Catar dores, catar ventos: o tempo da escrita na clínica com crianças em situações de violência

May 23, 2017 | Autor: H. Pillar Kessler | Categoria: Psychoanalysis, Violence, Writing, Childhood studies
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Catar dores, catar ventos: o tempo da escrita na clínica com crianças em situações de violência1 Helena Pillar Kessler2

As considerações que seguem se propõem a narrar algumas questões referentes a um trabalho com a infância que ocorre há cinco anos em Porto Alegre/RS. Chama-se Casa dos Cata-Ventos e é um projeto de extensão e pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que se dá em parceria com o Instituto APPOA (da Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Uma estratégia clínica e política na atenção à infância (Gageiro & Torossian, 2016). Inspirada no que ficaram conhecidas como as Estruturas Dolto, criadas por Françoise Dolto na França, e na Casa da Árvore do Rio de Janeiro, a Casa dos CataVentos é um espaço de convivência para crianças e suas famílias que vivem em uma comunidade da cidade. Um lugar para brincar, contar histórias e conversar, que, aos poucos, foi moldando seu fazer, adquirindo uma proposta própria, em consonância com as características do território em que se insere. Mais do que um modelo de trabalho, a Casa dos Cata-Ventos é um experimento, o exercício de um trabalho com a infância norteado pela ética psicanalítica. Lá acontecem algumas atividades: turnos destinados ao livre brincar, oficinas de contação de histórias, oficinas de capoeira e um grupo de adolescentes. É um lugar que acolhe a vida comum, compreendendo o brincar em sua dimensão simbólica e que possibilita à criança a construção de ficções, de versões próprias do mundo que a rodeia. A função dos adultos que recebem as crianças na Casa dos Cata-Ventos é a de envolver esse brincar por palavras, cuidado e acolhimento; o brincar, desse modo, não é dirigido, ele simplesmente acontece. Orientamo-nos pela ética da “parler vrai”, palavra ou fala verdadeira a ser dirigida às crianças – noção proposta por Dolto (2005) que, convencida da missão da                                                                                                                 1

Trabalho apresentado e publicado nos anais do VII Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XIII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, realizado em setembro de 2016 na cidade de João Pessoa – PB. Disponível em: http://www.psicopatologiafundamental.org/pagina-vii-congresso-internacional-de-psicopatologiafundamental-e-xiii-congresso-brasileiro-de-psicopatologia-fundamental-837 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

“humanização da pequena infância”, indica a importância de falar verdadeiramente com a criança, tomando-a como sujeito. Na Casa dos Cata-Ventos, não falamos de crianças, falamos com crianças. Essa proposta é sustentada coletivamente, por uma grande equipe com diferentes vínculos institucionais, que se reveza nos turnos de trabalho na Casa: cada profissional atua em um único turno por semana, buscando-se, com isso, que a transferência esteja direcionada à Casa, ao espaço. Assim, a proposta da Casa dos Cata-Ventos se dá em conjunto entre os vários profissionais da equipe, sendo construído a muitas mãos e muitos ouvidos. Os turnos de atividades costumam ocorrer com cerca de quatro ou cinco profissionais, e a construção do caso e da intervenção acontece no permanente compartilhamento entre a equipe. Em Porto Alegre, a Casa dos Cata-Ventos está situada em uma pequena favela chamada Vila São Pedro. Próxima às áreas centrais da cidade, tem seus limites demarcados pela vizinhança com um shopping center, um hospital psiquiátrico e a sede da associação médica do estado. A única via que dá acesso a esse território se localiza em uma importante avenida da cidade, com trânsito intenso de automóveis. Todavia, quem passa por ali com pressa dificilmente percebe o que se evidencia somente para quem adentra o território: precariedade nas moradias e na urbanização, no saneamento, no acesso dos moradores às políticas públicas e à cidadania. Seus moradores vivem em condições de pobreza e miséria, trabalhando principalmente na coleta de materiais recicláveis com carroças ou carrinhos, o que faz com que as vias da comunidade acabem utilizadas como depósito desses materiais. Compreendemos como violência os efeitos da desigualdade social brasileira e da injustiça a que algumas pessoas estão submetidas. Assim, poderemos falar em diversos modos violentos que se fazem presentes no território em questão, que vão desde a violação de direitos, a dificuldade de acesso a cidadania e a consequente desproteção aos sujeitos que ali vivem, até a violência das ações de tráfico de drogas e sua truculenta repressão policial. Ao mesmo tempo, há também uma violência que perpassa as relações, fragilizando laços. Nessa trama, há ainda a violência que se apresenta no corpo e a morte violenta – situações que quem ali vive presencia, incluídas as crianças. Ao discorrer sobre a violência em grandes cidades brasileiras, Endo (2005) aponta que a histórica desigualdade social, em conjunto com sua naturalização e banalização, faz com que algumas versões disso que chamamos de violência vão se

