CAPÍTULO: Em busca de uma didática da invenção surda

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Em busca de uma didática da invenção surda :

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Cristiane Correia Taveira

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Pedagoga, Doutora em Educação pela PUC Rio. Professora Adjunta da área de Educação Bilíngue do Departamento de Ensino Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos (DESU/INES).

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Todos querem reinventar a escola, inclusive nós mesmos (e eu mesma). A academia pretende que seja necessária uma intermediação entre o conceitual e o "o que fazer", a propósito da prática propriamente dita. Candau (1983) refuta a ideia de uma didática como "elo de tradução" entre outras disciplinas e a prática pedagógica. Basear-se em outras disciplinas não significa nos distanciarmos da articulação entre ;o "como fazer", o "para que fazer" e "por que fazer". ....: , Esse esforço teórico é verificado no saber da experiência e no saber enquanto prática, a chamada didática vivida (CANDAU, 1998). No entanto, os estudos conceituais procedimentais que culminavam em manuais de ações práticas e discussões teóricas focadas em procedimentos, criticados nos anos 1980 por Candau, nos incumbe, ainda hoje, de não ambicionarmos cumprir a função de meros tradutores de conceitos em ações práticas, como foram chamados os tecnicistas. O problema, do mesmo modo, ainda se dá na ênfase em ideais de igualdade, conceitos para uma ação política e crítica, mas que esteja esvaziada da ação prática dos sujeitos, da pluralidade de vozes silenciadas no campo de atuação.

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Conforme o esforço dos últimos 20 anos do GECEC, coordenado por Candau, o compartilhamento de práticas nos leva a ir contra a padronização da didática, se,ndo, talvez, uma utopia viável, a partir do equilíbrio do que há de universalização com o que há de diferencial na(s) didática(s), acr.~scentando o que há de criação de grupos minoritários a esta(s), buscando tornar outras "didáticas" também públicas, visíve_is{, ou_~eja, suas práticas pedagógicas conhecidas, sendo necessário ·[eorizá-las densamente. A começar pelo título deste artigo, o que motivou nomeá-lo "uma didática da invenção surda"? Sigamos algumas pistas. Per1in (2007), pesquisadora surda, argumenta que "ser normal para o surdo significa ser surdo, autenticamente surdo" (p. 9). As nuances da autenticidade e da identidade de ser surdo é algo complexo no discurso dos surdos e se constitui aspecto importante de suas práticas, incluindo a prática ped~gó_gica, ou notadame~t~, uma didática caracter ística ou diferencfada defendida pelos su1e1tos desta ação: os professores surdos.

Ainda s~gundo Perlin (~~07), os surdos formam um grupo que realmente mveste na dec1sao de ser diferente, o que seria delimitado pe1~ próp~ia pesquisa~ora surda como "o jogo entre o que é a nossa mve~ça~ e o que mvent~ram sobre nós" (p. 11). A invenção da surdez mc1de tanto por me10 do reconhecimento de suas diferenças internas, na chave das capacidades fisiológicas definida pelos surdos como da experiência visual, quanto no campo das características socioeconômicas e culturais, na chave das práticas pedagógicas ou da invenção de uma didática específica.

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Daí que, diante do jogo entre interconhecimento, produção ou invenção da diferença surda e das diferenças na surdez, emerja a análise das práticas pedagógicas com a participação dos próprios surdos, levando em consideração o ponto de vista desses atores, professores surdos, como forma de refletirmos sobre o processo de empoderamento de grupos minoritários e a ação do pesquisador junto a estes, bem como da discussão conceituai pertinente às suas inquietações, em mútua colaboração pesquisados-pesquisador. DIDÁTICA FUNDAMENTAL E CONTEXTO DE PESQUISA

Estamos diante do que Candau (1983) refere, em primeiro lugar, como crítica à visão instrumental da didática, nos alertando que, do mesmo modo, no entanto, não é possível negar a sua importância. Necessário direcionar o olhar investigativo para os sujeitos da prática, seus contextos de produção culturais e políticos e a efetividade de suas ações em prol das consequências esperadas; o que no caso dos surdos são variados anseios, desde o ato comunicativo em sua língua patrimonial' até a constituição de uma coletividade de características visuais e que intenta torná-los biJíngues e visualmente criativos. Para isso, consideramos que "a competência técnica e competência política não são aspectos contrapostos. A prática pedagógica, ·exatamente por ser política, exige a competência técnica" (p. 23), pois as aspirações deste grupo minoritário não são nada simples de serem vivenciadas.

o processo político situado acima dos procedimentos práticos também não pode nos auxiliar bem. As práticas pedagógicas, por mais 1 Para as comunidades surdas brasileiras, a Libras é sua língua patrimonial porque ela é um índice de sua cultura que foi criada a partir da utilização dessa língua há quase dois séculos. Baseandose em Bakhtin. Felipe afirma que: "sendo uma língua um patrimônio sociolinguístico" de grupo e definidora de aspectos identitários do mesmo, "ela é uma multidão de crenças verbo-ideológicas e sociais interligadas, constituindo-se de enunciados e vozes" (FELIPE, 2012, p. 9-10).

