Corpomídia: manifestações contemporâneas da comunicação

May 30, 2017 | Autor: Nathália Brunini | Categoria: Performance, Comunicação, Arte Contemporanea, Tecnologia, Afeto, Mídia, Corpo e Moda, Mídia, Corpo e Moda
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Corpomídia: manifestações contemporâneas da comunicação1 Nathália Cristina BRUNINI2 Maria Júlia Barbieri EICHEMBERG3 UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga

RESUMO Este artigo tem como objetivo propor reflexões acerca do corpo enquanto mídia de si mesmo (corpomídia) – e discutir as suas diferentes manifestações de comunicação no contemporâneo. Para tanto, foi necessário entender o corpo como produtor de mensagem e processador de laços comunicativos, partindo do pressuposto de que a evolução tecnológica provoca nele mudanças significativas e repensa suas interações com o indivíduo. Como estratégia metodológica propõe-se a classificá-lo em três categorias: o corpo ampliado, analisando o trabalho do estilista Hussein Chalayan; o corpo híbrido, investigando as criações do artista Stelarc e o corpo afetivo, com base na obra da performer Marina Abramovic.

Palavras-chave: corpo. mídia. comunicação. tecnologia. afeto.

INTRODUÇÃO É impensável qualquer comunicação entre indivíduos sem apontar o corpo e suas múltiplas linguagens. Segundo Harry Pross, em seu livro Medienforschung (Investigação da Mídia)4 de 1972, “toda comunicação inicia e termina no corpo”. Visto como a primeira mídia do homem, ele se apresenta como a mídia base para outras interações comunicativas.

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Trabalho apresentado à banca avaliadora do curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, da UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga, para a obtenção do diploma de Bacharel; 2 Estudante de Graduação do 8º semestre do Curso de Jornalismo da UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga, São Paulo. E-mail: [email protected] 3 Orientadora do trabalho. Professora dos Cursos de Arquitetura e Jornalismo da UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga, São Paulo. E-mail: [email protected] 4 Nascido na Alemanha, no ano de 1923, o jornalista e professor de teoria da mídia Harry Pross, em seu pioneiro e surpreendente livro Medienforschung (Investigação da Mídia), classifica o corpo como a primeira mídia do homem, como “mídia primária”, aquela que funde “em uma [única] pessoa conhecimentos especiais”. Segundo a reflexão de Pross, a mídia é muito mais ampla que o jornal, o rádio, a televisão, a internet. É muito anterior a eles. Qualquer um deles simplesmente não exerceria sua função comunicativa se não houvesse sempre um corpo numa ponta e um corpo na outra ponta de um desses processos. (RAPOSO, 2013).

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Seja como objeto de estudo no aspecto da estética, na saúde, no meio artístico, ou como suporte para a vestimenta – o corpo é um emissor de mensagens. Castilho (2004, p. 64) afirma que “o corpo é um dos canais de materialização do pensamento, do perceber e do sentir circundante. É o responsável por conectar o ser com o mundo que este habita”. Seja qual for o movimento haverá sempre um sentido, uma mensagem a ser lida por um corpo vivo diante de outro corpo. O corpo não se revela apenas enquanto componente de elementos orgânicos, mas também enquanto fato social, psicológico, cultural, religioso; é nele que a relação do homem com o mundo é estabelecida. Está dentro da vida cotidiana, nas relações, o corpo é o que nos torna presentes no mundo. O corpo constrói manifestações textuais que se deixam aprender e significar por efeitos de sentido que produzem. Esse corpo cria processos de identidade, e a “presença do outro, como corpo visível e sensível com o qual podemos nos identificar, representa [...] a cristalização do sentido”, que está sempre aberto à re-significações. (CASTILHO, 2004, p. 46).

A identidade cultural de cada pessoa está inserida em seu corpo e manifesta-se nas informações que originam dele e que produzem sentido continuamente. O corpo é um elemento da expressão humana e primordial para a compreensão do homem e de sua relação com o mundo, pois é um produtor de sentidos e um propagador de significações. “Antes de qualquer coisa, a existência é corporal” (LE BRETON, 2006, p. 7), ela está embutida no contexto social e cultural, o canal pelo qual as relações sociais são elaboradas e vivenciadas. Pensar o corpo por uma proposta de co-dependência com o ambiente é considerar que ele é um índice das mudanças em curso na sociedade, já que os sentidos que (ele) produz dependem das informações coletadas em determinados espaços, ou seja, o corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega, entra em negociação com as que já estão. Ele é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são abrigadas. “Capturadas pelo nosso processo perceptivo, que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são transformadas em corpo” (GREINER, 2005, p. 130). Mas como este processo se dá? Por que o corpo pode ser lido como um sinal do seu entorno? De que modo o entorno se torna corpo?

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Há duas maneiras distintas de lidar com essa questão. Com um pensamento hegemônico, uma é de que o corpo é visto como um processador, ou seja, ele entra em contato com as informações, as processa e, depois disto, as reflete no ambiente na qual o indivíduo está inserido. “Trata-se de um corpo-veículode-comunicação, um corpo recipiente pelo qual as informações do mundo entram, são processadas e, em seguida, devolvidas para o lugar de onde vieram” (KATZ, 2008, p. 69). Na publicidade, por exemplo, esse corpo aparece como um suporte sígnico5, ou seja, ele estampa anúncios e se torna parte responsável pelas vendas, agregando suas qualidades à da mercadoria veiculada. O corpo-suporte é apenas um veiculo transmissor de mensagens – mensagens estas que são impostas pela Indústria Cultural6. A outra questão envolve a Teoria Corpomídia, na qual o corpo deixa de ser tratado como um meio atravessado por informações que serão expressas depois de processadas para ser entendido como uma automídia, ou seja, uma mídia de si mesmo - o corpo é criador de mensagem e não veículo de comunicação. Ele é sempre um estado provisório da coleção de informações e, por isso, sempre está mudando. Muitas moléculas entram e saem da célula, em contrapartida, outras não podem fazê-lo. Mas a célula não é um ambiente contenedor. Ao contrário, ao entrar uma molécula dentro dela, passa a fazer parte da organização celular. As moléculas não recebem vida porque a vida não é uma propriedade das moléculas em si. A vida se relaciona com a organização, com a rede de relações e as propriedades emergentes da interação. No entanto, atravessar uma membrana implica em uma transformação da identidade (já que não pode ser pensada em si e por si mesma, mas em um emaranhado relacional co-evolutivo). (NAJMANOVICH, 2001, pp. 24-25, apud KATZ, 2008, p. 70).

Pode-se, portanto, dizer que esta mutualidade correlaciona corpo e ambiente. Esta relação depende muito do contexto7 no qual o indivíduo está 5

“Riva Campelo, em seu artigo ‘Publicidade e Corpo’ (2003) propõe o termo ‘suporte sígnico’ ao tratar do corpo enquanto suporte para anunciar um produto” (CAMPELO, 2003, apud CRAVEIRO, 2005, p. 79). 6 A expressão “Indústria Cultural” foi criada pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer, ambos da Escola de Frankfurt, na obra em conjunto chamada "Dialética do Esclarecimento". Indústria Cultural designa o setor econômico que usa a lógica capitalista na produção e comercialização de bens e serviços artísticos, de informação e de entretenimento. A submissão da arte à condição de mercadoria seria o principal objetivo dessa expressão. Outras características inerentes à Indústria Cultural, devido a sua lógica capitalista, seriam a sobreposição do valor de troca da mercadoria artística sobre seu valor de uso e a passividade do consumidor em relação à essas mercadorias. 7 Sebeok (1991) define contexto como o reconhecimento que um organismo faz das condições e maneiras de usar efetivamente as mensagens.

