DA RESPONSABILIDADE DO AGENTE PÚBLICO NAS HIPÓTESES DE DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO PÚBLICA

June 4, 2017 | Autor: Fernanda Brandt | Categoria: Contratos Públicos, Licitações, Contratos Administrativos
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Norberto Luiz Nardi Marília Possenatto Nardi Fernanda Brandt (Organizadores)

Direito Acontecendo Volume II

ivro Rápido

Direito Acontecendo Volume II

Norberto Luiz Nardi Marília Possenatto Nardi Fernanda Brandt

(Organizadores)

Direito Acontecendo Volume II

Copyright © Setembro de 2015 by Organizadores

Todos os direitos reservados. Vedada a produção, distribuição, comercialização ou cessão sem autorização do autor. Os direitos desta obra não foram cedidos.

Impresso no Brasil Printed in Brazil Capa e Diagramação Andreza de Souza Revisão Mariel Márcio Muller Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica

D598

Direito: acontecendo / Norberto Luiz Nardi; Marília Possenatto Nardi; Fernanda Brandt (Organizadores). – Olinda: Livro Rápido, 2015. 310 p. V. II Contém bibliografia ao final de cada capítulo Informações sobre os autores p. 6 ISBN 978-85-62583-73-5 1.

Direito. 2. Direito contemporâneo. 3. Direito de família. 4. Alienação parental. 5. Direitos humanos. 6. Instrução criminal. 7. Novo código do processo civil brasileiro. 8. Dispensa e inexigibilidade da licitação pública. 9. Direito agrário. I. Nardi, Norberto Luiz. .II. Nardi, Marília Possenatto. III. Brandt, Fernanda. IV.Título.

340(81) CDU (1999) Fabiana Belo - CRB-4/1463 Livro Rápido Editora – Elógica Coordenadora editorial: Maria Oliveira

Rua Dr. João Tavares de Moura, 57/99 Peixinhos Olinda – PE CEP: 53230-290 Fone: (81) 2121.5307/ (81) 2121.5313 [email protected] www.livrorapido.com

Apresentação

Consideramos um privilégio singular a tarefa de coordenar e organizar a segunda edição do DIREITO ACONTECENDO, apresentando as pesquisas realizadas pelos co-autores, que nos honram sobremaneira pela confiança depositada e pelo comprometimento com os objetivos perseguidos. Agradecemos a paciente dedicação e o empenho de todos na construção dos pressupostos teóricos das temáticas propostas e abordadas, respeitada a liberdade investigatória, com a responsabilidade dos subscritores nas análises alcançadas e nas Conclusão formalizadas. A oportunidade de oferecer opiniões demarcadas sobre controvertidos temas do direito contemporâneo, reunindo professores e acadêmicos do Curso de Direito, advogados e militantes em múltiplas áreas do direito, representou uma conquista para todos os co-autores, que hoje aplaudimos e acatamos. Deixa-se claro, não poderia ser diferente, que a obra reverencia a abordagem e a subjetividade do enfrentamento temático pelos co-autores, com opiniões divergentes ao revisar inúmeros institutos do direito, mesclando as experiências e pesquisas, sem a ousadia de pretender evidenciar soluções definitivas e acabadas aos enfoques oferecidos. Com a presente obra coletiva e na autoria dos textos apresentados pretendemos traçar um caminho para a (re) leitura de conceitos e dos posicionamentos doutrinários destacados, nos contornos das afirmações e posições assumidas. Dedicamos o Segundo volume a todos àqueles que acreditam no direito, esperando que a revisitação dos temas emblemáticos pelos co-autores, sem a ousadia de serem posicionamentos definitivos porque divergentes, contribua para a (re) construção de novos paradigmas comprometidos com a realidade constitucional. É com satisfação que apresentamos o DIREITO ACONTECENDO Volume II, agradecendo a disponibilidade e o empenho dos co-autores, a contribuição inestimável e as diligências do abnegado Mariel Muller, incansável na gestão do livro arquitetado. Na expectativa que as reflexões contribuam para a (re) discussão dos temas enfrentados e que sirvam para a formação acadêmica e profissional, nos sentimos todos honrados. É uma obra para ser lida pelos comprometidos com a atualização

indispensável dos assuntos contemporâneos, polêmicos e intrigantes que agitam a doutrina e os Tribunais. Boa leitura. Norberto Luiz Nardi Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, onde também é professor na Graduação e Pós-Graduação, palestrante, articulista, advogado militante na área cível, com especialização em Direito de Família e Sucessões. Nos trinta e três anos dedicados ao ensino superior lecionou disciplinas de Direito Civil, Família, Estatuto da Criança e do Adolescente, Direito das Sucessões, Direito Tributário, entre outras. Foi subcoordenador e coordenador do curso de Direito de Santa Cruz do Sul e atualmente exerce a função de Coordenador no Curso de Direito da UNISC de Venâncio Aires.

Marília Possenatto Nardi Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, advogada militante na área de família e de sucessões. Pós-Graduada em Direito Civil com ênfase em família e sucessões. Autora de artigos na área de direito de família e da criança e adolescente.

Fernanda Brandt Graduou-se em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) no ano de 2011. A advogada, inscrita OAB/RS sob n. 84.452, é especialista em Direito Processual Civil (Novo Código de Processo Civil) e é sócia no escritório BHG Advogados Associados, com atuação em Santa Cruz do Sul (RS) e região. Atual procuradora jurídica do município de Sinimbu (RS), também leciona aulas de direito constitucional e noções de direito em cursos preparatórios para concurso.

Sumário DA ADOÇÃO INTERNACIONAL: A EXCEPCIONALIDADE QUE SE DESVENDA NUM CAMINHO POSSÍVEL QUANDO RESPEITA A PROTEÇÃO INTEGRAL Marília Possenatto Nardi e Norberto Luiz Nardi ........................................................................................... 11 1. Introdução ................................................................................................................................................ 11 2. Da constitucionalização do Direito de Família e da proteção familiar ............................ 12 3. Das modalidades de adoção sistematizadas ............................................................................. 14 4. Das características e dos requisitos da adoção ......................................................................... 16 5. Da adoção internacional e a proteção integral ......................................................................... 17 6. Conclusão ................................................................................................................................................. 33 Referências.................................................................................................................................................... 34 DA FIXAÇÃO DA GUARDA COMPARTILHADA COMO INSTRUMENTO PARA COMBATER E EVITAR AS CONSEQUÊNCIAS DA ALIENAÇÃO PARENTAL Maríllia dos Santos Dias e Norberto Luiz Nardi............................................................................................. 37 1. Introdução ................................................................................................................................................ 37 2. Da atual concepção acerca do instituto da Alienação Parental ......................................... 38 3. A guarda compartilhada como meio de evitar a alienação parental ............................... 49 4. Conclusão ................................................................................................................................................. 56 Referências.................................................................................................................................................... 58 O PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO: UMA ALTERNATIVA EFETIVA NA GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL Paula Silveira Serra Justo Valente e Karina Meneghetti Brendler ......................................................... 61 1. Introdução ................................................................................................................................................ 62 2. A Violência Doméstica: O Abuso Sexual Praticado Contra Crianças e Adolescentes 62 3. O Projeto Depoimento sem dano na proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual................................................................................................................................................. 68 4. Conclusão ................................................................................................................................................. 79 Referências.................................................................................................................................................... 80 PROTEÇÃO INTERNACIONAL AOS DIREITOS HUMANOS: AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL E NA UNIÃO EUROPÉIA E SUA RELAÇÃO COM AS POLÍTICAS MIGRATÓRIAS BASEADAS EM POLÍTICAS DE SEGURANÇA Simone Andrea Schwinn e Nairo Venício Wester Lamb ........................................................................... 83 1. Introdução ................................................................................................................................................ 84 2. Sobre migrações e migrantes: alguns conceitos ...................................................................... 85 3. Proteção aos migrantes na esfera internacional ...................................................................... 89 4. Migrações na União Europeia e no Brasil: as políticas migratórias e sua vinculação com as políticas de segurança .............................................................................................................. 92 5. Conclusão .............................................................................................................................................. 100 Referências................................................................................................................................................. 102

REFLEXOS JURÍDICO-SOCIAIS DA INSTRUÇÃO CRIMINAL E DA PENA APLICADA NO BRASIL DO SÉCULO XXI Bertholdo Hettwer Lawall e Vinícius D’Andrea de Medeiros ............................................................... 107 1. Introdução ............................................................................................................................................. 107 2. Da opinião pública ............................................................................................................................. 108 3. Conclusão .............................................................................................................................................. 114 Referências................................................................................................................................................. 115 TRIBUNAL DO JÚRI: A SOBERANIA CONFERIDA CONSTITUCIONALMENTE AO CONSELHO DE SENTENÇA TRADUZ VEREDITOS JUSTOS E DEMOCRÁTICOS? Melani Feldmann ................................................................................................................................................... 117 1. Introdução ............................................................................................................................................. 117 2. A seleção dos jurados ....................................................................................................................... 118 3. O tribunal do júri como forma de efetivação da justiça e democracia......................... 127 4. Conclusão .............................................................................................................................................. 138 Referências................................................................................................................................................. 139 CRÍTICAS E DESAPONTAMENTOS COM O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO Luis Gustavo Andrade Madeira ........................................................................................................................ 143 1. Introdução ............................................................................................................................................. 143 2. Da história do Código de 1973 ..................................................................................................... 144 3. Da topografia do Novo CPC. .......................................................................................................... 144 4. Da finalidade ‘Constitucional’ do Novo CPC. .......................................................................... 146 5. Das demais situações trazidas no Novo Código ................................................................... 147 6. Conclusão .............................................................................................................................................. 151 Referências................................................................................................................................................. 152 BREVE ANÁLISE ACERCA DOS PRINCÍPIOS DA CELERIDADE PROCESSUAL E DA SEGURANÇA JURÍDICA E SEUS REFLEXOS NA ELABORAÇÃO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Nathan Ritzel dos Santos .................................................................................................................................... 153 1. Introdução ............................................................................................................................................. 153 2. Do princípio da segurança jurídica ............................................................................................. 154 3. Celeridade processual sob a ótica da Emenda Constitucional n.º 45/2004................ 158 4. Mudanças na legislação processual trazidas pelo novo Código de Processo Civil . 162 5. Conclusão .............................................................................................................................................. 172 Referências................................................................................................................................................. 174 DIREITOS FUNDAMENTAIS E O MECANISMO DE ACESSO A JUSTIÇA Daniele Scheleder Rossal .................................................................................................................................... 177 1. Introdução ............................................................................................................................................. 177 2. Direitos Fundamentais ..................................................................................................................... 179 3. Acesso à justiça.................................................................................................................................... 188 4. Conclusão .............................................................................................................................................. 195 Referências................................................................................................................................................. 196 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA ÓTICA DIFERENTE SOBRE OS CONFLITOS POR MEIO DA ALTERIDADE Ariane Simioni e Daniele Robaina ................................................................................................................... 199 1. Introdução ............................................................................................................................................. 200

2. Informalização da justiça e os conflitos sociais ...................................................................... 201 3. JUSTIÇA RESTAURATIVA: um novo paradigma de justiça.................................................. 206 4. O paradigma restaurador a partir da concepção de transformação por meio da alteridade ................................................................................................................................................... 208 5. Conclusão .............................................................................................................................................. 210 Referências................................................................................................................................................. 212 DA RESPONSABILIDADE DO AGENTE PÚBLICO NAS HIPÓTESES DE DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO PÚBLICA Fernanda Brandt e Pâmella de Campos ....................................................................................................... 215 1. Introdução ............................................................................................................................................. 215 2. Da licitação pública: aspectos gerais .......................................................................................... 217 3. Do afastamento de licitação pública .......................................................................................... 220 4. Da responsabilidade do agente público nas hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação pública................................................................................................................................. 228 5. Conclusão .............................................................................................................................................. 235 Referências................................................................................................................................................. 237 CRISE DA JURISDIÇÃO: MEIOS ALTERNATIVOS PARA O TRATAMENTO DOS CONFLITOS DE MASSA A PARTIR DA RESOLUÇÃO Nº 125 DO CNJ E EMENDA Nº 001/2013 DO CNJ Abner Rogério Flores da Silva ........................................................................................................................... 239 1. Introdução ............................................................................................................................................. 239 2. Crise da jurisdição .............................................................................................................................. 240 3. O conflito (de massa) ........................................................................................................................ 244 4. Meios alternativos de tratamento do conflito: mediação e conciliação ...................... 247 5. As hipóteses de tratamento do conflito de massa previstas na Resolução Nº 125 do CNJ e Emenda Nº 001/13 do CNJ e a necessária mudança de paradigma – (Análise Art. 6º, Incs. VII E VIII) ...................................................................................................................................... 251 6. Conclusão .............................................................................................................................................. 259 Referências................................................................................................................................................. 260 POLÍTICAS PÚBLICAS NO DIREITO AGRÁRIO BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM TEÓRICA E CONCEITUAL INTERDISCIPLINAR EM PERSPECTIVA HISTÓRICO-SOCIOLÓGICA Vinícius Ferreira Laner .......................................................................................................................................... 263 1. Introdução ............................................................................................................................................. 263 2. Evolução histórico-normativa no agrarismo ........................................................................... 264 3. Fundamentos teóricos de políticas públicas relacionadas ao agrarismo ................... 267 4. Por que estudar políticas públicas no direito agrário? ........................................................ 272 5. Conclusão .............................................................................................................................................. 276 Referências................................................................................................................................................. 279

BREVE ANÁLISE DAS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA MP 664/2014 E SUA CONVERSÃO NA LEI 13.135 E DA MP 676: UM EVIDENTE RETROCESSO DOS DIREITOS SOCIAIS Juliana Salgueiro e Josiane Borghetti Antonelo Nunes ......................................................................... 281 1. Introdução ............................................................................................................................................. 281 2. Breve histórico da previdência social ......................................................................................... 282 3. Análise das alterações trazidas pela MP 664/2014 ............................................................... 284 4. Conclusão .............................................................................................................................................. 291 Referências................................................................................................................................................. 293

PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO: A CONFIGURAÇÃO DO INSTITUTO FRENTE À JURISPRUDÊNCIA João Felipe Lehmen .............................................................................................................................................. 295 1. Introdução ............................................................................................................................................. 295 2. A Fazenda Púbica e a Prescrição .................................................................................................. 296 3. A Prescrição do Fundo de Direito ................................................................................................ 299 4. Das ações acobertadas pela prescrição do fundo de direito ............................................ 301 5. Conclusão .............................................................................................................................................. 307 Referências................................................................................................................................................. 307

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DA ADOÇÃO INTERNACIONAL: A EXCEPCIONALIDADE QUE SE DESVENDA NUM CAMINHO POSSÍVEL QUANDO RESPEITA A PROTEÇÃO INTEGRAL

Marília Possenatto Nardi1 Norberto Luiz Nardi2

RESUMO O presente artigo aborda as implicações da adoção internacional, suas nuances e garantias, sua excepcionalidade e a importância na vida das pessoas. Destacou-se a prevalência da manutenção do adotado na família extensa, as modalidades de adoção sistematizadas, as características e requisitos da adoção, a obediência aos princípios de proteção da criança e do adolescente, os riscos, vantagens e condições da adoção internacional, com destaque aos procedimentos indispensáveis, preconizados pela nova Lei Nacional da Adoção, indo ao encontro da instrumentalidade do processo e da facilitação da sociedade à tutela jurisdicional. Apontou-se em conclusão, a viabilidade da adoção internacional como um caminho e alternativa de família substituta, pois a adoção transforma a vida dos envolvidos.

Palavras-chave: Adoção internacional; riscos e vantagens da adoção; princípios de proteção. 1. Introdução O presente ensaio pretende analisar as vantagens e os riscos da adoção internacional, tema emblemático e pulsante que oferece recorrentes apreensões, desperta o interesse dos juristas, psicólogos e sociólogos, provoca constantes debates, com balizamentos específicos em face das peculiaridades das pessoas envolvidas: adotantes, adotados e suas famílias.

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Graduada pelo Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Advogada Militante na área de família e sucessões. Email: [email protected] 2 Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, onde é professor no Curso de Graduação e Pósgraduação, Coordenador do curso de Direito de Venâncio Aires, conferencista e advogado militante na área de família e sucessões. Email: [email protected]

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Desse modo, procedendo-se o enfrentamento da temática sob a dimensão constitucional, processual e acadêmica, com ampla investigação doutrinária, não se perde de vista a discussão da constitucionalização ou publicização dos direitos fundamentais e dos novos paradigmas de proteção à família. O escopo deste artigo é o constituir de subsídio aos que militam na área da infância e da juventude, garantindo o melhor interesse da criança e do adolescente, objetivando evitar reflexos de ordem pessoal e psicossocial dos envolvidos no processo de adoção. A adoção é um ato jurídico que transforma a vida do adotado: estado de filho. É um ato de amor e de caráter humanitário onde se entrelaçam sentimentos de ternura, de afeição e de generosidade com as consequências jurídicas emergentes. O tema nuclear de abordagem, na órbita do direito adjetivo e substancial, teve ao longo de sua vigência inúmeras leis esparsas, mudanças de valores e paradigmas, padrões morais, importantes inovações e transformações sedimentadas pelos princípios igualitários introduzidos pela Constituição Federal de 1988. No entanto, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente ampliou significativamente os conceitos de inúmeros institutos de Direito de Família, imprimindo uma nova e mais abrangente definição da adoção. Nesse contexto, cumpre referir que o desafio dos operadores do direito é adaptar os princípios constitucionais incorporados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e introduzidos pela nova Lei Nacional da Adoção, indo ao encontro da instrumentalidade do processo e a facilitação da sociedade à tutela jurisdicional.

2. Da constitucionalização do Direito de Família e da proteção familiar As normas de Direito de Família anteriormente previstas no Código Civil de 1916 e depois reguladas pelo Código Civil de 2002, têm na Constituição Federal de 1988 a demarcação dos novos valores, dos rumos determinados e das significativas mudanças implementadas. Assim, todas as regras do Direito Civil, especialmente do Direito de Família devem ser lidas em conformidade com a Constituição Federal de 1988, porquanto modificou-se o paradigma da família, priorizando o princípio constitucional da dignidade humana, retratando o Estado Democrático de Direito.

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Para Rizzardo (2005, p. 12) a família é um conjunto de pessoas com identidade e interesses materiais e morais com mesmo domicílio ou residência, integrado pelos pais que vivem em união estável ou casados, ou ainda, por um destes descendentes naturais, legítimos ou adotados.

Reportar a constitucionalidade da entidade familiar a Constituição anterior a de 1988 é enfatizar a evolução quanto ao âmbito da família, uma vez que havia um prevalecimento da vontade do pai sobre seus filhos, configurando a centralização do pátrio poder na figura do pai. Ademais, em decorrência das evoluções sociais, o atual Código Civil procurou se amoldar nessa nova ordem de valores, priorizando a harmonia da entidade familiar em conformidade com realidade da atual sociedade. Somente com a Constituição de 1988 é que ocorreu o fim da discriminação legal, embora tenha perdurado a discriminação social, existente entre as entidades familiares e o amoldamento a nova ordem constitucional, bem como o atendimento aos novos princípios oriundos da atual Constituição Federal. Salienta Lôbo (2010, p. 39-40) que, [...] proclamou-se em definitivo o fim da discriminação das entidades familiares não matrimonializadas, que passaram a receber tutela idêntica às constituídas pelo casamento (caput do art. 226), a igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal (§5º do art. 226) e na união estável (§3º do art. 226), a igualdade entre filhos de qualquer origem, seja biológica ou não biológica, matrimonial ou não (§6º do art. 227).

A evolução legislativa que desencadeou a criação do atual Código Civil brasileiro trouxe inúmeras transformações em que pese à regulamentação das famílias. O código de 1916 regulava a família, que restringia a sua origem ao casamento e, no entendimento de Dias (2006, p. 28) esta era “constituída unicamente pelo matrimônio”. (Grifo no original) O atual Código Civil juntamente com a Constituição Federal de 1988, introduziram uma nova ordem de valores ao direito de família. Em decorrência dessa nova ordem, a dignidade da pessoa humana passa a ser um dos princípios mais valorados no ordenamento jurídico brasileiro, sendo elevada a sua proteção. Analisadas as questões sobre a evolução do Direito de Família, suas transformações históricas e consequências, importa delimitar as modalidades de adoção sistematizadas no ordenamento jurídico pátrio.

