Corpo Danca e Performance uma breve reflexao

June 1, 2017 | Autor: Andréa Bardawil | Categoria: Performance, Artes, Corpo, Dança, Dança Contemporânea, Estética Da Existência
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  Corpo, Dança e Performance, uma breve reflexão

Andréa Bardawil1

Gostaria de iniciar esta reflexão apresentando o título do mais recente trabalho da performer, bailarina e coreógrafa carioca Micheline Torres: Eu Prometo, Isto é Político2. Junto com o seu trabalho anterior, Carne, o trabalho integra o projeto Meu Corpo é Minha Política, que segundo as palavras da artista trata disto: corpo e política, ou, da arqueologia de estar com pessoas e lugares. O projeto constitui-se como “uma prática insistente, estratégias, instrumentos, dinâmicas de produzir, transitar, conversar, afetar e ser afetado no fazer artístico, entendendo esse fazer artístico como uma prática que vaza suas bordas, que se arroja, pra frente pra trás, em rotas improváveis”, esclarece Micheline. Com esta proposição – e também com a intenção de retomá-la mais à frente – lembramos que a concepção de corpo na cultura ocidental sempre esteve ligada à questão da imagem e da representação. Sobretudo na Europa Ocidental, a fabricação social do corpo busca a aproximação da perfeição a partir de um modelo criado através da influência moral do cristianismo. É possível, afirmar, portanto, que na cultura ocidental o pensamento do corpo é um pensamento de imagem e, ao mesmo tempo,

o pensamento de

imagem é um pensamento do corpo. (MATESCO, 2009 p. 19) Na Idade Media o corpo individual ainda não encontrava representação

específica.

Somente

no

Renascimento,

com

o

                                                                                                                1  

Coreógrafa, diretora da Cia da Arte Andanças (Fortaleza-CE), com a qual montou os trabalhos O Tempo da Delicadeza (2002), O Tempo da Paixão ou O Desejo é um Lago Azul (2004) e Os Tempos (2008). É uma das fundadoras do Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção.  

2   O

trabalho foi apresentado em Fortaleza no Encontro Terceira Margem, realizado pela Bienal Internacional de Dança do Ceará, em outubro de 2010.  

 

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desenvolvimento da consciência de sua existência social o sujeito ganha um novo estatuto, e é possível percebermos o conhecimento do sensível mais atrelado à experiência da carne, o despertar do real como aparência.

(Já aqui, porém, não

convém separarmos a

representação do corpo de uma construção ética que delineia essa primeira fase do humanismo italiano, onde ética e estética aparecem tensionadas por uma polissemia de sentidos propiciada pelo corpo.) É com a arte moderna que testemunhamos a subversão da tradição do nu – até então fortemente vinculado à idéia de beleza, encarnando os valores espirituais das divindades, como a medida, o equilíbrio, a modéstia e a proporção – através da deformação do corpo. As primeiras dissecações, acontecidas no século XVI, e as descobertas sobre a circulação do sangue, no século XVII, contribuíram para uma nova compreensão do corpo, e com isso o surgimento de um novo modelo, fortemente marcado pela constituição do saber anatômico e pelo desenvolvimento da filosofia mecanicista. “O nu não representava um corpo, mas uma ideia: a idéia de homem.”(MATESCO, 2009, p. 15) No século XVII, um movimento importante se dá na direção da representação: ela desliga-se do estatuto da aparência, estabelece novos códigos e inicia um processo de autonomia, tendo como ponto de referência o sujeito. O corpo torna-se a morada do “eu”. Nasce o “indivíduo soberano”. A noção do nu se altera, com a ruína da idéia de uma essência universal do homem. Surge o corpo fragmentado, como metáfora da perda de uma totalidade. A essência humana se mostra em toda a sua finitude e transitoriedade. Com a Primeira Guerra Mundial, no ínício do século XX, a representação antropomórfica e o projeto humanista, vigentes até então, são destroçados. As paisagens culturais que contribuíam para nos conferir localizações sólidas como indivíduos sociais – tais como, classe, gênero e sexualidade, dentre outras – também sofrem uma fragmentação desestruturante. Os movimentos de vanguarda deste início de século são marcados pela desintegração da figura humana.  

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Em meio aos impactos trazidos pela globalização - a descontinuidade, a fragmentação, a ruptura e o deslocamento - o sujeito pós-moderno já não aparece caracterizado a partir de uma identidade fixa, essencial ou permanente, e somos confrontados, como diz Hall, por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis. (HALL, 2006, p. 13) É nesse contexto que, após a Segunda Guerra Mundial, o corpo passa a estar no centro das manifestações artísticas de todas as linguagens. Nessa breve reflexão, saltamos para o bairro de Greenwich Village, subúrbio de Nova York, na década de 1960, local onde várias pequenas redes de artistas contribuíam, entre convergências e divergências estéticas, para a base de uma cultura alternativa da época. Dali sairiam os mais marcantes movimentos artísticos