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inserido. Contexto inclui sistema cognitivo (mente), mensagens que fluem paralelamente, a memória e mensagens prévias que foram processadas ou experienciadas e, sem dúvida, a antecipação de futuras mensagens que ainda serão trazidas à ação, mas já existem como possibilidade. O contexto em que algo acontece nunca é passivo. O ambiente no qual toda mensagem é emitida, transmitida e interpretada nunca é estático, mas, sim, contexto-sensitivo (SEBEOK, 1991, apud KATZ, 2008). Por ser contexto-sensitivo, trabalha paralelamente com o corpo no tratamento do fluxo de informações permanente que os comanda. Os conceitos apresentados até agora no trabalho não são excludentes, ou seja, não existe uma demarcação concreta entre os conceitos, vez que ora se mesclam e ora se distanciam, “pois há em todo corpomídia características de corpo-suporte e vice-versa” (CAMPOS, 2005, p. 79). Porém, o recorte temático desse artigo se debruça sobre a ideia de um corpo criador de mensagem (corpomídia) e não de um corpo que apenas veicula informação (corposuporte).

1 O CORPOMÍDIA O corpo em suas representações, como dito anteriormente, pode-se comunicar por meio de códigos não verbais, aqueles que não se utilizam da linguagem verbal, falada ou escrita, porém, são ricos em informações e podem ser considerados, segundo a definição de Marshall McLuhan (1969), como meios frios – cabe ao receptor completar, com seu repertório e sua capacidade associativa, a mensagem. Estes códigos repletos de signos e significados produzem sentido e é por meio destes que conseguimos fazer a apreensão da mensagem. É no corpo que os órgãos sensoriais estão espalhados, portanto, ele também é o meio de aquisição do conhecimento (entendendo meio enquanto espaço). Ainda, segundo McLuhan (1964), o meio é a mensagem, ou seja, se o corpo é meio, espaço onde o conhecimento ocorre, ele é, também, mensagem, pois seus prolongamentos e representações são carregados de informações. Se toda comunicação inicia e termina no corpo, este é, portanto, uma mídia na qual a mensagem é emitida - o termo mídia vem do latim medium e simplificadamente significa meio, intermediação. “[...] Assim, a mídia não é outra

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coisa senão o “meio de campo”, o intermediário, aquilo que fica entre uma coisa e outra” (BAITELLO JR., 2005, p.31). Logo, a mídia seria a ligação, a comunicação entre partes. Quando falamos do termo mídia, ela sempre está associada aos meios de comunicação de massa (rádio, televisão, jornal impresso, etc), o que, segundo Baitello Jr., gera uma redução “indevida” do termo, uma vez que a comunicação é a base da cultura, ou seja, seu uso aparece antes da mídia. A comunicação não é apenas ferramenta do homem, ou seu instrumento; a cultura não é apenas um entorno de cenografia ou um pano de fundo decorativo. Tanto os processos comunicativos quanto os processos culturais se desenvolvem como ambientes sociais e históricos complexos que não resistem a visões reducionistas ou simplificadoras. (BAITELLO JR., 2005, p. 7).

Ainda de acordo com Baitello Jr. (2005, p. 31), “a comunicação começa muito antes dos meios de comunicação de massa, muito antes da invenção da imprensa, do rádio, da televisão. Antes mesmo da invenção da escrita. A mídia começa muito antes do jornal, da televisão e do rádio. A primeira mídia, a rigor, é o corpo [...]”. Ela é decorrência de uma série de interações que ocorrem muito antes de o homem se reconhecer como tal. A mídia como sendo o próprio corpo do homem, carrega, portanto, toda a sua memória e historicidade. Dessa forma, comunicação e cultura são duas áreas inseparáveis. Comunicação e cultura constituem-se, desse modo, em esferas indissociáveis. Impossível pensar a comunicação humana sem a vertente histórica dada pela cultura. Igualmente impraticável compreender os fatos da cultura humana (entendida como esfera e registro dos anseios e aspirações, das leituras e dos relatos do espírito humano) sem considerar as maneiras como eles se transmitem e se conservam no tempo e no espaço da vida [...]. Se a comunicação é a construção de vínculos, a cultura é o entorno e a trajetória complexa dos vínculos, suas raízes, suas histórias, [...] sua determinação e sua indeterminação. (BAITELLO JR., 2005, p. 8).

Como visto anteriormente, o corpo é o resultado do cruzamento de informações que chegam com as que já estão. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação. “Ao comunicar algo, há sempre deslocamentos: de dentro pra fora, de fora para dentro, entre diferentes contextos, de um para o outro, da ação para a palavra, da palavra para a

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ação e assim por diante” (GREINER, 2005, p. 131). Ideias e expressões linguísticas são objetos e a comunicação identifica-se com a ação do envio de informações. Para Greiner (2005), tal envio de informações não pode ser descrito à luz do modelo proposto pela Teoria da Informação dos anos 40, de Shannon e Weaver, que consistia na relação emissor-receptor e não levava em consideração as contaminações processadas pelo meio. Nossas experiências influenciam no modo de como vamos receber e entender a mensagem, pois elas são frutos de nossos corpos (aparato motor e perceptual, capacidades mentais, fluxo emocional, etc), de nossas interações com o ambiente por meio das ações de se mover, manipular objetos, comer, e de nossas interações com outras pessoas dentro da nossa cultura (em termos sociais, políticos, econômicos e religiosos) e fora dela (GREINER, 2005). Assim, em meio ao contexto cultural e social que o indivíduo se situa, ele constrói por meio do corpo, sua relação com o mundo. 1.1 Mídias primária, secundária e terciária

Corpos que se encontram e se enlaçam. Corpos que correm, que levantam os braços em protestos. Corpos que desfilam, que se dilaceram, que estão estampados na imprensa. Corpos que dançam, que sentem frio ou calor. Seja qual for o movimento, sempre haverá uma mensagem. Não resta dúvida que não são apenas corpos, mas também meios de comunicação, aquilo que hoje se chama mídia. Como citado no início, Pross (1972) foi o pioneiro ao falar que toda comunicação começa no corpo, esta seria a primeira mídia do homem, ou seja, a mídia primária. Aquela que funde em uma única pessoa conhecimentos especiais, torna-se então a mídia – corpomídia. Os gestos, os sentidos, a interação entre duas pessoas, entre dois corpos, é a primeira forma de comunicação. É a comunicação do falar e ouvir, de expressões faciais e corporais, do cheiro, da visão, do choro; portanto, é a mídia do tempo presente, onde emissor e receptor têm que dividir o mesmo espaço ao mesmo tempo. A mídia primária é a mídia base para outras interações comunicativas. O corpo é linguagem e, ao mesmo tempo, produtor de inúmeras linguagens com as quais o ser humano se aproxima de outros seres humanos, se

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vincula a eles, cultiva o vínculo, mantém relações e parcerias. (BAITELLO JR., 2005, p. 62).

É a partir dessa mídia primária que as outras mídias (secundária e terciária) aparecem. Elas não se excluem ou se anulam, e sim se agregam, tornamse intrínsecas umas as outras. O corpo, o ser humano, sempre será o vínculo e razão delas. Para compreender como este processo se dá, explicaremos os conceitos de mídia secundária e terciária. O homem para ampliar a sua capacidade comunicativa, cria aparatos que amplificam o raio de alcance de sua mídia primária. Inventa a máscara, as pinturas corporais, as roupas, os adereços. Na mídia secundária, os gestos e os sentidos são materializados para que ocorra a intermediação dos corpos. Desse modo, o emissor precisa de um suporte – uma mídia – (papel, filme fotográfico, tecido, quadros, cartaz...) para enviar a mensagem ao receptor. É a mídia do tempo lento, a decifração da mensagem requer tempo de reflexão para melhor entendimento. O emissor e receptor não precisam estar no mesmo espaço físico, carecendo assim, de um transportador extra-corpóreo para a mensagem. Já na mídia terciária, para que a comunicação ocorra, o emissor e o receptor necessitam de algum aparelho para estabelecer a comunicação entre os corpos: a televisão, o telefone, o rádio, as mídias eletrônicas, etc. Aqui, as mídias precisam de eletricidade, portanto o tempo se acelera e o espaço se anula, a comunicação ocorre quase que de forma imediata, sem que os corpos se encontrem presentes no mesmo espaço. Assim, fica claro que qualquer sistema de comunicação conterá necessariamente a interação entre dois corpos. O corpo está na base de toda comunicação, ele é algo vivo, não apenas no sentido biológico, mas também no sentido semiótico, enquanto escrita, e nos textos visuais, olfativos, gustativos e auditivos – aqueles que combinam linguagens e códigos. Ora, se ele é o primeiro veículo de comunicação e, quando vestido há a ampliação de sua capacidade comunicativa, o corpo, para atender às modificações do mundo contemporâneo, foi se

reconfigurando.