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3. Das modalidades de adoção sistematizadas O instituto da adoção é estudado pelo Direito de Família, e é regulado principalmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8.069/90), como também por demais legislações extravagantes, como a incorporação das inovações trazidas pela Lei Nacional da Adoção, Lei nº 12.010/09 e pela Lei n. 12.852/2013. Sopesando de forma abrangente o significado de adoção, sob a ótica do estatuto, Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 204), consideram que “adoção é uma medida protetiva de colocação em família substituta que estabelece o parentesco civil entre adotante e adotado”. (Grifo no original) Para concretizar tal proteção, o Estatuto da Criança e do Adolescente assim aborda a adoção em seu artigo 39, §1°: Art. 39. A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei. § 1o A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência

Desse modo é importante ressaltar que a adoção é instituto excepcional no ordenamento jurídico. Contudo, merece destaque, que os filhos havidos por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, sendo-lhes proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, conforme preceitua o artigo 227, § 6° da Constituição Federal. A propósito, Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 666) sustentam que a adoção se aproxima do conceito de um: ato jurídico em sentido estrito ou não negocial caracteriza-se por ser um comportamento humano cujos efeitos estão legalmente previstos. Vale dizer, não existe, aqui, liberdade na escolha das consequências jurídicas pretendidas.

O ato jurídico em sentido estrito, também denominado de ato não negocial, é aquele que traduz um simples comportamento humano voluntário e consciente, cujos efeitos estão determinados em lei, não havendo autonomia negocial nem liberalidade na escolha dos mesmos.

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Por outro lado, a doutrina majoritária enumera as modalidades de adoção, sendo elas: a adoção conjunta (chamada de adoção bilateral antes da nomenclatura atual definida na lei de adoção), a adoção unilateral, a adoção póstuma, a adoção intuitu personae, a adoção “à brasileira”. Entende-se por adoção conjunta aquela em que há o desligamento total do vínculo de filiação da criança ou adolescente com sua mãe e com seu pai biológico. Nesse sentido, Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 206-207) preceituam que “os genitores não mais exercerão o poder familiar e, tampouco, ostentarão a qualidade de pais da criança ou adolescente adotado por outra família”. Já a adoção unilateral é aquela em que ocorre o rompimento com apenas um dos genitores biológicos. Como entende Bordallo (2013), através dessa espécie de adoção apenas uma linha de parentesco sofre alteração, seja a materna ou a paterna, e a outra se mantém. Conclui Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 204) que “na grande maioria dos casos, a adoção unilateral é requerida pelo marido ou companheiro da genitora da criança”. Nesse sentido, o vínculo com a genitora biológica mantém-se ileso, e o marido ou companheiro passa a adquirir a paternidade por adoção. Ainda referente às espécies de adoção, Bordallo (2013, p. 321) destaca como adoção póstuma aquela que “se concede após a morte do adotante, desde que este tenha manifestado, de forma inequívoca, seu desejo de adotar”. Nesse caso, a adoção poderá ser deferida ao adotante mediante sentença mesmo que este venha a falecer no curso do procedimento. No tocante à adoção intuitu personae Bordallo (2013, p. 323) adverte que aqui “há a intervenção dos pais biológicos na escolha da família substituta, ocorrendo esta escolha em momento anterior à chegada do pedido de adoção ao conhecimento do Poder Judiciário”. Nessa modalidade de adoção os genitores biológicos têm o desejo de escolher com quem seu filho vai ficar, e em contrapartida, há o anseio dos futuros pais adotantes em acolher determinada criança ou adolescente. Todavia, a adoção “à brasileira”, assim denominada pela jurisprudência brasileira, está presente quando alguém registra como seu um filho, voluntariamente, mesmo sabendo não sê-lo. Uma vez constituído o vínculo de posse de estado de filho (caracterizado pelo tratamento, reputação social e nome), este jamais pode ser quebrado.

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Ademais, Dias (2011, p. 496) proclama que ocorre a adoção “à brasileira” quando há o desejo de “o companheiro de uma mulher perfilhar o filho dela, simplesmente registrando a criança como se fosse seu descendente”. Convém destacar que o instituto da adoção é um ato de amor, de carinho, que transcende os laços biológicos. Apesar de não haver vínculo biológico entre adotante e adotado, o vínculo da afetividade que liga essas pessoas é mais profundo, como preceitua um dos princípios norteadores do Direito de Família, o princípio da afetividade. Dias (2011, p. 71) sinaliza que “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue”. A filiação não está ancorada na paternidade biológica, mas nos vínculos que se criam com as relações socioafetivas, que depois de constituídos se tornam mais fortes e irreversíveis. A energia social do afeto constrói os laços e vínculos.

4. Das características e dos requisitos da adoção No tocante aos requisitos para adoção, é importante observar o preenchimento de determinadas condições para que se possa acolher o direito material à adoção. O Estatuto da Criança e do Adolescente elenca em seus dispositivos os principais requisitos a serem atendidos, ao passo que cabe a doutrina especificar e ampliar a égide da discussão. Sinaliza Gonçalves (2014) que são requisitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente: ter idade mínima de 18 anos completos para o adotante, haver diferença de dezesseis anos entre a pessoa do adotante e a pessoa do adotado, ter a concordância do adotando (no caso de ele ter mais de 12 anos de idade), haver um processo judicial cuja competência é do Juízo de Família, ter o consentimento dos pais ou dos representantes legais de quem se deseja adotar, estágio de convivência obrigatório, ter benefícios e vantagens para o adotando, ser um ato personalíssimo e exclusivo. No entanto, para Bordallo (2013, p. 296) são condições necessárias para o deferimento da adoção: “idade mínima que deve ter o adotante, estabilidade da família, diferença de 16 anos entre adotante e adotando, consentimento dos pais biológicos, concordância do adotando e reais vantagens para o adotando”.

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Por sua vez, encontra-se dificuldade em caracterizar o presente instituto, eis que poucos autores tratam do tema. Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 211) ensinam que são características da adoção: “a) ato personalíssimo; b) excepcional; c) irrevogável; d) incaducável; e) plena; f) constituída por sentença judicial”. O instituto da adoção requer o preenchimento das condições indicadas, eis que considerada como medida excepcional e irrevogável, que só deve ocorrer quando esgotadas as possibilidades para a manutenção da criança ou adolescente na sua família natural ou extensa.

5. Da adoção internacional e a proteção integral A adoção é consagrada no ordenamento jurídico pátrio como sendo medida excepcional, constituindo-se apenas quando da impossibilidade de manutenção da criança ou adolescente em sua família natural ou extensa. Nesse contexto, a adoção internacional tem caráter excepcional também, haja vista só pode ser deferida quando da não possibilidade da adoção nacional, ostentando seu caráter de subsidiariedade. Com efeito, a adoção internacional está definida no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 51 e pode ser entendida como, no ensinamento de Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 233): “aquela em que o adotante ou casal adotante é residente ou domiciliado fora do Brasil”. Nesse aspecto, segue o entendimento Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 233) ao afirmar que “a adoção internacional não é aquela efetivada por estrangeiros!”. (Grifo no original). Nessa linha de pensamento, Rossato, Lépore e Sanches (2014) destacam que brasileiros que residam no exterior têm preferência frente a estrangeiros, mas se brasileiros decidirem adotar uma criança ou adolescente que se encontre no Brasil, ainda que residam fora do território nacional, terão que obedecer as regras da adoção internacional. O presente instituto observa os princípios aplicáveis ao Direito de Família, como o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, o princípio da proteção integral, o princípio da prioridade absoluta, o princípio da paternidade responsável, o princípio da afetividade, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da convivência familiar. Outrossim, está amparado também pelos princípios da própria família e o princípio da excepcionalidade da adoção internacional.

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Conforme preconiza o artigo 51, §1º, II do Estatuto da Criança e do Adolescente, que consagra o princípio da excepcionalidade da adoção internacional, só é possível pensar na adoção por estrangeiro como medida excepcional, sendo deferida a adoção nos casos de terem sido esgotadas as possibilidades de colocação da criança ou adolescente em família brasileira. Imprescindível, assim, sopesar a pluralidade de regramentos acerca da adoção internacional, uma vez que conta a um só tempo com as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), com as inovações introduzidas pela Lei Nacional da Adoção (Lei nº 12.010/09) e as regras trazidas pela Convenção de Haia, de 1993 (Decreto Legislativo nº 01/1999, e promulgado pelo Decreto nº 3.087/1999), todas aplicadas de forma conjunta em nosso sistema jurídico. A legislação brasileira previa que a adoção deveria ser feita nos termos da lei, ou seja, fazia uma previsão superficial para a adoção internacional, sem fazer menção ao seu procedimento e aos seus requisitos. Com a entrada em vigor da referida lei, os aspectos referentes à adoção por estrangeiro passaram a ser regulamentados de forma mais precisa e abrangente. A Lei nº 12.010/09 inovou no ordenamento jurídico, pois alterou dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei nº 8.560/92 (regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento), revogou dispositivos do Código Civil de 2002 e da Consolidação das Leis do Trabalho, assim como introduziu novas regras para a adoção, adotando novas providências. Segundo Gonçalves (2012, p. 406), as normas do Código Civil não incidem na adoção por estrangeiros, pois o art. 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a redação dada pela Lei n. 12.010/2009, dispõe que “a adoção internacional observará o procedimento previsto nos arts. 165 a 170 desta Lei”, com as adaptações estabelecidas em 8 incisos e 15 parágrafos.

Importante ressaltar, que a adoção por estrangeiros tem assento constitucional, e será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, a qual estabelecerá os casos e condições para que seja efetivada a adoção internacional (artigo 227, §5º da Constituição Federal).

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5.1 Das condições para o deferimento da adoção por estrangeiro

Ressalte-se, como já abordado, que a adoção internacional ostenta caráter excepcional, sendo efetivada quando esgotadas as possibilidades de tentativa de colocação da criança ou adolescente em família substituta, que seja residente ou domiciliada em território nacional. Neste caso, faz necessário o preenchimento de requisitos indispensáveis para o deferimento do presente instituto, que devem ser observados pelos estrangeiros que pretendem adotar a criança ou adolescente. Sob a égide da novel legislação da adoção que revogou o artigo 1.629 do Código Civil Brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente, juntamente com as normas incorporadas pela Convenção de Haia, passaram a disciplinar acerca da adoção internacional, elencando em seus dispositivos legais os requisitos e condições necessários para a efetivação da adoção de criança ou adolescente brasileiro por estrangeiro. A adoção internacional segue um conjunto de atos para sua concretização, iniciando-se com a formulação de um pedido de habilitação à adoção, estabelecido pelo adotante que tenha interesse em adotar a criança ou o adolescente brasileiro, perante a Autoridade Central do país de acolhida, que é o local onde está situada sua residência habitual, conforme prevê artigo 52, I do Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 235) salientam com veemência que forma-se uma verdadeira teia de proteção, composta pela conexão de ações protetivas e de cooperação entre um país de origem (que representa o local em que se encontra a criança ou o adolescente em condições de ser adotado) e um país de acolhida (que representa a residência ou domicílio da pessoa interessada na adoção). (Grifo no original)

Importa enfatizar, conforme preceitua artigo 51, §3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, que em se tratando de adoção internacional, faz necessário a intervenção das Autoridades Centrais Estaduais e Federal. Com esse proceder, o próximo requisito constante do artigo 52, II do Estatuto da Criança e do Adolescente é que se a Autoridade Central do país de acolhida considerar que a pessoa ou o casal solicitante estão habilitados e aptos para adotar, a mesma será responsável pela emissão de um relatório contendo informações sobre a identidade, a capacidade jurídica e adequação dos solicitantes para adotar, sua situação pessoal,

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familiar e médica, seu meio social, os motivos que os animam e sua aptidão para assumir uma adoção internacional. De fato, o Estatuto no artigo 52, III, prevê que esse relatório formulado pela Autoridade Central do país de acolhida deverá ser enviado para a Autoridade Central Estadual com cópia para a Autoridade Central Federal Brasileira. Ainda acerca do relatório, o mesmo deve ser instruído com documentação necessária, e deve ser incluído um estudo psicossocial que será elaborado por uma equipe interprofissional e com cópia autenticada da legislação pertinente, sendo acompanhada da prova de vigência, conforme indica IV do artigo 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Acerca dos documentos em língua estrangeira, dispõe o artigo 52, V do ECA que devem ser autenticados pela autoridade consular, de acordo com os tratados e convenções internacionais, devendo serem acompanhados da respectiva tradução, por tradutor público juramentado. Nesse sentido, a Autoridade Central Estadual fará um estudo e se verificada a compatibilidade entre a legislação estrangeira e a legislação nacional, somado com o preenchimento por parte dos solicitantes dos requisitos indispensáveis ao deferimento da adoção, de acordo com o disposto nesta referida lei como na lei do país de acolhida, é expedido um laudo de habilitação à adoção internacional com validade de no máximo 1 (um) ano, como indica o inciso VII do artigo 52 do ECA. A propósito, estando na posse do laudo de habilitação emitido pela Autoridade Central Estadual, a pessoa ou casal interessado está autorizado a formular pedido de adoção perante Juízo da Infância e da Juventude do local onde se encontra a criança ou o adolescente que se pretende adotar, conforme o que dispõe a indicação feita pela Autoridade Central. Artigo 52, VIII do ECA. Como mencionado, a adoção internacional é medida subsidiária ou excepcional, de acordo com os ensinamentos de Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 235) “somente poderá ser utilizada quando esgotadas todas as possibilidades de manutenção ou retorno da criança e do adolescente junto ao seu grupo familiar de origem, em decorrência do direito fundamental à convivência familiar”. Ademais, assim preconiza o artigo 51, §1º, II do ECA: II - que foram esgotadas todas as possibilidades de colocação da criança ou adolescente em família substituta brasileira, após consulta aos cadastros mencionados no art. 50 desta Lei; (Incluída pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência

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Outro requisito que pode se extrair do ECA, em seu artigo 46, § 3º, é a exigência de estágio de convivência que deve vir acompanhado de um laudo favorável de equipe interprofissional. Em se tratando de adoção internacional, o estágio de convivência terá o prazo mínimo de 30 (trinta) dias e é obrigatório, não podendo ser dispensado pelo Juiz. No que tange a preferência pela adoção por brasileiros residentes fora do Brasil frente aos estrangeiros, Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 237) destacam que mesmo na adoção internacional, porém, existe uma ordem de preferência: os brasileiros residentes no exterior terão preferência aos estrangeiros. Pretendeu o legislador promover a preservação dos laços nacionais, com o intuito de se manter uma identidade brasileira.

Para concretizar tal assertiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 51, §2º dispõe que “os brasileiros residentes no exterior terão preferência aos estrangeiros, nos casos de adoção internacional de criança ou adolescente brasileiro”. Ainda frente aos requisitos exigidos para a adoção internacional, a Convenção de Haia, em seu artigo 4º, “a”, determina que a criança ou o adolescente seja adotável, ou seja, que ela esteja apta a ser submetida ao procedimento de adoção internacional. Indiscutível, para Bordallo (2013, p. 334), a necessidade de se propor previamente: a ação de destituição do poder familiar, não para que a criança/adolescente fique adotável, conforme regra da Convenção de Haia, pois adotáveis são quase todas as crianças e adolescentes que se encontram abrigados. A necessidade de propositura prévia da ação de destituição do poder familiar diz respeito a fazer com que o processo de adoção internacional seja mais célere, já que o adotante estrangeiro não tem disponibilidade para ficar em nosso país por longo tempo.

Ainda como requisito para adoção internacional, uma condição peculiar para a adoção de adolescentes encontra-se amparada no artigo 51, §1º, III do ECA. Tal dispositivo destaca que o adolescente é consultado através de estágio de desenvolvimento, e através de um parecer formulado pela equipe interprofissional, demonstra se ele se encontra preparado para a medida. Diante do afirmado, é necessário o preenchimento dos requisitos e condições acima elencados para a efetivação da adoção internacional. Salienta-se, por fim, que tais

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exigências devem ser analisadas em consonância com os princípios pertinentes a proteção e o melhor interesse das crianças e adolescentes.

5.2 Do caráter subsidiário e excepcional da adoção internacional

A ostensividade do caráter excepcional e subsidiário da adoção internacional é indispensável para sua efetivação. Trata-se de uma condição peculiar a ser observada quando do deferimento, uma vez que a adoção internacional só pode ser concretizada quando exauridas as possibilidades de colocação do infante em família brasileira. Nesse sentido, Fonseca (2011, p. 183) ressalta que “a colocação de uma criança sob adoção é uma medica excepcional (art. 31, ECA), pois só pode ocorrer na provada impossibilidade de a criança ficar com sua família natural ou extensa”. Ao passo que, para Figueiredo (2010, p. 60), a adoção internacional “materializa a exceção da exceção”, pois só é efetivada quando esgotadas as possibilidades da criança ou adolescente serem mantidos em família substituta brasileira, conforme preconiza o artigo 51, §1º, II do ECA. A propósito, Bordallo (2013, p. 331), complementa ao afirmar que a adoção internacional como qualquer modalidade de colocação em família substituta, é excepcional, sendo ela mais ainda, pois só será utilizada quando não se conseguir a realização da adoção nacional (arts. 19, 31 e 51, §1º, todos do ECA e Convenção de Haia, artigo 4º, b). Logo, deve-se fazer empenho no sentido de que a criança/adolescente permaneça no seio de sua família natural. Se impossível, passa-se à colocação em família substituta brasileira, só se devendo cogitar da colocação em lar estrangeiro na hipótese de frustrarem-se aquelas tentativas.

Aliás, Madaleno (2011) é enfático ao sustentar que somente é admissível a modalidade de adoção internacional em caráter subsidiário e como medida excepcional, uma vez esgotadas todas as possibilidades de colocação da criança e adolescente em família substituta, sendo direito do adotando permanecer em seu país, em sua família, em suas raízes e no núcleo das relações afetivas. Diante do pluralismo da legislação brasileira no tocante à adoção internacional, em que pese esse instituto ser considerado uma medida excepcional, de caráter subsidiário, é possível a adoção por estrangeiro. Porém, primeiro é necessário tentar

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manter o infante em família substituta no Brasil, e somente em caso de não se lograr êxito na adoção nacional, é que parte para o princípio da excepcionalidade, em que crianças e adolescentes possam ser adotadas por estrangeiros. Segundo Ishida (2011) o instituto em estudo passou por diversas transformações no âmbito legal, o que culminou com inovações introduzidas pela Lei Nacional de Adoção (Lei nº 12.010/09) e a respectiva revogação de dispositivos legais presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente. No que concerne ao capítulo da família substituta, Ishida (2011, p. 91) segue aduzindo que “adotou claramente a lei menorista, o princípio da excepcionalidade da adoção, devendo-se ser regra a manutenção na família natural ou extensa (art. 39, caput)”. (Grifo no original) A redação do artigo 31 do Estatuto da Criança e do Adolescente também prevê que a adoção por estrangeiros é medida excepcional, Art. 31. A colocação em família substituta estrangeira constitui medida excepcional, somente admissível na modalidade de adoção.

Gonçalves (2014, p. 581) analisa o artigo citado, entendendo que “a redação do dispositivo sugere que a adoção deve ser deferida preferencialmente a brasileiro, sendo excepcional a adoção por estrangeiro”. (Grifo no original) Enfatiza-se, por fim, no ensinamento de Rossato, Lépore e Sanches (2014, p. 234) que “a adoção internacional representa a excepcionalidade da excepcionalidade. Ostenta caráter subsidiário, na medida em que deve representar a última solução para colocação em família substituta”. Ressalte-se que uma vez deferida a adoção, seja ela nacional ou internacional, é desfeito qualquer vínculo com sua família de origem. Os filhos adotados adquirem os mesmos direitos dos filhos biológicos, não havendo distinção entre eles. Nessa conformidade, Lôbo (2010, p. 270) proclama: a total igualdade de direitos entre os filhos biológicos e os que foram adotados demonstra a opção da ordem jurídica brasileira, principalmente constitucional, pela família socioafetiva. A filiação não é um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem. Nesse sentido, o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas.