da

década de 1970, alimentando os debates sobre o pós-modernismo que surgiriam da década de 1980. Era a busca por novos modos de fazer e encarar a arte, com todas as contradições imbricadas nisso. A idéia de comunidade ganha mais espaço, arte e vida sobrepostas, fortalecendo os valores gregários e a reinvenção do cotidiano, como condições necessárias para a instauração de novas relações, e, consequentemente, novos modos de produção cultural. A defesa da liberdade, a igualdade, a recuperação do comum, o movimento pelos direitos humanos surgem como questões políticas vitais. Com isso é possível perceber o aniquilamento das categorias culturais (pop, kitsch, folk, underground),

e a recusa à versão

burguesa do bom gosto. Banes sugere que esses modos alternativos de produção foram determinantes na mudança social, moldando “a própria forma e estilo do protesto político e cultural no final do decênio”. (BANES, 1999, p. 24) Uma experiência seminal para a dança contemporânea aconteceu com o Judson Dance Theater, no início da década de 1960, um coletivo de coreógrafos livremente organizado, que acolhia também artistas de outras linguagens. Instalados no salão da Judson Memorial Church, os artistas se dedicaram à experimentações unindo

 

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a dança a outras linguagens. Dentre eles estavam Yvonne Rainer, Trisha Brown, Steve Paxton, Deborah Hay e Lucinda Childs. O grupo já vinha de experiências inovadoras de experimentação na área da composição coreográfica: com a coreógrafa Anna Halprin, na década de 1950, que trabalhava com a idéia de criar movimentos estimulados por preparações e tarefas cotidianas - e aqui poderíamos traçar alguma conexão com o trabalho da brasileira Letícia Parente, na década de 1970; e com o músico Robert Dunn, que a convite do coreógrafo Merce Cunningham, propôs uma oficina de composição, em 1961, inspirada nos conceitos de aleatoriedade, indeterminação, jogos de poder, tarefas e improvisação. Foi com essa bagagem que o grupo decidiu continuar se reunindo e experimentando, encontrando no salão da Judson o espaço propício para os bons encontros, junto com artistas de outras linguagens.

Nessas

espetacularidade.

A

investigações imobilidade

e

forjou-se os

gestos

a

rejeição

cotidianos

à são

incorporados à dança, a ação ganha status de composição. A antiga definição de coreografia – uma sequência de passos organizados e executados harmoniosamente dentro de uma música – definitivamente não dá mais conta da composição coreográfica. Eis que surge a pergunta que até hoje não se cala: isso é dança? A interface entre as linguagens encontra mais espaço de visibilidade com os happenings e performances, implodindo categorias e hierarquias estabelecidas ao longo de séculos. Chega o momento de questionar o gosto pela recepção contemplativa da obra, abrindo espaço para novas estruturas. A legitimidade dos suportes tradicionais era colocada em cheque. Ao reconhecer a corporeidade humana através da ênfase na sexualidade, nos cheiros e odores da matéria, com toda a sua animalidade e crueza, a arte contemporânea profana a idéia de um corpo idealizado, amplificando a crise sobre a visão antropocêntrica. O corpo passa a ser tratado como algo externo e manipulável, um objeto, uma ferramenta ou como um suporte do discurso. A polissemia de sentidos potencializa a dificuldade de nomeação e categorização das  

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coisas, e se impõe como algo inconciliável. É necessário conviver e nos relacionar com o que não nomeamos, com tudo o que não cabe na confortabilidade de nossas medidas. Isso é político. Essa é a herança de todos os artistas contemporâneos: suportar estar diante daquilo que nos dilacera. Nada de ameaçador, portanto,

nesse

borrão

de

fronteiras,

nesse

movimento

de

aproximação entre linguagens: afinização por interesses, na busca por novos – ou simplesmente outros - afetos. Retomando aqui o discurso de Micheline Torres, voz e corpo: Segui pelos caminhos que o trabalho apontava e por outros que apareciam pelo caminho e que eram abertos a facão de cortar canade-açúcar. Depois me perguntei se era dança contemporânea, se era performance ou se era... um trabalho. Acho que é um trabalho, não importa a categoria. Nas palavras do psicólogo Eduardo Passos, tudo se trata de pensarmos formas de acolhimento da experiência. Permanecer. Habitar. Toda obra de arte é uma habitação. Habitar é um ato de engendramento de mundo. Eu ocupo me instalando, e ao me instalar crio um mundo, faço emergir um sentido. A ênfase nos modos de fazer como práticas de criação persiste. A opção pela evidência dos procedimentos de investigação/criação na própria obra, revela-se estratégica para a instauração de novos – ou simplesmente outros – dispositivos de recepção, de partilha dessa obra, onde relações menos hierárquicas entre artista e público possam se constituir. Investimento assumido na construção de uma ética que permite fazer da vida uma estética da existência, como nos propôs Foucault. Encontrar o Outro como aquilo que nos é mais incontornável e irrecusável. Isto é político, eu prometo.

 

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BIBLIOGRAFIA

 



BANES, Sally. Greenwich Village 1963: avant-garde, performance e o corpo efervescente. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.



HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.



MATESCO, Viviane. Corpo, Imagem e Representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.



PARENTE, André (Org.). Preparações e Tarefas; Letícia Parente. São Paulo: Paço das Artes, 2008.

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