A

palavra-chave

para

a

construção

deste

corpo

na

contemporaneidade é: sua edição. Os avanços tecnológicos, aliados ao rápido acesso às informações, trouxeram mudanças perceptíveis ao corpo e às suas interações com o sujeito. Uma era da mobilidade e da interatividade – é o que veremos no próximo capítulo.

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2 O CORPO NO CONTEMPORÂNEO Para melhor conceituarmos a ideia de corpo na contemporaneidade, é necessário datar o contemporâneo, mais precisamente, a partir dos anos 80, quando se desenvolve a discussão sobre a pós-modernidade e algumas de suas características ligadas aos fluxos econômicos sempre mais velozes, aos processos de globalização e à derrubada das fronteiras entre diversas áreas do saber. Hoje, a relação do homem com o mundo não é mais a mesma depois dos gygabites, softwares, smartphones, ou seja, da revolução da informática e das comunicações. Todas essas modificações que o mundo sofreu, transformaram o modo de pensar, produzir, consumir e comunicar do indivíduo. Como vimos anteriormente, pensar o corpo por uma proposta de codependência com o ambiente, é considerar que ele é um índice das mudanças em curso na sociedade, já que os sentidos que ele produz (corpomídia – criador de mensagens) dependem das informações coletadas em determinados espaços. A Teoria de Corpomídia se propõe como uma teoria crítica do corpo e cria campos de experimentação em que se possa resistir localmente ao pensamento hegemônico do corpo-recipiente e do corpo-veículo-de-informação. Ela também se organiza na ideia de que o trânsito de interações e trocas que ocorrem no dia-a-dia, de minuto a minuto, entre estados, sociedades, grupos, é tão intenso e frequente, que impede o uso do verbo ter e pede pelo verbo estar, pois o corpo é um estado dessa coleção de informações que vai mudando. Quando empregado para designar o corpo, o verbo ter carrega o dualismo do corpo recipiente. Como se existisse um corpo (um recipiente) e ele fosse proprietário das informações que processa, quando, de fato, o corpo é aquilo que se apronta no processo co-evolutivo de trocas com o ambiente. E como o fluxo das trocas não estanca, o corpo vive na plasticidade do sempre-presente. (KATZ, 2008, p. 71).

Então, o corpo para atender às modificações do mundo, vai se reconfigurando, ou seja, na contemporaneidade, ele é transmutável. Villaça (2011) defende que o corpo contemporâneo é editado e modificado para seu tempo e comportamento social desejável. O corpo editado é reflexo da tecnologia, dos meios de comunicação e das relações interpessoais. O resultado é um corpo confuso e

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perdido entre virtualidade e realidade, que se fundem e se confundem, criando assim, novas dimensões da vida individual e coletiva. Desta forma, para discutir o corpo no processo social, é preciso demonstrar como ele é ao mesmo tempo material e social, ou seja, como o corpo tem aspectos fundamentais do processo material constituído por relações com os outros corpos em sociedade. Os atuais movimentos de identificação e representação se dão, paradoxalmente, por meio da transmutação corporal, que ora levam a imagem aos limites da desconstrução, ora, por meio de toda sorte de artifícios e tecnologias, atuam sobre o próprio corpo, afirmando sua fragilidade carnal ou investindo em sua desmaterialização. Todas estas estratégias, seus apelos, seus efeitos virtuais, tecnológicos, mercadológicos e políticos exigem um repensar dos padrões éticos. (VILLAÇA, 2011, p. 23).

Ainda, segundo Villaça, para os adeptos da visão naturalista, o corpo submetido à natureza seria estável e a base pré-social e biológica sobre a qual as superestruturas do “eu” e da sociedade estariam fundadas. Villaça, ao pensar esta questão, chama atenção para o fato de que o discurso naturalista serviu, na modernidade, para, a partir do dado natural, produzir diferenças e discriminações como a do “corpo negro animalizado” ou do “instável e histérico corpo feminino”. Entre os adeptos da visão naturalista houve a tendência de reserva diante dos avanços tecnológicos capazes de propriamente ou naturalmente humano. Tradicionalmente o “humanista” retratava a polarização da visão naturalista construcionista. O corpo estaria alinhado com a natureza e a devendo ser controlado pela razão. (VILLAÇA, 2011, p. 15).

manter uma deturpar o pensamento e da visão animalidade,

O questionamento desse imaginário começa a ocorrer no final do século XIX e atinge hoje seu ápice com o advento das novas tecnologias. Para Villaça, esta abordagem naturalista continua exercendo consideráveis influências acerca do corpo humano, embora a visão construcionista atualmente exerça maior atração, afirmando que no lugar de ser elemento fundador da sociedade os corpos e seus limites são produtos sociais. Repensar este corpo é refletir como ele vai se transformando no decorrer do aparecimento das novas tecnologias e interações. Da biologia às neurociências, da genética às pesquisas de conhecimento, a inteligência contemporânea trabalha para desconstruir as certezas às quais estávamos agarrados. Os avanços da biociência (clonagem, procriação artificial, pesquisas sobre embrião, manipulações genéticas, transplantes de órgãos) e uma verdadeira reengenharia do corpo impõe a pergunta sobre os limites do

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humano. As ciências cognitivas apontam o cérebro-computador, a inteligência artificial aproxima o homem da máquina. Antes mesmo de discutir os impactos que a tecnologia pode ter sobre determinadas sociedades, antes mesmo de ser empregada para esta ou aquela finalidade, estes produtos tecnológicos já nascem enredados numa trama de significados decorrentes do imaginário em que estão inscritos. E, efetivando-se ou não, existindo como dimensão fantástica ou concreta, o fato é que eles articulam questões latentes da realidade social contemporânea. Na atualidade, o homem tradicional desaparece e surge o mediado pela tecnologia, o homem ciborgue.

2.1 Um novo homem

Muito se discute acerca do que as tecnologias trouxeram para a vida do ser humano. Na medida em que elas avançam, pode-se notar o quanto se adaptaram para satisfazer as necessidades dos indivíduos, se tornando assim, cada vez mais próximas deles e de seus corpos. A tecnologia não apenas penetra nos eventos, mas se tornou um evento que não deixa nada intocado. É um ingrediente sem o qual a cultura contemporânea – trabalho, arte, ciência e educação – na verdade toda a gama de interações sociais é impensável”. (ARONOWITZ, 1995, p. 22, apud SANTAELLA, 2003, p. 30).

Devido a essa proximidade, leva-se a constatar que o corpo é modificado por meio da inserção de aparelhos tecnológicos, pois frequentemente o indivíduo necessita do auxílio de dispositivos maquínicos para resolver situações do dia a dia, ou seja, cada vez mais ele precisa de aparatos tecnológicos praticamente acoplados a seu corpo. Poersch (1972, pp. 149-50 apud VARES, 2010, p. 2) nos ajuda a entender o porquê dessa visão, a partir da ideia que o corpo não se desenvolve no sentido orgânico, pois uma mutação como um novo órgão, levaria milhares de gerações para se desenvolver de um indivíduo para o outro. Desse modo, o autor afirma que a solução mais rápida e eficiente está na criação de aparatos adequados para satisfazer e ampliar a necessidade humana envolvida. Para entendermos como se deu o aparecimento deste homem mediado pela tecnologia, é necessário primeiramente conhecer a origem da palavra