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criticas e politizadas que sejam, não podem deixar de reconhecer os processos de ensino-aprendizagem de grupos que acessam a pa~a~ra por outras modalidades e linguas 2• Diante dessa problemattca, novamente o valor da didática anuncia um tempo em que os movimentos sociais e as reivindicações de grupos minoritários demandam o direito à diferença. Ainda assim, o valor político acima do valor procedimental nos arrisca a ver um esvaziamento de sentido da didática, por não reconhecer inter-relações culturais e "costumes do fazer" que não serão ditados por nós, de cima para baixo e, sim, por e com Eles. Na década de 1990, Candau {1997) reinventa dizer sobre um cotidiano e um não-cotidiano, de negação ou de supeFação, de "rupturas" com o próprio cotidiano aos quais devemos estar atentos, a isso que é diverso, fora do costume, do padrão das salas de aula. Reconhecer que algumas pessoas podem não ter a compreensão teórica sobre as próprias práticas, sobre suas rupturas, em ações no campo, que provocam e são provocadoras de reações em outros atores educacionais, vai se constituindo o fio condutor primordial das pesquisas com grupos minoritários; ir a campo ver que o saber-fazer dos sujeitos tem um sentido. Descrevê-lo pode ser a possibilidade de ensinar as próprias técnicas dos sujeitos aos próprios atores, ampliando-as para os que se interessam, de fato, por transformações na prática pedagógica. No entanto, o ativismo social não dá conta de toda a produção em cadeia de repúdios ao cotidiano e ao não-cotidiano, ao diferente, e é preciso sair para além do saber-denúncia, porque dele, no território da surdez, talvez estejamos bem paramentados. A titulo de sugestão, é preciso ser mais econômico academicamente, ser direto e mostrar o "pulo do gato", o segredo ou o destaque, enfim: "o que combina e o que não combina com os surdos" e, afinat a que se referem quando nos sinalizam sobre o letramento do surdo. Seria mais interessante, ainda, fazer as conexões dentro do território da pesquisa, de modo dialogado com os sujeitos surdos e não-surdos para verificarmos as tensões sobre significados e sentidos do letrar. 2 No caso, os grupos minoritários de pessoas surdas são aqueles que utilizam uma escrita não convencional do português, mas que a escola não considera e acaba por estabelecer para eles uma sucessão de escolarizações discriminatórias, ou seja: a escola almeja torná-los mais " normais", tentando curá-los, reprimi-los, consertá-los em seus usos dos objetos e dos comportamentos convencionais da escola, mantendo-os sentados, limitando-os a pegarem em lápis e papel, a darem as respostas de modo oral ou escrito, em língua portuguesa, evitando a língua de sinais e outros modos de compreensão auxiliados por meio de imagens, gestualidade.

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Isso seria o mais válido, a propósito de referendar e agenciar esse algo que foge ao cotidiano massificado, e ainda pouco explorado. No tecnicismo esconde-se a conceituação, sendo que o sujeito da ação não precisa entender o conceito que está por trás de sua prática. Ao contrário disso, "ser esclarecido" das conceituações, das tensões da contemporaneidade, não prescinde sobre o saber-fazer na sala de aula. Ver as coisas cotidianas e não-cotidianas e fazer com que prevaleçam em pé de igualdade, com as diferenças que se apresentam em relação ao conjunto das ações hegemônicas, nos impõe uma tentativa de criar um espaço intercomunicante, intercultural.

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Inconformismos da academia podem ser gerados, no caso desta tentativa - de se conceituar a partir dos sujeitos - ser lida apenas no que traz de novidade sobre as práticas. Um pesquisador que produz prolongado trabalho intelectual sobre práticas de grupos minoritários pode ser compreendido como algo negativo na posição de alguns pesquisadores orgânicos e lideranças políticas, ou pode soar inferior, para pesquisadores teóricos mais fechados em elaborações conceituais "puras".

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Contudo, para desenvolvermos junto aos sujeitos uma conceituação sobre o próprio cotidiano escolar podemos incorrer em frustação, uma vez que os professores não têm tempo para ponderar, por longa e profunda estada, junto ao pesquisador sobre essa prática. O sujeito protagonista de sua própria prática, que seja elaborador de proposições conceituais sobre a mesma sobrevive como uma pequena parcela diante dos constrangimentos derivados da exploração capitalista contemporânea - alta carga de trabalho, _pouco ~em­ po para estudo, salário insuficiente para uma boa automstruçao. Seguir os rastros de ação, tentar corrigir esse gap, fazendo o que não há tempo a ser feito pelo sujeito da prática, ou seja, a elaboração teórica sobre a própria prática, fez e faz sentido. Somente convidar esses sujeitos para refletir sobre a prática, em pouc~s momentos de formação continuada, cada vez mais escassos, nao adianta muito. Os pressupostos sobre Educação Bilíngue3, muitas vezes reproduzi3