Com efeito, a adoção internacional consagra o caráter excepcional e subsidiário, mas ao passo que é deferida aos estrangeiros o infante adotado passa a adquirir os

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mesmos direitos e obrigações de um filho biológico, consagrando o princípio da igualdade.

5.3 Dos riscos da adoção internacional

A adoção por estrangeiros representa relevância, pois é considerado um meio capaz de amenizar os angustiantes problemas sociais. Desse modo, cabe aos operadores do direito buscarem melhores soluções para protegerem os direitos fundamentais dos infantes colocados para adoção, evitando prejuízos às crianças e adolescentes. Consequentemente, a grande preocupação dos doutrinadores, dos juristas, dos órgãos internacionais é preservar os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, uma vez que ao serem retirados de seu país de nascença, outros costumes, culturas e línguas serão introduzidos em seu cotidiano. Nesse sentido, o ordenamento jurídico prevê que as principais polêmicas advindas com a adoção internacional dizem respeito ao tráfico internacional de crianças e adolescentes, a comercialização de órgãos e inclusive ao trabalho escravo. Para Liberati (1995, p. 199) em relação aos riscos trazidos com a adoção internacional não conta com a unânime aprovação da comunidade jurídica, havendo aqueles que a condenem pelas mais diferentes razões, muitas vezes ligadas ao envio de crianças ou adolescentes para o exterior para a exploração da prostituição infantojuvenil; para serem utilizados em trabalhos forçados e em produções pornográficas.

Prossegue nessa linha Madaleno (2011, p. 633), destacando que tampouco escapa a ideia do tráfico ilegal de menores pelo largo expediente de registrar como próprio filho de outrem, com a criminosa falsidade ideológica, popularizada como “adoção à brasileira”, sem esquecer das denúncias sobre a comercialização de órgãos, todas essas circunstâncias relacionadas com a má resolução das chagas sociais brasileiras, pois o Brasil estaria exportando um problema social e ser internamente resolvido. (Grifo no original)

Ademais, acerca dos problemas oriundos com a efetivação da adoção internacional, Barros (2013, p. 52) salienta que o sequestro de menores, falsificação de documentos para registros de crianças, tráfico, venda de crianças, entre outros piores, são os

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principais problemas postos em ata pelo Judiciário para complexos julgamentos. Tais crimes e formas de abusos acabam, por conseguinte, prejudicando, de outras formas mais severas, a criança e o adolescente, pois muitos países vêm dificultando e burocratizando cada vez mais as adoções externas para que se evite referidos acontecimentos.

Em razão da preocupação recorrente e majoritária dos doutrinadores quanto ao tráfico internacional das crianças e dos adolescentes, Fonseca (2011, p. 186) destaca que “do estrangeiro se exija outra série de formalidades, além daquelas exigidas aos nacionais, para poder habilitar-se à adoção de crianças ou adolescentes brasileiros”. Em consonância com a proteção dos direitos fundamentais, proclamada pela Constituição Federal 1988, a Convenção de Haia, de 1993, em seu artigo 1º, “a”, estabelece a adoção de garantias para que as adoções internacionais sejam moldadas de acordo com o interesse superior da criança e em respeito aos direitos fundamentais que reconheçam o direito internacional. Com relação aos aspectos sócio-culturais da adoção internacional, Barros (2013, p. 53) sustenta que é considerado um problema mais delicado e relevante, pelo motivo do qual se indaga o futuro da criança. Se esta criança irá se adaptar a uma sociedade cuja cultura e costumes são totalmente diferentes. E mais, se os nativos desse país receptor estão preparados para aceitar um não semelhante.

Ao analisar o aspecto social da adoção internacional, alguns doutrinadores, como Barros (2013), entendem que essa espécie de adoção pode ocasionar violação do direito da criança e do adolescente de conviverem sob influência dos costumes, culturas, idiomas de seu país de origem, ao passo que serão retirados do ambiente de suas relações e inseridos em um novo universo com regramentos contraditórios. Como pondera Gonçalves (2012) deve-se priorizar pela regulamentação da espécie de adoção internacional, afastando a xenofobia seguida por alguns doutrinadores e proibindo as práticas abusivas, uma vez que as adoções mal-intencionadas não devem afetar aquelas efetivadas em conformidade com o ordenamento jurídico, que tenham como interesse primordial a supremacia do interesse dos infantes. A adoção por estrangeiros segue uma rigorosa e complexa cadeia de requisitos até o seu deferimento. A fiscalização, tanto pelo Poder Judiciário como pelos órgãos internacionais, é realizada de forma incisiva, evitando que ocorram os efeitos maléficos mencionados acima com essa modalidade de adoção.

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Finalmente, com o arrimo na legislação frente à adoção internacional somada a adesão de medidas por parte dos operadores do direito, forma-se uma rede de proteção em relação aos infantes aptos para a adoção, pois o objetivo primordial desse instituto é a defesa do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e a consequente colocação desses infantes em uma família substituta.

5.3 Das vantagens da adoção internacional

Por outro lado, é necessário sopesar os possíveis benefícios e vantagens que a efetivação da adoção internacional pode acarretar. Cumpridas todas as formalidades exigidas na ordem pública, sendo feita fiscalização pelos órgãos internacionais, a colocação do infante em família substituta, ainda que estrangeira, pode gerar uma série de direitos e melhoramentos na vida da criança e do adolescente. Nessa esteira, Gonçalves (2014, p. 582), inspirado na Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, orienta que a adoção internacional pode apresentar a vantagem de dar uma família permanente à criança para quem não se possa encontrar uma família adequada em seu país de origem, e na necessidade de prever medidas para garantir que as adoções internacionais sejam feitas no interesse superior da criança e com respeito a seus direitos fundamentais, assim como para prevenir o sequestro, a venda ou o tráfico de crianças. (Grifo no original)

Por outro lado, também como fator positivo da adoção internacional, Dias (2011, p. 494) sustenta que “há quem considere a adoção internacional de grande valia para amenizar os aflitivos problemas sociais”. Por esse lado, diante dos problemas sociais vivenciados pelo nosso país, como a miséria e a pobreza, a colocação dos infantes embora em família substituta estrangeira, pode gerar benefícios, haja vista ser melhor do que deixá-lo a margem da marginalização e corrupção existentes. Assim, o propósito maior é mitigar a aversão a esta modalidade de adoção, e intensificar a regulamentação legal, bem como a atuação dos órgãos jurisdicionais e dos órgãos fiscalizadores, para que a adoção por estrangeiros seja uma forma real e séria de colocação dos infantes em família substituta estrangeira, permitindo que estas crianças e adolescentes tenham uma família e um lar. Importa destacar como, Bordallo (2013, p. 333) que

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não devemos ter oposição à adoção internacional, encará-la como forma de omissão, como se estivéssemos deixando de proteger nossas crianças e, até, abrindo mão de nossa soberania, pelo fato de permitirmos que brasileiros se tornem cidadãos de país estrangeiro.

Salienta-se que a colocação dos infantes em família substituta, seja ela nacional ou estrangeira, acarretará inúmeros benefícios para as crianças ou adolescentes. Uma família é sinônimo de amor, de afeto, de companheirismo, e não se pode limitar esses sentimentos a uma nacionalidade. Nesse sentido, Madaleno (2011, p. 634) tece as seguintes argumentações: não existem razões para o preconceito da adoção internacional, quando prevalece o princípio dos melhores interesses da criança ou do adolescente, e no confronto desses interesses deve ter maior peso a possibilidade de inseri-lo em lar substituto, convivendo com família nacional ou estrangeira, porque o amor é universal, e usufruindo o adotado de afeto e de carinho parental, com acesso às oportunidades ímpares de integral formação e educação.

Ademais, o princípio da afetividade é norteador das relações familiares, uma vez que muitas famílias são constituídas e moldadas pelo vínculo da afetividade, e não pelo vínculo biológico. Não se pode negar a existência dessas relações no âmbito internacional, haja vista que a adoção por estrangeiros é modalidade permitida no ordenamento jurídico. Ressalte-se o posicionamento incisivo de Diniz (2007, p. 503) ao indagar “será possível rotular o amor de um pai ou de uma mãe como nacional ou estrangeiro? Seria, ou não, a nacionalidade o fator determinante da bondade, ou da maldade, de um pai ou de uma mãe?”. (Grifo no original) Em que pese haver risco para a efetivação da adoção internacional, parte majoritária da doutrina entende que essa modalidade de adoção é uma importante fonte de colocação dos infantes em famílias substitutas. As adoções feitas com intuito de dar uma família às crianças e adolescentes abandonados não podem ser prejudicadas por aquelas adoções mal-intencionadas. Há uma maior preocupação de todos os operadores do direito em não falhar com essa modalidade, ou seja, de criar mecanismos eficazes desde a fase de habilitação dos estrangeiros até o pedido final de adoção, criando assim uma maior confiabilidade e segurança para a adoção por estrangeiros.

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É necessário considerar os benefícios advindos com a adoção por estrangeiros, ao passo que é imprescindível que se atente aos seus riscos, como destaca Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 679), se por um lado, não podemos deixar de incentivar a adoção, como suprema medida de afeto, oportunizando às nossas crianças e aos nossos adolescentes órfãos uma nova vida, com dignidade, por outro, é de se ressaltar a necessidade de protegê-los contra graves abusos e crimes.

A adoção internacional é considerada um importante instrumento tanto para prevenção como para solução da desigualdade social vivenciada pelo nosso país, e nesse sentido, proclama Barros (2013, p. 52) que por ser um instituto não muito utilizado em décadas passadas, a adoção passou a representar, na atualidade, um instrumento eficiente para a solução da desigualdade social e, por consequência, de mãos dadas com a integração sócio-familiar, dando oportunidade a crianças (e muitas vezes adolescentes) que, além de abandonadas, não tiveram a oportunidade de viver entre uma família que desse carinho e afeto.

Imprescindível realçar que na adoção, seja ela nacional ou internacional, e em qualquer de suas modalidades, o essencial é a proteção do melhor interesse das crianças e adolescentes, preservando a máxima constitucional da dignidade da pessoa humana. Convém mencionar, ainda, que os procedimentos para a adoção internacional estão previstos em dispositivos legais, no Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme a sua modalidade, observando as especificidades. Rossato, Lépore e Sanches (2014) destacam que a adoção internacional, sendo o Brasil o país de origem e a adoção deferida para estrangeiros, segue o disposto no artigo 52, caput e incisos, combinado com o artigo 52-A do ECA; seguem o entendimento no sentido de que a adoção por brasileiro que reside no exterior em país ratificante da Convenção de Haia de 1993, será regida pelo artigo 52-B do ECA. Segundo Rossato, Lépore e Sanches (2014) quando se tratar de adoção internacional em que o Brasil é o país de acolhida seguindo a Convenção de Haia de 1993, a mesma obedecerá o regramento do artigo 52-C do ECA; porém quando se tratar de adoção por estrangeiros em que o Brasil continua sendo o país de acolhida, mas o país de origem delega àquele a decisão, a adoção seguirá os preceitos do artigo 52-D do ECA.

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5.5 Da adoção internacional e a obediência aos princípios de proteção da criança e do adolescente

Importa enfatizar, desde logo, a observância de princípios constitucionais e infraconstitucionais que são aplicáveis ao Direito de Família, bem como ao Direito da Criança e do Adolescente. Por sua vez, os princípios constitucionais são aplicados com prevalência dos infraconstitucionais, pela natural exigibilidade e aplicação, ao passo que os últimos são suscetíveis de maior fragilidade e emprego. Tanto o Direito de Família como o Direito da Criança e do Adolescente são ramos do Direito Civil sensíveis aos reflexos dos princípios constitucionais, uma vez que a aplicação destes tem preferência e por isso devem ser utilizados em primeiro lugar no processo de interpretação, ao passo que a Carta Magna de 1988 consagrou valores sociais denominados como fundamentais. Segundo Lôbo (2010, p. 50) um dos maiores avanços do direito brasileiro, principalmente após a Constituição de 1988, é a consagração da força normativa dos princípios constitucionais explícitos e implícitos, superando o efeito simbólico que a doutrina tradicional a eles destinava.

Os princípios aplicáveis ao Direito da Criança e do Adolescente são enumerados de forma diferenciada pela doutrina, apenas havendo consenso em alguns enunciados. Amin (2013) destaca como princípios basilares do Estatuto da Criança e do Adolescente, o princípio da prioridade absoluta, o princípio do melhor interesse e o princípio da municipalização. Por sua vez, Fonseca (2011) indica como princípios orientadores e aplicáveis a esse ramo o princípio do superior interesse ou do melhor interesse de crianças e adolescentes, o princípio da proteção integral e da prevalência da família e o princípio da prioridade absoluta. Dentre os princípios gerais aplicáveis ao Direito de Família, Gagliano e Pamplona Filho (2012) elencam os seguintes: princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da igualdade, princípio da vedação de retrocesso. Em relação aos princípios especiais peculiares ao Direito de Família, Gagliano e Pamplona Filho (2012) especificam: princípio da afetividade, princípio da solidariedade familiar, princípio da proteção ao idoso, princípio da função social da família, princípio da plena proteção das

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crianças e adolescentes, princípio da convivência familiar e princípio da intervenção mínima do Estado no Direito de Família. Acerca do princípio da prioridade absoluta, que tem assento constitucional, artigo 227 do nosso texto constitucional, e tem ainda previsão no artigo 4º e 100, parágrafo único da Lei nº 8.069/90 (ECA), Amin (2013, p. 60) ensina que estabelece primazia em favor das crianças e dos adolescentes em todas as esferas de interesse. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar, o interesse infantojuvenil deve preponderar. Não comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela nação por meio do legislador constituinte.

Essa prioridade absoluta assegurada pela Carta Magna de 1988 está relacionada aos mais diversos direitos da criança e do adolescente, incluindo desde a proteção do direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à dignidade, até colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, entre outros atos. Essa prioridade é dever imposto à todos, à família desses infantes, ao Estado (Poder Público) e à sociedade. Ainda nesse sentido, Amin (2013, p. 61) completa, entendendo que “a prioridade tem um objetivo bem claro: realizar a proteção integral, assegurando primazia que facilitará a concretização dos direitos fundamentais [...]”. Aliás, o princípio do melhor interesse de crianças e adolescentes ou do superior interesse de crianças e adolescentes, foi reconhecido como best interest e assim foi adotado pela comunidade internacional na Declaração de Direitos da Criança, no ano de 1959. Com efeito, Amin (2013, p. 69) explica que na análise do caso concreto, acima de todas as circunstâncias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse, como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens. Ou seja, atenderá o princípio do melhor interesse toda e qualquer decisão que primar pelo resguardo amplo dos direitos fundamentais, sem subjetivismos do intérprete. Melhor interesse não é o que o Julgador entende que é melhor para a criança, mas sim o que objetivamente atende à sua dignidade como criança, aos seus direitos fundamentais em maior grau possível.

Complementando o asseverado, Tartuce e Simão (2012, p. 20) lecionam sobre o princípio do maior interesse da criança e do adolescente da seguinte maneira

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em reforço, o art. 3.º do próprio ECA determina que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (Grifo no original)

Com relação ao princípio da proteção integral, que está disciplinado no artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente, Fonseca (2011, p. 14) entende que o legislador introduziu “a Doutrina da Proteção Integral, que é a denominação que se dá ao protetivo arcabouço legislativo e social, ancorado na Constituição Federal e em documentos internacionais de proteção à criança e ao adolescente”. Por outro lado, dentre os princípios constitucionais recepcionados pela doutrina, o princípio da dignidade da pessoa humana tem grande relevância social, estando presente tanto no Direito de Família como no Direito da Criança e do Adolescente, bem como tendo sua base na Constituição Federal. Dias (2006, p. 52) assim o define: “é o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal”. Conceituando a dignidade da pessoa humana, Machado (2003, p. 92-93) entende que de toda sorte, o que sobretudo importa salientar é que a noção de dignidade humana, nessa acepção de valor supremo subordinante, [...], está positivada no nosso ordenamento jurídico; a proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, na Constituição Brasileira de 1988, numa primeira ótica de abordagem, veio expressamente referida como um dos princípios constitucionais que orienta a interpretação de todo o sistema jurídico brasileiro.

Ainda referente a este macroprincípio Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 76) entendem que a dignidade da pessoa humana é princípio solar em nosso ordenamento, a sua definição é missão das mais árduas, muito embora arrisquemo-nos a dizer que a noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade. (Grifo no original)

Os princípios gerais de direito são de suma importância para o ordenamento jurídico, ainda mais quando se trata de princípios com sede constitucional, como é o caso da dignidade humana, princípio basilar em nosso sistema jurídico.

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Adverte Lôbo (2010, p. 53), também sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, que este “é o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade”. Salienta-se que o princípio da afetividade é um princípio norteador do Direito de Família, e por isso também do Direito da Criança e do Adolescente, em que pese ser orientador de todas as relações familiares, sejam elas formadas pelo vínculo biológico ou pelo vínculo afetivo. Conforme sinaliza Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 90), por afetividade entende-se “mas o fato é que o amor – a afetividade – tem muitas faces e aspectos e, nessa multifária complexidade, temos apenas a certeza inafastável de que se trata de uma força elementar, propulsora de todas as nossas relações de vida”. Todavia, pelo princípio da convivência familiar, Lôbo (2010, p. 69) sustenta que o direito à convivência familiar, tutelado pelo princípio e por regras jurídicas específicas, particularmente no que respeita à criança e ao adolescente, é dirigido à família e a cada membro dela, além de ao Estado e à sociedade como um todo. Por outro lado, a convivência familiar é o substrato da verdade real da família socioafetiva, como fato social facilmente aferível por vários meios de prova. A posse do estado de filiação, por exemplo, nela se consolida. Portanto, há direito à convivência familiar e direito que dela resulta.

Imperioso salientar, ainda sobre o princípio da convivência familiar, e de acordo com o entendimento de Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 105) que “estamos convictos de que o princípio da convivência familiar necessita, para se consolidar, não apenas do amparo jurídico normativo, mas, principalmente, de uma estrutura multidisciplinar associada que permita a sua plena realização social”. Ademais, para Gagliano e Pamplona Filho (2012) este princípio disciplina que a criança e o adolescente devem ser mantidos no âmbito de suas relações familiares, incluindo não apenas a relação entre pais e filhos, mas se estendendo a todas as pessoas com quem eles mantêm vínculo de afetividade, como os irmãos, primos, avós, tios e demais integrantes da relação familiar. Importa ressaltar que tanto no Direito de Família como no Direito da Criança e do Adolescente, a incidência dos princípios constitucionais bem como dos princípios infraconstitucionais contribuem para a efetividade dos casos concretos no atual sistema jurídico. A proteção da pessoa humana bem como de sua dignidade se dá através da

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aplicação desses princípios, que é indispensável para a concretização do princípio da solidariedade.