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“ciborgue”. Surgido nos anos 1960, o termo exprime a conjunção entre cib(ernética) e org(anismo). Norbert Wiener8 atribuiu-se o título do “pai da cibernética”, devido ao fato de que em seus dois livros de maior expressão, Cybernetics (1948) e The human use of human beings (1950, 1954), ele explica os fundamentos da teoria e reflete sobre as consequências que a cibernética pode ter sobre a humanidade. Apesar de o termo ciborgue não aparecer em seus textos (a palavra foi inventada depois da publicação destas obras), é possível observar que estes dois domínios já forneciam indícios do posterior desenvolvimento da figura. A cibernética para Wiener é instrumento útil no desenvolvimento de certos tipos de equipamentos, mas também pode ser uma maneira de compreende o mundo e a sociedade. Este mundo concebido em termos cibernéticos, e as próprias ferramentas que a cibernética cria, permite que se pense num cérebro eletrônico, em autômatos interativos e em íntimas conexões entre homem e tecnologia que tomam lugar no próprio corpo. Como visto anteriormente, a palavra ciborgue não apareceu nos textos de Wiener. Ela só foi vista, de fato, em publicações no contexto da corrida espacial, nos anos 1960, em um artigo chamado Cyborgs and Spaces escrito pelos pesquisadores norte-americanos Clynes e Nathan Kline, que pretendiam tornar possível ao homem a adaptação aos ambientes extraterrestres a partir de modificações fundamentalmente bioquímicas no próprio corpo. Em sua definição literal, ciborgue é o organismo cibernético, mas não somente. Para escritores, antropólogos, sociólogos, filósofos ou estudiosos da cultura e da comunicação, ele passou a construir novos significados, novas conexões de ideias, tornando-se uma imagem recorrente do pensamento sobre as relações do homem e tecnologia. Atribui-se a Donna Haraway a inserção da temática ciborgue nos estudos das Ciências Sociais. A pesquisadora e feminista, com formação em biologia, literatura e filosofia provocou grandes questionamentos na década de 1980 ao afirmar que “todos somos ciborgues”. Naquela época, computadores, telefones 8

Físico-matemático norte-americano nascido em Columbia, Montana, Wiener é considerado o fundador da ciência da cibernética, que estuda a relação entre os fatores de controle e comunicação dos seres vivos, das máquinas e das organizações sociais. Suas teorias foram descritas em Cybernetics (1948), onde traçou os fundamentos da ciência, The Human Use of Human Beings (1950), Nonlinear Problems of Random Theory (1958), The Tempter (1959) e God and Golem, Inc. (1964).

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celulares não tinham invadido o cotidiano das pessoas, por isso, quando escreveu o livro Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo social do século XX, alguns “conceitos” chocaram a academia. Nessa obra estão presentes afirmações como: Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo [...] No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. (HARAWAY, 2009, pp. 36-37).

Este livro contribuiu grandemente para um outro recorte semântico a respeito do ciborgue, pois trata do interesse das feministas da época nas tecnologias políticas do corpo, cujo foco está nas transformações em curso na sociedade a partir da disseminação das teorias e avanços de informação e comunicação. Santaella (2007) afirma que, para as feministas, reivindicar e estudar estes corpos maquínicos significa mudar as velhas identidades e orientações hierárquicas, patriarcais, centradas em valores masculinos. Em o Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo social do século XX “(...) a ideia do ciborgue penetrou intensamente na cultura, colocando em questão não apenas a relação do humano com a tecnologia, mas a própria ontologia do sujeito humano” (2007, p. 130). Haraway explica que todos são ciborgues porque vivem em mundo profundamente alterado pela informática da dominação9, cercado por dispositivos microeletrônicos que estabelecem com o individuo uma relação de dependência. Mas não somente, o corpo do ser humano passou a ser visto como um texto passível de ser lido e re-escrito, que busca novas interações – não importa se com outras espécies orgânicas ou maquínicas – a fronteiras são destituídas e a performance deste corpo é ampliada. Desta forma, a ideia de um ser humano ampliado pelas tecnologias começou a se generalizar e a figura ciborgue transformou-se em analogia recorrente empregada na reflexão sobre as mais diversas espécies de relações que se conduzem entre organismos e máquinas, especialmente depois da alta popularidade 9

Na informática da dominação, “os seres humanos, da mesma forma que qualquer outro componente ou subsistema, deverão ser situados em uma arquitetura de sistemas cujos modos de operação básicos serão probabilísticos, estatísticos. Nenhum objeto, nenhum espaço, nenhum corpo é, em si, sagrado; qualquer componente pode entrar em uma relação de interface com qualquer outro desde que se possa construir o padrão e o código apropriados, que sejam capazes de processar sinais por meio de uma linguagem comum” (HARAWAY, [1985] 2000, p. 68).

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que atingiu em suas aparições no campo da ficção – como em O Exterminador do Futuro ou Robocop – e como conceito artístico para o australiano Stelarc (será analisado neste trabalho) ou o brasileiro Eduardo Kac, famosos internacionalmente por debaterem em suas obras os limites, ou falta de limites, entre homem e máquina, natural e artificial, biológico e tecnológico. Outro pesquisador que apresenta a figura de ciborgue, porém de maneira mais metafórica e abrangente, é o arquiteto e urbanista William Mitchell10. Mitchell dedica-se à temática das cidades, seus desafios e oportunidades, diante da emergência das tecnologias digitais. Em seu livro Me++ (2003), o principal fenômeno abordado (por ele) é o da miniaturização, conexão e mobilidade dos dispositivos eletrônicos. Ou seja, o pesquisador discute como estes dispositivos foram ficando cada vez menores com o decorrer dos anos, até que hoje eles são portáteis e não precisam sequer ficar ligados à parede por um fio para acessarem a internet. Com a disseminação das redes wireless, potencialmente qualquer lugar é lugar para quem deseja ou precisa estar online. Para Mitchell, o ciborgue é o nômade eletrônico que incorporou a tecnologia nos seus próprios órgãos e por meio deles realiza a passagem entre o espaço físico e o ciberespaço, entendido como espaço por onde circulam as mensagens, imagens, informações convertidas em bits. Remetendo ao entendimento dos “meios de comunicação como extensões do homem”, de Marshall McLuhan – apesar de afirmar que “nós precisamos ir além do extensionismo McLuhanista (...) para criar um sentido para isso tudo” (2003, p. 61), o arquiteto entende que telefones, controles remotos, calculadoras, sistemas médicos de monitoramento e outros aparelhos pessoais eletrônicos são como continuações do corpo, capazes de produzir “contínuas emissões de bits por meio do hiato entre carbono e silício” (MITCHELL, 1995, p. 29, apud NICKEL, 2007, p. 56). Eles são, desta forma, entendidos como novos órgãos – como, por exemplo, para os ciborgues de Mitchell, não são apenas os seus olhos que vêem, mas as câmeras digitais e webcams que lhes permitem estender a visão a qualquer parte.

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William J. Mitchell é estadunidense e professor da Faculdade de Arquitetura e Planejamento do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Para Mitchell, não se trata de substituir uma experiência por outra: não é que o ciberespaço ou as tecnologias digitais possam substituir o espaço físico. Ele propõe pensar na emergência de novas formas de produção, de organização dos espaços habitados e sua apropriação para os múltiplos propósitos humanos.

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Diferente do Homem Vitruviano de Leonardo, nós ciborgues telemanipuladores não podemos ser cercados por nítidos arcos delineados por nossos membros distendidos. Nosso alcance não tem limite – superior ou inferior. Nós não temos escala fixa. (MITCHELL, 2003, p. 41).

A concepção do pesquisador converge com a imagem que Lucia Santaella tem a respeito de ciborgue. Em publicação na Revista USP (2007), Santaella utiliza preferencialmente o termo “biocibernético” em vez de “ciborgue”: O sentido que dou a esta palavra “biocibernético” é similar ao de “ciborgue”. Entretanto prefiro o termo “biocibernético”, de um lado, porque “bio” apresenta significados mais abrangentes do que “org”, e, de outro lado, porque “biocibernético” expõe a hibridização do biológico e do cibernético de maneira mais explícita, além de que não está culturalmente tão sobrecarregado quanto “ciborgue” com as conotações triunfalistas ou sombrias do imaginário fílmico e televisivo. (SANTAELLA, 2007, p. 130).

