Corpo e alma: história e tradição no pensamento de José Honório Rodrigues

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Corpo e alma: história e tradição no pensamento de José Honório Rodrigues Andre de Lemos Freixo*

Resumo: Refletir sobre o conceito de tradição seria ou não relevante para o trabalho histórico hoje? Há trinta anos, no mínimo, certo consenso entre os historiadores de diversas nacionalidades parece responder que não. Contudo, incontáveis trabalhos emergem desde então tendo como objetos de análise: a memória (individual, coletiva, cultural); o patrimônio; paradigmas ou matrizes intelectuais, entre outros. Todos trazem no seu bojo, de uma forma ou de outra, o desafio de pensar a continuidade de fenômenos humanos no tempo, bem como o problema e a responsabilidade da seleção, preservação e transmissão de valores e bens culturais (materiais ou imateriais) para gerações futuras. Pode-se dizer que a reflexão sobre o conceito de tradição e sua relação com a história permanece atual. O objetivo deste artigo é, portanto, pensar essa relação, em uma perspectiva crítica, relacionando história e tradição a partir do pensamento histórico de José Honório Rodrigues (1913-1987).

Palavras-chave: Tradição – José Honório Rodrigues (1913-1987) – Teoria da História – História da Historiografia Abstract: To reflect on the concept of tradition is relevant or not to the historical endeavor today? At least in the last thirty years some consensus among historians of different nationalities and epistemological orientations seems to respond “no” to this question. However, countless studies have emerged ever since with this objects of analysis: the memory (individual, collective, cultural), cultural heritage; intellectual paradigms or matrices, among others. All these works carries one way or another the challenge of thinking the continuity in human phenomena in time, as well as the problem and responsibility for the selection, preservation and transmission of cultural values (material or otherwise) for future generations. One could say that reflection on the concept of tradition and its relation to history remains actual, but it hasn’t been tackled. The purpose of this presentation is to understand this relationship from a critical perspective, through the analysis of how José Honório Rodrigues (1913-1987) articulated tradition and history. Keywords: Tradition– José Honório Rodrigues (1913-1987) – Theory of History – History of Historiography

Apresentação A eficácia das tradições se contrapõe à ineficácia das tradições. 1 (José Honório Rodrigues)

Há aproximadamente sessenta anos atrás, José Honório Rodrigues (1913-1987) participou do “Curso Capistrano de Abreu”, organizado pelo Embaixador José Carlos *

Doutor em História (UFRJ, 2012) e autor da tese: “A arquitetura do novo: ciência e história da História do Brasil em José Honório Rodrigues”. Atualmente atua como Bolsista (PNPD) de Pós-Doutorado na PUC-Rio, com financiamento da CAPES, a qual financiou este texto. 1 RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil, Vol. II, Tomo I: A historiografia conservadora. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988. p. 192.

2 de Macedo Soares, então presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), oferecido em honra ao centenário de nascimento (1853-1953) de João Capistrano Honório de Abreu (1853-1927).2 Ao lado de outros palestrantes, suas palavras compuseram mais uma peça do mosaico de diferentes figurações e aspectos da vida e da obra do “mestre” cearense.3 No entanto, o texto que Rodrigues elaborou para a ocasião, intitulado “Capistrano de Abreu e a Historiografia Brasileira”, ultrapassou os limites da mesma, tornando-se uma das mais importantes e significativas chaves de leitura para a obra do historiador cearense – que Rodrigues sistematicamente organizou, anotou e prefaciou ao longo de muitos anos.4 Como analisou Rebeca Gontijo, sua devoção ao pensamento de Capistrano caminhava em duas direções simultâneas sua própria inscrição em uma “moderna tradição” de historiadores, e no sentido da construção de uma obra propriamente historiográfica.5 O termo moderna tradição empregado por Gontijo pode soar estranho. Talvez, pareça-nos um pouco com um oxímoro. Isso porque, grosso modo, uma das características fundamentais da experiência da modernidade, para pensar como Reinhart Koselleck, repousa em certa “fé” que a cultura histórica depositou na ruptura com a tradição. O distanciamento crítico que, inclusive, dotou o termo “tradicional” o estatuto de quase antônimo ao de “moderno”. Na modernidade, ainda pensando com o historiador alemão, a paulatina emergência de um novo tipo de relação com o tempo no qual o horizonte futuro, um futuro em aberto, indeterminado (e indeterminável) pelas experiências passadas difere, pois, da perspectiva de futuro anterior (ou o “futuro passado”). Esta estava ainda atada às visões escatológicas de fim do mundo e/ou aos desígnios de Deus e seu plano para o mundo, no qual a garantia de previsibilidade dos 2

RODRIGUES, José Honório. “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”. R. IHGB, Rio de Janeiro, v. 221, out.-dez. 1953 [1954], p.120-138. 3 Além de Rodrigues, os demais conferencistas na ocasião foram: Embaixador J. C. de Macedo Soares, Rodrigo Otávio Filho, Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso, Mucio Leão, Arthur Cesar Ferreira Reis, Mozart Monteiro, Honorina de Abreu Monteiro (neta de Capistrano e esposa de Mozart Monteiro), Afonso d’E. Taunay, Edgardo de Castro Rebello, Jaime Coelho, Onofre Gomes e Otávio Lobo. Ver: “Curso Capistrano de Abreu”. R. IHGB, Rio de Janeiro, v. 221, out.-dez. 1953 [1954], p. 44-245. Cabe notar que nem todos os discursos proferidos na ocasião foram publicados na Revista (na qual apenas oito foram reproduzidos). Ver também: GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2006. 4 Posteriormente, o texto foi incorporado como introdução à Correspondência de Capistrano de Abreu (3 vols., 1954-1956), organizada, editada e anotada pelo próprio José Honório Rodrigues. Sobre isso, ver: AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na belle époque carioca. São Paulo: Alameda, 2006; GONTIJO, Op. Cit. 5 GONTIJO, Rebeca. “José Honório Rodrigues e a invenção de uma moderna tradição”. In: NEVES, Lúcia M. B. Pereira das [et al.] (Orgs.). Estudos de Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 277-292. p.288.

3 rumos da história prevalecia. Parte fundamental da experiência da modernidade repousava sobre o fato de que o passado “deixou de iluminar o futuro”, como dizia Alexis de Tocqueville.6 E com ele a tradição teria perdido grande parte de sua antiga força e poder de orientação da vida frente ao rigoroso tribunal da razão histórica. O (agora) “antiquado” topos da historia magistra vitæ também perdeu espaço frente a um “tempo novo” (Neue Zeit), no qual não mais o passado, mas o futuro irrompe como escopo e torna possível outro modo de orientação no tempo presente. Nessa temporalidade nova – moderna (Neuzeit), portanto – a autoridade da tradição tornou-se objeto de juízos severos, como um receituário problemático de preconceitos, de regras ultrapassadas de conduta da vida humana, configurando um obstáculo para o avanço e o progresso da mesma. Vivido agora como aceleração,7 o tempo moderno reorganizou sua estrutura. A autoridade das experiências pregressas sobre os rumos do presente viram sua hegemonia escapar por entre os dedos como os grãos de areia em uma ampulheta. O sentido desta experiência temporal passava a ser parte de uma construção do futuro se e quando dispostos separadamente (historicamente), como um processo em marcha rumo ao novo. Perseguindo-o incansavelmente, por vezes, à custa do descrédito daquilo que precisa se tornar velho, obsoleto, ultrapassado frente à emergência do inédito.8 Tradição e história apartaram-se, tornando-se, pois, como “inimigas” na modernidade tardia. Evidentemente, isso não configura uma crítica à expressão “moderna tradição”. Pelo contrário, ela nos ajuda a perceber o quanto essa dicotomia entre história e tradição ainda causa estranhamento. Além disso, outra questão se relaciona com esse ponto. Pelo menos desde o seminal trabalho organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger,9 há aproximadamente trinta anos, fortaleceu-se ainda mais a convicção crítica frente à tradição, pensada agora como objeto privilegiado da “desconstrução” autorizada pela razão histórica. Nada contra a ideia dos autores britânicos, que foi brilhante.10 Porém,

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JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência política. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005. 7 KOSELLECK, Reinhart. Aceleración, Prognosis y Secularización. Valencia: Pré-Textos, 2003. 8 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006. p. 21-60. 9 HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence O (Orgs.). The invention of tradition. London: Cambridge University Press, 1984. 10 Deve-se ter em mente que a coletânea organizada por Hobsbawm e Ranger inventariou a questão central da “invenção de tradições” na apropriação do folclore regional e nacional nos processos de constituição identitária (coletiva) da Escócia, do País de Gales, da Índia Britânica e da África Inglesa nos Oitocentos. Trata-se de um tipo bastante específico de análises, mas que padece de um problema grave: a idéia de que tradição significa “falsa consciência” ou ainda “uma história falsificada”, que induz