Ensino Bilíngue para os surdos, segundo Skliar (1998, p. 25), não seria o desenvolvimento de habilidades linguísticas em duas línguas; refere-se ao direito da pessoa que utiliza uma língua diferente da língua oficial de ser educada em sua língua (UNESCO, 1954). Preconiza a aquisição e desenvolvimento da língua de sinais como primeira língua. De 25 a 27 de fevereiro de 2014, o

dos sem reflexão, mas, ainda assim, com a associação de conceitos por Eles mesmos, podem não ser suficientes e se distanciarem de uma elucidação teórica. Deste modo, do desafio da superação de uma didática instrumental, os aspectos que geram maior impacto ou chave de leitura no campo desta pesquisa foram, inicialmente, os seguintes: 1

A perspectiva fundamental da didática supõe a multidimensio-

nalidade do processo de ensino-aprendizagem, constituindo-se na e/da articulação das dimensões técnica, humana e política (CANDAU, 1983, 2012), produzindo, atualmente, um referencial teórico-prático e perspectiva de análise que ofereça condições de apreciação crítica das atualizações constantes movidas pelo entrecruzamento de estilos de aula e da influência de novas tecnologias, das novas dimensões e extensões do humano, da validação de maior gama de diversidade humana na e pela escola.

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2 A perspectiva fundamental da didática parte da análise da prática concreta e de seus determinantes (CANDAU, 1983, 2012). Nes-

se sentido, são cabíveis distinções sobre os elementos culturais novos ou anteriormente apartados em meio à cobrança social, legal e política da convivência (ou não-convivência) entre grupos sociais diferenciados: dos surdos e não-surdos. A saída seria compartilhar regularmente essas práticas, assegurando um contínuo de discussões, de formação os quais traremos os grandes eixos - ou temas - debatidos. Pela linha de incursões ao longo de pesquisa realizada com professores surdos, podemos mostrar que há uma linha de ação, até mesmo uma didática surda. Passemos as teorizações, pois assim procedemos para quebrarmos grossas camadas sem assento nem referência sobre a prática que os próprios sujeitos são desejosos à ilustrar.

Eixo 1 Visual literacy, Letramento visual, Alfabetismo visual

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alfabetismo visual implica compreensão, e meios de ver e compartilhar o significado a certo nível de universalid~de. ~ realização disso exige que se ultrapassem os poderes v1sua1s

Grupo de Trabalho designado pelas Portarias n. 1.060/2013 ~ nº91/201 3(M~C/~~CADI) ~labo­ rou um Relatório contendo subsidios para a Política Linguist1ca de Educaçao B1h ngue - Lingua Brasileira de Sinais e Ungua Portuguesa - a ser implementada no Brasil.

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inato~ do organismo humano, além das capacidades intuitivas em nos ~rogramadas para a tomada de decisões visuais numa base mais ou menos comum, e das preferências pessoais e dos gostos individuais (DONDIS, 2007, p. 227).

A alfabetização visual significa aprender a ler imagens, desenvolver a observação de seus aspectos e traços constitutivos detectar o que se produz no interior da própria imagem, (...): Ou seja, significa adquirir os conhecimentos correspondentes e desenvolver a sensibilidade necessária para saber como as imagens se apresentam, como indicam o que querem indicar, qual é o seu contexto de referência, como as imagens significam, como elas pensam, quais são os seus modos específicos de representar a realidade (SANTAELLA, 2012, p. 13). 288

As pesquisadoras Dondis e Santaella nos forneceram as teorizações de base. Para ambas, o letramento visual, alfabetismo ou alfabetização visual significa sistematização e, até mesmo, empoderamento de sujeitos que se apropriam das habilidades (e técnicas) de leitura de imagens, criando deste modo um corpo comum, um universal de significações e um refinamento de leitura próprio dos mais cultos, letrados. Para Santaella (2012), o conceito visual /iteracy, traduzido para letramento, alfabetização ou alfabetismo visual, quando levado a sério, significaria que para lermos uma imagem, deveríamos desenvolver a capacidade de desmembrá-la em partes, decodificá-la e mesmo interpretá-la, em um comparativo com o processo de leitura em voz alta, decifração de código, tradução. Para a autora, isso se referiria a uma atividade didática da alfabetização ou letramento visual. Na concepção de Santaella (2012), ler imagens por meio de outras imagens e, talvez, explicá-las por meio de substituições por outras imagens, em contínuo, ou links, seria mais próximo da criação artística. Essa concepção mais artística restaura o que resgato de Strobel (2008, p.66): "o artista surdo cria a arte para que o mundo saiba o que pensa, para explorar novas formas de 'olhar' e interpretar a cultura surda". Algumas descobertas junto aos copartícipes foram enumeradas a seguir. A ideia de que o surdo esteja acessando o que eJe pensa de modo indireto, deslizando em imagens ou metáforas visuais que se tra-

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