Em outra publicação, no livro Culturas e artes do pós-humano (2003), Santaella afirma que o corpo ciborgue é um corpo “tecnologicamente estendido (...) que começa na esfera biológica e nunca termina na medida em que se estende pelos pontos mais distantes do raio de ação dos sensores e recursos de conexão remota” (2003, p. 75). O corpo humano do século XXI é um corpo híbrido, marcado pela crescente influência da tecnologia, cujo os limites de vida natural e artificial são cada vez mais tênues. A autora considera que se está a vivenciar uma nova era, uma revolução tecnológica psíquica, cultural e social muito profunda e reforça esta ideia fazendo referência ao filósofo Pierre Lévy e ao seu conceito de revolução neolítica11 (salto antropológico), provocado pelas biotecnologias e pelas tecnologias informáticas, que possibilita o aumento e modificação da maioria das capacidades cognitivas do homem. Se, por um lado, algumas alterações no corpo humano mediadas por tecnologias são vistas normalmente pela sociedade como, por exemplo, as lentes de contato e aparelhos auditivos, já as experiências que recorrem à clonagem de

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Entende-se por revolução neolítica “a grande mutação técnica, social, cultural, política e demográfica cristalizada na invenção da agricultura, da cidade, do Estado e da escrita. A revolução neolítica tem vários focos, sendo os três principais, por ordem alfabética, o Oriente Médio (Mesopotâmia e Egito), a China e as civilizações pré-colombianas do México e dos Andes. Nessas zonas privilegiadas, a humanidade sedentariza-se, concentra-se, multiplica-se, acumula riquezas e registra signos. A partir dos grandes focos iniciais, o sistema neolítico expande-se e submete progressivamente toda a humanidade. Esse processo ainda não se completou, pois sobrevivem algumas, raras, sociedades de caçadores-coletores”. (LÉVY, 2003, apud SILVA, 1998, p. 38).

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células e à manipulação genética são mais controversas. Poderá o corpo humano após estas transformações continuar a ser classificado de apenas humano? Mesmo as definições para ciborgue serem muitas, todas partem da ideia de hibridização entre o corpo e as tecnologias. Observa-se que a partir desta união pode-se também pensar no termo “pós-humano”, pois esta condição trata do hibridismo do humano com algo maquínico-informático, que estende o ser para além de si. Ainda, segundo Santaella, “não apenas nosso corpo, mas também tudo aquilo que constitui o humano foi sendo colocado sob um tal nível de interrogação que acabou por culminar na denominação de pós-humano” (2003, p. 67). A autora para se referir à atual necessidade de repensamento do humano na pluralidade de suas dimensões – molecular, corporal, psíquica, social, antropológica, filosófica – utiliza este termo, “pós-humano”, e pontua que por ser uma palavra “assustadora”, pode trazer muitos mal entendidos. Em publicação à Revista FAMECOS, Santaella afirma: “o primeiro significado que costuma vir à mente das pessoas é o de que o humano já era, foi-se, perdeu-se no golpe dos acontecimentos. Não se trata disso” (2003, p. 31). Segundo a pesquisadora, o termo pós-humano vem sendo empregado especialmente por artistas ou teóricos da arte e da cultura desde o início dos anos 90. A expressão tem sido usada para sinalizar as grandes transformações que as novas tecnologias da comunicação estão trazendo para tudo o que diz respeito à vida humana, tanto no nível psíquico quanto social e antropológico. Assim, é possível entender o pensamento de artistas que desenvolvem suas pesquisas em arte e tecnologia, ao acreditar que o corpo pode ser modificado em razão de ampliar a sua capacidade comunicativa e torná-lo algo melhor, e que isso se daria por meio de sua reconfiguração mediada pelas tecnologias, permitindo-lhe o redimensionamento de suas percepções e habilidades. Estas possibilidades artísticas contemporâneas permitem trabalhar com questões de outras áreas do conhecimento. Como visto anteriormente, a mente e a inteligência do ser humano evoluem muito mais rápido do que seu corpo, por isso há a necessidade de realizar nele algumas alterações. Nesse contexto, Paula Sibilia em seu livro O homem pósorgânico (2002) afirma surgir uma possibilidade inusitada:

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O corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando obsoleto. Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias) do upgrade. (SIBILIA, 2002, p. 13).

Ou seja, Sibilia defende que este corpo, na contemporaneidade, é limitado, demasiadamente orgânico e, portanto, ultrapassado. Ultrapassar os critérios básicos da condição humana, como a sua finitude, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitações aparecem como uma razão e até como uma das legitimações da tecnociência. Esta “crise” que o corpo enfrenta na contemporaneidade é colocada em pauta diante dos constantes avanços tecnológicos. Muitos artístas da atualidade tratam em seus trabalhos a respeito desse corpo que está em constante mudança e manifestam as suas diferentes visões e formas de comunicação.

3 MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS ACERCA DO CORPO CONTEMPORÂNEO Como abordado no segundo capítulo deste trabalho, o corpo não se desenvolve no sentido orgânico, pois esta evolução levaria, de um indivíduo para o outro, milhares de anos para acontecer. Por isso, Poersch (1972) afirma que a solução mais rápida e eficaz está na criação de dispositivos adequados para satisfazer a necessidade humana. O fato é que, para alguns pesquisadores (Paula Sibilia citada no capítulo anterior) e artistas contemporâneos (tema de estudo deste capítulo), o corpo está obsoleto se comparado aos avanços das tecnologias e, quando hibridado a elas, (ele) tem suas funções ampliadas e suas percepções modificadas. Este discurso reafirma uma das ideias principais de McLuhan (1964), a de que a extensão de um só órgão dos sentidos altera a maneira de pensar e se comportar do indivíduo.

3.1 O corpo ampliado de Hussein Chalayan

Embora o corpo seja a mídia primária, ele (o corpo) estando nu encontra-se desprovido de conotações, como se fosse um texto com um único significado. Ele não fala senão quando cercado de artifícios, repleto de signos. Estes são o suporte da mídia secundária – aquela em que o emissor necessita de uma

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mídia, um meio para transmitir sua mensagem e tornar possível a comunicação com o receptor que, por sua vez, não necessita de objetos para recebê-la e reconhecer sua significação. O que define a mídia secundária é o suporte. “[...] a mídia secundária pode ser desde a escrita, pinturas e desenhos em cavernas, fotografia, jornal impresso, livro, adereços e tatuagens corporais, máscaras e símbolos (utilizados em rituais religiosos), roupa e, até mesmo, o fogo e a fumaça” (BAITELLO JR., 2005, p. 81). Estes aparatos extra-corpóreos foram criados pelo homem para aumentar a sua capacidade comunicativa e amplificar o raio de alcance de sua mídia primária. A roupa pode ser considerada uma segunda pele, que recobrindo a primeira, compõe com ela a aparência final do indivíduo. Ela não se trata apenas de tecidos, cores e formas, a vestimenta, repleta de significações, torna-se de fato, um prolongamento do nosso corpo. McLuhan (1964), afirma que todo e qualquer artifício – a roupa, a casa, os meios de transporte, a imprensa, a televisão, dentre outros – utilizado pelo homem em suas tarefas e nas relações sociais constituem extensões do nosso corpo. Todos os meios são prolongamentos de alguma faculdade humana psíquica ou física: a linguagem está para a nossa inteligência assim como a roda está para os nossos pés; o telefone e o rádio são extensões dos nossos ouvidos; o livro é extensão da nossa visão, e o vestuário é o prolongamento da nossa pele. (MCLUHAN, 1964, p. 97).