4 como Peter Burke observou, o problema repousa nas sucessivas apropriações da categoria de “invenção”, não só da tradição, ou não apenas, mas para o enorme complexo que engloba tudo o que se refere à permanência e/ou transmissão simbólica e/ou cultural entre gerações. Isso teria contribuído, por um lado, para sepultar, pelo menos entre os historiadores, quaisquer operacionalidades do e para o conceito de tradição. É importante salientar que o conceito de invenção não possui um único sentido.11 Apesar disso, na perspectiva da história social, ele é definido por uma postura histórica (e epistemológica) que considera a transmissão/conservação elementos culturais (como tradição, memória, patrimônio, identidade etc.) conceitos atados ou às mentalidades, ou aos imaginários sócio-políticos ou às práticas e representações culturais em seus muitos regimes discursivos. Muitas vezes, estabelece-se que tais “representificações” do passado são apenas estratégias de sacralização e/ou canonização de perspectivas atadas aos interesses pragmáticos (intelectuais, pessoais e/ou políticos) dos agentes “por trás” destes “discursos”, como parte de um jogo (ou luta) por poder, reconhecimento e legitimidade. Essa postura, como Jörn Rüsen analisou, não está errada, mas tampouco diz tudo o que há para dizer sobre memória, cultura, tradição, patrimônio etc, pela chave da invenção. Ela prevalece, contudo, na historiografia contemporânea como um direcionamento no qual o sentido para o passado é entendido voluntária e deliberadamente ao erro. Como assevera Stephan Bann, no texto de Hobsbawm e Ranger a tradição foi inventada “no sentido pejorativo do termo, quer dizer, saiu do nada para servir a propósitos estritamente funcionais [...]”, dando a entender que somente a História Social (como ultima ratio) poderia “desvendar as extravagantes invenções da ‘tradição’”. BANN, Stephan. As invenções da história: ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Editora da UNESP, 1994. p.20 e 22. 11 Segundo Durval Muniz Albuquerque Júnior, no campo historiográfico brasileiro (mas, decididamente para além deste), o termo invenção ganhou destaque com o gradual afastamento ao padrão “historicista”, no qual prevalecia o conceito de “formação”. Para o historiador, tratavam-se, pois, de “explicações que remetiam para o emprego de categorias trans-históricas, das abordagens metafísicas ou estruturais, que tendiam a enfatizar a permanência, a continuidade e pressupunham a existência de uma essência, de um núcleo significativo da História, de determinadas relações ou processos como sendo determinantes de toda a variedade do acontecer histórico”. Esse processo, poder-se-ia acrescentar, fortaleceu-se em fins da década de 1980 e inícios da de 1990, quando a historiografia tornou-se mais amplamente acadêmica e universitária com a multiplicação dos programas de pós-graduação e o fortalecimento das revistas acadêmicas especializadas. Nesse novo contexto, o conceito de invenção, de muitas formas, difundiu-se e começou a ganhar espaço no Brasil. Este enfatiza, grosso modo, a descontinuidade “a ruptura, a diferença, a singularidade”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. “Introdução”. In: ______. História: a arte de inventar o passado. Ensaio de teoria da história. Bauru, SP: EDUSC, 2007. p.20. Sobre a questão da transformação da historiografia brasileira pela via da universidade, pós-graduações e da multiplicação das revistas especializadas e demais meios de interlocução científica no campo, ver: FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A História do Brasil (1980-1989): elementos para uma análise historiográfica. 2 vols. Ouro Preto, MG: Editora da UFOP, 1992. Ainda sobre a questão das apropriações do conceito de invenção no Brasil, nas décadas de 1980 e 1990, ver também: ARAÚJO, Valdei Lopes de. “O século XIX no contexto da redemocratização brasileira: a escrita da história oitocentista, balanço e desafios”. In: ARAÚJO, Valdei Lopes de; OLIVEIRA, Maria da Glória. Disputas pelo passado: história e historiadores do Império do Brasil. Ouro Preto, MG: Edufop/PPGHIS, 2012. p.18-99.

5 como sendo apenas um atributo do presente, e que o passado em si não oferece nenhum tipo de impacto sobre esse significado.12 Ou seja, o desejável diálogo entre passado e presente dá lugar a um tipo de inquérito (hierarquizado), no qual o passado somente consegue (ou lhe é permitido) comunicar algo ao presente quando responde às perguntas feitas pelos historiadores.13 Prevalece, parece-me, uma “via de mão única”. Exatamente por isso, a ideia de moderna tradição interessa como ponto de partida para compreender o pensamento de José Honório Rodrigues. Ela pode nos ajudar exatamente por entrelaçar as aparentemente imiscíveis história e tradição. Sendo assim, não se trata de questionar aqui a validade da crítica histórica à tradição ou viceversa. Mas indago se é possível encontrar um ponto de equilíbrio entre essas duas expressões da consciência histórica. Se uma pode contribuir para melhorar o entendimento da outra. A partir da leitura de Rüsen, parece-me, que a resposta pode ser positiva. Ninguém pode negar que o trabalho daqueles que decidem sobre as características da cultura histórica [a história] é condicionada por circunstâncias culturais [tradição] nas quais ela pode vir a ser. Ninguém pode negar que essas condições são o resultado de desenvolvimentos prévios que conduzem ao presente. Ninguém pode negar que o passado está, já, presente e efetivo na constituição de importantes elementos da cultura histórica antes do trabalho dos historiadores explicitamente fazerem referência ao mesmo.14

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A crítica ao entendimento “construtivista” da tradição, nas humanidades, por Rüsen (a qual endosso), é a seguinte: ela destrói a própria possibilidade da tradição existir como algo dotado de positividade no modo das sociedades vivenciarem e compartilharem coletivamente experiências pretéritas. Entendida, pois, como construção (ou invenção) a tradição perderia sua competência decisiva e seu papel na organização das culturas frente a uma soberana e toda poderosa historiografia. Exatamente por essa razão, Rüsen assevera que se essa postura for, de fato, a última palavra acerca da tradição, então poderemos concluir que o discurso das humanidades e seu impacto sobre a opinião pública e seu poder de reestruturar o modo como as sociedades se relacionam com seu passado e/ou pensam e experienciam o tempo teria sido extremamente bem sucedido. E a própria lógica da tradição teria sido suplantada pela lógica da racionalidade histórica. Para Rüsen isso não aconteceu e, ademais, não seria o melhor dos cenários se porventura acontecesse. RÜSEN, Jörn. “Tradition: a principle of historical sense-generation and its logic and effect in historical culture”. History and Theory, Theme Issue 51 (Dec. 2012), p. 45-59. 13 Uma importante e rara exceção às posturas epistemologicamente “construtivistas” do conceito de invenção no campo historiográfico brasileiro reside no modo como Arno Wehling o empregou, em seu sentido etimológico (primitivo) e jurídico: “o ato de descobrir ou encontrar um objeto/coisa que já existe, embora o desconheçamos. Com ela [a invenção], apropriamo-nos legitimamente de algo que jazia ignorado e desprezado pelos outros homens”. Ou ainda, mais enfaticamente, quando o autor claramente se distancia da postura de historiadores como Eric Hobsbawm, ou ainda Marcel Detienne ou Michel de Certeau, assevera: “não buscamos compreender o processo pelo qual a vida social foi cristalizada num discurso e as razões que existiram para isso”. Ver: WEHLING, Arno. A invenção da história: estudos sobre o historicismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 2001. p.13. 14 Tradução livre. RÜSEN, “Tradition: a principle of historical sense-generation and its logic and effect in historical culture”…, p.50.

6 Isso não significa, contudo, como o historiador alemão complementa logo a seguir, só nos reste curvarmo-nos diante à lógica e à força da tradição. Ainda há espaço para novos insights, para a criatividade e para a crítica dos usos e abusos da tradição – labuta fundamentalmente associada ao trabalho dos historiadores.15 Em busca deste equilíbrio, portanto, proponho refletir sobre essa questão a partir do pensamento de José Honório Rodrigues. Não gostaria, contudo, de iniciar o debate sem antes enfatizar que as “vozes” de José Honório, presentes em seus textos e sua monumental produção intelectual, ainda ecoam. E, um pouco como ele, sugiro aqui um tipo o diálogo entre vozes do passado e do presente pela via de uma história intelectual. Pois, para ele, o passado também está sempre presente como o resultado de ações pretéritas em seus desenvolvimentos ulteriores e o papel da historiografia é estabelecer-se como intérprete desse passado e mediadora entre o hoje e o ontem abrindo caminhos (possibilidades) para o futuro; uma historiografia que saiba se posicionar nesse diálogo como ouvinte e como voz ativa. Para José Honório, escrever história é um esforço intelectual e científico, mas também um ato político, no qual a consciência do passado não pode degenerar em um peso morto sobre as costas do presente, como um fardo a ser carregado. Assim, esse passado não deveria determinar o destino de um presente incapaz de mudar o que foi, de alterar aquilo que de fato ocorreu (que o antecede e o condena), não restando outra coisa ao presente senão resignar-se diante do fardo de um passado monumental; inapto a alterar os caminhos de sua própria história. Para Rodrigues, a história deveria libertar; promover o que o autor chamou de um “efeito catártico”, como afirma em Teoria da História do Brasil (1949): Estudando o passado para compreender o presente, indagando do passado segundo os interesses do presente, realizamos também uma função catártica, atribuída desde Goethe à história. Nas suas Máximas e Reflexões, anotou Goethe que escrever história é uma forma de libertar-se do passado. A tarefa suprema da historiografia seria análoga à da tragédia que, segundo Aristóteles, efetuava a purgação (katharsis) dos sentimentos de piedade e medo. Depois de contemplála produzia-se no espectador um estado de espírito purificado, porque 16 ele compreendera a razão profunda das coisas.

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RÜSEN, “Tradition: a principle of historical sense-generation and its logic and effect in historical culture”…, p.50. 16 RODRIGUES, Teoria da História do Brasil..., p.19.