6. Conclusão Com a constitucionalização do Direito de Família, a igualdade entre homem e mulher e a igualdade entre os filhos, acabou com a distinção quanto à origem da família e da filiação, respectivamente. Inaugurou novos direitos para as mulheres, pondo fim a preponderância do homem na relação familiar e trouxe direitos equiparados para os filhos (havidos ou não do casamento, bem como os havidos da adoção), consolidando o princípio da isonomia dos filhos e o pluralismo das relações familiares. Através das significativas alterações legislativas e das mudanças no texto constitucional, o Direito de Família se consolidou com uma ordem de valores baseada na afetividade entre os integrantes da entidade familiar, priorizando a pessoa como um ser, solidificando o princípio maior da carta constitucional, que é o princípio da dignidade da pessoa humana. A família passa a existir como base na função social, que privilegia o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, buscando a harmonia entre os princípios constitucionais e infraconstitucionais que retratam essa realidade. Com esse novo olhar e inserido nesse contexto, verifica-se que inúmeras vezes crianças são relegadas ao abandono material, moral e social, com pais sem condições de manter e com carência de recursos, muitas vezes negligentes e omissos, outros infratores na esfera penal e drogatizados, não dispensando a imprescindível assistência de que necessitam para o desenvolvimento harmonioso, saudável e integral, para a formação do caráter e uma educação plena. O Estatuto da Criança e do Adolescente é preciso ao dispor que o interesse da criança e do adolescente sempre predominará (artigo 6°) e que estes tem direito de viver em família, seja biológica ou substituta (artigo 19). Colocada tal premissa e sendo impraticável a permanência em sua família, é dever do Estado a sua colocação em família substituta, preferencialmente por via da adoção. Nos processos de adoção, primordialmente, devem ser considerados os interesses prevalentes dos adotados e as reais vantagens, com a destituição do poder familiar. Ora, se os adotantes demonstram afeição com a criança, externando laços de

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afeto, amor, carinho e cumplicidade, cumpriram todos os requisitos previstos na legislação e fundamentalmente, oferecem maiores vantagens e revelam motivos legítimos, a adoção nacional ou a internacional é um corolário inderrogável. A propósito, a adoção internacional, de caráter subsidiário e excepcional, respeita sua natureza e baliza seus procedimentos em obediência a doutrina da proteção integral e ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, da paternidade responsável, da dignidade da pessoa humana, da convivência familiar e da isonomia da filiação e, fundamentalmente, da afetividade que se tornou elemento fundante da solidificação da família. De resto, a regulamentação dos procedimentos pela Lei nº 12.010/2009, em verdadeira revolução jurídica, atingiu a estrutura do Estatuto da Criança e do Adolescente, consolidou princípios, estabeleceu requisitos, condições e regras abrangentes, mas essencialmente, tornou a adoção internacional, ainda que na excepcionalidade, segura, aplicável e exercitada. Deixa-se evidente, que em decorrência do direito fundamental à convivência familiar, a adoção internacional só deve ser deferida uma vez esgotadas todas as possibilidades de colocação em família substituta nacional, respeitando o direito da criança e do adolescente permanecerem na sua família, nas suas raízes e no núcleo de suas relações afetivas. Enfim, quando o alicerce do pedido de adoção centra-se na construção de um arranjo familiar, de uma relação afetiva concreta, de uma verdadeira entidade familiar, sobressaindo a reciprocidade dos envolvidos, a adoção internacional deve ser deferida. A adoção internacional não é a solução, mas um caminho possível.

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DA FIXAÇÃO DA GUARDA COMPARTILHADA COMO INSTRUMENTO PARA COMBATER E EVITAR AS CONSEQUÊNCIAS DA ALIENAÇÃO PARENTAL

Maríllia dos Santos Dias3 Norberto Luiz Nardi4

RESUMO O presente artigo apresenta um estudo sobre a Lei n. 12.318/2010, que instituiu a Alienação Parental, objetivando conferir maiores poderes ao Judiciário no momento de proteger os direitos individuais das crianças e dos adolescentes. Aborda a fase inicial da síndrome, a partir do término do relacionamento entre cônjuges ou companheiros até as formas para que a síndrome seja identificada, com o intuito de minimizar os efeitos decorrentes. Destaca a importância da regulamentação da guarda compartilhada, nos casos que envolverem a Alienação Parental para a proteção dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, com o consequente acompanhamento dos profissionais da área da saúde. A partir da identificação da síndrome, constatou-se, em casos similares, que a guarda compartilhada, por unir ambos os genitores na educação e manutenção dos filhos, é a solução mais viável nos casos de ruptura familiar, já que, com a atribuição da guarda unilateral, ocorre a disputa, entre os genitores, pela atenção dos filhos.

Palavras-chave: alienação parental; guarda compartilhada; direitos fundamentais. 1. Introdução O presente estudo pretende analisar a Lei da Alienação, que como síndrome, sempre existiu nas situações de litígios de casais com filhos pequenos, como uma prática costumeira dos genitores indiferentes a convivência familiar com seus filhos ou que, sem perceberem, destruíam os vínculos familiares. Os primeiros conceitos desta síndrome 3

Advogada pela Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: [email protected]. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, onde é professor no Curso de Direito, Graduação e PósGraduação, conferencista e advogado militante na área de família e sucessões. Coordenador do Curso de Direito da UNISC de Venâncio Aires. E-mail: [email protected]

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surgiram por meio de estudos iniciados por Richard Gardner, sendo que, apenas no ano de 2010, foi sancionada a Lei nº 12.318, que regulamente o tema, com o intuito de combater todos os meios prejudiciais ao melhor interesse da criança e do adolescente. Diante da complexidade nas fases de identificação da alienação parental, bem como do seu tratamento, torna-se imprescindível o apoio de todos os profissionais que possam intervir de maneira positiva nas relações familiares, em todas as fases processuais. A partir do disposto na Lei nº 12.318/2010, busca-se apontar de que maneira a guarda compartilhada poderá evitar a prática da alienação parental. Por conseguinte, se buscará, mediante o estudo do atual sistema da guarda compartilhada, Lei de nº 13.058/2014, uma alternativa de evitar os conflitos provenientes da separação do casal através da estipulação da guarda compartilhada, com respaldo no entendimento jurisprudencial acerca do tema.

2. Da atual concepção acerca do instituto da Alienação Parental No dia 27 de agosto de 2010, foi publicada a Lei da Alienação Parental, de nº 12.2130, com o objetivo de conferir maiores poderes ao Judiciário no momento de proteger os direitos individuais da criança e dos adolescentes, quando vítimas das mais variadas formas de abuso exercido pelos seus genitores. Vale enfatizar que o objetivo da referida síndrome é sempre o de afastar ou excluir os genitores do convívio com os seus filhos, de forma que venha a prejudicar a relação familiar. Para Alves, a alienação parental (2014, https://www.ibdfam.org.br) é: ‘’De saída, a alienação deve ser encarada como a desqualificação da conduta dos pais, feita por um deles, perante os filhos, denegrindo-se a imagem do outro genitor no interesse de prejudicar a relação afetiva paterno-filial.’’ Ademais, PINHO (2013, p. 34), refere que PODEVYN (2009) define a alienação parental de uma forma mais objetiva, como: “programar uma criança para que odeie um de seus genitores’’. Lago e Bandeira (2009, ) ao definir o genitor alienante relatam que: ‘’O alienador caracteriza-se como uma figura superprotetora, que pode ficar cego de raiva ou animar-se por um espírito de vingança provocado pela inveja ou pela cólera’’. Outrossim, desse conceito pode-se extrair que a interferência prejudicial a formação psicológica de uma criança não é de exclusividade dos genitores, mas também

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de todo e qualquer parente que tenha convívio com o mesmo e que dessa relação possa criar uma forma de quebrar o vínculo existente entre o infante e o genitor. Segundo Figueiredo e Alexandris, (2011, p. 46), mesmo que a lei tenha denominado aquele que sofre alienação de alienado, não consideram como correta tal denominação, haja vista que: ‘’[...] o alienado é aquele que tem a percepção equivocada sobre os fatos e isso é o que ocorre com o menor ou adolescente [...]’’. Com efeito, a relevância da Lei nº 12.318/2010 diz respeito à defesa com prioridade do princípio defensor do melhor interesse da criança e do adolescente, o qual deve ser mantido a partir do espaço familiar que, segundo Machado e Madaleno (2013, p. 73): ‘’é no espaço familiar, estejam os pais unidos ou separados, que a criança e o adolescente devem encontrar sua estabilidade e sua socialização, sobre cujos valores e fundamentos formarão sua própria e estável personalidade’’.

2.1 Métodos para identificação de atos condizentes com a prática da alienação parental

Da análise do disposto no artigo 2º, caput, da Lei nº 12.318/2010, que arranja ser a alienação parental uma atuação de um sujeito, chamado de alienador, que tenta confundir a percepção social da criança ou do adolescente em relação ao outro genitor, chamado de alienado. Desse modo, o alienador conduz a criança de maneira a instalar uma forma equivocada de percepção sobre a personalidade do alienado. Art. 2º. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

É oportuno salientar que a ocorrência da alienação parental, na maioria dos casos, está relacionada a uma situação de ruptura familiar, na qual um dos genitores, geralmente o que tem a guarda unilateral e exclusiva do menor, por não conseguir se adequar a separação, e por vezes ao sentimento de traição, faz uma espécie de lavagem cerebral em seu filho. Essa nada mais é do que a destruição/desmoralização do ex parceiro, pois no momento que o alienador narra fatos que não aconteceram maliciosamente e vitimado passa a se convencer da versão implantada, gera uma destruição de vínculo entre o outro genitor e filho.

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Para verificar a intensidade dessa síndrome, observa-se, segundo Madaleno (2013, p. 44): ‘’[...] é a autonomia de pensamento por parte do menor alienado, ou seja, quando ele afirma que seus atos e decisões são de sua responsabilidade, sem qualquer interferência do outro genitor’’. A partir daí, resulta-se mais difícil detectar a sua ocorrência, vez que o alienador diminui as difamações, já que a criança afirma que os atos são de sua autoria. Todas essas ações para excluir o genitor da convivência com seu filho não se limitam e até podem se estender a família do alienado, com o intuito de ignorar todas as pessoas que fazem parte.

2.2 Negligência do genitor alienante e (in) existência da conduta de abuso sexual pelo genitor alienado

Com o decorrer do divórcio, o genitor que exerce a guarda exclusiva, por não conseguir lidar com a situação, manipula, implanta falsas memórias no filho, para que o mesmo venha a romper laços afetivos com o outro genitor. A síndrome de alienação parental constituiu uma forma de maltrato e de abuso infantil (DIAS, 2010), sendo que o último é mais difícil de ser identificado, tendo em vista que a síndrome não possui um tipo comum de visibilidade. Frise-se ser necessário descartar as possibilidades de ocorrência do abuso sexual, além de outras doenças psicológicas, pois a síndrome de alienação parental ocorre por diversas condutas. Refere-se que, quando o genitor alienante verifica que as suas outras táticas forem consideradas ineficazes, a fim de impedir as visitas do genitor alienado, implanta a falsa denúncia de abuso sexual, e convence o próprio filho da ocorrência de algum fato inexistente passado com ele. Nesse caso, são programadas as falsas memórias, e a criança acaba por repetir como se realmente tivesse sido realmente vítima de abuso (MACHADO E MADALENO, 2013). Salienta-se que um genitor que realmente tenha abusado de seu filho, pode estar se escondendo atrás da Síndrome de Alienação Parental. Diane do quadro é necessária cautela no momento de identificação, para que a mesma seja correta, tendo em vista, que no caso de uma investigação falha, a criança ou adolescente acaba com a falsa ideia de que é abusada pelo seu genitor. No mesmo sentido, Lago e Bandeira (2009, ) defendem e salientam a importância de ter uma investigação apurada nesses casos:

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a importância de conhecer o assunto das falsas acusações de abuso sexual se reflete na validade dos dados que serão apresentados ao juiz. Uma avaliação imprecisa, com resultados não fidedignos, pode levar o juiz à determinação de visitas supervisionadas ou até mesmo à suspensão das visitas do genitor acusado, além da possível condenação no âmbito criminal. Dessa forma, pode acontecer um aniquilamento da relação pai-filho, e, até que se prove o contrário, muito tempo pode ter passado e os vínculos afetivos sofrerem um prejuízo irremediável.

A propósito, a cada dia fica em evidência a importância de profissionais treinados para tanto, já que, caso seja realizado uma investigação errônea, quem sofre com os reflexos nocivos é o infante e ou adolescente.

2.3 Sintomas físicos e psicológicos das crianças ou adolescentes envolvidos na alienação parental

A propósito, vale enfatizar a maneira como os genitores enfrentaram o fim do seu relacionamento, seja ele o divórcio ou apenas a dissolução da união, para que se verifique a maneira como os seus filhos se comportarão no futuro em suas relações pessoais (MACHADO E MADALENO, 2013). As crianças ou adolescentes, quando consumada a prática de alienação parental, têm seu desenvolvimento comprometido, tendo em vista as sequelas psicológicas que o processo traz. Assumem comportamentos como se as ideias, histórias criadas pelo genitor alienante fossem deles mesmos, e não se sentem manipulados ou alienados. Assim, tais sentimentos são vistos como próprios de sua personalidade. Por serem colocados em uma situação de dependência, os filhos ficam regularmente submetidos às provas de lealdade dos pais, já que, se não seguirem os desejos do pai alienante, é ameaçado de abandono. Com isso, o filho tende a escolher o genitor alienador para não decepcioná-lo, mas ao ficar dividido entre seus pais há uma oposição ao desenvolvimento do seu bem estar emocional. Segundo entendimento de Machado e Madaleno (2013, p.54): ’’A consequência mais evidente é a quebra da relação com um dos genitores. As crianças crescem com o sentimento de ausência, vazio, e ainda perdem todas as interações de aprendizagem, de apoio e de modelo’’. Na esfera psicológica restam comprometidos o desenvolvimento e a noção de autoconceito e autoestima. A criança/adolescente alienada aprende a manipular,

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tornando-se prematuros para decifrar o ambiente emocional, revelando falsas emoções. Na fase adulta apresentará uma visão contrária do mundo, sem meio termo para as suas percepções sobre as pessoas ao seu redor.

2.4 Consequências da alienação parental à luz das novas relações familiares

Inúmeras são as consequências trazidas com o exercício da alienação, pois como a criança/adolescente é induzido a odiar o outro genitor, ocorre a perda do vínculo afetivo. A prática dessa síndrome pode, além de destruir o vínculo entre pais e filhos, revelar diversos sintomas de doenças psicossomáticas, ou seja, mostrando-se ansiosos, deprimidos e até mesmo agressivos. Além do mais, abrangem ainda doenças como depressão crônica e transtorno de identidade. É normal o genitor alienante ameaçar o filho de abandoná-lo, caso seja rejeitado, faz com que o filho, conforme leciona Pinho (2013, p. 47): ‘’se põe numa situação de dependência e fica submetido regularmente a provas de lealdade’’. No mesmo sentido, Lago e Bandeira (2009, ) mencionam alguns efeitos calçados pela síndrome: a SPA pode gerar efeitos em suas vítimas, como: depressão crônica, incapacidade de adaptação social, transtornos de identidade e de imagem, desespero, sentimento de isolamento, comportamento hostil, falta de organização, tendência ao uso de álcool e drogas quando adultas e, às vezes, suicídio. Podem também ocorrer sentimentos incontroláveis de culpa quando a criança se torna adulta e percebe que foi cúmplice inconsciente de uma grande injustiça quanto a o genitor alienado.

Importa referir, que a prática da alienação fere o princípio fundamental da criança ou do adolescente, tendo em vista a garantia Constitucional da convivência familiar estabelecida no artigo 227, além do Estatuto da Criança e do Adolescente, que traz, no artigo 19, o mesmo direito fundamental. Através deste fica garantido a toda criança ou adolescente: ‘’[...] tem direito a ser criando, educado, protegido e ter um vínculo familiar harmonioso para que possa crescer com uma formação boa e com os seus direitos e garantias assegurados’’, Angeluci e Delajustina (2013, p. 85).

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2.5 Principais princípios relacionados a Alienação Parental

Sem pretender esgotar o tema, far-se-á o estudo sobre os princípios que moldam o atual direito de família com ênfase naqueles usualmente verificados nos casos da Alienação Parental. O princípio da afetividade, no atual modelo de direito de família, é apontado como principal fundamento das relações familiares, mesmo não havendo disposição expressa no texto constitucional. Pode-se afirmar, segundo Tartuce e Simão (2013, p. 22) ‘’ele decorre da valorização constante do princípio da dignidade humana’’. A existência formada pelos membros de uma família é formada pelo liame sócio afetivo que os vincula, sem interromper a sua individualidade. Embora não esteja explícito, a afetividade tem fundamento constitucional na dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e na igualdade entre os filhos (artigos 1º, III, da CF, 3º, I, da CF 5º, caput, e 227, parágrafo 6º, da CF, respectivamente). Aliás, de acordo com o que refere Marques (2009, p. 39): ‘’esse princípio faz com que, no âmbito familiar, a afetividade se sobreponha às questões patrimoniais’’. Outro princípio que garante proteção é o do melhor interesse da criança, em que se deve observar o melhor para a criança e adolescente a partir de um caso concreto. Nos processos judiciais as decisões deverão observar o melhor interesse da criança, ‘’o que significa dizer que os interesses dos pais são sempre colocados em plano secundário’’, conforme refere Marques (2009, p. 40). Tal princípio está estampado, também, no citado artigo 227, caput, da Constituição Federal, bem como os artigos 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais dispõem: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação [...] Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, [...]. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

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Na mesma direção, o Código Civil de 2002 concretiza esse princípio, mesmo que de forma implícita. Sublinha-se que a proteção dada às crianças e aos adolescentes integrantes de uma família também deve ser exercido em relação aos netos, sobrinhos, e não somente aos filhos. Os dispositivos dos artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil ampliaram o sistema da proteção, a fim de atender o melhor interesse da criança e do adolescente na fixação da guarda. Segundo Madaleno (2013, p. 26) ‘’esse princípio se aplica tanto nas situações de conflito, como em uma posição de determinação da guarda, quanto no cotidiano, como na escolha da melhor linha de educação’’. Apesar de não ter previsão expressa no atual Código Civil, mais um princípio que se trata de uma norma importante é o da convivência, visto que ‘’é a relação afetiva, diária e duradoura das pessoas que compõem a entidade familiar, sejam parentes ou não, no ambiente comum’’, Madaleno (2013, p. 25). Esta convivência também deve se estender aos outros integrantes da família, quais sejam, os avós, tios e irmãos, aqueles com quem a criança ou o adolescente mantém vinculo de afetividade. Nos casos de guarda unilateral, a convivência do filho com o não guardião é um direito recíproco de pais e filhos. Ademais, trata-se de exceção o afastamento definitivo dos filhos da sua família natural, sendo justificáveis nos casos de ‘’[...] interesse superior, a exemplo da adoção, do reconhecimento da paternidade socioafetiva ou da destituição do poder familiar, por descumprimento de dever legal’’, conforme refere Gagliano e Filho (2013, p. 104). O reconhecimento do Estado na existência de várias possibilidades de arranjos familiares se consolida como o princípio do pluralismo das entidades familiares (DINIZ, 2011). Tal princípio se assentou a partir do momento em que as uniões matrimonializadas deixaram de ser reconhecidas como a única base da sociedade. Podese dizer que não é apenas a família instituída com o casamento que terá o amparo estatal na sua formação, mas sim toda e qualquer amparada pela Constituição Federal, deverá ter o respeito da sociedade. Decorre, expressamente da previsão contida nos parágrafos 1º e 3º e 4º, do artigo 226, da Constituição Federal, quer dizer, da inclusão de outras espécies de famílias que não sejam apenas aquelas decorrentes do casamento. Conforme leciona Gama (2008, p. 84): tal princípio específico decorre do princípio geral do pluralismo democrático (art. 1º, inciso V, da CF), ensejando que cada pessoa humana possa livremente escolher a qual modelo ou espécie de entidade familiar pretende se atrelar.

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Quanto ao princípio da paternidade responsável, disposto no artigo 226, parágrafo 7º, da Constituição Federal, segundo Gama (2008, p. 78) ‘’o legislador empregou o termo paternidade responsável quando na realidade o sentido é o da parentalidade responsável’’ referindo-se, assim, não apenas ao homem, mas também a mulher’. Para Gonçalves (2014, p. 24): ‘’Essa responsabilidade é de ambos os genitores, cônjuges ou companheiros’’. Assim, esse princípio gera responsabilidade individual e social do homem e a mulher que geram uma nova vida humana, cuja criança deve ter resguardado todos os seus direitos fundamentais.

2.6 Das medidas judiciais a serem tomadas após a caracterização da síndrome

Constatada a prática de Alienação Parental, ou alguma conduta que dificulte a convivência da criança ou adolescente com o genitor alienado, o magistrado poderá aplicar cumulativamente ou não, as medidas previstas no artigo 6º, da Lei 12.318/2010, sem prejuízo da responsabilidade civil ou criminal do alienador (NÚÑEZ, 2013): Art. 6º: Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso: I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador; II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado; III - estipular multa ao alienador; IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; VII - declarar a suspensão da autoridade parental. Parágrafo único. Caracterizado mudança abusiva de endereço, inviabilização ou obstrução à convivência familiar, o juiz também poderá inverter a obrigação de levar para ou retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião das alternâncias dos períodos de convivência familiar.