Neste contexto, as criações de vestuário do artista turco-cipriota Hussein Chalayan exploram a interatividade da moda, do corpo e das tecnologias, em um universo onde a roupa envolve o corpo em uma relação espacial, não apenas como função de segunda pele, mas ampliando as capacidades humanas. Chalayan transita por diversas disciplinas e linguagens (moda, design, arte, arquitetura, cinema, tecnologia) e conceitualmente investiga as mudanças sofridas pelo corpo com os passar dos tempos, e suas interações com a sociedade, a política, a civilização, etc. Em seus trabalhos, o artista sempre propõe uma reflexão sobre a ocupação do espaço, sobre o uso de materiais diferenciados e uma nova maneira de habitar o mundo, relacionando o corpo e a tecnologia. Suas criações proporcionam um questionamento acerca do contemporâneo e atravessam um caminho sutil, onde cada detalhe é fundamental para entendermos o propósito

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do artista. “Não sou uma pessoa da moda ou uma pessoa da arte. Sou uma pessoa das ideias” (CHALAYAN, apud VOLPINI;RODRIGUES, 2012, p. 110). Devido ao fato do trabalho de Chalayan transitar por diversas disciplinas, as pesquisas para as suas criações estão relacionadas com tecidos e materiais que mudam de cor, de forma e de aparência, emanam luz e atendem a comandos eletrônicos. Para isso, o designer conta com o apoio de grandes empresas que pesquisam tecnologia digital em associação à indústria têxtil, como Swarovski e Phillips. São muitos os seus trabalhos que envolvem a interatividade entre corpo e tecnologia, mas uma em especial merece uma análise mais profunda. Em One Hundred and Eleven Spring/Summer 2007, a performance realizada no Palais Ominisports de Bercy, em Paris, entrou para a história dos desfiles de moda. Chalayan tratou a evolução do vestuário nos últimos cento e onze anos com vestidos que remodelavam sua estrutura, por meio de movimentos leves e mecânicos. O designer se inspirou na forma de como os avanços tecnológicos, as guerras, as revoluções, as mudanças políticas e sociais, transformaram a moda no decorrer dos anos. Nessa performance, a tecnologia permitiu, literalmente, transformar um traje em outro, sobrepostos em um mesmo corpo, gerando diferentes discursos. A plateia que assistia atentamente ao desfile, viu grande parte da história da vestimenta ser “revivida” em questões de segundos.

Figura 1: One Hundred and Eleven Spring/Summer, Paris, 2007. No primeiro look uma releitura dos trajes do final do séc. XIX, e os seguintes as suas transformações e releituras Fonte: yatzer.com

Com movimentos sutis e altamente sintonizados, as roupas iam se locomovendo e mudando de forma (figuras 1 e 2). As mudanças só foram possíveis

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devido ao auxílio da equipe de efeitos cinematográficos do Studio 2d:3d12, comandada por Rob Edikins.

Figura 2: One Hundred and Eleven Spring/Summer, Paris, 2007. Um chapéu e um vestido de placa que se arma, após isso, a modelo tem seu vestido encurtado e metalizado por quadrados Fonte: yatzer.com

O desfecho (figura 3) foi a apresentação de um traje clean confeccionado por um tecido leve na cor da pele. A modelo se posiciona na luz e seu vestido desaparece. É escondido em seu chapéu. É interessante, que depois destas inúmeras propostas e transformações, o desfile termine com o corpo nu. A primeira mídia do homem, a mídia base para as outras interações comunicativas.

Figura 3: One Hundred and Eleven Spring/Summer, Paris, 2007. O vestido desaparece e é escondido no chapéu Fonte: yatzer.com 12

O vídeo do processo de construção dos looks transformadores da equipe de Hussein Chalayan com o Studio 2d:3d está disponível para download no site da Showstudio.com.

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Desta forma, as ideias propostas por Hussein Chalayan são construídas por meio de diálogos inteligentes que transitam em diversas áreas do conhecimento, sempre associando o corpo e sua mobilidade, o espaço ocupado e a tecnologia. O designer cria suas roupas mostrando que o palco da moda não se trata apenas de relações de consumo, mas também de relações humanas e tecnológicas.

3.2 O corpo híbrido de Stelarc

A crise do corpo como entidade orgânica coloca em xeque os limites e a estabilidade que sustentavam a noção moderna de corporeidade. A crescente intersecção da cultura com a tecnologia colocou o corpo em problematização a partir do momento em que questiona o seu lugar no mundo, seus limites, suas fronteiras e funções. Se as novas tecnologias prometem uma vida virtualizada do indivíduo, como lidar com essa promessa em confronto com a humanidade e com aquilo que, desde sempre, expressou a sua natureza orgânica? Esta ideia de corpo (re)construído para além de sua naturalidade, em constante evolução, está intimidamente relacionado ao pensamento da sociedade contemporânea e de como ela respira suas próprias descobertas. Dar ao organismo uma dimensão menos orgânica e mais híbrida parece ser prerrogativa para as performances do grego-australiano Stelarc (pseudônimo de Stelios Arcadiou). Segundo o artista contemporâneo, a composição material do ser humano é, na verdade, responsável pelo “aprisionamento do corpo”: Pode parecer poético quando eu falo do obsoletismo do corpo humano atual, mas a visão que eu tenho não é utopia. Se já se pode fertilizar fora do corpo humano e alimentar um feto fora do útero feminino, então – tecnicamente falando – podemos ter vida sem nascimento. E se até podemos substituir partes do corpo humano que funcionam mal e colocar lá componentes artificiais, então – mais uma vez, tecnicamente falando – não há necessidade de morte. O corpo não necessita mais ser “reparado”, pode 13 simplesmente ter partes substituídas. (STELARC, 2001, online ).

Para Stelarc, o corpo está obsoleto, pois a estrutura humana está inapta para atender as novas necessidades impostas pela cibernética, e fadada ao 13

Entrevista concedida ao site “Janela na Web” em janeiro de 2001. Disponível em: . Acesso em: 30 abr 2014.

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fracasso, caso não se renda às possibilidades de expansão física e cognitiva proporcionadas pela tecnologia por meio de próteses robóticas e biotecnológicas. O performer defende a ideia de que o corpo – em sua composição física – apresenta problemas como o envelhecimento e a falência, e propõe um completo redesign dele, pois ao ser constantemente atualizado, ele possibilita a absorção e a utilização da quantidade de informações que recebe do ambiente externo a seu favor. Enquanto para muitos pesquisadores, a hibridização entre o corpo e as tecnologias seja algo “apocalíptico”, Stelarc se sente estimulado e inspirado por ela, por isso, o artista propõe esta junção em suas obras para o aprimoramento do corpo humano. Desde a década de 1960, Stelarc tem criado performances multimídia

utilizando-se

dos

mais

diversos

artifícios

e

tecnologias,

como

instrumentos médicos, próteses, robótica, sistemas de realidade virtual, conexão em rede e biotecnologia para explorar interfaces orgânico-maquínicos e propor extensões mecânico-perceptivas e cognitivas. O artista declara que suas obras nada mais são do que antecipações repentinas proporcionadas pelos avanços tecnológicos e qualifica suas atuações como uma forma de ficção científica. Entre os anos de 1976 e 1988, o artista ficou conhecido por realizar performances de suspensão14 (figura 1) ao ar livre em galerias de diversos países, como Dinamarca, Japão, Estados Unidos e Austrália. O objetivo nessas apresentações era testar as fronteiras físicas do corpo, puxando-o, esticando-o, rasgando-o, modificando-o. Ao todo foram vinte e cinco suspensões, com inserções na pele, em diferentes posições e situações variadas. Para Stelarc, devido às mudanças trazidas pelo ciberespaço, a grande força agindo sobre o corpo será a informação e não mais a gravidade. Esta ideia foi influência em suas suspensões, pois, segundo ele, o corpo deve começar a ser preparado para a iminente colonização do espaço. Explica as suas conhecidas performances de suspensão não como o resgate de rituais primitivos e sim como ‘um reflexo do sonho humano de voar’, essas performances exploravam “a imagem prima” do homem no espaço, agora substituída pela dos astronautas flutuando na gravidade zero. (FRANCO, 2010, p. 105).

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Rituais em que o corpo é perfurado em diversas partes por ganchos de açougueiro e suspenso por um determinado tempo, que depende do peso do corpo, do número de ganchos utilizados e da posição em que o corpo é suspenso. (PIRES, 2005, p. 122, apud SIMON e GONÇALVES, 2010, p. 85).

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Sua carreira, contudo, não é notável apenas por trabalhos que podem ser entendidos como aflitantes. Stelarc partiu da body art conceitual para especializar-se no desenvolvimento de sistemas híbridos com instrumentos cirúrgicos, próteses, sistema de realidade virtual e internet para explorar possíveis “rearquiteturas” das funções motoras do corpo – já que para ele apresenta falhas básicas de engenharia (STELARC, 2011).