7 Contudo, poucos parágrafos depois de sua definição para a história, Rodrigues assevera, na esteira de Huizinga,17 que o compromisso igualmente fundamental da história como ciência deveria ser, além de libertar do peso passado, a preservação e transmissão de valores e bens culturais às gerações futuras. Sendo assim, para ele [...] não há nenhum passado ao qual se devesse querer voltar: há só um eterno novo que se forma dos elementos ampliados do passado e o desejo autêntico deve ser sempre produtivo, criar um novo melhor. [...] Não se pode querer nunca voltar ao passado, a certo passado que se idealizou por mero romantismo. Há, sim, valores tradicionais que podem e devem ser mantidos, mas sempre ao lado de uma tendência renovadora. Todo aquele que participa da criação do presente e do futuro sente dentro de si duas almas que se contrapõem e se interpenetram: vontade de conservar e vontade de subverter.18

Para além da questão do efeito estético, a dimensão propriamente linguística da historiografia que está em jogo aqui – e que não poderei me deter nesta intervenção –,19 esta forma de conceber a história sintetiza, precisamente, o tema desta exposição. Posso dizer ainda que apesar de se pronunciar em nome de uma história fundamentalmente crítica e científica, Rodrigues reconhecia um lugar para a tradição – o que pode soar, de fato, contraditório, uma vez que a ciência preconiza o controle dos meios (o método) para a produção de conhecimento, enquanto a tradição seria sempre uma pré-condição, até mesmo para a ciência da História. Para dizer um pouco como Hans-Georg Gadamer, não se trata tanto de reclamar a propriedade da história, como algo que nos pertence ou 17

Rodrigues concordava com o historiador holandês quando este definia a história como um modo pelo qual a cultura lida com seu próprio passado, tornando a compreensão e a imaginação histórica aspectos vitais em quaisquer culturas humanas. Também compartilhavam uma visão holística para o conceito de cultura. Ver: HUIZINGA, Johann. “Em torno a la definición Del concepto de Historia”. In: ______. El concepto de la historia y otros ensayos. México: Fondo de Cultura Economica, 1980. p.95-97. Na página 282 de Teoria da História do Brasil (1949), Rodrigues faz referência à primeira edição deste livro em espanhol, de 1946. 18 Grifos meus. RODRIGUES, Teoria da História do Brasil..., p.22. 19 Não gostaria que este último comentário soasse como uma perspectiva reducionista ou mesmo formalista (ou “pós-modernista”), como, por exemplo, os escritos de Hayden White defendem. Quando me refiro à dimensão estética na historiografia, me aproximo fundamentalmente de autores como Jörn Rüsen e Frank R. Ankersmit. Trata-se de pensar a história como disciplina relacionada (ou dotada de uma dimensão) estética, porém não subordinada ou mesmo reduzida a ela. Suas representações baseiam-se em experiências, mas aquilo que representam não se confunde com o passado e servirão (futuramente) de elementos para uma crítica aos seus desenvolvimentos. Como assevera Rüsen, a coerência estética de um construto significativo como a historiografia “estaria, então, em fomentar nos destinatários uma relação de liberdade com as determinações do agir em suas vidas concretas. Ao invés de induzir os sujeitos a agir de determinada maneira, libera-os da pressão para agir e habilita-os a conhecer melhor as circunstâncias de suas vidas, que lhes ficariam veladas na rotina quotidiana do agir por interesse”. Ver: RÜSEN, Jörn. História Viva. Teoria da História III: Formas e funções do conhecimento histórico. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p.37.Ver também: ANKERSMIT, Frank R. “Historicismo, pós-modernismo e historiografia”. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 95-115.

8 que se faz nosso “objeto”, mas reconhecer que os historiadores são, eles mesmos, pertencentes à história, à cultura e, por conseguinte, à tradição.20 Carece, portanto, estabelecer que tipo de história e que tipo de tradição estavam em jogo no seu pensamento. Alerto que Rodrigues não resolveu essa questão. No entanto, ele estava ciente da ambiguidade envolvida no trabalho dos historiadores, e isso se evidencia no simples fato de ele não ter encerrado essas categorias numa dicotomia, na qual se poderia falar ou de tradição ou de história.21 O que sugiro a seguir parte do que pode ser compreendido como um esforço no sentido do que me parece confirmar essa expressão no próprio pensamento de Rodrigues, através do modo como o autor relacionou tradição (continuidade e conservação) e história (ruptura e mudança) no seu pensamento histórico.

Sobre tradição e tradicionalismo Julgo pertinente, a esta altura, retomar a epígrafe que elegi para a abertura desta fala. Prima facie, ela soa enigmática, ambígua, senão obscura. Que me seja permitido repeti-la: “A eficácia das tradições se contrapõe à ineficácia das tradições”, extraída de um texto póstumo de José Honório Rodrigues, o segundo volume (Tomo I) de sua História da História do Brasil, publicada em 1988 por sua viúva, D. Lêda Boechat Rodrigues. Trata-se do volume dedicado ao que Rodrigues chamava de “historiografia conservadora”.22 E o que ele tinha em mente era uma avaliação severa dos impactos e da relação entre perspectivas históricas (concepções de história e suas narrativas históricas) e a questão da visão de mundo (ou ideologia) política dos historiadores conservadores. Como Raquel Glezer bem analisou, era fundamental para o autor que os historiadores realizassem a função decisiva de mediadores consequentes e responsáveis entre a interpretação historiografia, a escrita histórica, e a história “real”, o processo histórico (social, econômico, político e cultural) que constitui as sociedades e

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Sobre a possibilidade de pensarmos as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer para uma teoria da história, ver, ANKERSMIT, Op. Cit., e CALDAS, Pedro S. “Hans-Georg Gadamer e a Teoria da História”. Dimensões, vol. 24, 2010, p. 55-74. 21 Na última seção do presente artigo, analiso um texto do próprio José Honório Rodrigues (publicado em 1980) no qual ele radicaliza sua postura acerca da relação entre tradição e história. 22 Para José Honório Rodrigues, as principais características da corrente historiográfica conservadora no caso brasileiro eram: 1) a defesa da razão de Estado; 2) a defesa das classes dominantes e a exaltação dos grandes estadistas; 3) pregação da continuidade histórica e combate à ruptura; 4) conformismo e dizeramém aos poderosos; 5) fracassos explicados como erros humanos – isto é, não como falta de reformas necessárias, mas como acaso, azar, acidente etc. RODRIGUES, História da História do Brasil, Vol. II, T. I..., p.2-7.

9 torna-as compreensíveis no tempo.23 Razão pela qual se deteve sobre estes historiadores. Astor Antônio Diehl, por sua vez, destacou que esse “dissídio” entre vida e história fora avaliado por José Honório como espécie de crise permanente no caso brasileiro. De um ponto de vista da cultura política, o fenômeno do tradicionalismo, reproduzindo-se de muitas formas, gerava reflexos também sobre a cultura histórica do país e vice-versa. Assim, prevaleciam as representações que Rodrigues qualificava como

“antiquárias”,

“factualistas”,

“arcaicas”

“conservadoras”

ou

ainda

“tradicionalistas” do passado e do processo histórico brasileiro.24 Ou seja, para o historiador carioca, a historiografia “conservadora” (no sentido de perpetuar uma concepção passiva frente ao passado), no caso brasileiro, foi fruto de uma tradição lusobrasileira que desde o período colonial consolidou o medo da mudança, ou a resistência a ela, no seio de todas as classes sociais brasileiras.25 Para José Honório, a historiografia é sempre um “espelho de sua própria história”.26 Isto é, os historiadores estão sempre lançados no mundo e são produtos da história, das ações passadas de sua sociedade e de uma determinada formação cultural. Eles também, assim como tudo mais, estão inseridos num mundo que é, antes de qualquer coisa, o resultado de ações pretéritas. De modo que podemos dizer que nessa concepção de história, a “tradição” está sempre em jogo na vida das sociedades (e de seus historiadores) mesmo antes do passado e seu lugar na organização e orientação da vida presente ser tematizado e interpretado como história. Diante deste quadro, a historiografia pode ser tanto instrumento científico para munir de bons argumentos e estimular as ações de transformação e mudança da sociedade, como para fomentar a manutenção e a conservação. Na leitura de Rodrigues, a cultura conservadora tornou-se hegemônica no pensamento histórico brasileiro, pois a deferência às elites dominantes, característica de uma “tradição luso-brasileira”, favoreceu o domínio e a manutenção da desigualdade, degenerando no tradicionalismo

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GLEZER, Raquel. O fazer e o saber na obra de José Honório Rodrigues: um modelo de análise historiográfica. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1977 (2 vol.). Vol. I, p.76. 24 DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira: década de 1930 aos anos 1970. Passo Fundo: UPF Editora, 1999. p.222. 25 Rodrigues articulava sua análise historiográfica às teses que defendeu em seus ensaios de interpretação histórica publicados em Aspirações nacionais (1963) e Conciliação e reforma: um desafio históricopolítico (1965), segundo o qual a chave de interpretação para a cultura política no Brasil seria a da “conciliação”. 26 RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 2ª ed. 2 vols. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, vol. 1, p.2 e 9.

10 geral e no conservadorismo político como fatores preponderantes sobre nossa cultura histórica. Ele defendeu que esse “aspecto social e psicossocial originário da fase colonial” foi “preservado no Império e vem tendo seu declínio a partir da República”.27 Rodrigues, claramente, se posicionava ao lado da historiografia como engrenagem para a mudança na História do Brasil, uma bandeira que levantou em seus “combates” ao longo de boa parte de sua trajetória. Mas para isso seria necessário enfrentar e superar a tradição.28 E como fazê-lo? Temos, portanto, duas categorias para pensar, tradição e história, que nos auxiliam a compreender a perspectiva histórica de Jose Honório acerca da mudança (desejada) no caso do processo histórico brasileiro e a função social que ele creditava à historiografia nesse bojo. No entanto, apesar de não diferenciá-las diretamente, pois José Honório não teorizava explicitamente, é possível observar que há mais de um sentido possível para a ideia de tradição em seus textos. O que é possível de ser identificado a partir do que ele designava por tradição e o que chamava tradicionalismo. Essa distinção, presente nos textos de Rodrigues, nos permite identificar um sentido “eficaz” (ou positivo) para tradição e outro que o autor chamou de “ineficaz” (ou negativo), que gera o fenômeno do tradicionalismo. A diferença é precisamente a dimensão crítica que, em uma cultura histórica, a historiografia pode trazer à ideia de tradição, sem necessariamente descartar a lógica da tradição como mito ou falsa consciência. Em uma palavra, para nosso autor, nem toda tradição significa tradicionalismo. Mas só a defesa da tradição não bastaria para preservá-la desta degeneração, seria preciso uma historiografia séria e rigorosa para pensar e contrabalancear as relações da sociedade com seu passado. Quando formulava seu pensamento, Rodrigues inseria-se num momento em que um grupo composto por nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Alice Canabrava, Rubens Borba de Moraes, Otávio Tarquínio de 27