Segundo Oliveira (2010, p. 249), deve ser aplicada a primeira medida, que consiste na advertência do alienador, mas, em seguida, outras medidas de ordem prática

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e punitiva. O magistrado, em relação ao genitor alienado, cuidará para preservar e ampliar o regime de convivência com o filho, nos termos no inciso II, acima indicado. Não obstante, a multa disposta no inciso III mostra-se necessária, mas, não há disposição acerca do valor da mesma, devendo ser estipulada pelo magistrado conforme a gravidade da situação retratada. Com a realização da perícia, até mesmo para diagnóstico da síndrome, no momento do processo judicial, deverá ser relatada a necessidade de acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial, que trata o inciso IV. Em continuidade, a norma contida no inciso V faculta ao juiz a determinação de alteração de guarda unilateral para a compartilhada, o que também deverá ser analisado caso a caso, vem atrelado ao inciso VI referindo-se a fixação do domicílio. Medida de maior rigor, prevista no inciso VII, consiste na suspensão do poder familiar do genitor responsável por atos de alienação parental, causa que também acresce ao artigo 1.637, do Código Civil, como uma das formas de perda do poder familiar. Frisa-se que, a caracterização de mudança abusiva de endereço, elencada no parágrafo único do referido artigo 6º, tem relação com a forma da alienação parental prevista no artigo 2º, a qual constituiu medida para evitar a alteração de endereço do filho sem o consentimento do outro genitor. Em atendimento ao princípio da proteção, bem como ao superior interessa da criança e do adolescente, está o artigo 7º, da Lei da Alienação Parental, que possibilita a atribuição ou alteração de guarda, in verbis: Art. 7o A atribuição ou alteração da guarda dar-se-á por preferência ao genitor que viabiliza a efetiva convivência da criança ou adolescente com o outro genitor nas hipóteses em que seja inviável a guarda compartilhada.

Por efeito, os aspectos ligados à alteração de domicílio injustificado, como já mencionado, constitui forma de alienação parental, e, quando ocorrer, há preservação da competência do juízo de origem, ligado ao domicílio anterior das partes, conforme o artigo 8º: Art. 8o A alteração de domicílio da criança ou adolescente é irrelevante para a determinação da competência relacionada às ações fundadas em direito de convivência familiar, salvo se decorrente de consenso entre os genitores ou de decisão judicial.

Dentre as medidas de cautela, urgência e efetividade DINIZ (2010, p. 75/76) menciona que há possibilidade da alienação parental ser reconhecida em ação autônoma ou incidentalmente, além de independentemente de requerimento específico.

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Além disso, sob o ângulo preventivo, acentua-se a indicação de atribuição preferencial de guarda, nos casos em que for impossível a fixação de guarda compartilhada, ao genitor que possibilitar o convívio do filho com o outro. Essa hipótese de promover a convivência, mostra-se segundo DINIZ (2010, p.78): ‘’[...] a própria proposta de compartilhamento da guarda ou fórmula equivalente’’.

2.7 Alienação parental como componente violador dos direitos fundamentais da criança e do adolescente

Os direitos humanos referem-se a direitos universalmente aceitos na ordem internacional e a expressão direitos fundamentais é usada para se referir a direitos assegurados na ordem interna do Estado. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu título II, contém um extenso rol de direitos fundamentais, o qual não é taxativo, vez que se pode verificar outras normas de direitos fundamentais esparsas, já os direitos decorrentes dos tratados internacionais são denominados de direitos humanos na constituição vigente. Por conseguinte, observa-se que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos fundamentais, bem como dos direitos humanos. Vale mencionar que o titular de um direito fundamental é quem figura como sujeito ativo nas relações jurídicas, tendo o direito constitucional recepcionado o princípio da universalidade, que traz o indivíduo como centro da titularidade de direitos. Nesse norte, para SARLET (2011) ‘’de acordo com o princípio da universalidade, todas as pessoas, pelo fato de serem pessoas, são titulares de direitos fundamentais’’. Com isso, afirma-se que a criança e o adolescente merecem ter garantidos os direitos básicos à saúde, educação, lazer, moradia e ao convívio familiar, pois se encontram em situações de fragilizada biopsíquica, fazendo jus a máxima valorização da pessoa humana no ambiente familiar ou até mesmo fora dela, visando a melhor formação de sua personalidade (OLIVEIRA, 2012). Ainda, são titulares de direitos fundamentais, pois com base no disposto no artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente em conformidade com o disposto no artigo 227, da Constituição Federal que assegura a prioridade absoluta aos interesses da criança e do adolescente, enquanto dever da família, sociedade e Estado, a confirmação do status de sujeitos de direitos fundamentais:

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Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

O mesmo direito disposto na Constituição Federal se sustenta na doutrina como Proteção Integral, a qual, segundo Morelli (2013, p. 382): ‘’[...] considera serem as crianças e os adolescentes sujeitos de direitos, pessoas em desenvolvimento, fazendo jus a uma proteção absoluta’’. Segundo essa doutrina, a família, a comunidade, a sociedade e o Estado se encontram em uma situação irregular por olvidar proteção e cuidado a esses sujeitos de direitos. As consequências negativas trazidas pela síndrome da alienação parental a todos os envolvidos são mais profundas nas crianças e nos adolescentes, ao considerar que o menor sofre uma confusão sobre o que efetivamente representam as figuras maternas e paternas em sua vida. Do mesmo modo, ao reiterar essas garantias constitucionais a Lei da Alienação Parental, determinou, em seu artigo 3º que ‘’a prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável [...] constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente [...]’’. O Superior Tribunal de Justiça, em observância ao superior interesse da criança, mantém o entendimento nas decisões oriundas do universo infantil, no sentido de que em qualquer decisão deverá ser alcançado o melhor interesse para a criança, indicado no artigo 3º da Convenção dos Direitos da Criança, e caso não haja a proteção absoluta, ocasionaria obstáculos na ordem jurídica, desarticulando todo o sistema. ‘’Art. 3º: Convenção dos Direitos da Criança: 1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. 2. Os Estados Partes se comprometem a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários para seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.

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3. Os Estados Partes se certificarão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de supervisão adequada’’.

Em suma, após caracterizada a manifestação da Alienação Parental, o genitor alienante deve ser imediatamente afastado do convívio com a criança/adolescente, para evitar futuros problemas psicológicos, em razão dos efeitos advindos da síndrome.

3. A guarda compartilhada como meio de evitar a alienação parental Importa destacar que a guarda deriva da autoridade parental atribuída aos pais. Além disso, é vista como um dos efeitos mais importantes do divórcio de um casal, uma vez que, segundo Madaleno (2013, p. 33): ‘’decide questões relativas às pessoas emocionalmente mais vulneráveis da relação, por não possuírem sua capacidade de discernimento totalmente formada’’. Diante disso, nas situações de litígios a mesma será atribuída àquele genitor que revelar melhores condições de exercê-la, nas circunstâncias como: a convivência com outros parentes, educação, alimentação, vestuário, entre outras; além das características psicológicas do genitor (MADALENO, 2013). Com o intuito de definir quem será o mais apropriado para deter a guarda de uma criança ou adolescente em um específico caso de família é preciso diferenciar os modelos de guarda. No Brasil, o Código Civil, após tratar dos institutos da separação judicial e do divórcio dedicou-se à proteção das pessoas dos filhos, estabelecida nos artigos 1.583 a 1.590 (GONÇALVES, 2014). Frise-se que nos casos de separação judicial por mútuo consentimento ou no divórcio direto consensual é comum que os cônjuges acordem sobre a guarda dos filhos, e está poderá ser homologada pelo juiz, se estiverem preservados os interesses dos filhos menores e dos maiores inválidos (GONÇALVES, 2014). A Emenda Constitucional nº66/2010, que intitulou o divórcio direto no Brasil, nada tem a ver com a proteção das pessoas dos filhos, ou seja, caso os genitores não acordem, ou que o juiz não concorde com o modelo de guarda estipulado no acordo, a mesma não será homologada, sendo, apenas, decretado o divórcio do casal (GOLÇALVES, 2014).

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Para Diniz (2011, p. 442), o critério orientador na definição de guarda é: ‘’[...] a vontade dos genitores’’. Refere a mesma autora, em que pese deva-se respeitar a deliberação dos genitores, é importante atentar-se ao fato de que os mesmos estão vivendo um momento de fragilidade emocional, ocasionado pela separação. E, mesmo sendo o estabelecimento da guarda e da visitação um encargo dos pais, o acordo depende de decisão judicial, que somente ocorre após a oitiva do Ministério Público nos casos envolvendo crianças ou adolescentes menores de idade.

3.1 Da recente alteração do Código Civil pela lei n. 13.058/2014

No final do ano de 2014, a Lei de nº 13.058, trouxe alteração a alguns artigos do Código Civil no que diz respeito à guarda compartilhada, no intuito de modernizar a legislação. Antes de adentrar nas modificações trazidas pela referida Lei, faz-se necessário frisar que a mesma trata-se de um sistema de responsabilização conjunta dos genitores. Em virtude da lei não ter instituído limitação a um dos genitores, o não guardião, a fiscalizar a manutenção e a educação do filho mantido sob a guarda do outro (GONÇALVES, 2014). No mesmo sentido Gagliano e Filho (2013, p. 605), citando HIRONAKA (2010): ‘’Nesse tipo de guarda, não há exclusividade em seu exercício. Tanto o pai quanto a mãe detém-na e são corresponsáveis pela condução da vida dos filhos.’’ Salienta-se que a guarda compartilhada não se confunde com a guarda alternada, uma vez que neste modelo, o filho passa um período com o pai e outro com a mãe. Como característica da guarda compartilhada, a criança ou adolescente tem como referência uma casa principal, em que na mesma vive com um de seus pais, sendo que ambos os genitores devem planejar a convivência de acordo com as suas rotinas, facultadas as visitas a qualquer momento (GONÇALVES, 2014). Logo, quando surge o conflito, ante o rompimento do vínculo conjugal, a guarda compartilhada vem para amenizar os efeitos dessa desavença sobre os filhos. De certa forma é a maneira como os genitores se relacionam que indicam a viabilidade da aplicação da guarda compartilhada, pois quando não há consenso os magistrados vinham negando a sua imposição, é o que relata Neto, Tartuce e Simão (2012, p. 6): os juízes vêm se negando a impor a guarda compartilhada diante de uma situação de conflito, conforme determina a lei. Sob este aspecto, a conduta do magistrado, ao negar um mínimo existencial, à criança ou

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ao adolescente, promove verdadeiro retrocesso social, conforme previsto, ao se instituírem políticas públicas, como garantidoras do princípio da dignidade da pessoa humana.

A tradicional guarda exclusiva ou unilateral não estimula os laços paternomaterno-filiais, sendo prejudicial aos filhos (GAMA, 2008). De modo que o modelo da guarda compartilhada tem um importante papel, pois impulsiona o convívio dos filhos com ambos os pais, uma vez que apesar de não estarem unidos conjugalmente, mantém um novo vínculo para o resto da vida, intitulado por Gama (2008, p. 216), como: ‘’a biparentalidade sobre os filhos comuns’’. Golçalves (2014) menciona que mesmo antes do novo regramento, os tribunais vinham determinando a guarda compartilhada de um dos genitores com uma terceira pessoa. Ademais, refere o autor que a guarda compartilhada será influência na responsabilidade civil dos pais por atos dos filhos menores, isso pois a jurisprudência majoritária entende que a responsabilidade dos genitores resulta antes da guarda que do poder familiar, respondendo ambos solidariamente pelos atos ilícitos dos filhos menores. Um aspecto considerável é o de permitir que os genitores ponderem conjuntamente sobre o programa geral de educação dos filhos, envolvendo o desenvolvimento de todas as fases psíquicas do infante. Segundo Gama (2008, p.219) o exercício da autoridade parental por ambos os cônjuges: ‘’envolve a coabitação, a assistência, a criação e a educação’’. Acentua-se que, o direito de visitas, nesse modelo de guarda, melhor evidenciaria o ato de conviver, de se relacionar, de trato diário, como pretende a guarda compartilhada (GAMA, 2008). A responsabilidade pelos filhos é dos genitores, que juntos decidirão sobre a melhor educação, forma de criação, etc., então o poder parental será exercido como antes da separação. Para que a guarda compartilhada vise o melhor interesse das crianças recomenda-se que haja consenso e diálogo nos momentos de definição das melhores atividades. Logo, cabe enfatizar as alterações trazidas pela Lei n. 13.058/2014, no sentido de que, a mesma traz a preferência no momento da fixação por essa modalidade de guarda. Isto, pois no artigo 1.584, §§1º e 2º, CC, resta evidente que será aplicada a guarda compartilhada, até mesmo nos casos em que não houver consenso entre os genitores, salvo no caso de um deles não querer a guarda do filho, in verbis: Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: [...]

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§ 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.

Tal mudança é um avanço no Direito de Família, pois com a sua fixação as crianças e os adolescentes poderão conviver com seus genitores, de forma que a proteção advinda da família seja mantida.

3.2 A guarda compartilhada como meio de evitar a ocorrência da alienação parental

A alteração do regime da guarda compartilhada vem orientar a solução dos litígios familiares, já que visa a igualdade ideal de direitos entre os pais separados, prejudicados de manter uma convivência regular (PEREIRA, 2010). Quando aplicada em caso de litígio, a guarda compartilhada pode ser uma solução viável para evitar a Alienação Parental, em uma disputa de guarda de criança ou adolescente. Isso porque, como referido, a guarda compartilhada, quando aplicada nas situações de consenso faz com que os genitores dialoguem e decidam em conjunto para o melhor interesse do filho. Em face da importância da criança manter uma convivência com ambos os genitores e suas respectivas famílias torna-se fundamental a decretação da guarda compartilhada, tendo em vista que a mesma possibilita, dentre outras vantagens, o apoio legal para uma manutenção dos vínculos entre pais e filhos, após uma separação. Aliás, para que essa convivência aconteça da melhor fora possível estes devem receber os devidos encaminhamentos psicológicos e jurídicos necessários, a fim de tornar possível que convívio com os pais separados seja visto além de uma vingança, já que ambos terão igualdade de contato e convivência com os filhos. Segundo Sousa e Brito (2011, ): configura-se para o psicólogo, portanto, um distanciamento do papel de avaliador ou daquele que apontaria o melhor genitor, buscando-se uma aproximação com a figura de um profissional que irá facilitar,

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colaborar para que os pais entendam a importância de os dois estarem presentes e participativos na educação dos filhos.

Em relação ao previsto no artigo 6º, inciso V, da Lei n. 12.318, a guarda compartilhada é referida como uma das sanções estabelecidas para evitar qualquer conduta capaz de evidenciar essa síndrome. Frise-se a mesma induz a pacificação do conflito, e é o mecanismo mais eficaz para inibir a alienação parental, sendo uma solução que estimula a procura das vítimas, pois encerraria uma das premissas básicas da alienação parental que é a disputa pela guarda. No mesmo sentido, o artigo 7º, da referida lei, prevê a regra de aplicação da guarda compartilhada, estabelecendo que, quando não for possível a sua aplicação, no momento de atribuição ou alteração da guarda, será direcionada por preferência ao genitor que possibilite a convivência do filho com o outro genitor (NÚÑEZ, 2013). Portanto, a convivência, na guarda compartilhada, preservará os vínculos da criança com ambos os pais, e estes poderão acompanhar ativamente os acontecimentos dos filhos. A partir disso, estabelece-se um ambiente saudável, no qual a criança, com essa convivência, formará sua própria opinião sobre o pai, não estando influenciada pelos comentários da mãe. Por esse motivo, é fundamental que a criança ou o adolescente possa permanecer o maior tempo possível com a presença de ambos os pais, situação respeitada no modelo da guarda compartilhada.

3.3 Do comportamento dos Tribunais no julgamento de casos de alienação parental

A partir da análise do entendimento jurisprudencial sobre o caso, irão ser dispostas algumas decisões, como na abaixo, na qual a guarda foi estabelecida de forma unilateral, e restringidas as visitas à mãe, no momento em que foi evidenciada a ocorrência da Alienação Parental, segundo o Desembargador Rui Portanova (2013, p.19), no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CAUTELAR DE BUSCA E APREENSÃO E REVERSÃO DE GUARDA DE MENOR. ALIENAÇÃO PARENTAL. Competência territorial. Não se verifica incompetência do juízo originário, porquanto as mudanças de domicílio das partes, no curso do processo, constituem alteração do estado de fato das partes e não alteram a competência, conforme dispõe o artigo 87 do CPC. Alteração de guarda e reconhecimento de alienação parental. As provas anexadas aos autos não trazem nenhum fato novo apto a modificar a guarda, revertida em favor do pai da criança, ora

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agravado. Evidências de ocorrência de alienação parental que autorizam visitas com restrições à mãe, ora agravante, mediante supervisão. Vale registrar que a guarda pode ser alterada a qualquer tempo, caso o detentor deixe de exercê-la com seriedade, afeto e responsabilidade ou passe a adotar comportamento incompatível com a formação e a criação da criança. Caso em que não prospera o recurso, devendo ser mantida a decisão agravada por seus próprios fundamentos. NEGARAM PROVIMENTO. (Grifado no original).

No julgamento do Agravo de Instrumento nº 70062944251, no Tribunal de Justiça do RS, restou suspenso o direito de visitação do pai em relação à filha supostamente vítima do abuso sexual, visto que, há acusação de alienação parental pela genitora, em razão das filhas e dos genitores serem submetidos à avaliação psicológica: AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL LITIGIOSA. PEDIDO DE VISITAS ASSISTIDAS. PROVIDÊNCIA LIMINAR. 1. Como decorrência do poder familiar, tem o pai não guardião o direito de avistar-se com a filha, acompanhando-lhe a educação e mantendo com ela um vínculo afetivo saudável. 2. Não havendo bom relacionamento entre os genitores e havendo acusações de abuso sexual do pai em relação à filha mais velha e de alienação parental pela mãe, e havendo mera suspeita ainda não confirmada de tais fatos, mostra-se adequada a suspensão do direito de visitação do pai em relação à filha supostamente vítima do abuso e a visita assistida à outra filha. 3. Os fatos, porém, reclamam cautela e, mais do que o direito dos genitores, há que se preservar o direito e os interesses das menores. 4. Considerando a gravidade dos fatos narrados, tanto as menores como os genitores deverão ser submetidos, com a maior brevidade, à avaliação psicológica, por perito nomeado pelo juízo a quo. Recurso desprovido.’’ (Grifado no original)

Neste caso, a avaliação psicológica reconheceu a conduta da prática da alienação parental, sendo mantida a guarda, para evitar prejuízos à criança. Ainda, restou aplicado o art. 6º, inciso III, da Lei, 12.318/2010, estipulando-se multa ao alienante. Julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Civil nº 70062154182: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO DE GUARDA. CERCEAMENTO DE DEFESA. PEDIDO DE NOVA PERÍCIA. GUARDA MATERNA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS EM FÉRIAS E FERIADOS. ALIENAÇÃO PARENTAL. DETERMINAÇÃO DE ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO PELA GENITORA NO CREAS. I - Inexiste cerceamento de defesa. A avaliação psicológica alcançou o objetivo proposto, ainda que não satisfatório à genitora, não existindo razão para ensejar outra perícia, mormente quando já constatado que a menor se encontra emocionalmente fragilizada com a situação que está vivenciando. II As alterações de guarda devem ser evitadas tanto quanto possível, pois

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em regra, são prejudiciais à criança, que tem modificada a sua rotina de vida e os seus referenciais, gerando-lhe transtornos de ordem emocional. Mantida a guarda materna, por ora. II - A regulamentação de visitas materializa o direito dos filhos de conviver com o genitor não guardião, assegurando o desenvolvimento de um vínculo afetivo saudável entre ambos, mas sem afetar as rotinas de vida dos infantes. No caso, possível a ampliação das visitas. Regulamentação em férias e feriados. III - Manutenção de acompanhamento psicológico da demandada no CREAS. IV - Reconhecida a prática de alienação parental, e continuada a conduta alienante da genitora, cabe a aplicação do art. 6º, inciso III, da Lei 12.318/10. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS.