tornando invisíveis, não só para quem as comete, mas também para aqueles que sentem seus efeitos. Como efeito, tal desigualdade diariamente ratificada autoriza essas violências. O autor destaca, com isso, a existência de certos espaços “potencialmente traumatizantes” nas cidades, devido à desregulação e à ausência de proteção ao cidadão que por eles circula e habita. Esses espaços conjugam duas situações para o sujeito: além de se encontrar mais exposto e mais vulnerável, também permanece expectante e angustiado diante de uma violência que pode vir a qualquer momento, de modo abrupto e traumático. Ao propor um espaço de acolhida da vida comum, a Casa dos Cata-Ventos por vezes também presencia efeitos dessa violência no cotidiano de trabalho com as crianças. Algumas vezes, acontece de as crianças repetirem cenas e situações em que suas brincadeiras demoram em encontrar o caminho das palavras e fantasias: alguns elementos presentes no território, como a destruição, a sujeira, a violência, o grito, a morte, insistem em se evidenciar nas construções das crianças e nas brincadeiras, transferencialmente endereçadas à equipe. Em determinada ocasião, nossa equipe foi surpreendida pela notícia de um brutal assassinato entre moradores antigos da comunidade. Eram amigos, e um desentendimento terminou em morte. Quem passava pela rua, incluídas algumas crianças, presenciou a cena. Após esse episódio, percebeu-se um acirramento de situações de conflitos e agressões entre as crianças e em direção ao espaço da Casa dos Cata-Ventos. Ao longo de várias semanas, ocorriam episódios em que as brincadeiras adquiriam intensidade e, aos poucos iam ultrapassando as bordas de sua dimensão ficcional: brincadeiras de polícia e ladrão que acabavam em brigas e machucados, brincadeira de perseguição a bandidos que terminava com porta de banheiro quebrada, brincadeira de casinha que era completamente destruída e inviabilizada por outras crianças. Tais situações insistiam em se repetir, fazendo-nos pensar que, nessa repetição, também estava colocada uma referência ao traumático (Freud, 1920). Aqui, cabe salientar que compreendemos o tempo do infantil como especialmente vulnerável ao evento traumático, uma vez que os recursos simbólicos ainda estão em constituição, em um tempo no qual a linguagem revela de modo mais explícito sua insuficiência. Os conflitos entre as crianças adquiriram tamanha intensidade em um dos turnos de trabalho, que se tornou insustentável seguir as atividades do dia, de modo

que a única intervenção encontrada foi a sustentação de um corte, no encerramento do horário de brincadeiras. A equipe comunicou às crianças o término das atividades anunciando que, com a intensidade das brigas, poderiam se machucar; disso se desdobrou a resposta de que, em uma briga, pode-se inclusive morrer. A partir disso, do corte e da enunciação, as crianças puderam fazer um relato contundente da experiência de horror ao presenciar o assassinato, narrando sobre o medo sentido. A cena que incessantemente vinha sendo construída ao longo de semanas, pôde enfim deslizar para relatos angustiados. Dolto (2005), a respeito da proposta de trabalho que inspirou a Casa dos CataVentos, enfatiza a necessidade de uma relação de disponibilidade no oferecimento de uma escuta a crianças. Fala da importância de se fazer presente e disponível, acolhendo o que for trazido pela criança, independentemente do que seja. No contexto brasileiro e da comunidade em que a Casa dos Cata-Ventos está inserida, essa condição se torna ainda mais radical. Dispor-se a escutar, intervir, nomear, no território em que se está, exige uma disponibilidade para escutar determinadas situações de dor, de excesso, ou que remetem ao indizível do traumático. Além disso, coloca um impasse à equipe, ao se propor a garantir a presença de uma palavra verdadeira quando as palavras de que se dispõem parecem ser insuficientes para dar conta da intensidade do vivido. Ao mesmo tempo, a escuta de tais situações pode promover, transferencialmente em quem as escuta, um efeito de horror pelo encontro com o estranho familiar – que deveria ter permanecido oculto, mas se revelou (Freud, 1919). *** Expostas brevemente as condições em que o trabalho na Casa dos Cata-Ventos acontece, aqui pretendemos detalhar um pouco do método de trabalho adotado, o qual, operando em diferentes tempos e utilizando-se do dispositivo da escrita, tenta dar conta das intensidades presentes na intervenção. Conforme dito anteriormente, é um trabalho que se faz em um grupo de profissionais, com a permanente costura, entre a equipe, do que acontece no encontro dos trabalhadores da Casa com as crianças que vivem no território. É composto por diferentes atores, em diferentes tempos.