Grifo meu. RODRIGUES, História da História do Brasil, vol. II, t. I..., p.1. “Todos sabem as relações da história com a política. Ambas se preocupam e se dedicam ao estudo do Estado. Mas enquanto a política se exaure nesse estudo, a história faz dele apenas uma parte de sua substância. A história não estuda somente as formas políticas do passado; ela comunica aos homens a consciência viva dos outros tempos e lugares, da totalidade do acontecimento social, econômico, religioso ou ideológico, em conjunto ou tomando cada um de per si. O laço interno entre os impulsos da vida prática e os problemas da história demonstra a capacidade da história de desenvolver a atitude para as situações reais, rebuscando a sua gênese e colocando-as em sua relação; ensina-nos não a ler os livros de história para povoar a memória ociosamente com datas e pequenos fatos e sim para procurar neles uma orientação do mundo em que vivemos, e no qual devemos cumprir nossa própria missão e nosso dever próprio”. Grifo meu. RODRIGUES, José Honório. “Significado cultural da história: utilidade da história na formação dos diplomatas”. R. IHGB, Rio de Janeiro, vol. 191, abr.-jun., 1946 [1947], p. 280284. p. 282. 28

11 Sousa, entre outros, assumia posições de destaque no cenário cultural do eixo Rio de Janeiro-São

Paulo,

reivindicando

reformulações

nas

práticas

historiográficas,

arquivísticas e no tratamento dos acervos das bibliotecas brasileiras. A partir de 1939, José Honório Rodrigues trabalhou por cinco anos no Instituto Nacional do Livro (INL) como assistente de Sérgio Buarque de Holanda na Seção de Publicações.29 Nesse cenário, ele também escrevia para diversos periódicos articulando críticas ao “estado atual” dos trabalhos históricos publicados no país à época. Apesar da pouca idade, suas críticas estabeleciam e reiteravam vínculos com a postura de um conjunto de intelectuais que representavam as vozes da especialização e um “novo espírito historiográfico”, exatamente por assumirem “o passado como algo dotado de complexidade, no qual buscavam penetrar, procurando relacioná-lo com o presente”.30 Em um encontro com W. Berrien no Rio de Janeiro, em 1943, José Honório recebeu um convite para estudar nos Estados Unidos da América (EUA). As viagens para os EUA eram constantes entre os intelectuais do círculo intelectual que idealizou o Handbook of Brazilian Studies.31 Viajou em 1943, na condição de técnico do INL, para o refinamento de saberes ligados à seleção e preparo de documentos raros para edições críticas e bibliografias especializadas. O Instituto visava preparar seus técnicos para o trabalho de lançamento de documentos inéditos e a elaboração de instrumentos de referência e consulta para pesquisadores da História do Brasil. Rodrigues aproveitou a oportunidade para cursar também a disciplina de Introdução aos Estudos Históricos, ministrada por Charles C. Cole, e outros professores na Universidade de Columbia.32

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Sua entrada no INL se deve a dois fatores: 1º) a desistência de José Antônio Gonçalves de Mello Neto – originalmente contratado para o cargo; e 2º) reconhecimento de seu esforço como pesquisador dos “Holandeses no Brasil”, em especial no período de Maurício de Nassau. Esses fatores estavam ligados ao fato de Gilberto Freyre ter intervindo junto a Augusto Meyer, o Diretor do INL. Ver: MELLO NETO, José Antonio Gonçalves de. “Bibliografia do Domínio Holandês”. Diário de Pernambuco, Recife, 24 jun., 1951, p.6. 30 FRANZINI, Fabio e GONTIJO, Rebeca. “Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção de uma moderna tradição, anos 1940-1960”. In: SOIHET, Rachel... [et al.]. Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p.148. 31 MORAES, Rubens Borba de; BERRIEN, William. Manual bibliográfico de estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Souza, 1949. p.10. Originalmente em preparo desde 1939, o Handbook foi cercado de problemas e atrasos, em parte devido à Segunda Guerra Mundial, mas também por conta dos autores convidados, em especial os da seção História RODRIGUES, Lêda Boechat (Org.). Nova Correspondência de José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: ABL, 2004. p.143-150. Seus organizadores optaram, pois, por publicá-lo em partes, inicialmente em inglês e em capítulos, pelo Handbook of Latin American Studies (Harvard University Press). Apenas em 1949 foi publicado em português e no Brasil, sob o título Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros, pela Gráfica Editora Sousa. MORAES; BERRIEN, Op. Cit., p.16-18. 32 RODRIGUES, José Honório. “Uma viagem de pesquisas históricas”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 134-135: 14-29, jul.-set. 1945 [1946], p.16.

12 Em 1944, Rodrigues retornou ao país entregando a Meyer seu relatório de pesquisas. No relatório, a imensidão dos acervos visitados e sua organização sistemática tiveram grande impacto sobre ele. O fato de estarem prontas para atender às necessidades de consulta foi inspirador. Mas também serviu de índice para pensar os problemas que os arquivos e bibliotecas brasileiros enfrentavam. Alegou que, no que se referia aos estudos históricos, o Brasil estava “atrasado” em relação aos EUA em pelo menos cinquenta ou sessenta anos.33 Assim, não era possível ter confiança em documentos editados sem crítica de texto nem em livros raros publicados fora das regras da edição crítica. História sem documentos autênticos e sem edição crítica de fontes primárias não pode merecer confiança nem respeito, nem se pode dar um desenvolvimento aos estudos históricos no Brasil sem a introdução dos modernos processos adotados nos países mais adiantados. O mesmo se pode dizer da necessidade inadiável e urgente da cadeira de introdução à história, até hoje inexistente no currículo das universidades brasileiras.34

A partir de então, José Honório asseverou críticas como essas em seus artigos, mormente, publicados em O Jornal. Dois deles chamam a atenção, pois avaliavam o estado dos estudos históricos no Brasil. Intitulam-se “A historiografia brasileira em 1945” e “A historiografia brasileira em 1946”. Em ambos, separava os autores que representariam o novo espírito crítico brasileiro daqueles que seriam os reflexos do atraso que estagnaria a pesquisa histórica no país. Sua conclusão não era nada otimista. Apesar dos “bons exemplos” que ele identificou em trabalhos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Otávio Tarquínio de Sousa e Padre Serafim Leite (não obstante algumas ressalvas a este último), suas críticas estabeleciam que os estudos históricos no Brasil não poderiam ficar dependentes única e exclusivamente das interpretações “livres”, o que ele avaliou serem a maioria dos casos nas publicações históricas no ano de 1945.35 33

RODRIGUES, José Honório. “Uma viagem de pesquisas históricas”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 134-135: 14-29, jul.-set. 1945 [1946], p.16. 34 Idem, Ibidem, p.20. 35 Rodrigues caracterizava como “livres” todas as histórias escritas por pessoas que não realizaram cuidadosa reflexão (teórica) acerca do papel social e da importância cultural da história naquele contexto sociopolítico. Denunciava também os textos que não se balizavam sobre exaustiva pesquisa de documentos inéditos. Ver: RODRIGUES, José Honório. “A historiografia brasileira em 1945”. Revista (suplemento literário de O Jornal), Rio de Janeiro, 10 mar. 1946. p.1. Cabe lembrar que, à época, a escrita da história não era limitada por fronteiras acadêmicas ou disciplinares. Mesmo aqueles que José Honório reconhecia como contribuições valiosas não possuíam qualquer formação em História, o que sequer existia no Brasil nas décadas de 1920 e 1930, quando eles iniciaram sua vida intelectual. Sobre isso, ver: GOMES, Angela M. de Castro. História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de

13 Rodrigues marcava uma separação entre a “verdadeira” e a “falsa” historiografia. A “verdadeira historiografia”, dizia, “reúne em uma só pessoa as duas figuras que coexistem [separadamente] apenas em historiografias ainda em fase de crescimento”. Isto é, o valor da historiografia moderna, inclusive a qualidade e seu grau de amadurecimento, residia entre autores que personificassem o pesquisador sério do passado e o intérprete responsável no presente, uma vez que “todo autêntico historiador deve se submeter às duas fases do processo”.36 No artigo de 1947, José Honório examinou publicações do ano imediatamente anterior num texto muito mais extenso, pois publicado ao longo de três edições dominicais do suplemento literário de O Jornal. Afiançava ali que o quadro retratado acerca do ano anterior apenas teria piorado.37 Novamente, nosso autor desejava separar, por assim dizer, “o joio do trigo”, oferecendo, inclusive, os necessários “reparos” sobre os estudos históricos. Entre essas medidas, que julgava urgentes, nada seria superior à inauguração de um curso de Metodologia da História e de Historiografia, que preparasse o futuro historiador no manejo dos fatos achados em documentos novos. O conhecimento dos métodos da natureza da evidência histórica e das ciências auxiliares poderia contribuir decisivamente para o amadurecimento da historiografia brasileira. A publicação integral de documentos inéditos, o conhecimento da evolução da pesquisa, dos seus métodos, da historiografia e o melhor contato com os trabalhos dos grandes clássicos, nossos ou estrangeiros, possibilitariam o preparo de novos historiadores e evitariam o autodidatismo, de tão perniciosos efeitos.38

No entanto, sua argumentação de um atraso historiográfico se agravava ainda mais com a leitura que apresentava da “Universidade brasileira” que, para ele, não forneceria a rigorosa formação científica de que o país necessitava. Nesse momento, Rodrigues já havia iniciado o preparo de Teoria da História do Brasil (1949).39 Essa Janeiro: Editora FGV, 1996. p.75. Inclusive, grande parte das críticas de Rodrigues, a partir de então, se apoiarão sobre essa questão da necessidade de uma formação superior para os historiadores no Brasil. Razão pela qual ele defendeu que a especialização deveria partir da Universidade brasileira, mas apenas como meio de consolidar e assegurar o estatuto científico da História. 36 RODRIGUES, “A historiografia brasileira em 1945”..., p.1. 37 RODRIGUES, José Honório. “A historiografia brasileira em 1946 (I, II e III)”. Revista (suplemento literário de O Jornal), Rio de Janeiro, 12, 19 e 25 jan. 1947. p.1. 38 RODRIGUES, “A historiografia brasileira em 1945”..., p.7. 39 Rodrigues indicou os seguintes trabalhos como referências para sua Teoria: Lehrbuch der Historischen Methode und der Geschichtsphilosophie, de Ernst Bernheim (1908); Zur Theorie und Methodik der Geschichte, de Eduard Meyer (1910), Introdução al estudio de la Historia, de Wilhelm Bauer (tradução espanhola de 1944); Introduction aux études historiques de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, Metodologia e critica historicas, de Zacarias Garcia Villada (1921); Introduction to research in american History, de Homer C. Hockett (1931); e The writing of History, de Frederick M. Fling (1926), entre outros. Ver: RODRIGUES, Teoria da História do Brasil (1949)..., p.12-13.

