao lar, aquele pelo qual chorávamos nos foi devolvido" (NASSAR, 2006, p.149. Mas sua volta não simboliza seu tão esperado reconhecimento como ser social e sua inserção na estrutura familiar; André retorna para evidenciar a decadência dessa estrutura familiar, sua ruína completa; mostra a força primitiva e descomunal das paixões e dos instintos que se mostram mais fortes que a moral e a austeridade das tradições, sejam elas religiosas, morais ou culturais. É o programa narrativo do sujeito do excesso que tece a trama da narrativa e molda a sanção final do destinador- o pai, o sujeito da justa medida, da moderação, da prudência; O sujeito do excesso mostra o avesso da paciência, da obediência e da austeridade. A sanção final vem da impaciência, da desobediência, e da paixão exacerbada; são essas as emoções que modalizam o pai e o fazem deferir o golpe final.

Considerações finais

Na obra de partida, André representa o sujeito do excesso, que anseia por rupturas, que busca a liberdade como uma reação à opressão moralista do pai; o efeito de sentido da obra se dá através do seu percurso contra a moralidade e a tradição que nasce no seio da família, e que devem ser cultivadas a todo custo. A família é entendida aqui como unidade primordial na sociedade, como centro do universo, estrutura que modela o sujeito e seus comportamentos; estrutura essa que ao ser exacerbada e levada ao extremo, acaba por entrar em colapso. Pela perspectiva de André, o sujeito do excesso, entendemos como se dá essa desconstrução do modelo familiar, através da demonstração da hipocrisia absurda e desmedida dos valores morais. Já na adaptação, vemos que a argumentação final da obra é baseada na relação incestuosa entre André e sua irmã. É a narrativa do sujeito da falta, que ao final, tendo o pai como destinador, lhe impõe a sanção final: a morte da irmã e a consequente disjunção com seu objeto de desejo.
O que buscamos ao longo desse trabalho foi uma análise comparativa das duas obras, o texto literário e sua adaptação fílmica, sob a perspectiva da fidelidade ao efeito de sentido produzido pelo livro, sua essência, seu espírito. Aplicamos nosso protocolo de ações para elencar comparativamente as mudanças que se deram na tradução; tanto no processo, quanto no produto.
Apesar da fidelidade na manutenção das isotopias temático-figurativas - e também da fidelidade ao plano de expressão, tendo em vista a reprodução fidedigna dos diálogos e das narrativas ao longo do filme, a atribuição de valor a certas cenas acabou por afetar a abstração dos temas constituintes do discurso ideológico engendrado no texto. Aos acontecimentos cabem a modalização dos sujeitos e as transformações de seus estados; é deles a responsabilidade de hierarquizar os programas narrativos, e com eles, a argumentação final da obra.
Esse trabalho não se prestou a fazer juízo de valor quanto à qualidade do trabalho de tradução intersemiótica, mas sim a traçar encaminhamentos que acreditamos serem úteis para análises posteriores sobre as mudanças no eixo narrativo por consequência da valorização ou supressão de ações e como interferem na argumentação final da obra, seja na adaptação fílmica ou na versão da obra para outras línguas.


Referências Bibliográficas:

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