Anteriormente a alteração legislativa acerca da guarda compartilhada, no julgamento do Recurso Especial nº 1.251.1000-MG (2010/0084897-5), quebrou-se a desavença jurídica em relação a guarda compartilhada não poder ser aplicada em situação de separação litigiosa, o Superior Tribunal de Justiça já aplicava a fixação da mesma na hipótese em que não houvesse consenso. Sobre isso, relata ANDRIGHI (2011, p.1-2): [...] 2. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais. 3. A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial. 4. Apesar de a separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do distanciamento do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação da guarda compartilhada como regra, mesmo na hipótese de ausência de consenso. 5. A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo do Poder Familiar que existe para a proteção da prole. 6. A imposição judicial das atribuições de cada um dos pais, e o período de convivência da criança sob guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal, letra morta.

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7. A custódia física conjunta é o ideal a ser buscado na fixação da guarda compartilhada, porque sua implementação quebra a monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral, que é substituída pela implementação de condições propícias à continuidade da existência de fontes bifrontais de exercício do Poder Familiar. 8. A fixação de um lapso temporal qualquer, em que a custódia física ficará com um dos pais, permite que a mesma rotina do filho seja vivenciada à luz do contato materno e paterno, além de habilitar a criança a ter uma visão tridimensional da realidade, apurada a partir da síntese dessas isoladas experiências interativas. 9. O estabelecimento da custódia física conjunta, sujeita-se, contudo, à possibilidade prática de sua implementação, devendo ser observada as peculiaridades fáticas que envolvem pais e filho, como a localização das residências, capacidade financeira das partes, disponibilidade de tempo e rotinas do menor, além de outras circunstâncias que devem ser observadas. 10. A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta - sempre que possível - como sua efetiva expressão. 11. Recurso especial não provido. (Grifado no original).

Assim sendo, a guarda compartilhada é a melhor forma de se evitar o afastamento da criança de um dos seus pais, que somente o visitará. Para que seja aplicada de forma eficaz nos casos de litígios, a nova Lei, que alterou o Código Civil deve ser aplicada, com o auxílio técnico de uma equipe preparada para acompanhar a demanda no Judiciário.

4. Conclusão A alienação parental é uma síndrome que sobrevém de um transtorno de personalidade de um dos genitores. Embora tenha sido criada há pouco tempo uma Lei específica para regular o tema, a prática da alienação parental sempre aconteceu nos núcleos familiares, como consequência da desconstituição dos laços conjugais, um dos genitores, ou os dois, descontente com o fim do relacionamento, usa seu filho de forma estratégica para atingir o outro. Como demonstrado, a alienação parental está relacionada a ocorrência do abuso psicológico da criança e do adolescente. Sublinha-se que todos sofrem quando a

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síndrome de fato for constatada, tanto o genitor alienado, o genitor alienante como a criança ou adolescente. Ocorre que, com relação à criança ou adolescente é importante ter mais cautela, uma vez que as sequelas resultantes dessa síndrome, podem segui-la durante toda a vida, tornando-a uma pessoa amargurada, com problemas para se relacionar, influenciando todo o seu desenvolvimento. Além do casal, os filhos sofrem com essa síndrome no momento de separação. É primordial a criação de serviços e políticas públicas, voltadas a essas famílias que estão vivenciando o divórcio, para que haja a proteção da dignidade do infante. Para isso, o instituto da guarda compartilhada veio para se tornar uma forma efetiva de solução da alienação parental, pois visa preservar a convivência do filho com ambos os pais, uma vez que manterá o vínculo e os mesmos deverão acompanhar ativamente toda a rotina dos seus filhos. A guarda compartilhada estabelece um ambiente adequado para que a criança forme sua própria opinião sobre os seus familiares, bem como sobre a vida, não sendo influenciada de maneira errônea por alguém que esteja abalado psicologicamente. Acentua-se que deve ser aplicada como regra, de maneira que a guarda unilateral seja estabelecida apenas nos casos em que o genitor não queira a guarda do filho, conforme estabelecido na atual legislação brasileira. Assim, a falta de consenso entre os litigantes não afasta que seja estabelecido o regime da guarda compartilhada, isto porque, por buscar a plena proteção do melhor interesse dos filhos, termina com as divisões sociais definidas pelos gêneros pai/mãe. Trata-se de medida extrema a imposição judicial da guarda compartilhada, bem como do período de convivência da criança e adolescente com seus genitores, porém, necessária para que a lei seja cumprida. Defende-se a aplicação, como regra, da guarda compartilhada, quando constatada a existência de práticas de alienação parental em algum núcleo familiar, bem como em todos os demais casos de guarda, advindos do divórcio de um casal. Assim, cabe ao Judiciário estabelecer o percurso para identificação da alienação parental, tendo o acompanhamento psicológico de todos os envolvidos, para assim designar a guarda compartilhada, com o objetivo de permitir que os genitores assumam e exerçam os papéis seus conjuntamente, independentemente dos conflitos existentes, de modo a atender o melhor interesse dos filhos.

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Por fim, com tal estipulação, a criança ou o adolescente crescerá amparado, como se seus genitores ainda fossem casados, pois ao manterem o respeito, a convivência entre ambos visará apenas o ideal desenvolvimento do filho.

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A7%C3%A3o+parental++++&proxystylesheet=tjrs_index&ie=UTF8&lr=lang_pt&access=p&client=tjrs_index&site=ementario&oe=UTF8&numProcesso=70062154182&comarca=Comarca%20de%20Erechim&dtJulg=26/11/201 4&relator=Liselena%20Schifino%20Robles%20Ribeiro&aba=juris> Acesso em: 04 mar. 2015. SOUSA. A. M. S.; BRITO, L. M. T. Síndrome de alienação parental: da teoria NorteAmericana à nova lei brasileira. Brasil. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932011000200006&lng=pt&nrm=iso> Acesso em: 15 fev. 2014. TARTUCE, F; SIMÃO, J. F. Direito civil 5 – direito de família. 7. ed. São Paulo: Método, 2012, v. 5.

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O PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO: UMA ALTERNATIVA EFETIVA NA GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL

Paula Silveira Serra Justo Valente5 Karina Meneghetti Brendler6

RESUMO O abuso sexual é a mais repugnante de todas as violências que possam ser praticadas contra uma criança, pois causa transtornos psicológicos que devastam e deixam danos, marcas que somente com o tempo e com tratamento é possível amenizarem. Por se tratar de crime sexual, o abuso acontece geralmente longe de qualquer olhar testemunhal, em uma condição onde a criança vira refém do agressor, desta forma, seu depoimento é de suma importância na relação processual, pois constitui uma importante prova na busca da veracidade dos fatos e na aplicação da justiça. Expor a vítima na sala de audiência junto à presença do agressor e de demais pessoas – juiz, promotor e advogado – as quais diante dela são estranhos, gera uma situação constrangedora podendo a vítima ficar amedrontada pelo transtorno que já lhe foi causado. O projeto Depoimento Sem Dano, implantado no Brasil há mais de dez anos pela justiça gaúcha tem o intuito de trazer a estás vítimas infanto-juvenil um resguardo e uma proteção. Desta forma a presente pesquisa, permite demonstrar, através da utilização do método dedutivo, como esse projeto surgiu, como tem sido aplicado no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e especialmente seu benefício na oitiva de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.

Palavras-chave: Depoimento sem dano; Depoimento especial; Crianças e Adolescentes vítimas de abuso sexual.

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Acadêmica do curso de Direito - Capão da Canoa. E-mail: [email protected]. Especialista em Direito de Família e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Doutora em Direito com tese defendida pela Universidade de Burgos - Espanha. Coordenadora e Docente do curso de direito da Universidade de Santa Cruz do Sul atuando principalmente no Direito de Família, Direitos Humanos e Direito da Infância e Juventude. E-mail: [email protected]. 6

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1. Introdução Considerando a condição peculiar da criança e do adolescente como seres em desenvolvimento, que estão em plena formação de sua personalidade, devem ser respeitados os seus direitos a fim de garantir-lhes um desenvolvimento pleno e salutar, bem como maximizar o princípio do melhor interesse da criança e, além disso, a dignidade da pessoa humana, e, para isso, deve ser analisada a importância e a contribuição da oitiva adaptada de vítimas infanto-juvenil em processos envolvendo crimes de abuso sexual. Assim, se faz necessário abordar como ocorre a prática deste crime na vida de crianças e adolescentes, como estes são vistos e ouvidos pela justiça, a dificuldade no depoimento das vítimas, bem como os danos causados pela negação em escutar crianças vítimas de abuso sexual, em especial o fator danoso chamado pela doutrina de síndrome do segredo, onde a criança passa a silenciar os fatos ocorridos por medo e insegurança decorrentes de ameaças por parte do agressor.

2. A Violência Doméstica: O Abuso Sexual Praticado Contra Crianças e Adolescentes Como ensina Azambuja “a violência está na pauta dos grandes problemas enfrentados pela humanidade na atualidade. Várias são suas formas e manifestação.” (AZAMBUJA, 2004, p. 117). Assim, como bem aponta a autora “todas as manifestações de violência ferem a dignidade da criança, e são repelidas pela legislação brasileira na atualidade.” (AZAMBUJA, 2011, p. 89). Conforme Alberton “[...] violência é uma manifestação abusiva de poder capaz de ignorar, ofender, humilhar, oprimir, explorar, machucar e até mesmo matar.” (ALBERTON, 2005, p. 102). “É uma relação interpessoal, assimétrica e hierárquica de poder com fins de dominação, exploração e opressão.” (GUERRA, apud ALBERTON, 2005, p. 102). Para Marilena Chaui a violência pode ser compreendida primeiramente “como conversão de uma diferença em uma relação hierárquica de desigualdade, com a finalidade de oprimir e dominar” (CHAUI apud SILVA, 2013, p. 37). A autora também aponta a existência da violência “quando a atividade de outra pessoa é impedida, apresentando como características o silêncio, a submissão e a passividade” (CHAUI apud SILVA, 2013, p. 37). Além disso, pode-se caracterizar a violência por ações e omissões que causam cessação, impedimento ou retardamento do desenvolvimento pleno dos

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seres humanos, ainda mais quando estas ações ou omissões são praticadas contra crianças e adolescentes, que na condição de vulnerabilidade, necessitam de cuidado e proteção. (PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 26). A violência como gênero, comporta várias espécies. A principal delas e aquela que se manifesta dentro do lar: a violência doméstica. Esta se configura pela conduta agressiva praticada por pessoas que têm com a vítima uma relação consanguínea, afetiva ou de responsabilidade, praticada no âmbito familiar, dentro dos lares, conduzida por aqueles que deveriam proteger, amar, cuidar e respeitar a criança e adolescente, mas que acabam por maltratar e violar o direito destas vítimas, retirando delas a infância, a inocência, a liberdade, a dignidade e até mesmo a própria vida. (ALBERTON, 2005, p. 105). Embora se manifeste de diversas formas e em vários espaços, é no lar que a criança se vê mais exposta ao desrespeito, quando os pais ou cuidadores não apresentam condições de protegê-las. Assim, para Guerra (2011, p. 60) a violência doméstica praticada contra crianças e adolescentes: Representa todo ato ou omissão praticados por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

A violência doméstica é considerada um fenômeno que se caracteriza por ser universal, ou seja, acontece no mundo inteiro; um fenômeno que ocorre sempre, e não em determinadas épocas; democrático por estar presente em todas as classes sociais, econômicas e culturais. (GUERRA apud ALBERTON, 2005, p. 104). Além disso, é considerada violência interpessoal, abuso de poder dos pais ou responsáveis, uma imposição de maus tratos às vítimas e um processo de vitimização, que em muitos casos ocorre por longos tempos, meses e até anos. Enfim é uma forma de violação de direitos básicos da criança e do adolescente, portanto, uma negação de direitos fundamentais como a vida, o respeito, a liberdade e a dignidade. (GUERRA apud ALBERTON, p. 105). O abuso sexual se caracteriza pelo tipo de violência que mais devasta e causa traumas às vítimas. Ocorre com frequência, atingindo todos os tipos de classes sociais, econômicas ou culturais principalmente vítimas em condição de vulnerabilidade, como as crianças e os adolescentes:

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Quanto ao abuso sexual, esse deve ser entendimento como uma situação de extrapolação de limites diversos: de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que essa sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e de tabus. E, principalmente deve ser compreendido que as situações de abuso infringem maus-tratos às vítimas. (FALEIROS apud PEDERSEN, 2011, p. 28).

O abuso sexual ocorre nas seguintes formas: baseados em I- atos libidinosos, que se caracterizam por palavras maliciosas e obscenas, assédio, beijos e carícias nos seios, coxas, nádegas e nos órgãos genitais. Alberton destaca, ainda, como forma de ato libidinoso o voyeurismo, que é entendido como “[...] olhares por ocasião do banho ou troca de roupas”; em II- ato sexual oral, vaginal ou anal, com ou sem o uso de força física; e III- o estupro, que se configura na penetração, com o uso de força física, do pênis na vagina. Assim, pela legislação brasileira apenas vítimas do sexo feminino sofrem estupro. (ALBERTON, 2005, p. 128). Ainda, podemos analisar a classificação de maus tratos sexuais dada pela Organização Mundial da Saúde: abusos sensoriais se configuram pelos atos de exibicionismo, linguagem sexualizada e pornografia. A estimulação sexual consiste em carícias nas partes intimas e masturbação. E ato sexual propriamente dito, se dá pela realização ou pela tentativa de realizar penetração oral, anal ou genital. (FONSECA; GUERRA apud SCHREIBER, 2014, p 149). O abusador se aproveita frente à condição de menor potencialidade da criança para satisfazer desejos sexuais, sem que essa criança seja capaz de entender o que ocorre entre ela e aquele com quem tem uma relação de confiança, e desta forma se configura como: [...] exploração de uma relação de poder sobre as crianças para a gratificação sexual de um adulto ou de uma criança significativamente maior. Os fatores que o definem são a relação de poder e a incapacidade das crianças de dar um consentimento consciente. (FUKS apud CEZAR, 2007, p. 43).

Alberton destaca alguns indicadores de violência sexual em crianças e adolescentes e os mais presentes no corpo e no comportamento da vítima decorrentes da prática do abuso sexual são: a) dor, inchaço ou escoriações nos órgão genitais; b) infecções urinárias de repetição; c) doenças sexualmente transmissíveis; d) mudanças bruscas de comportamento; e) comportamento agressivo; f) comportamento sexualizado inadequado; g) vergonha excessiva; h) timidez; i) comportamento antissocial; j) fuga de

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casa com relutância para não voltar; k) problemas de aprendizagem; l) gravidez precoce; m) tentativa de homicídio. (ALBERTON, 2005, p. 130). Assim, se configuram os vários tipos de mudanças que ocorrem nas vítimas do abuso sexual e ainda, neste sentido: [...] mudanças brusca de comportamento com relação aos amigos de determinadas pessoas ou lugares, recusa ao exame, resposta pronta e imediata negando ter sido tocada por adulto, uso expressões ligadas ao ato sexual, insinuações sobre práticas sexuais ou determinados indivíduos [...] (FRANÇA apud SILVA, 2013, p. 25).

Quando crianças e adolescente apresentam alguns destes sintomas, ou até mesmo mais de um, é provável que estejam sendo vítimas de algum tipo de violência, podendo ser em muitos casos o abuso sexual. Assim: [...] o abuso sexual manifesta-se por meio das mais variadas formas de violência e representa uma grave violação aos direitos fundamentais da criança e do adolescente; [...] a violência contra crianças e adolescente pode ser entendida não apenas em sua manifestação física, mas até mesmo como a negação dos direitos básicos da criança e do adolescente. (FRANÇA apud SILVA, 2013, p. 30-31).

Desta forma, crianças e adolescentes quando vítimas de abuso sexual passam a ter direitos fundamentais atingidos e violados, como por exemplo: o direito à saúde (englobando a saúde física e psicológica), visto que podem apresentar doenças sexualmente transmissíveis causadas pelo abuso sexual, deformações internas e externas nos órgãos sexuais, bem como traumas e sequelas caudadas devido às ameaças e torturas psicológicas; o direito ao respeito e a dignidade, pois quando vítimas do abuso sexual se tornam reféns de si mesmas, não tendo condições mínimas de se defenderem, sentindose abaladas pela violação de sua honra; o direito à liberdade, visto que não têm o poder de decidir não serem machucadas, violentadas, sendo submetidas a praticar atos que muitas vezes não consentem ou não entendem; e o direito à vida, pois em muitos casos, nos mais graves por ser tardia a descoberta dos abusos as vítimas podem chegar ao ponto de suicidar-se ou até mesmo serem assassinadas. Neste sentido: O abuso sexual é uma das formas mais cruéis de maus tratos infantis, porque, além de afetar fisicamente a criança, destrói todo o sentimento de pureza e dignidade que ela possui. Poder-se-ia analisar o abuso sexual como espécie de maltrato físico, ou ainda como espécie de maltrato emocional. A verdade é que a agressão de natureza sexual tem consequências tão serias no desenvolvimento da criança e do

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adolescente, bem como o atinge tão completamente (física, psíquica e emocionalmente) [...] (SCHREIBER; MANGUEIRA, 2014, p. 146-147).

Portanto, o abuso sexual infantil é um ato cruel e desumano praticado por um adulto contra uma criança ou adolescente que viola drasticamente e traz consigo uma série de consequências que devastam e destroem a vida de suas vítimas.

2.1 As consequências da prática do abuso sexual: a síndrome do segredo

São diversas as consequências e os efeitos do abuso sexual que traumatizam as vítimas, podendo manifestar-se logo ao início das práticas da violência ou após em longo prazo, inclusive na vida adulta. Segundo Sánchez estas consequências dependem de alguns fatores como o tipo de abuso praticado; a idade do abusador; a idade do abusado; a relação entre ambos; o tempo de duração e a frequência do abuso; a personalidade da vítima; a reação das pessoas que convivem com o abusador e a criança abusada, entre outros (SANCHEZ apud TRINDADE, 2007, p. 78). Contudo é no abuso sexual intrafamiliar que as consequências são mais severas. Assim: [...] a violência sexual praticada por um agente próximo à criança torna ainda mais gravosas as consequências dessa espécie de maus tratos, porque a confiança especial que existe entre a criança e o agressor acaba sendo violada de forma drástica. (SCHREIBER; MANGUEIRA, 2014, p. 149).

O sujeito que tem o dever de cuidar da criança ou adolescente, mas que comete a prática do abuso sexual acaba por modificar o papel de proteção à criança e ao adolescente para que possam desenvolver-se de forma saudável, fixando no lugar do cuidado e da proteção a intervenção cruel e “[...] profunda na saúde física e mental dessas pessoas em desenvolvimento” (SILVA, 2013, p. 40). Desta forma, o abuso sexual é um crime cuja prática é repudiada e mantida em sigilo, pois em parte as vítimas se sentem culpadas por fazerem algo que não é certo, em outros casos possuem medo de destruir a família, ou são ameaçadas pelos abusadores. Essas são algumas das características que tornam mais difícil a denúncia e o depoimento das vítimas. Assim, se configura o que a doutrina chama de Síndrome do segredo. A síndrome do segredo tende a ser mais evidenciada no abuso sexual intrafamiliar, visto que se trata de abusadores que detém autoridade sobre a criança, e assim a violência vem acompanhada de ameaças, que causam temor à criança e ao

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adolescente, uma vez que não conseguem e se sentem incapazes de reagir diante da autoridade, do poder físico e emocional do abusador. (AZAMBUJA, 2011, p. 98). Os motivos que levam manutenção do silêncio são vários e os mais frequentes se dão quando as vítimas infanto-juvenil sofrem “ameaças físicas e psicológicas, que fazem com que a criança tema por si, por sua família ou por alguém por quem nutra afeto”. Quando o agressor distorce a realidade, ou seja, “[...] o abusador manipula a realidade da criança de modo que ela sinta que é a abusadora, e ele, a vítima, conseguindo, assim, alterar, pelo menos psicologicamente, os papéis que cada um exerce na ação”. Quando a criança se atem ao medo da rejeição e de que ninguém vai acreditar, e finalmente quando se sente culpada por participar do abuso, de forma que se sente responsável pela ocorrência dos atos abusivos. (CEZAR, 2007, p. 47-48). Nestas situações, os abusos ficam protegidos pelo sigilo, pois decorem de ameaças feitas pelo abusador que “[...] não se furta a ardilosamente trabalhar com barganhas. Somados a isso, encontra-se a vergonha e o medo da vítima.” (SILVA, 2013, p. 40). Segundo Furniss (2002 apud MELO, 2007, p. 102) a síndrome do segredo assegura e mantém em sigilo a prática dos abusos, pois é o agressor quem estabelece e impõe segredo através “[...] da sedução, onde o jogo sexual é colocado como natural da relação entre adulto e criança e o segredo como forma de preservar a ‘aliança especial’ entre eles.” Ainda, segundo Trindade e Breier o número de casos de abuso sexual identificados e descobertos é menor do que o número de casos reais. Assim, “estima-se que casos não denunciados constituem um dado de obscuras proporções, porque a criança é vítima do silêncio.” (TRINDADE; BREIER, 2007, p. 58). Por esses motivos, pela configuração da síndrome do segredo é que em muitos dos casos de abuso sexual fica difícil a comprovação do fato e desta forma cada vez mais se faz necessário que na fase de produção de provas, para que se aplique a justiça, o Estado esteja preparado para ouvir e inquirir as vítimas, em especial, crianças e adolescentes, levando sempre em consideração a proteção integral da criança, bem como sua condição como pessoa em pleno desenvolvimento e sua dignidade como pessoa humana em processo de formação da personalidade.