14 história renovada, científica, deveria trazer o peso da crítica histórica, através de novas pesquisas e novas reflexões que problematizassem os exageros de interpretações exclusivamente conservadoras e/ou tradicionalistas, as quais se utilizavam do passado para o enaltecimento das qualidades e virtudes “eternas” do Brasil num sentido ufanista e acrítico. Essa diferenciação entre tradição e tradicionalismo fica mais evidente em seu artigo para Revista do IHGB, intitulado, “Significado cultural da história: utilidade da história na formação dos diplomatas (1946)”. Nele, Rodrigues apresenta em linhas gerais o que viria a ser o primeiro capítulo de Teoria da História do Brasil – ainda em preparo. Trata-se de uma “lição” elaborada pelo historiador carioca para o “curso de aperfeiçoamento” em História do Brasil que ele ministrava para os recém-ingressos no corpo diplomático brasileiro do Ministério das Relações Exteriores.40 O tom inicial da “lição” é o de uma defesa da fundamental importância da consciência histórica como principal ferramenta para ação dos homens na cultura moderna. Ele justificava sua postura argumentando que no, início da Guerra Fria, mais do que a bipolarização do mundo entre potências, eram as teorias políticas em disputa que importavam compreender ali, sendo que ambas “repousam numa interpretação da história”.41 Assim, Rodrigues defende que essa perspectiva deve muito a uma das mais importantes renovações na evolução da história da História: o “historicismo” alemão. Leitor atento de Ernst Troeltsch e Friedrich Meinecke,42 José Honório segue sua 40

Em 1945, meses depois de sua volta dos Estados Unidos da América, José Honório deixou o Instituto Nacional do Livro. Foi contratado em seguida como bibliotecário do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) por sugestão do amigo Barbosa Lima Sobrinho, sendo incorporado aos quadros da instituição por Miguel Costa Filho e por ter publicado muitos artigos no órgão oficial do IAA, a revista Brasil Açucareiro. Em junho do mesmo ano, Rodrigues foi convidado a participar como membro de um corpo de intelectuais que passou a atuar no Ministério das Relações Exteriores (MRE), passando, posteriormente, a desempenhar a função de professor de História do Brasil (1946) no recém criado Instituto Rio Branco (IRBr), onde também chefiou o Setor de Pesquisas, inaugurado em 1948. Em 1946 ele assumiu a Direção da Divisão de Obras Raras e Publicações da Biblioteca Nacional, deixando seu cargo no IAA. 41 RODRIGUES, “Significado cultural da história”... , p.280. 42 José Honório concorda e segue à risca as considerações de Friedrich Meinecke acerca de o historicismo alemão ter consubstanciado a libertação da história dos grilhões da sua dimensão propedêutica no estudo do Direito ou do universo letrado diletante. Ele teria inaugurado novos princípios de vida histórica, um processo que o alemão pontua desde Leibniz até Goethe. Esse processo caracteriza como historicistas autores como Leopold von Ranke, Heinrich von Sybel, Theodor Mommsen, Johann Gustav Droysen entre outros. Além disso, no que e toca ao modo como Meinecke narrou esse processo, Rodrigues também se apropria de uma forma “genética” de enredo, com o qual estabeleceu correlações entre historiadores do passado e do presente brasileiro. Essa correlação segue a lógica das categorias básicas do historicismo: individualidade e progresso, como em Meinecke. Assim, quando Rodrigues fala de “evolução”, ele tem em mente a sucessão de individualidades rumo ao melhor, ao aperfeiçoamento, porque, segundo essa lógica, a experiência específica da vida, no tempo, somente pode ser mensurada através de ações únicas, individuais e irrepetíveis. O progresso, por sua vez, segue a esteira da dialética da história de Hegel, do

15 apologia ao historicismo ao retratá-lo como “um exemplo característico da significação cultural da história”. Depois de relacionar alguns autores que em sua leitura representaram importantes papéis na evolução que levou à independência e libertação da ciência histórica – com Dilthey, Troeltsch, Meinecke, Rickert, Goethe, Ranke, entre outros –, José Honório afirmava que a evolução da história em sua elevação à ciência demonstra o seu valor e caráter como “matéria de primeira necessidade cultural”. De modo geral, todos reconhecem os proveitos que a sociedade e a cultura extraem da ciência histórica. [...] A história nos cura do egocentrismo, da exagerada importância que possamos atribuir aos que nos rodeiam. O homem pode sentir-se, então, ligado ao que foi e ao que será. O estudo da história é, assim, não só um instrumento de cultura intelectual, mas um meio de nos prepararmos para compreender transformações da sociedade, e para nos familiarizarmos com as diferentes formas de convívio social.43

Rodrigues assevera que história não é mera erudição. Aquilo que ele define como seu “valor cultural”, novamente amparado sobre Huizinga, aqui significa que além da dimensão intelectual, a história possui valor no “mundo prático político e quotidiano” no qual a “teorias de interpretação histórica fundamentam as reivindicações sociais”.44 Isto é, a história não se esgota em si mesma. Ela é parte de um mundo que recorre a ela em busca de sentido e significado para as ações que conduzem a vida humana. Rodrigues defendia também que tarefa da ciência histórica, neste sentido, era a análise e descrição do “passado da sociedade humana” bem como “a tradição desse passado, que vive nas formas presentes”.45 A escrita da história é fruto da história da qual ela pertence e a qual ela própria revela e pode libertar. A adequada interpretação da história tornava-se o dever de uma historiografia moderna. O conhecimento histórico, de um historiador em meio aos seus contemporâneos, porém em sintonia com o que foi, qual o historicismo, apesar de crítico, jamais conseguiu se distanciar completamente (tampouco Rodrigues). Isto é, para falar como Estevão Martins, “a reflexão elaborada no e pelo pensamento histórico opera a correlação por semelhança e diferença entre formas sociais da vida humana, ao longo do tempo, estipulando uma espécie de interdependência entre o fato social (e pessoal) de ontem com o fato social (e pessoal) de hoje, e, eventualmente, por razões óbvias, com o de amanhã”. Ver: MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su Genesis. Mexico: Fondo de Cultura Econômica, 1943. Ver também: MARTINS, Estevão C. de Rezende. “Historicismo: o útil e o desagradável”. In: VARELLA, Flávia Florentino; MOLLO, Helena Miranda; MATA, Sérgio Ricardo da; ARAUJO, Valdei Lopes de. A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm Editora, 2008. p.17. Sobre a tipologia das quatro formas de construção de enredo propostas por Rüsen, tradicional, exemplar, genética e crítica, ver: RÜSEN, História Viva..., p. 58 et seq. 43 RODRIGUES, “Significado cultural da história”..., p.281. 44 RODRIGUES, “Significado cultural da história”..., p.281. 45 Grifo meu. Idem, Ibidem, p.281.

16 torna-se o elemento decisivo na avaliação de um estado atual de coisas, diagnóstico de problemas da sociedade da qual faz parte. A função central do conhecimento histórico repousava em atos de compreensão em relação direta com os problemas de uma sociedade como a brasileira. Seu artigo, assim como a versão do mesmo que ele incluiu na abertura de Teoria da História do Brasil (1949) também se expressava em termos de uma análise historiográfica. Isto é, Rodrigues buscava nos autores oitocentistas brasileiros que melhor representavam essa perspectiva “historicista” – de uma história “engajada” no mundo e na compreensão da vida e da sociedade.46 Não se pode esquecer que o texto em questão origina-se de uma lição para diplomatas. Sendo assim, Rodrigues se concentra, em especial, sobre os “historiadores-diplomatas” do Itamarati, para os quais, dizia ele, a erudição e a história foram armas para a ação política conseqüente no mundo. Esta é a “tradição de cultura histórica” que Rodrigues identifica e defende.47 Vejamos alguns aspectos desta tradição. Inicialmente, destaca o Barão do Rio Branco, pois ele fora a “consciência mais viva” no emprego da história a serviço de um fim prático nos quadros do Palácio do Itamarati. Ou ainda, o “expoente máximo no Brasil da ação política inteiramente baseada num profundo conhecimento geográfico e histórico”.48 Sua leitura sintetiza sobre a figura de Rio Branco a ideia que defendera anteriormente: [...] Rio Branco prepara-se meticulosamente no estudo da história para, depois, com razões históricas, justificar os direitos do Brasil em questões de limites. [...] Foi o conhecimento histórico de Rio Branco que o capacitou para a grande obra de política externa que realizou durante sua passagem pelo Itamarati. [...] Rio Branco é o melhor dos exemplos. Há na vida deste grande historiador e diplomata duas singularidades que merecem um registro especial. Não só a sua obra de historiador se incorpora definitivamente na ciência histórica brasileira, como também a sua obra de Ministro das Relações Exteriores e de defensor de nossos direitos externos, baseada exclusivamente na história, se incorpora à história do Brasil. Seu nome é um motivo de estímulo e de incentivo e um exemplo da

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Para Rüsen, na esteira de Karl-Ernst Jeismann, “engajamento” relaciona-se aos interesses que movem os homens em direção a participação significativa na vida prática (praxis). A “realização da própria existência na luta social pelo reconhecimento, na adoção e na defesa das próprias convicções, na efetivação das pretensões subjetivas de validade, no exercício do poder ou na inserção nele, na participação nos processos culturais que determinam o próprio eu, a relação aos demais, [...], em tudo, enfim, a que se refere o termo ‘práxis’”. Ver: RÜSEN, Jörn. História viva..., p.102. 47 RODRIGUES, “Significado cultural da história”..., p.283. 48 Idem, Ibidem, p.282.