Figura 4: Handswriting – Evolution, performance de apresentação do projeto The Third Hand, na Maki Gallery, em Tóquio, em 22 de maio de 1982 Fonte: electronicbeats.net

Em

experimentos

alternativos

que

demonstram

quais

as

possibilidades de o corpo alcançar uma dada expansão motora, sensorial e cognitiva, Stelarc criou uma terceira mão robótica (Third Hand – figura 4), um terceiro braço robótico (Extended Arm) e uma máquina de andar semelhante a uma aranha, com seis pernas pneumáticas controladas por meio dos movimentos de seus braços (Exoskeleton – figura 5).

Figura 5: Performance de apresentação do projeto Exoskeleton, na Gallery 291, em Londres, em 1 de julho de 2003 Fonte: tecnoartenews.com

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Todos estes trabalhos foram criados com o intuito de investigar até onde o corpo poderia chegar com a hibridização do humano-máquina, ou seja, a possibilidade que esta ação tem de aumentar não só a capacidade comunicativa do homem, mas também as suas faculdades físicas. O seu mais recente trabalho (2007) foi implantar uma orelha no próprio antebraço esquerdo (Ear on Arm – figura 6). Stelarc tinha como objetivo aplicar mobilidade a uma parte do organismo já acomodada. O artista só mostrou ao mundo os resultados obtidos com a primeira cirurgia (2007), de fato, dez anos depois (Stelarc idealizava este experimento desde 1997). O projeto continua em desenvolvimento e, com o auxílio de células tronco, o artista espera que a orelha cresça mais para reimplantar o microfone (já tentado anteriormente, mas retirado devido a uma necrose) sem fio com acesso direto à Internet.

Figura 6: Ear on Arm (2007) Fonte: site oficial de Stelarc: stelarc.org

Desta forma, para Stelarc, o corpo é um espaço a ser esculpido, não esteticamente, mas funcionalmente, como uma mídia de experiência. (...) Esse projeto é sobre a replicação da estrutura corporal, recolocando-a e recriando-a para funções alternativas. Ele manifesta o duplo desejo de desconstruir nossa arquitetura evolucionária e integrar dispositivos eletrônicos microminiaturizados dentro do corpo humano. (...) Agora estamos reprojetando órgãos externos adicionais para funcionarmos melhor no terreno tecnológico e midiático que habitamos. (STELARC, apud FRANCO, 2010, p. 108).

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O interesse do artista contemporâneo em acoplar dispositivos tecnológicos ao corpo e discutir a superação das fronteiras físicas, vem de sua teoria de que o corpo humano está obsoleto em suas funções, portanto, para “salvá-lo”, a única saída é a hibridização humano-máquina. De acordo com sua visão, a tecnologia serve como um fio condutor e um inevitável agente acelerador do processo de ciborguização do homem. O ser humano como ciborgue, poderia repor “peças” problemáticas e aumentar a potência motora e física do corpo. Assim, por meio de uma produção performática metalinguística, Stelarc transforma o corpo em ferramenta de expressão de suas próprias inquietações. Submetido a acoplagens tecnológicas, extensões metálicas e articulações, o corpo recebe possibilidades de rearquitetura idealizadas pelo artista na tentativa de demonstrar até onde o organismo feito de carne vai, e até onde um corpo híbrido poderia chegar.

3.3 O corpo afetivo de Marina Abramovic

O corpomídia foi tratado no decorrer deste trabalho como produtor de mensagens e informações. Vimos que o corpo é a primeira mídia do homem, ou seja, os gestos, os sentidos, a interação entre duas pessoas, entre dois corpos, é a primeira forma de comunicação. O contato do falar e ouvir, do cheiro, da visão, do choro, é a mídia do tempo presente, cujo emissor e receptor têm que dividir o mesmo espaço ao mesmo tempo. Porém, essa interação corporal, o tocar-se tão requerido pela vida, entre a mídia primária, passa por uma profunda metamorfose. Ao mesmo tempo em que as tecnologias da informação, a biociência, a inteligência artificial, as ciências cognitivas estreitaram os limites humanos, quanto mais avança a produção tecnológica, mais incertas tornam-se as fronteiras segundo os quais o homem experimentava o mundo e a si mesmo. Tornou-se usual, na contemporaneidade, dizer que humano e não humano, natureza e artifício, orgânico e inorgânico, presença e ausência, real e simulacro encontramse cada vez mais hibridizados pelas novas tecnologias. Muito

se

discorreu

neste

trabalho

a

respeito

do

corpo

tecnologicamente estendido (ciborgue) e as grandes transformações que as novas tecnologias da comunicação estão trazendo para tudo o que diz respeito à vida humana, tanto no nível psíquico quanto social e antropológico. Tratou-se até da

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possibilidade inusitada trazida por alguns pesquisadores e artistas contemporâneos, de que o corpo estaria se tornando obsoleto diante dos constantes avanços tecnológicos. Agora, nesta etapa final, faz-se necessário confrontar este corpo cada vez menos restrito ao seu invólucro orgânico, que jamais está imediatamente no mundo, mas sempre mediado por dispositivos técnicos, com os trabalhos de corpo presente trazidos pela artista performer Marina Abramovic, e, assim, retomar o conceito de corpo como mídia primária, proposto no início deste artigo. Nascida em Belgrado, na antiga Iugoslávia, Abramovic é filha de heróis combatentes comunistas da 2ª Guerra Mundial, fator culminante para a rígida educação dada à artista e poucos afetos maternos. Após cursar Belas Artes na Academia de Belgrado e ingressar na pós-graduação em Artes em Zagreb, Croácia, Abramovic sai de casa e inicia sua carreira como precursora da performance art15. “Tendo suporte e tema seu próprio corpo, Abramovic sozinha – ou ao lado do marido Ulay – tornou a performance um espaço de investigação dos limites e das possibilidades do corpo e da mente” (GOLDBERG, 1998, p. 230, apud KRAUSS, 2009, p. 443). Abramovic cria performances que desafiam, chocam e movem os seus limites físicos e mentais e por meio dela e com ela, as fronteiras são ultrapassadas. A radical artista contemporânea não faz qualquer distinção entre a vida e a arte, ela até coloca o seu corpo em perigo em algumas de suas apresentações, pois para Abramovic, ser uma artista de performance significa odiar o teatro. Na sua visão o teatro é falso – a faca não é real, o sangue não é real, e as emoções não são reais. Já na performance, tudo isso é real. Se você estiver cem por cento presente durante a performance, o momento emocional vai para todos (...) Não importa o trabalho que se faz como artista o mais importante é o estado mental com que você o realiza (...) Performance é uma questão de estado mental. (ABRAMOVIC, The Artist is Present, 2012).

Nos primeiros trabalhos de Marina e Ulay, o corpo se apresentava em sua recepção palpável, podendo citar como exemplo a obra intitulada Imponderbilia (figura 7), realizada em 1976. Para que as pessoas entrassem na exposição, era necessário passar por um corredor com entrada estreita, na qual 15

Surgida nos anos 1960 como alternativa para a pintura, é uma forma de arte que utiliza o próprio corpo como objeto (Vídeo-documentário Marina Abramovic – The Artist is Present, 2012).

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Marina e Ulay estavam em pé, cada um de um lado da parede do corredor, completamente nus. Ou seja, para que alguém tivesse acesso à exposição, seria necessário primeiro esfregar-se nos corpos dos artistas, tocar o corpo do outro, esquecer a nudez, superar o temor do toque, do corpo, da higiene. Era preciso ultrapassar a esfera visual e tocar, se envolver, estar próximo. Este corpo como matéria sempre transita nas obras de Abramovic e abre para uma reflexão, a partir dos corpos, sobre o distanciamento que o indivíduo possui um do outro. A essência de seu trabalho é o compartilhamento de experiência entre o público e o artista. “Marina tem a sensação de que precisa do público como o ar para respirar. Esse é o combustível dela. Ela vive para a arte dela, para o público” (BIESENBACH, The Artist is Present, 2012).