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3. O Projeto Depoimento sem dano na proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual Como já visto anteriormente, o abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes traz consequências desastrosas na vida das vítimas, mas quando a conduta do agressor é descoberta, e este é denunciado, se verifica a instauração de um processo, que por meio de uma série de procedimentos objetiva buscar a verdade dos fatos e então aplicar a justiça. Contudo, quando as vítimas nesses processos são crianças e adolescentes os procedimentos devem ser conduzidos atendendo aos comandos constitucionais da proteção integral, da dignidade da pessoa humana, bem como a prioridade absoluta. Assim, cabe ao Poder Judiciário muita atenção à efetivação dessas garantias constitucionais dos direitos da criança e do adolescente, utilizando todos os meios possíveis para reduzir ao máximo os danos caudados pela prática dos maus-tratos. (MELO; KIM, 2007, p. 99). A doutrina da proteção integral que vigora na legislação atual, traz como principais aspectos de proteção o atendimento, a defesa e a responsabilização. O atendimento é uma atribuição do Poder Executivo, através de suas Políticas Públicas, a defesa da criança e do adolescente, bem como a responsabilização de quem viola seus direitos, estão vinculadas ao Poder Judiciário, ou seja, ao sistema que conduz a justiça. (MELO; KIM, 2007, p. 99). Desta forma, o projeto depoimento sem dano aplicado pela justiça gaúcha surge como uma forma especial de proteger crianças e adolescentes durante a instrução processual, bem como auxilia no contexto probatório, que nos casos de abuso sexual, muitas vezes não detectado pelo laudo pericial, não sendo suficientes as provas para ensejar a responsabilidade do abusador, assim, necessária é a escuta das vítimas devendo ser conduzida de forma especial como realizada no projeto. 3.1 A importância da oitiva de crianças e adolescentes em processos judiciais

Entretanto, necessário se faz antes de analisar o objeto do presente capítulo, qual seja, o projeto depoimento sem dano, descrever a importância da oitiva de crianças e adolescentes nos processos judicias. O depoimento da criança ou adolescente vítima de abuso sexual é de suma importância, pois é fundamental na contribuição da convicção do juiz, e no tratamento

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posterior que deverá receber a vítima. Quando levada a juízo para depor de forma especial, a criança e o adolescente habilitam o juiz na hora da decisão, e implicam na configuração do seu reconhecimento como sujeitos de direitos (MELO; KIM, 2007, p. 105), assim como prevê o artigo 3° do ECA: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata essa Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (BRASIL, Lei n. 8.069/90, 1999).

Desta forma é dado às crianças e aos adolescentes, através de seus depoimentos, o direito de participar das decisões referentes aos abusos praticados contra elas, e assim, terem por meio do Poder Judiciário a devida “[...] oportunidade de romper com uma situação de dominação e de violência que lhe permitirá mais adequadamente se recolocar na vida como sujeito autônomo” (MELO; KIM, 2007, p. 105). Neste sentido, é que a forma de oitiva especial se faz necessária: A maior compreensão em relação à dinâmica do abuso sexual aponta para a importância de escutar a criança e romper o ciclo de abusos. Esta escuta deve ser especial, adequada à condição peculiar de criança em desenvolvimento, e de forma a evitar a revitimização. Se a escuta ou tomada de declarações de uma criança ou adolescente, por exemplo, por agentes jurídicos, causar-lhes mais danos que a situação abusiva, o estado, enquanto responsável pela proteção da criança e do adolescente não estará cumprindo com seu objetivo de realmente proteger. (TABAJASKI; PAIVA; VISNIEVSKI, 2010, p. 61).

Ainda, pode-se analisar a importância do depoimento da vítima de abuso sexual, dada a clandestinidade com que é praticado o crime, longe das vistas de qualquer testemunha, conforme decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA OS COSTUMES. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PALAVRA DAS VÍTIMAS. PROVA SUFICIENTE. CONDENAÇÃO MANTIDA. DOSIMETRIA DA PENA. 1. MANUTENÇÃO DO DECRETO CONDENATÓRIO. PROVA DA MATERIALIDADE. Em se tratando da figura típica do atentado violento ao pudor, que, por muitas vezes, não deixa vestígios, a materialidade delitiva pode ser demonstrada por outros meios de prova, em especial, a palavra das vítimas, já que tal espécie de conduta criminosa, por sua própria natureza, é praticada às escondidas, sem testemunhas presenciais. Depoimentos seguros e lineares das lesadas em todas as oportunidades em que foram ouvidas, corroborada pelo restante da prova oral produzida no feito. Versão defensiva fraca e

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isolada nos autos. Condenação mantida. 2. PALAVRA DAS VÍTIMAS. VALOR PROBANTE. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. O depoimento das vítimas adquire extraordinário valor probatório em casos de investigação de cometimento de crimes contra a liberdade sexual. Conforme tranqüilo entendimento da jurisprudência pátria, a palavra da vítima, em sede de crime de estupro ou atentado violento ao pudor, em regra, é elemento de convicção de alta importância, levando-se em conta que estes crimes, geralmente, não há testemunhas ou deixam vestígios (HC 135.972/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 03/11/2009, DJe 07/12/2009). O fato das vítimas serem crianças não impede o reconhecimento do valor de seus depoimentos. Em verdade, seus relatos, quando consistentes, lineares e confortados por outros elementos de prova, podem apresentar ainda maior valor probante, tendo em vista o seu desprovimento de experiência ou informações a possibilitarem a invenção ou fantasia. 3. ENQUADRAMENTO TÍPICO. ART. 214, DO CP. A norma penal aplicável ao caso é aquela prevista no artigo 214 c/c artigo 226, inciso II, do Código Penal, redação vigente à época do fato, anterior à Lei n.º 12.015/2009. Nesse contexto, portanto, sem qualquer repercussão no apenamento, operada a recapitulação de ofício. 4. DOSIMETRIA DA PENA. Basilar conservada em dois anos acima do mínimo legal em virtude do tisne negativo conferido aos vetores circunstâncias, personalidade e consequências do delito. Ausentes agravantes e atenuantes. Mantido o aumento da pena em 1/2, em virtude da majorante do artigo 226, inciso II, do Código Penal. Aplicação da regra prevista no artigo 71, caput, do Estatuto Repressivo, pois os crimes foram praticados em continuidade delitiva. Irretocável o aumento da corporal em 1/3, considerando que os abusos ocorreram por diversas vezes, ao longo de muitos meses, e contra duas vítimas submetidas à grave ameaça. Pena definitiva mantida em 16 (dezesseis) anos de reclusão. Regime inicial fechado. Recurso improvido. Corrigida, de ofício, a capitulação jurídica dada ao fato. (RIO GRANDE DO SUL, TJ/RS, julgado em 24/09/2014). (grifou-se)

Entretanto, conforme Azambuja, o fato de trazer a criança vítima de abuso sexual ao processo para prestar seu depoimento, causa certo tipo de dano secundário, ou seja, a criança já sofreu um primeiro dano quando foi abusada sexualmente e sofre outro quando tem que vir a juízo relatar e reviver os horrores que sofreu dada a prática da violência sexual: Inquirir a vítima, com o intuito de produzir prova e elevar os índices de condenação, não assegura a credibilidade pretendida, além de expô-la a nova forma de violência ao permitir reviver situação traumática que pode reforçar o dano psíquico. Nesse sentido, enquanto a primeira violência foi de origem sexual, a segunda passa a ser emocional, na medida em que se espera que a materialidade – que deveria ser produzida por peritos capacitados e especializados – venha compor os

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autos através do seu depoimento, sem qualquer respeito às suas condições de imaturidade. (SOARES; OLIVEIRA, 2011, p. 171).

A autora ainda faz críticas ao modelo especial de oitiva de crianças e adolescentes, tal qual o método do depoimento sem dano, quando afirma ser covardia exigir da criança vítima do abuso sexual a produção da prova através de sua inquirição, ainda que revestida de especial tratamento (oitiva realizada através do depoimento sem dano), pois “transmitir perguntas por meio de sistema de áudio, como ocorre em algumas situações, serve mais para proteção da autoridade judicial do que da criança” (SOARES; OLIVEIRA, 2011, p. 173). Ainda, no mesmo sentido Wolff ressalta que a inquirição através do depoimento sem dano, não traz um efetivo procedimento na justiça brasileira, pois apenas modifica a forma de inquirição de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual (WOLFF apud AZAMBUJA, 2011, p. 173). O Conselho Federal de Serviço Social e o Conselho Federal de Psicologia, também se posicionaram contrários à inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, mesmo na ótica do depoimento sem dano: O Concelho Federal de Serviço Social, em 15 de setembro de 2009, emitiu a Resolução CFESS nº 554/2009, vedando, expressamente, vincular ou associar ao exercício de Serviço Social e/ou a título de assistência social a participação em metodologia de inquirição especial sob o procedimento do Projeto Depoimento Sem Dano, uma vez que não é de sua competência e atribuição profissional, em conformidade com os artigos 4º e 5º da Lei 8662/93 (art. 2º) (Conselho Federal de Serviço Social, 2009). Na mesma trilha, o Conselho Federal de Psicologia, através da Resolução nº 010/2010, de 29 de julho de 2010, veda ao psicólogo o papel de inquiridor no atendimento de Crianças e Adolescentes em situação de violência (Concelho Federal de Psicologia, 2010). (AZAMBUJA; FERREIRA, 2011, p. 60).

Para o Conselho Federal de Psicologia se a criança cala é preciso respeitá-la, visto que ela ainda não possui condições de falar sobre o assunto e que uma inquirição, mesmo que de forma adaptada, não é a mesma coisa que uma entrevista na consulta com o psicólogo, pois na entrevista o psicólogo é orientado pelos desejos da criança e não pelas necessidades do processo em provar o fato ocorrido. (CANEZIN; PEROZIM, 2010, p. 133). Contudo, Canezin e Perozim rebatem a posição do Conselho Federal de Psicologia, afirmando que os operadores do direito não podem aceitar essa posição do Conselho, pois a inquirição da criança é em muitas vezes inevitável, por se tratar na

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maioria dos casos a única forma de provar a responsabilidade do agressor e assim, punilo. (CANEZIN; PEROZIM, 2010, p. 136). A alternativa trazida pela corrente contrária à inquirição de crianças e adolescentes é sustentada pela substituição do depoimento da criança ou adolescente realizado através do método do depoimento sem dano - pelo laudo psicológico que tem por objetivo evitar a revitimização da criança pelo uso de técnicas especiais, e assim, “[...] avaliações através do brinquedo e atividades gráficas podem esclarecer e provar a existência do dano” (CAMPOS; HECK apud CEZAR, 2010, p. 72-73). Entretanto, mesmo diante de posições contrárias a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual e com a sugestão do laudo psicológico como forma de prova no processo judicial, necessário se faz mostrar a importância da oitiva de crianças e adolescentes, trazendo posições favoráveis ao assunto e demostrando à efetiva contribuição do depoimento colhido de forma especial. Como um dos principais defensores da inquirição de crianças e adolescentes vítima de abuso sexual CEZAR traça como principal justificativa para a aplicação da inquirição especial, o artigo 12º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, ratificada pelo Brasil e introduzida em seu direito interno por meio do Decreto Legislativo nº 28 (CEZAR, 2010, p. 73): Art. 12. 1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança. 2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional. (ONU, Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, 2015).

Conforme Cezar a inquirição da criança e do adolescente à luz do depoimento sem dano assegura o direito da criança de ser ouvida em juízo nos processos que lhe dizem respeito, respeitando sua condição de pessoa em pleno desenvolvimento, assim quando ouvida de forma especializada e acolhedora, não tem seu direito resultado em prejuízo, mas sim valorizado pela “importância que lhe está sendo dirigida.” (CEZAR, 2010, p. 74).

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No mesmo sentido favorável a oitiva de crianças e adolescentes Dobke faz considerações importantes em relação ao assunto: A atitude do inquiridor em dispensar o relato da vítima demonstra, inequivocamente, um bem-intencionado sendo de proteção. Mas essa medida, aparentemente protetora, de não falar sobre a experiência sobre o abuso sexual, frequentemente transmite uma mensagem muito diferente para a criança. Ao assim agir, está o inquiridor negando a experiência da vítima e, com isso, a própria criança, o que é por ela percebido. E, ao deixar de examinar a experiência, por razões protetoras, os operadores do direito reforçam a experiência do abuso como síndrome do segredo. (DOBKE apud CEZAR, 2010, p. 74).

Neste mesmo sentido Furniss aponta que condutas protetivas de não ouvir a criança, levam a esta entender de forma diferente quando estão negando ouvi-la, ela passa a entender que sua experiência foi negada pelo adulto, e assim, por entender não ter importância alguma os fatos ocorridos acaba por sentir-se rejeitada. (FURNISS apud MELO; KIM, 2007, p. 106). Ainda, na mesma linha de pensamento o autor faz importantes considerações quando afirma que o que envolve essa problemática de escuta da criança está relacionada com a dificuldade que o adulto tem de ouvir a criança e acreditar nela, assim optando por não ouvir crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual acaba-se por manter “[...] a síndrome do segredo que propiciou a situação abusiva à criança, gerando por consequência um dano secundário” (FURNISS apud MELO; KIM, 2007, p. 106). Quanto ao laudo psicológico substituir o depoimento da vítima aponta Cezar: A posição nesse sentido, de cunho claramente menorista, contém equívoco desde a sua formulação, no momento em que para garantir uma aparente proteção, defende a supressão de um direito reconhecido em lei, pois não compete a qualquer pessoa substituir a palavra da criança. (CEZAR, 2010, p. 75).

Mostrado a posição contrária e a favorável quanto à oitiva de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, verifica-se que é importante escutá-los de forma adaptada, para que seus direitos sejam garantidos e a justiça seja efetivamente aplicada. Assim faz-se necessário conhecer mais a fundo o projeto depoimento sem dano, que se mostra eficaz na forma de inquerir estas vítimas que devem ser ouvidas e protegidas.

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3.2 O projeto depoimento sem dano e sua idealização

O depoimento sem dano é um projeto que foi idealizado e instituído pelo desembargador gaúcho José Antônio Cesar Daltoé, que na época era juiz de direito na 2ª Vara da Infância e Juventude do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, no ano de 2003. O depoimento sem dano, que alguns chamam de depoimento especial, consiste na realização da oitiva de crianças e adolescente vítimas de abuso sexual em uma sala separada da sala de audiências na qual possivelmente o abusador estará presente, além do magistrado, o promotor de justiça e o advogado de defesa. É uma sala diferenciada, separada, com circuito de áudio e som e um ambiente lúdico. Na sala especial as vítimas ficam na presença de profissionais da área da psicologia e assistência social, que intermediam as perguntas realizadas pelas partes. Na sala de audiências há um aparelho de televisor que permite que os presentes assistam em tempo real o que ocorre na sala onde a vítima está. (CEZAR, 2007, p. 61). O idealizador do projeto menciona que: Assim, é possível realizar esses depoimentos de forma mais tranquila e profissional, em ambiente mais receptivo, com a intervenção de técnicos previamente preparados para tal tarefa, evitando, desta forma, perguntas inapropriadas, impertinentes, agressivas e desconectadas não só do objeto do processo, mas principalmente das condições pessoais do depoente. (CEZAR, 2007, p. 62).

É de suma importância mencionar que são as partes e o magistrado que realizam as perguntas para a vítima, como em qualquer oitiva de testemunhas. Ocorre que os questionamentos são repassados, através do sistema de câmera, áudio e vídeo para o profissional que está na sala com a vítima, que reformula a pergunta de forma adaptada para a criança. Assim são respeitadas as garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, e também são respeitados os direitos fundamentais da criança e do adolescente, bem como sua condição de pessoa em pleno desenvolvimento. (LEITE, 2008, p. 09-10). O depoimento é gravado na íntegra na memória de um computador e posteriormente é gravado em um CD, anexado aos autos e a disposição das partes e do magistrado, que podem rever a gravação a qualquer momento, respeitando o contraditório. Além disso, tal prática permite que eventualmente, em caso de recurso, os julgadores de segundo grau tenham acesso também a gravação para dirimirem eventuais

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dúvidas e principalmente que “tenham acesso às emoções presentes nas declarações, as quais nunca são passíveis de serem transferidas para o papel” (CEZAR, 2007, p. 61). Assim, são atendidos os principais objetivos do projeto, quais sejam: a redução do dano durante a fase probatório dos processos judicias em que crianças e adolescentes ou são vítimas ou são testemunhas; a garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, quando ouvidos de forma adaptada, sendo protegidos e valorizados, bem como respeitados diante de sua condição de pessoas em desenvolvimento; e a melhor forma na produção da prova. (CEZAR, 2007, p. 61). Desta forma, é importante a aplicação do depoimento sem dano, não só pelos objetivos acima mencionados, mas também pelo fato de retirar a criança do ambiente da sala de audiência, em contato com o abusador ou com pessoas que para ela são estranhos – juíz, promotor e advogado –, evitando assim que essa criança fique amedrontada e seja vítima de um dano secundário (reviver de forma tensa todo o abuso ocorrido). Apesar de não ser muito utilizado nos foros das comarcas brasileiras, esse tipo de oitiva de crianças e adolescentes é adotado na Inglaterra, África do Sul, Chile, Bolívia, Israel, Grécia e Argentina. Muitos desses países, inclusive, contam com uma legislação de respaldo, o que não ocorre no Brasil (AMB, Associação dos Magistrados Brasileiros, acesso em 2014), onde foi transformado em projeto de Lei nº 4.126 de 2004, que foi arquivado e logo após surgindo o projeto de Lei 7.524/06 que também restou arquivado. Em 2007 surgiu o projeto de Lei 35/2007, semelhante ao projeto de nº 4.126/04. (CONSELHO FEDERAL DE PSCOLOGIA, 2008). Esse projeto de Lei 35/2007 que regulamenta o depoimento de crianças e adolescentes propondo alterações no Código de Processo Penal, encontra-se arquivado. (SENADO FEDERAL, acesso em 11/11/2014). Como ainda não é lei e não é obrigatória a utilização, o projeto depoimento sem dano está sendo visto como uma recomendação, pois em 2010 o CNJ editou a seguinte recomendação: Recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais. Depoimento Especial. (Publicada no DJ-e nº 215/2010, em 25/11/2010, pág. 33-34). (CNJ, Recomendação n. 33 de 2010).

Neste sentido de utilização do depoimento sem dano como uma recomendação para a inquirição de crianças e adolescentes, Melo e Kim ressaltam que a implementação do projeto nos foros das comarcas brasileiras não necessita de lei especifica para que

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ocorra, sendo possível a adoção do projeto depoimento sem dano nos processos judiciais, pois para eles basta que exista “[...] vontade política dos Tribunais estaduais, uma vez que essa experiência [...] tem se mostrado exitosa, como alternativa eficiente para reduzir o dano na oitiva de crianças e adolescentes em ações judiciais” (MELO; KIM, 2007, p. 122). Mesmo que já passados dez anos da implementação do depoimento sem dano é possível notar que ainda são poucos os magistrados que adotam o sistema, mas que aos poucos está se mostrando eficaz, tendo como pioneiros “o Estado o Rio Grande do Sul e o Tribunal de Justiça na aceitação e implementação da nova metodologia”. (SOUZA, 2012, p. 56).