17 necessidade dos estudos históricos na formação dos que querem zelar 49 pelo bom nome desta Casa [Instituto Rio Branco].

Ao lado de Rio Branco, na análise de Rodrigues, na tradição de cultura histórica que os novos membros do corpo diplomático do Itamarati deveriam honrar, figuravam homens que, através da “sua obra puramente pessoal de investigadores e estudiosos da história, contribuíram com suas pesquisas e suas investigações para a melhor fundamentação dos interesses brasileiros”.50 Essas seriam, por exemplo, as contribuições de Joaquim Caetano da Silva e Francisco Adolfo de Varnhagen, por exemplo. Se o primeiro pouco teria contribuído, na leitura de José Honório, o Visconde de Porto Seguro, por sua vez, extraiu da Torre do Tombo e do Arquivo de Simancas documentos sem número e sem par. Foi especialmente durante essa sua estadia na Península que Varhagen escreveu as Primeiras Negociações Diplomáticas Relativas ao Brasil e revelou alguns valiosos documentos que serviram mais tarde para o trato das questões de limites e de fronteiras do Brasil. [...] em todas as questões de limites disputadas ofereceu Varnhagen não só documentos autênticos e talvez decisivos como também uma argumentação esclarecedora.51

“Mais modernamente”, dizia ainda José Honório, Oliveira Lima e Joaquim Nabuco também mereciam atenção. Mas o ponto fundamental é que a “tradição de cultura histórica” tinha marcado presença no cenário brasileiro entre os diplomatas do Itamaraty. Uma tradição que deveria e mereceria ser incorporada à experiência do seu presente. O mesmo tipo de raciocínio figura em A Pesquisa Histórica no Brasil: sua evolução e problemas atuais (1952). conhecer o que já se fez e propor o que se deve fazer é o objetivo deste trabalho. Atender a este objetivo significa, no Brasil, restaurar a tradição imperial de cultivo da história, tão abandonada pela República, descuidosa do passado e de suas vozes e tão confiante nas tarefas do momento, a tal ponto que o próprio futuro nem sempre foi bem assegurado. O passado só pode ser superado quando suas razões 52 forem ouvidas; de outro modo, ele as reclama.

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RODRIGUES, “Significado cultural da história”..., p.282. Idem, Ibidem, p.282. 51 Idem, Ibidem, p.282-283. 52 RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil: sua evolução e problemas atuais. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1952, p.11. 50

18 A tradição de cultura histórica clamada por José Honório em A pesquisa histórica no Brasil era composta, mormente, por pesquisadores históricos que contribuíram, de acordo com seus critérios, para o avanço das pesquisas no Brasil.53 Contudo, essa “evolução” não seguia uma linha sucessiva de progressos. Pelo contrário, reforçava que a tradição de pesquisadores históricos esmaeceu e enfraqueceu-se, especialmente durante a República. E o quê Rodrigues entendia por tradicionalismo? Este seria “sempre ou quase sempre o ingênuo conservadorismo de políticos reacionários”. Mais ainda, o tradicionalismo era o “criador do complexo do nacionalismo e o estimulador das políticas externas agressivas”. Como exemplo, destaca o nacionalismo alemão posterior à Guerra de 1870, que ele reputa “inteiramente baseada na consagração de um nacionalismo feroz, que se alimentava do tradicionalismo”.54 A tradição, por outro lado, é retratada como uma ideia que sempre expressa um juízo de valor atual. E ele reconhecia a utilidade da tradição na construção do patriotismo, pois “sem esse mecanismo da tradição seria difícil criar valores simbólicos e usá-los como elemento na ação de certas ações evolutivas ou mesmo na resistência à agressão estrangeira”.55 Todavia, nessa leitura de Rodrigues para o conceito de tradição, não há passividade envolvida no delineamento, ou melhor, no reconhecimento e desvelar da mesma: há muita e a mais rigorosa possível, consciência histórica e trabalho de análise crítica. Para ele, somente através do entendimento de uma formação histórica se poderia expressar verdadeiramente o valor que ora se recebe, mantém-se e deseja transmitir adiante, assim como escolher o que fica para trás na ruptura em função da qual se pode instaurar o legitimamente novo. Trata-se de uma identificação ativa, escolha e construção do presente: tradição, como valor benéfico a ser representado e transmitido por um agente histórico diante das necessidades práticas, ou problemas, de seu tempo presente – os quais mobilizam a sua ação como pesquisador e intelectual – era o elemento de orientação no tempo e de utilidade atual. A tradição cumpriria, na leitura de Rodrigues, uma função positiva sempre estivesse relacionada a uma interpretação 53

Seguia, pois, deste modo: Antonio Meneses Vasconcelos de Drummond, Francisco Adolfo de Varnhagen, Antônio Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Joaquim Caetano da Silva, Ramiz Galvão, Medeiros e Albuquerque, José Higino Duarte Pereira, F. A. Pereira da Costa, Oliveira Lima, Norival de Freitas, Manuel Cícero Peregrino da Silva, Rodolfo Schuller, Pedro Souto Maior, o Barão do Rio Branco, Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu, o Barão de Studart, Afonso d’E. Taunay, Alberto Rangel, Alberto Lamego, Tobias Monteiro, Jerônimo Avelar Figueira de Melo, Luís Camilo de Oliveira Neto e Pedro Calmon. 54 RODRIGUES, “Significado cultural da história”..., p. 283. 55 Idem, p. 284.

19 histórica. Sendo “boa”, portanto, essa tradição não seria impositiva, mas propositiva aberta à reflexão e compreensão históricas. Tradição, neste sentido, deve ser entendida como escolha consciente e não transmissão de valores e autoridades de maneira passiva e acrítica. São as necessidades do presente que, aliadas à técnica, crítica e pesquisa histórica, que acionam ou se permitem dizer restauradoras de uma tradição. Para Rodrigues, sua compreensão desse processo encontra sentido na finalidade prática das ações no presente: em função da intenção de renovação e de mudança tem-se tradição; se a intenção for conservadora, em prol da manutenção do status quo, ou mesmo aduladora de agentes do passado pela pura e simples adoração dos mesmos ou mesmo uma nostalgia sobre dias melhores do passado, tem-se tradicionalismo. No caso particular de José Honório Rodrigues, a intenção deve ser a mudança que prepararia o futuro em termos históricos. A história cumpriria com o papel crítico de instruir e, portanto, permitir a continuidade das “boas ações” no presente se e quando instruísse e defendesse a mudança. Uma tradição, nesse sentido, estaria sempre e necessariamente relacionada (aberta, portanto) à crítica histórica, pois essa estabelece a alteridade entre presente e passado como meio para a ação esclarecida no presente, avaliando as experiências do passado de modo responsável e crítico; tornando-o “vivo” para o presente. Assim, sua ideia de uma tradição de cultivo da história atendia bem às suas pretensões, fossem restritas aos quadros do IRBr, ou ainda mais amplamente como em A pesquisa histórica no Brasil (1952) e a possível fundação de um Instituto de Pesquisa Histórica no Brasil que viria suprir as carências no sentido de preservação desta “boa” tradição.56 Isto é: as relações entre história, historiografia e ação política (no sentido amplo do termo). Esse tipo de tradição representa um grande papel na direção política de um país. Assim, por exemplo, é uma tradição inglesa a liberdade de palavra. A existência dessa tradição é incompatível com qualquer cerceamento e ela é suficiente para tornar improvável o estabelecimento ou duração de uma censura na Inglaterra. Do mesmo modo, poderemos dizer que a existência dessa tradição de cultura histórica no Itamarati e de intransigente apelo à solução pacífica das nossas disputas com os vizinhos, é uma boa tradição, uma

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Sobre o projeto do Instituto de Pesquisa Histórica de Rodrigues, ver: FREIXO, Andre de Lemos. “Ousadia e redenção: o Instituto de Pesquisa Histórica de José Honório Rodrigues”. História da Historiografia, Ouro Preto, n.11, abril, 2013, p.140-161.

20 boa crença que nos foi transmitida pelos que nos antecederam. Os 57 atuais diplomatas devem lutar pela sua manutenção.