Assim, podemos falar em um primeiro tempo, do encontro nas atividades que a Casa dos Cata-Ventos oferece, quando as crianças e adolescentes chegam interessadas pela oferta de “um lugar para brincar, contar histórias e conversar”; tempo da escuta e reconhecimento de um sujeito. Em seguida, a equipe de quatro ou cinco pessoas que recebeu as crianças em cada turno se reúne para discutir o que se passou nas horas anteriores, discutindo impressões e intervenções. Posteriormente, há um trabalho de escrita sobre o turno de trabalho, na forma de relato a ser endereçado ao grande grupo via e-mail, com o compartilhamento narrativo de acontecimentos, impressões, intervenções, afetos, surpresas e tudo aquilo que for importante transmitir ao grupo que estará no turno seguinte. Semanalmente, há uma reunião com toda a equipe de trabalhadores da Casa dos Cata-Ventos, na qual, a partir das escritas enviadas, discute-se o trabalho realizado na semana e se planejam intervenções. Há também um trabalho de escrita desse momento na forma de ata, com registro de encaminhamentos e posterior compartilhamento da escrita via e-mail. Nesse método de trabalho, há um encadeamento entre narração-escrita, operando com os diferentes tempos da intervenção. Dessa maneira, a discussão dos casos e construção da intervenção vai se dando entre todos do grupo de profissionais que compõem a equipe. Mais do que um tempo cronológico, com o encadeamento linear de etapas, podemos pensar o tempo aqui também a partir das proposições de Lacan (1945) acerca do tempo lógico. Lacan sugere três momentos lógicos do tempo – o instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir – para propor que o saber possível do sujeito do inconsciente passa por uma experiência subjetiva do tempo, a qual requer também uma relação de alteridade. Em sua proposição, para o sujeito, só é possível chegar a uma conclusão, a um efeito de verdade sobre si, a partir do encontro com o outro, a partir daquilo que é antecipado pelo outro. Ou seja, é somente o tempo do outro que permite que o sujeito chegue à conclusão sobre si. Está colocada aí uma relação de reciprocidade. Essa temporalidade se refere à prática psicanalítica e também à noção lógica de coletividade. Ao falar sobre a temporalidade própria da Casa dos Cata-Ventos, podemos dizer que o jogo temporal a que Lacan (1945) se refere se faz presente o tempo todo. À medida em que uma conclusão se faz sempre com os outros, é só pela via dos outros que se pode ter alguma certeza de si mesmo. Essa relação eu-outro que se

experimenta através do tempo vai permear todo o desenvolvimento dessa proposta de intervenção. Na Casa dos Cata-Ventos, o tempo é instrumento de trabalho. A escrita, por sua vez, vai acompanhando todos esses tempos, perpassando a intervenção e transformando o trabalho. Estabelece-se com ela um tempo de parada, em que é possível rever e repensar o turno de trabalho, para então transmiti-lo ao restante do grupo. O relato do turno de trabalho enviado aos pares vai se fazendo não necessariamente como um relato minucioso do que aconteceu, mas, principalmente, como um momento destinado a registrar e partilhar impressões sobre o que se passou. Assim, é por meio da escrita que se dá o enlaçamento entre as diferentes etapas da intervenção, circunscrevendo a clínica, ao mesmo tempo em que vai dando forma para o que excede dos encontros com as violências citados anteriormente. Com isso, busca-se dar nome aos efeitos desses encontros, ao que se repete na transferência. Nesse tempo posterior ao turno de trabalho, no exercício da construção de uma narrativa endereçada ao restante do grupo, a intervenção da Casa dos Cata-Ventos se desdobra e segue se produzindo, para além do que acontece no momento do encontro com as crianças. Sobre o ato da escrita, podemos pensar, juntamente com Costa (2001) que a escrita transporta detritos corporais, restos não assimiláveis, que têm como suporte a constituição do corpo pulsional. Na busca pela produção do ato de escrever, tenta-se dar conta de algo que permaneceu sem registro do lado do autor, tentando, assim, produzir um ato que tenha valor de um registro (e que possa voltar a fazer borda, voltar a reconstituir o corpo). E, nessa produção, precipita-se um estilo: no estilo, nisso que se repete, há a insistência de algo que não se escreve, que corresponde a esses detritos que são impossíveis de escrever e de transmitir. Para a autora, de algum modo, isso produz efeitos no leitor para além do argumento, ou do entendimento daquilo que ele lê, da mesma maneira em que também produz efeitos no autor, para além daquilo que ele pode reconhecer estar escrevendo. Além disso, escrever implica um afastamento, o reconhecimento de uma distância: só se escreve quando se muda de lugar (Costa, 2001). A escrita contém algo privado, algo de si, ao mesmo tempo em que socializa; diz de um exílio, mas também contém sempre um endereço. Pode-se pensar na escrita como uma forma de manter vivo o intervalo entre um e outro de onde se deduz um sujeito (Guimarães, 2007); com isso, a escrita comporta precisamente a alteridade.