Figura 7: Imponderbilia, Marina Abramovic e Ulay, 1976. Entrada da exposição na Galeria de Arte Moderna em Bolonha Fonte: pergamum.udesc.br/biblioteca/

Ao conhecer as obras de Marina Abramovic, percebe-se que se trata de uma artista que usa o corpo como transgressão e reflexão. Ela o leva ao limite físico, mental, espiritual e emocional, chegando ao extremo de colocá-lo em perigo. Se colocar à disposição dos espectadores (Rhythm 0 – figura 8), deitar no meio de uma estrela de fogo até desmaiar por falta de oxigênio (Rhythm 5), ficar sob efeito de drogas psicoativas (Rhythm 2), brincadeiras com facas (Rhythm 10 – figura 9) – era assim que ela mostrava a relação humana consigo e com os outros.

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Loucura? Neste trabalho não cabe juízo de valores. Abramovic é o corpo que experimenta a realidade, que vive, sente, reflete, age e interage. Em suas performances, ela investiga questões sobre corporalidade em que corpo encontra-se presente, como matéria. Ele é o responsável por conectar o ser com o mundo que este habita.

Figuras 8 e 9: Marina Abramovic - Rhythm 0 (1974) e Rhythm 10 (1973) Fonte: mermaidsonwheelchairs.blogspot.com.br/

Em sua última exposição denominada Marina Abramovic: The Artist is Present16 (2010) no MoMA – Museum of Modern Art em Nova York, Abramovic permaneceu imóvel e silenciosa em uma cadeira de madeira dentro de um retângulo marcado no chão, durante sete horas por dia, do dia 9 de março a 31 de maio. Qualquer pessoa que visitasse a exposição poderia sentar-se à sua frente, contanto que permanecesse imóvel e em silêncio, apenas sentindo a presença um do outro (figura 10).

Figura 10: Marina Abramovic - The Artist is Present, MoMA, 2010 Fonte: lissongallery.com/artists/marina-abramovic

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Disponível para download em: Acesso em: 3 maio 2014.

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Marina Abramovic ocupou a sua cadeira, de acordo com o programa que estabeleceu, durante as mais de setecentas horas de exposição, coberta com um longo vestido azul em março, vermelho em abril e branco em maio. Os resultados17 foram surpreendentes até mesmo para ela. Algumas pessoas ficaram chocadas, outras tão emocionadas com aquela troca de silêncio que se sentiram transformadas (figura 11). “Ela diminui o ritmo do cérebro das pessoas. Ela nos pede para sentarmos lá por um tempo... O que não estamos habituados a fazer” (Depoimento de uma visitante, na Exposição The Artist is Present, 2012). É simples, é como se não houvesse nada. Só a artista sentada, quero ser uma pedra ali e olhar nos seus olhos. Serão três meses, todos os dias. Se você trabalha três meses, a performance se torna realidade. Ninguém entende que o mais difícil é fazer algo que é quase nada. Isso exige cem por cento de você, não há mais histórias a contar, não há objetos atrás dos quais se esconder. Não há nada. É sua pura presença, você só tem sua energia e nada mais. (ABRAMOVIC, The Artist is Present, 2012).

Figura 11: The Artist is Present, MoMA, 2010 – Reações de alguns participantes Fonte: lissongallery.com/artists/marina-abramovic

Para Abramovic, o mundo está se movendo rápido demais. Exacerbadas pelas tecnologias e mídias sociais, as pessoas raramente se concentram. Ela é uma artista que visualiza o tempo usando o seu corpo no espaço com o público. Este tempo é efêmero, só está de passagem. Ao representar o seu 17

As reações de algumas pessoas que se sentaram em frente à Marina foram registradas e virou até um tumblr: http://marinaabramovicmademecry.tumblr.com/ Acesso em: 4 maio 2014.

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corpo na performance, ela está cem por cento presente, de corpo e mente, onde é praticamente impossível o indivíduo não ser tocado pela carga de energia e afetos. Desta forma, Abramovic ultrapassa qualquer tentativa anterior de problematização do corpo, já que para os outros artistas citados neste trabalho, ele (o corpo) se traduz em mero suporte dos questionamentos acerca da tecnologia (Stelarc) e da moda (Chalayan). Na realidade, a busca da performer acaba transcendendo a relação do corpo enquanto mídia, pois se este tem como objetivo produzir ou veicular informação, Abramovic vai muito além – o seu corpo produz afeto. Nesse momento, a artista volta-se para o silêncio e para a relação com o outro com a prerrogativa única da presença como potência, para despertar novas interações neste mundo contemporâneo tão caótico e ruidoso. Este pensamento parece se encontrar com a pergunta espinosiana no livro “Ética – que pode o corpo?” (2009). Para o filósofo Baruch de Spinoza, o corpo é uma multiplicidade constituida de corpos diversos, cada um dos quais, por sua vez, implica outras composições. Tal complexidade torna o corpo capaz de afetar e de ser afetado por outros corpos externos, com os quais interage no meio ambiente. Ele define os afetos como aquelas “afecções do corpo pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada” (SPINOZA, 2009, p. 98, apud JUNIOR, 2013). Ou seja, é na corporeidade que a comunicação acontece. São nos encontros, nos afetos, nos processos interativos entre os corpos que a potência de vida humana é ampliada.

CONSIDERAÇÕES Os estudos propostos giram em torno de um corpo que vai além de um simples veiculador de informações, neste trabalho é apresentado o corpomídia, um corpo produtor de mensagens. Ele (o corpo) não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. Desta forma, o corpo é sempre um estado provisório de informações e estabelece uma relação de co-

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dependência com o ambiente, logo, está sempre se modificando para atender às necessidades dos indivíduos num mundo cada vez mais desenvolvido. As mudanças históricas e tecnológicas estabeleceram novos patamares e configurações para este corpo em constante mutação. Na contemporaneidade, ele é editado e modificado como reflexo da tecnologia, dos meios de comunicação e relações interpessoais. A partir das conceituações feitas, podemos perceber que a comunicação que inicia e termina no corpo, passa por um percurso e acaba fazendo parte de um ciclo. O trajeto proposto neste trabalho se deu entre as diferentes manifestações da comunicação a partir do corpo. Em um primeiro momento, foi abordado o trabalho do estilista Hussein Chalayan que vê a vestimenta como um dispositivo amplificativo da capacidade comunicativa do homem, sendo uma extensão de seu próprio corpo. Nas coleções de Chalayan, o corpo se alia à vestimenta – interagindo arte e a tecnologia – para gerar uma nova informação e assim estabelecer a comunicação. No segundo momento, vimos o artista Stelarc tratar o corpo como demasiadamente orgânico, uma espécie de aparelhagem defeituosa e incoerente com a atualidade. Como alternativa a isso, Stelarc sugere a simbiose entre homemmáquina, entendida como uma hibridização entre interfaces úmidas, a carne, e sintéticas, a tecnologia. Segundo o australiano, este corpo híbrido contribuiria para a ampliação de suas capacidades funcionais e o tornaria uma estrutura adaptável à vida e ao tempo. E, em um último momento, discorremos sobre as performances de Marina Abramovic que questiona os efeitos produzidos deste mundo contemporâneo no corpo. Abramovic retoma o conceito de corpo como mídia primária e vê nele o seu próprio objeto de arte, testando os seus limites e possibilidades. É a partir da real presença entre os corpos que o afeto é produzido e a potência de vida humana é aumentada. A primeira comunicação, a dos sentidos, a fundamental interatividade entre os seres. Podemos considerar que a ideia do corpomídia atravessa e permite todas essas manifestações, mas preserva em si a capacidade de criar informação nova e, portanto, de comunicar. Talvez no contemporâneo, tenhamos esquecido essa capacidade inerente ao corpo devido a tantos dispositivos e híbridos inventados para ele, que, em suma, é onde inicia e termina todo o processo

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comunicativo. Reencontramos o corpo puro no trabalho da Abramovic, um verdadeiro reencantamento.

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REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS MARINA ABRAMOVIC – The Artist is Present. Direção: Jeff Dupre; Matthew Akers. Produção: Jeff Dupre; Maro Chermayeff. Fotografia: Matthew Akers. Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples. Montador: E. Donna Shepherd, Jim Hession. Trilha Sonora: Nathan Halpern. Nova York: HBO Documentary, 2012. 1 DVD (106MIN).

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