Como ele dizia, a história é, portanto, dos vivos, não dos mortos. É daqueles que a escrevem e a acionam no presente, dão nova vida ao passado para agirem e transformarem seu mundo, inovando e renovando-o consciente e voluntariamente. Há intenção no processo, desejo e interesse de mudança envolvidos na escrita de uma história como essa que, para ser levada a sério e legitimada como tal, precisa fazê-lo do modo mais rigoroso possível. Mas como fazê-lo sem perder tudo o que já foi conquistado e construído pelos homens do passado? Não haveria valores e questões fundamentais a serem pensadas também pela História? Nesse sentido, a compreensão de uma dimensão eficaz para a tradição se faz presente. Na tradição estão presentes os resultados acumulados das ações pretéritas, que indicam aos agentes do presente caminhos, ou possibilidades, de direcionamento e orientação. Rodrigues reconhece isso. Mas apenas isso não bastaria. Não seria, portanto, numa adoração das imagens do passado tratadas como mero conteúdo morto que essa dimensão se concretizaria. Uma História do Brasil não seria, pois, a idolatria da nação brasileira, uma imagem fixa segundo categorias universais eternas. A história seria uma manifestação da vida do Brasil, o presente vivo que, instruído pelo historiador, prepararia o futuro conjunto de uma nação em constante processo de realização; “perpétuo fasciendo”, disse Rodrigues noutra ocasião,58 na esteira de Ortega y Gasset e não uma apologia à “brasilidade” de ontem, hoje, amanhã e sempre. Rodrigues não sugere a contemporaneidade imediata do passado na qual não haveria distinção entre passado, presente e futuro. Sua tradição de cultura histórica era uma interpretação histórica. Isto é, a crítica que Rodrigues defende parte da noção de tradição, mas não se esgota nela, na realidade a inverte em seu sentido clássico. Ele a reconhece, pois, como história, e, como tal, a mantém aberta à crítica historiográfica. Como afirmei anteriormente, não gostaria que o colorido nacionalista de Rodrigues, da época em que escreveu, desvirtuasse do ponto fundamental do pensamento histórico de Rodrigues que reside no fato de que os historiadores são sempre parte da história antes de serem escritores de história. Como dito anteriormente, para ele “a historiografia é um espelho da sua própria história”. Essa expressão significa 57

Idem, Ibidem. RODRIGUES, José Honório. “A historiografia brasileira em 1946”. Revista, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 1947, p. 7, [14º par.]. 58

21 que os historiadores, aqueles que escrevem história estão na história tanto quanto ela se faz presente neles. Eis a relação “reflexiva” que pode ser identificada na metáfora do espelho – essa metáfora é absolutamente fundamental para compreendermos o modo como tradição e história se relacionam no seu pensamento. Os historiadores são tanto produtos das experiências (ações) de uma sociedade que os antecede e da qual comparticipam como herdeiros, quanto produtores de nova história. Isso não significa, entretanto, uma postura de resignação frente ao inexorável curso do tempo, “um destino”, ou à “soberana” História (com “H” maiúsculo) – o que deixaria muito pouco a ser feito pelos homens, senão contemplá-la em seu desenvolvimento. Essa presença do passado não seria, contudo, autoevidente – razão pela qual José Honório defendia a necessidade da história como um instrumento fundamental da consciência histórica.59 Rodrigues não tinha dúvidas quanto ao caráter processual da história e da necessidade da ação dos homens no sentido de fazer história. Inclusive, parte da função social da historiografia moderna, no seu entendimento, era exatamente um esforço intelectual, uma síntese interpretativa deste processo e seu possível “sentido”, como meio de orientar a ação dos homens em direção a um futuro melhor. Exatamente por isso, penso, José Honório pode nos auxiliar a repensar a relação entre história e tradição. Não se trata, é claro, de glosar o que ele dizia. Mas de indagar se é possível para uma cultura histórica (e, cada vez mais, uma cultura historiográfica) pensar a tradição por outras bases, eu diria, talvez até mesmo de modo um pouco menos tradicional(ista)? O que eu quero dizer aqui é o seguinte: um dos méritos do pensamento de história em Rodrigues, no meu entendimento, reside na sua reformulação do conceito de tradição, como conceito que estaria perfeitamente dentro de uma cultura histórica moderna. E isso se daria, primeiramente, pela sua orientação não estar apenas voltada para o passado, como autoridade maior e inescapável, mas por sua perspectiva e orientação para o novo (moderna, portanto). Se, tradicionalmente, a reverência à tradição se impunha como forma de se perpetuar o passado, sem criticá-lo, Rodrigues

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Emprego a categoria consciência histórica tal como desenvolvida por Jörn Rüsen: a instituição de “sentido histórico geracional”, na qual a memória histórica figura como componente principal da consciência histórica na criação de uma cultura histórica. Trata-se de elemento ativo sobre as intenções que guiam as ações (e discursos) dos homens: a consciência histórica evoca o passado como um espelho da experiência no qual se reflete a vida presente que, por isso mesmo, tem suas características históricas reveladas. Essa consciência se expressa pelo discurso, articulado sob a forma narrativa. Ver: RÜSEN, Jörn. “Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história”. História da historiografia, n. 2, mar. 2009, p. 163-209.

22 desenvolveu um modo propriamente criativo de se relacionar com a tradição, pela via do que chamava a “dialética da história”.60 Sendo assim, pode-se recorrer aqui ao conceito hegeliano de aufheben, pois para Rodrigues a história não resulta da simples negação do passado ou da tradição. Trata-se, isto sim, no vocabulário de Hegel, de “Aufgehoben”: conservação e negação simultânea. Rodrigues não reeditava a filosofia da história de Hegel, que fique claro, mas aqui o que está em jogo não é apenas a crítica histórica sobre os fenômenos do passado, nem, tampouco, a recusa do mesmo ou da tradição, mas o modo como a crítica historiográfica pode ser (ou não) capaz de manter o passado “vivo” e em diálogo com ele seja de forma polêmica, criadora ou mesmo criativa, mas sempre através de pesquisas rigorosas, sérias e através de argumentos legítimos, abertos à crítica, a aceitação ou rejeição intersubjetiva. Trata-se, pois, de uma relação dinâmica, dialógica e, portanto, viva da racionalidade crítica da história à transmissão de valores culturais ao presente e ao futuro. Um equilíbrio, contudo, precisa ser o alvo deste diálogo. Portanto, Rodrigues não defendia uma relação “museológica” com o passado, mas uma relação dialética. Esse esforço, por um lado, desmonta o conceito de tradição hegemônico até então, uma vez que historiciza-a, como uma interpretação, ou síntese, no seio de uma cultura histórica. Distancia-se de uma relação que preconiza a conservação do passado “em formol” ou sua mumificação para a apreciação fria do presente. O passado não se trata de um corpo morto, aberto a observação dos viventes, senhores absolutos e agentes de sua autópsia que elaboraria um discurso que faria as vezes de seu rito de sepultamento. A questão é o equilíbrio entre o novo e o velho, no qual ambos modificam-se em uma nova síntese e podem coexistir se e quando puderem adaptar-se harmonicamente. Resgatando uma última vez, pois, a epígrafe de abertura desta intervenção, na qual Rodrigues dizia que a eficácia das tradições se contrapõe à ineficácia das tradições, parece-me prudente dizer que ele falava um pouco como Octavio Paz, para o qual “os povos tradicionalistas vivem imersos em seu passado sem questioná-lo; mais que ter consciência de suas tradições, vivem com elas e nelas. Aquele que sabe que pertence a uma tradição, sabe-se já, implicitamente, diferente dela, [...]. A crítica da tradição se inicia como consciência de pertencer a uma tradição”.61 Ou ainda, como T. S. Eliot, a “boa tradição” é e tem que ser “trabalhosa” exatamente nesse sentido crítico. Como o 60 61

RODRIGUES, História da história do Brasil, vol. II, t. I, p.192. PAZ, Octavio. Los hijos del lima. Barcelona: Seix Barral, 1974. p.27.

23 resultado de enorme esforço intelectual (e histórico) que reajusta o novo e o velho em função das necessidades do presente e da configuração de horizontes futuros. “A tradição não se transmite por direito de herança”,62 mas reivindica-se como reconhecimento de uma dívida ao que foi, frente ao irromper do novo, não como um fardo a ser extirpado. Há uma responsabilidade do presente quanto ao que foi e o que se endereça ao futuro na arquitetura do novo. Os dois sentidos de tradição envolvidos no pensamento histórico de José Honório Rodrigues podem, pois, ser assim analisados: 1) O eficaz: na trilha idealista de Hegel, Rodrigues crê que passado e presente podem (e devem) encontrar um modo de coexistirem em equilíbrio. Esse balanceamento deveria, inclusive, figurar como um imperativo da historiografia moderna. A manutenção de uma relação equilibrada e positiva (dialética) entre tradição e história caberia aos historiadores que, de geração em geração, deveriam revisar as interpretações do passado, evitando que a tradição e a história degenerem em tradicionalismos. Penso, pois, tratar-se de uma “tradição reflexiva”,63 na qual o papel da tradição é inscrito em uma cultura histórica (moderna) e se torna tema de considerações, reconsiderações e reformulações críticas; como matéria de debates, discursos, crítica e aceitação (ou rejeição) argumentativa. Há necessariamente aqui a relação em que passado e presente se abrem para horizontes futuros. 2) O ineficaz: a tradição se sobrepõe à história crítica, tornando-a acrítica e instrumento da reação. O que Rodrigues chamava de “tradicionalismo” exemplifica bem esse papel, em uma cultura histórica (moderna), de reificar condições previamente dadas da vida humana como necessariamente melhores, supervalorizando a importância das origens pretéritas e desequilibrando a relação entre passado e presente. Bloqueando o espaço para a crítica e/ou revisão das interpretações acerca do passado, que perdem 62

ELIOT, T. S. “Tradition and the individual talent”. In: KERMODE, Frank (Org.). Selected Prose of T. S. Eliot. London: Faber & Faber, 1975. p.38-39. 63 Aproprio-me aqui da tipologia proposta por Jörn Rüsen. Na tentativa de formular alternativas aos abusos que muitas vezes são cometidos em nome da “tradição”, sem com isso definir claramente de que recurso à tradição se fala, Rüsen propõe distinguir três modos (ou tipos-ideais) de tradição: 1) funcional – afirmação inconteste de todas as condições pré-estabelecidas da vida social como se conhece. Normalmente persegue e cultiva com grande estima as origens e as longas continuidades entre passado e presente; 2) reflexiva – pode ser observada quando o papel da tradição em uma cultura histórica se torna um elemento para redimensionamentos e reformulações analíticas, na qual a tradição assume a forma de parte de um discurso histórico, isto é, passível de aceitação argumentativa e aberto à crítica; 3) “Latente” – são tradições que repousam fundo no inconsciente cultural das sociedades, parecendo esquecidas, mas na realidade estão dormentes e configuram importantes elementos prévios na constituição das culturas humanas, mesmo quando aparentemente esquecidos pelas mesmas. Traduções livres. Aspas e grifos como no original. Ver: RÜSEN, Jörn. “Tradition: a principle of historical sense-generation and its logic and effect in historical culture”. History and Theory, Theme Issue 51 (Dec. 2012), p. 45-59, 2012. p.59.