Ao carregar essa relação entre eu e o outro, a escrita diz, portanto, de uma transmissão. Na Casa dos Cata-Ventos, a escrita enquanto transmissão se torna condição para um trabalho de elaboração que vai se fazendo. Ao mesmo tempo em que algo resiste, desse vivido que não cabe nas palavras, há a intenção de transmiti-lo aos pares que compõem o restante da equipe. Em meio a essa transmissão, que sempre é falha, vão-se buscando modos de, no compartilhamento com o outro, construir algo que seja da ordem de uma experiência. A escrita carrega restos não assimiláveis e vai ajudando a dar contornos para o encontro com o Real das violências, da morte e da miséria, criando meios para suportar a transferência nessas condições. Podemos pensar que, nesse jogo de escrita-leitura que ocorre entre os trabalhadores da Casa dos Cata-Ventos, ao se buscar transmitir algo, tenta-se um exercício de catação entre aquilo que restou das palavras. Entre o vivido, procura-se catar algo em uma tentativa de transmissão, de modo que vá se construindo a narração da experiência da Casa dos Cata-Ventos. O tempo da escrita impõe um momento de parada, de reflexão, para só então, através da escrita, algo sobre o vivido ser contado, permitindo, assim, um contraponto à urgência da angústia; um tempo da espera ante aquilo que se apresenta como inadiável. Ao que, algumas vezes, dadas as intensidades do trabalho, pode se manifestar como um instante de ver seguido por um momento de concluir, a escrita oferece um exercício do tempo de compreender diante do que se apresenta como excesso. Nesse sentido, a narração do vivido nos turnos de trabalho adquire também um caráter testemunhal. Entre aquele que fala e aquele que escuta, entre aquele que escreve e aquele que lê, algo de novo é possível surgir. No ato de fala e no ato de escrita, ambos endereçados a um outro, o vivido pode ser narrado, colocado em palavras, historicizado. Ao colocar em cena a posição de um terceiro (aquele que escuta e aquele que lê) que consegue se manter escutando diante da narração insuportável do outro, uma elaboração vai tendo lugar. Ao operar com a escrita, esse método de trabalho permite, além disso, a criação de um comum, a partilha de algo referente aos efeitos dos encontros que acontecem na Casa dos Cata-Ventos. Poderíamos concluir propondo que, se as crianças têm no brincar uma superfície que permite a construção de ficções diante das dores da vida, os adultos que as recebem e as escutam na Casa dos Cata-Ventos têm, na escrita que organiza o trabalho, possibilidade semelhante. O esforço por retomar a palavra que o exercício

da escrita promove tem sido uma das formas encontradas por essa equipe para a sustentação da aposta na presença da palavra na transferência com crianças, mesmo em situações que provocam emudecimento. Referências Costa, A. (2001). Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Dolto, F. (2005). A Causa das Crianças. Aparecida: Idéias e Letras. Endo, P. C. (2005) Violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico sobre as violências na cidade de São Paulo. São Paulo: Escuta/Fapesp Freud, S. (1919) O Estranho. Em Freud, S. (1996). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1920). Além do Princípio do Prazer. Em Freud, S. (1996). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago. Gageiro, A. e Torossian, S. D. (2016). A Casa dos Cata-Ventos: histórias e fissuras na práxis burguesa da psicanálise. Em Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v. 257, julho/2016. Guimarães, B. F. (2007). A escrita na clínica: construção de uma alteridade. Em Costa, A. e Rinaldi, D. (2007). Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud. Lacan, J. (1945). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. Em Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

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