24 em atualidade, e marcando o passado como prevalente sobre o presente. Haveria o fechamento da possibilidade da mudança ou de uma orientação da história para o futuro.

Encerramento Como disse no início, meu objetivo é o diálogo com as vozes de Rodrigues. E o plural não é gratuito. Eu parto de um pressuposto para minhas análises: Rodrigues não resolveu a questão da relação tradição e história de uma forma teórica. Sendo assim, em 1980, Rodrigues publicou um artigo radical, no qual assevera reiteradas vezes que a história crítica somente poderia viver à custa da “morte da tradição”.64 O texto em questão chama-se “A tradição, a memória e a história” e foi publicado na coletânea de ensaios intitulada Filosofia e História. Como o próprio autor no explica, trata-se de ensaios que deveriam servir de introdução ao terceiro volume de sua História da história do Brasil, jamais concluído, que se dedicaria a temática “Historiografia e Ideologia”. O texto se contrapõe, linha por linha, à ideia de um equilíbrio entre tradição e história que defendi aqui. Mas é compreensível. O momento em que foi publicado, em meio ao complexo processo de abertura política, Rodrigues se posicionava a favor de uma história autônoma, crítica e combatente. Suas críticas endereçavam-se, naquela conjuntura, ao governo Figueiredo, último general-presidente brasileiro e os muitos investimentos em prol da “memória” e da “tradição” nacionais como: a aprovação pelo Congresso Nacional da Fundação Nacional Pro-Memória (1979), o Serviço Nacional de Arquivos (lançado em dezembro de 1979, sem nenhum historiador nos seus quadros), à subordinação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ao Ministério da Educação e Cultura sancionada por Fiqueiredo, entre outras. Todas essas medidas reiteravam em seus discursos a necessidade de “memória” no Brasil, de arquivos, de patrimônio etc. Porém, dizia Rodrigues, nada disso significaria outra coisa senão acúmulo de material e o conforto aos saudosistas sem que pudesse definir uma relação crítica com essa memória. Isto é, para Rodrigues, nesse texto (e contexto), “sem história, não há memória”.65 Era um período de desequilíbrio e a postura defendida por José Honório no referido artigo combatia fogo contra fogo. Nele, Rodrigues embaralha assevera que as

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RODRIGUES, José Honório. “A tradição, a memória e a história”. In: ______. Filosofia e história. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980 (Coleção Logos). p.29-48. 65 Idem, Ibidem, p.47.

25 tradições são sempre nocivas a historia, sempre arcaizantes e defende que somente a história deve prevalecer como forma de orientação dos homens e das sociedades livres. Isso pode ser lido a seguir. “A tradição sempre foi importante para reis, imperadores, faraós, tiranos, cônsules ou tribunos, grandes autoridades da Igreja e das Forças Armadas. É ela que lhes dá legitimação”.66 Suas críticas, contudo, devem por isso mesmo ser matizadas, reequilibradas no conjunto do seu pensamento. O próprio autor reconhece isso no prefácio de Filosofia e História: no primeiro e segundo capítulos tenta-se esboçar os objetivos e diferenças entre a história real e a oficial, levantar o problema do uso indevido e inapropriado das palavras ‘tradição’, ‘memória’ e ‘história’, e, sobretudo, acentuar o desfavor que a história vem merecendo das autoridades em benefício da ‘memória’, chegando-se ao ponto de criar a extravagante Fundação Pró-Memória, invenção única e singular no mundo culto.67

Sendo assim, pode-se perceber que há margem para o diálogo. O texto de onde destaquei a frase que abriu minhas reflexões nesse sentido, lançado aproximadamente oito anos depois deste artigo “contra a tradição”, e tratando da historiografia “conservadora”,68 o conceito de tradição retornava a ser algo importante e não necessariamente nocivo, pois relacionado à história. No contexto do artigo mais radical, nosso autor manifestou-se de modo mais enfático contra a “tradição” e a “memória” referentes aos abusos que o autoritarismo promovia em favor de seus próprios projetos nesse sentido. Essa tradição “nociva”, a ser extirpada, pode ser lida em todos os pontos como o tradicionalismo tornado oficial e oficioso que Rodrigues combateu em outros textos, pois atado aos poderes de elites dominantes e conservadoras, que silenciam os historiadores (cerceando-lhes a liberdade fundamental de que necessitam para operarem) e são reacionários às ideias de mudança e transformação. Para eles a história só serve quando é erudição vazia da “decoreba”, do acúmulo de datas e nomes na “memória” e escrava da lógica da “santificação” das instituições oficiais e da legitimação do status quo.

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RODRIGUES, “A tradição, a memória e a história”..., p.33. Ou ainda, “Uma liderança que detesta o seu povo, que o prime, que lhe nega tudo, que desejaria ter outro povo – branco, educado, culto –, não tem o direito de liderá-lo. Assim, a missão do historiador é mostrar a necessidade de derrotar a opressão, as ditaduras, as minorias elitistas, que querem tudo para si e nada dar ao povo” (p.32). 67 RODRIGUES, José Honório. “Prefácio”. In: ______. Filosofia e História..., p.7. 68 Refiro-me ao segundo volume, tomo I, de sua História da História do Brasil, de 1988.

26 Para encerrar, portanto, muitas vezes Rodrigues lançava mão de metáforas para nos ajudar a compreender sua perspectiva histórica e suas críticas. Metáforas como, por exemplo, “vida” e “morte”, “corpo”, “Deus”, “Maria” ou “Marta”,69 etc. Penso especificamente na ideia de uma história “viva”, ou da história como o “corpo do tempo”.70 Contudo, seria “vivo” um organismo apenas por apresentar um tempo corporificado, ordenado e/ou domesticado numa narrativa-síntese? Creio que não ou, pelo menos, não somente. Pergunto-me se é possível haver vida onde só há materialidade de um corpo, para ficar na sua metáfora? Pode haver corpo, mas não necessariamente tem de haver vida. Para que haja vida deve haver algo que anime este corpo. Pode-se dizer, portanto, que é preciso corpo e alma. O corpo marca a temporalização no mundo, o nascimento e a finitude, as rupturas que pontuam e permitem vislumbrar a mudança. A alma marca a imortalidade, aquilo que antecede e supera os esforços mundanos. De modo que história e tradição, para Rodrigues, sintetizam-se como corpo e alma num esforço dialético que, como o próprio autor afirmava, está sempre em perpétuo e contínuo movimento, e no qual as desejáveis rupturas somente se tornam compreensíveis sob o pano de fundo de algum tipo de continuidade. Assim, a perspectiva de Rodrigues quanto ao que seria o trabalho da historiografia nesse diálogo entre tradição e história encontra-se perfeitamente sintetizada no seguinte trecho, com o qual ele, logo após ter citado Eduard Spranger (na sua famosa elegia ao 90º aniversário de Friedrich Meinecke),71 encerrava sua contribuição para o “Curso Capistrano de Abreu”, no qual afirmava: A história, deste modo, é catarse, mas é também relembrança do legado espiritual, daquele bem que participa do eterno, que é a única coisa que não nos pode ser roubada, pois pertence individual e humanamente a cada um e a todos. Assim, quem diz consciência histórica significa e sugere duas coisas, dois sentimentos ambivalentes: a libertação do mal que padecemos ou nos ameaça, e a conquista de um bem ou a conservação do que já possuíamos. Duas 69

“A história não existe para contemplar, mas para agir. Ela não é Maria, é Marta”. RODRIGUES, “A tradição, a memória e a história”..., p.33. 70 “O corpo do tempo deve entender-se como a história, sua forma, seu estilo, as pressões que nela se exercem, a história viva, a fabricação histórica, a criação e a recriação, com os atores todos, os protagonistas e os deuteragonistas, os principais e os secundários”. RODRIGUES, José Honório. História, corpo do tempo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976. p.12. 71 “Não reconheceríamos sua força [a da ciência histórica] se a considerássemos apenas como essencialmente reprodutiva. Muito mais do que isso, o grande historiador constrói o mundo espiritual que começa nele de maneira indissolúvel. A vida, de cuja compreensão ele se apropriou, torna-se imediatamente uma força presente e formadora do futuro. Assim, o verdadeiro historiador liberta seus contemporâneos da pressão de um passado que simplesmente pesa sobre ele”. SPRANGER apud RODRIGUES, “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”..., p.137-138.

27 salvações, mas uma só compreensão – a consciência que presta contas e nos diz o tesouro espiritual que nos coube e que, ao superar o 72 passado, participa da construção do futuro.

Ainda que Rodrigues não tenha resolvido teoricamente esta relação em sua especificidade, pode-se identificar naquilo que ele produziu que um determinado tipo de tradição, uma tradição reflexiva, ou uma história viva, poderia ser “eficaz” para a História do e no Brasil. E sem cair na tentação do (ingênuo) evolucionismo cientificista, que considera (muitas vezes a priori) autores de épocas anteriores como agentes não pertinentes para reflexões teoricamente orientadas, o esforço aqui repousa em honrar o pensamento de José Honório Rodrigues. “Honrar”, na precisa acepção que Cornelius Castoriadis atribuiu ao termo, e que não significa o mero elogio, nem tampouco a simples contextualização, a interpretação de “autor e obra”, mas um diálogo com o pensamento deste intelectual.73 Não como uma obrigação, mas em ato e reivindicando atualidade, na forma de um convite à reflexão acerca de sua possível relevância para pensarmos o nosso presente, o que, sem dúvida, não se esgota (no) aqui e agora.

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Grifos meus. Idem, Ibidem, p. 138. CASTORIADIS, Cornelius. Os destinos do totalitarismo e outros escritos. Porto Alegre: L & PM, 1985. p.7. 73

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