3.3 Quais profissionais estão relacionados na aplicação do depoimento sem dano e o papel exercido por eles

Conforme visto anteriormente o depoimento sem dano é realizado em uma sala separada da sala de audiências e mesmo que as inquirições sejam realizadas pelo magistrado e pelas partes, através do sistema de áudio e vídeo, necessário se faz estar presente dentro da sala com as vítimas profissionais que repassaram as inquirições de forma adaptada. Esses profissionais devem possuir capacidade técnica apurada e especializada para lidar com as questões que serão dirigidas as vítimas, desta forma, é importante que estes profissionais auxiliares da justiça atuem na área da psicologia ou da assistência social. Importante é a atuação dos profissionais da área da psicologia e da assistência social – chamados de técnicos entrevistadores – para o desenvolvimento do depoimento sem dano, uma vez que são eles que facilitam o depoimento da criança, por isso, devem possuir habilidades para ouvir e acolher a criança (CEZAR, 2007, p. 66). Conforme expõe Cezar (2007, p. 67): [...] para que o depoimento seja realizado com sucesso, tanto para o bem estar do depoente como para a qualidade da prova produzida, o técnico possua conhecimento teórico relativo à dinâmica do abuso, preferencialmente com experiência em pericias, assim como possua um pensamento hábil e articulado que permita a fácil compreensão e interação de todos que estão a participar do ato judicial.

Assim, verificada a importância da oitiva de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, cabe ao profissional técnico manter a conduta de facilitador do depoimento

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da criança, demostrando paciência e acolhimento, bem como deixando a criança segura e a vontade durante a realização do depoimento (CEZAR, 2007, p. 66). Neste sentido, Dobke aponta que os operadores de direito não estando em condições capacitadas para inquirir crianças vítimas de abuso sexual e não tendo os necessários conhecimentos sobre os prejuízos causados pelo abuso sexual, podem nomear técnicos – intérpretes – da área da psicologia, que têm habilidades em lidar com o problema do abuso sexual, evitando assim, que a criança seja ouvida de forma desrespeitosa a sua condição (DOBKE apud CEZAR, 2007, p. 69).

3.4 A visão da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

O Depoimento Sem Dano não é uma tema muito recorrente na jurisprudência dos tribunais superiores, pois apesar de estar implantado a mais de dez anos no país, são poucos os Estados que utilizam o sistema. Contudo, importante se torna mencionar novamente que o Estado do Rio Grande do Sul através do Tribunal de Justiça, tem se mostrado favorável a aplicação do depoimento sem dano como uma forma de garantir os direitos da criança e do adolescente à luz do princípio da proteção integral, assim demostrado nas decisões a seguir expostas. No seguinte julgado pode-se constatar que a decisão de primeiro grau, foi reformulada pela 5ª Turma Recursal, pois a vítima, através do depoimento sem dano, relatou com clareza que sofria abusos: APELAÇÃO CRIMINAL. CÓDIGO PENAL. ART. 217-A, CAPUT, C/C ART. 61, INCISO II, ALÍNEA F, NA FORMA DO ART. 71, CAPUT. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CONTINUIDADE DELITIVA. ABSOLVIÇÃO. INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. SENTENÇA REFORMADA. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. No caso concreto, há elementos de prova suficientes a fundamentar um juízo condenatório no que tange ao crime de estupro de vulnerável. A vítima, que contava com apenas 03 anos de idade à época dos fatos, relatou, através do método do depoimento sem dano, que o acusado fez "cocô e xixi" em sua boca. O depoimento da vítima foi corroborado pelo testemunho de sua genitora, para quem ele contou detalhes acerca dos fatos, bem como pelo depoimento de seu genitor, restando claro que o acusado colocava o pênis na boca da vítima, vindo a ejacular. Soma-se a isso, que a vítima apresentou sintomas e indícios compatíveis com a hipótese de abusos sexuais, situação que foi confirmada na avaliação psíquica realizada,

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bem como no parecer psicológico. Ademais, tratando-se de crime que, por sua própria natureza, é praticado fora das vistas de testemunhas, a palavra da vítima é de vital importância para a determinação da materialidade e da autoria do delito. Sentença absolutória reformada. RECURSO PROVIDO. (RIO GRANDE DO SUL, TJ/RS, julgado em 14/05/2014). (grifou-se).

Ainda, conforme este mesmo Tribunal o depoimento sem dano é uma forma efetiva na inquirição de crianças e adolescentes, devendo ser aplicado, mesmo que não seja obrigatório, assim, seguindo os moldes do CNJ com a recomendação n° 33, de 23 de novembro de 2010: CORREIÇÃO PARCIAL. CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. OITIVA DA VÍTIMA MENOR DE IDADE. UTILIZAÇÃO DO MÉTODO DO DEPOIMENTO SEM DANO. Embora inexista obrigatoriedade na adoção do método do Depoimento Sem Dano para a inquirição de vítimas menores de idade, tanto não justifica, por si só, o indeferimento da postulação ministerial apresentada em primeiro grau. Na espécie, proceder à inquirição da ofendida, criança com sete anos de idade, mediante o referido método, valoriza a aplicação do princípio da busca da verdade real, que deve ser observado no processo penal a fim de que a prestação jurisdicional ocorra em sua integralidade. Ademais, o deferimento do pedido formulado pelo requerente encontra eco no ordenamento jurídico pátrio, que expressamente preconiza a necessidade de privilegiar a proteção integral das crianças e adolescentes. Inteligência do art. 227 da Constituição Federal e dos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.069/90. Precedentes. Por fim, a pretensão ministerial vem referendada pelo Conselho Nacional de Justiça, que editou recomendação aos Tribunais para a criação de serviço especializado para a inquirição de crianças e adolescentes vítimas de violência, nos mesmos moldes já existentes no Rio Grande do Sul (Recomendação nº 33/2010). CORREIÇÃO JULGADA PROCEDENTE, POR MAIORIA. (RIO GRANDE DO SUL, TJ/RS, julgado em 24/05/2014).

O Tribunal se manifestou favorável ao projeto depoimento sem dano, afirmando que este atende ao comando constitucional da proteção integral da criança, elencada no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, assim julgando o seguinte mandado de segurança: MANDADO DE SEGURANÇA. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. VIABILIDADE DA OITIVA DA VÍTIMA DE SEIS ANOS DE IDADE SOB A MODALIDADE “DEPOIMENTO SEM DANO”. PRECEDENTES DESTE TRIBUNAL.

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O método de oitiva da criança vítima de abuso sexual denominado “Depoimento sem Dano” baseia-se na concretização do preceituado no artigo 227 da Carta Magna, que dispõe sobre o Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. A aludida técnica visa a evitar o denominado “dano secundário” a que está sujeita a vítima pela revivescência, na polícia e em juízo, da experiência traumática de que padeceu. Trata-se de modalidade inovadora de investigação da verdade, de natureza multidisciplinar, com a presença do Juiz, advogados e de profissionais da área da psicologia, isto é, realizado sob os auspícios da ampla defesa e do contraditório, motivo pelo qual merece ser concedida a segurança. SEGURANÇA CONCEDIDA. POR MAIORIA. (RIO GRANDE DO SUL, TJ/RS, julgado em 19/04/2012). (grifou-se)

Do exposto, é possível constatar que a justiça gaúcha é pioneira em atender os comandos constitucionais dos artigos 227 e 228, tais quais preveem os direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Assim, através do depoimento sem dano, é possível concretizar os princípios do melhor interesse da criança e da proteção integral, garantindo a criança vítima de abuso sexual um mínimo de dignidade como pessoa em desenvolvimento que já sofreu danos irreparáveis, necessitando ser cuidada e protegida, não só pela família mas, também, pela sociedade e pelo estado.

4. Conclusão A partir da pesquisa realizada pode se constatar que crianças e adolescentes quando vítimas de abuso sexual passam a ter direitos fundamentais atingidos e violados, como por exemplo: o direito à saúde; o direito ao respeito e a dignidade; o direito à liberdade; e o direito à vida. Diante de todo o contexto pode-se afirmar que o abuso sexual é o tipo de violência que mais causa danos e sequelas na vida das vítimas. Se o diagnóstico de abuso sexual não for feito ou se as pessoas não acreditarem na vítima, as consequências podem ser ainda mais graves no desenvolvimento da personalidade da criança. Por esses motivos é que em muitos dos casos de abuso sexual fica difícil a comprovação do fato e desta forma cada vez mais se faz necessário que na fase de produção de provas, para que se aplique a justiça, o Estado esteja preparado para ouvir e inquirir as vítimas, em especial, crianças e adolescentes, levando sempre em consideração a proteção integral da criança, bem como sua condição como pessoa em pleno

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desenvolvimento e sua dignidade como pessoa humana em processo de formação da personalidade. Desta forma, o projeto depoimento sem dano aplicado pela justiça gaúcha surge como uma forma especial de proteger crianças e adolescentes durante a instrução processual, bem como auxilia no contexto probatório, que nos casos de abuso sexual, muitas vezes os vestígios do crime não podem ser detectados pelo laudo pericial, sendo insuficientes as provas para ensejar a responsabilidade do abusador, assim, necessária é a inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, porém, devendo ser conduzida de forma especial como realizada no projeto depoimento sem dano.

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SIMONE ANDREA SCHWINN E NAIRO VENÍCIO WESTER LAMB | 83

PROTEÇÃO INTERNACIONAL AOS DIREITOS HUMANOS: AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL E NA UNIÃO EUROPÉIA E SUA RELAÇÃO COM AS POLÍTICAS MIGRATÓRIAS BASEADAS EM POLÍTICAS DE SEGURANÇA

Simone Andrea Schwinn7 Nairo Venício Wester Lamb8

RESUMO Mesmo se tratando de um fenômeno antigo, as migrações, a partir do início do século XXI tem adquirido novas dinâmicas: desastres ambientais, conflitos armados, desemprego, a globalização, são alguns dos indutores desses novos fluxos migratórios. O Brasil tem recebido um número cada vez maior de migrantes vindos de países periféricos, além de receber refugiados de países em conflito armado. Já a União Europeia, a cada dia recebe mais migrantes vindos de países africanos, fugindo dos conflitos armados e da extrema pobreza. Em ambos os casos, os países tem adequado suas políticas migratórias no sentido de conter o maior influxo de migrantes que ultrapassam suas fronteiras, ignorando, no mais das vezes, a proteção internacional a qual estes indivíduos fazem jus. O resultado, é que as políticas migratórias estão intimamente ligadas às políticas de segurança, uma vez que o migrante é visto como uma ameaça à segurança e a paz pública dos países receptores, reforçando a visão securitária sobre as migrações, o que leva à necessidade de desmistificação dessa visão, através da adoção de uma política baseada nos direitos humanos dos migrantes.

Palavras-chave: Migrações Internacionais; Política migratória; União Europeia.

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Mestra em Direito pelo PPGD da Universidade de Santa Cruz do Sul-UNISC, Área de concentração Direitos Sociais e Políticas Públicas, linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, com Bolsa CNPq. Doutoranda pelo mesmo Programa na linha de pesquisa Diversidade e Políticas Públicas, com Bolsa PROSUP/CAPES. Integrante dos grupos de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, coordenado pela Profª Pós Dra. Marli M. M. da Costa e “Direitos Humanos”, coordenado pelo Prof. Pós Dr. Clóvis Gorczevski, todos vinculados ao PPGD da Unisc. Integrante do Grupo de Pesquisa Ciência Penal Contemporânea, coordenado pelo Prof. Dr. Tupinambá Pinto de Azevedo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. Integrante da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da UFRGS. Email: [email protected] 8 Especializando pela Escola de Administração - UFRGS. Bacharel em Direito pela UNISC. Advogado e Servidor Público. Email: [email protected]

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1. Introdução O objetivo do presente trabalho9 é analisar, de forma sucinta, as atuais políticas (ou práticas) migratórias do Brasil e da União Europeia e sua relação com as políticas de segurança nestes dois cenários, questionando sobre uma possível visão securitária desses fluxos migratórios e sua superação a partir da adoção de uma política alicerçada nos direitos humanos dos migrantes, tendo como elemento condutor a teoria política de Hannah Arendt. A presente pesquisa justifica-se pela atualidade do tema, uma vez que as migrações internacionais estão hoje na pauta das discussões, tendo em vista as novas dinâmicas observadas nos fluxos migratórios, onde países como o Brasil, que tradicionalmente não era destino de migrantes, passam a receber um número crescente de pessoas vindas de diferentes partes do mundo, por diferentes razões: dados do Ministério da Justiça e do IBGE dão conta de que número de imigrantes para o Brasil cresceu mais de 80%, entre os anos de 2002 e 2010. O número dos pedidos de refúgio cresceu 800% entre 2010 e 2014: as solicitações saltaram de 500 em 2010, para 5.200 em 2013, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados ACNUR. Na Europa, a cada dia chegam barcos carregados de pessoas vindas de países, sobretudo africanos, que buscam chegar ao litoral europeu para ingressar na União Europeia. O fato é que a política migratória nessa região tem dificultado tanto a entrada quanto a permanência dos migrantes nessa região, uma vez que, aos que conseguem ingressar em algum país europeu, as perspectivas não são alentadoras: ou são confinados em centros de imigrantes, ou são enviados de volta aos países de origem ou a um terceiro país ou, para os que conseguem se deslocar para algum país dentro da União Europeia, resta a clandestinidade. Para a presente pesquisa, necessária a caracterização não somente do fenômeno migratório, mas dos grupos que dele fazem parte, além da verificação dos instrumentos internacionais de proteção aos seus direitos. Também, parte integrante e fundamental do presente estudo, é a análise comparativa entre as políticas migratórias no Brasil e na

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O trabalho está vinculado às investigações dos grupos de pesquisa Direito, Cidadania e Políticas Públicas e Princípios de Direito Social no Constitucionalismo Contemporâneo, vinculados ao Programa Pós Graduação stricto sensu Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul-UNISC. Ainda, relaciona-se às investigações da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS.

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União Europeia, através do estudo das dinâmicas migratórias para estas duas regiões e as políticas ali adotadas e sua relação com as políticas de segurança, aliada ainda a posição de Corte Europeia de Direitos Humanos relativamente aos migrantes. Por fim, realizadas estas análises, se buscará responder à hipótese desta pesquisa, trabalhando com a desmistificação da figura do “estrangeiro” inimigo. Todo o trabalho será conduzido pela teoria política de Hannah Arendt, e suas interações com autores, tanto clássicos, como Michel Foucault, quanto autores contemporâneos que tratam do tema das migrações internacionais e sua interface securitária. Tal escolha se justifica pela atualidade de sua obra, cuja teoria política se aplica perfeitamente à situação dos migrantes internacionais, podendo ser considerados um grupo vulnerável e carente de proteção estatal e cuja participação política na sociedade resta prejudicada, quando não suprimida, justamente por sua condição de estranho àquela comunidade.

2. Sobre migrações e migrantes: alguns conceitos Ao tratar das perplexidades dos direitos do homem na obra As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt (1989, p. 335), alerta para a insistência dos Estados nações na homogeneidade étnica, que desperta desconfiança, discriminação e um ódio silencioso, já que a diferença não é algo que possa simplesmente ser alterado pelo homem: “O “estranho” é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si, da individualidade em si, e evoca essa esfera onde o homem não pode atuar nem mudar e na qual tem, portanto, uma definida tendência a destruir.” Se um negro numa comunidade branca é considerado nada mais do que um negro, perde, juntamente, com o seu direito à igualdade, aquela liberdade de ação especificamente humana: todas as suas ações são agora explicadas como conseqüências [sic] “necessárias” de certas qualidades do “negro”; ele passa a ser determinado exemplar de uma espécie animal, chamada homem. Coisa muito semelhante sucede aos que perderam todas as suas qualidades políticas distintas e se tornaram seres humanos e nada mais (ARENDT, 1989, p. 335).

Cria-se assim uma “zona de exclusão” onde se identificam, e muitas vezes, se afirmam as diferenças, para justificar a não participação do outro, nos mesmos espaços. A situação acima, trazida por Arendt, mesmo a autora se referindo especificamente aos apátridas, pode ser estendida a todos os migrantes em diferentes

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partes do mundo: vítimas de preconceito por estarem em um lugar que não lhes pertence, são excluídos da vida política e social dos países aonde julgavam poderiam ser acolhidos. A migração é um fenômeno antigo, ocorrendo com intensidade e frequência variadas ao longo da história. Grimson (2011, p. 36) assevera que não há que se falar em “época de imigrações”, uma vez que se trata de um fenômeno comum na história da humanidade. Basta voltar olhar para o final do século XIX e início do século XX, por exemplo, onde as migrações transatlânticas tiveram impacto decisivo para a formação de diferentes sociedades, bem como olhar para os processos de urbanização, ou voltando mais ao passado para as diásporas, para perceber que as migrações estão presentes em diferentes épocas da história humana. De qualquer forma, é preciso alertar para a mudança na dinâmica das migrações: hoje o mundo está atravessando um período histórico onde o número de refugiados é o maior desde a Segunda Guerra Mundial, devido a conflitos internacionais. O número de deslocados ambientais aumentou drasticamente devido ao aquecimento global, sendo que em 2008 eram 20 milhões de pessoas nessa condição. Suas causas são de ordem diversa: globalização, as questões demográficas de determinados países e regiões, violação de direitos, desemprego, perseguições devido à discriminação, xenofobia, o tráfico de pessoas, a desigualdade econômica entre diferentes regiões do planeta, a busca por trabalho e por melhores condições de vida e segurança, catástrofes ambientais, aquecimento global, a violência, enfim, não há um só motivo que leva milhares de pessoas a deixar seu lugar de origem. Dados de 2010 dão conta de que uma em cada seis pessoas no mundo é migrante, contabilizadas as migrações internas e as internacionais, ou seja, são 214 milhões de migrantes internacionais e, pelo menos, 740 milhões de migrantes internos. Frise-se que este número pode ter aumentado significativamente nos últimos dois anos em razão dos conflitos no Oriente Médio e em parte da Europa (IMDH, 2014m online). Para Winckler (2001, p. 121) esses migrantes são “pessoas deslocadas”, que muitas vezes, devido à sua condição, “não encontram um lugar no mundo onde possam existir dignamente. Não possuem um status político que lhes possibilite ser tratados pelos demais como semelhantes.” Isso demonstra a complexidade de um fenômeno com diversas implicações, seja para aqueles que se deslocam, seja para os países que os recebem. De forma genérica, a Organização Internacional para Migrações-OIM (online) caracteriza a migração enquanto o termo utilizado para descrever o movimento de

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pessoas, com o atravessamento de fronteiras, internacionais ou internas, pelas mais diversas razões, incluindo-se aí as migrações por motivo de coação, seja por ameaça à vida e a subsistência, ou devido a causas naturais ou humanas10 Desse fenômeno fazem parte diferentes categorias, como a migração assistida, a circular, a clandestina, a migração de retorno, a coletiva ou em massa e a individual, a espontânea e a forçada, a migração regular e irregular, a migração interna e a internacional, a laboral, a secundária e a migração total ou líquida. O que difere todas estas categorias, é a motivação do migrante, que pode tanto ter sido espontânea, com um objetivo claro, como no caso do trabalho, como a forçada, como no caso dos refugiados, vítimas de algum tipo de perseguição em seu Estado (OIM, 2009)11. Para Grimson (2011, p. 35) a classificação dos movimentos territoriais tem consequências profundas sobre as políticas públicas e as decisões das agências internacionais, que por isso mesmo devem atender as particularidades de contextos sumariamente diversos. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR entende que migrante é todo aquele que se desloca de seu país para outro de forma voluntária, sendo que quando este movimento ocorre de forma forçada, trata-se de refúgio. Ou seja, refugiados são todos aqueles forçados a sair de seu país de origem por fundado temor de perseguição, devido à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, de acordo com a Convenção da Organização das Nações Unidas – ONU de 1951sobre refugiados (ACNUR, 2014, p. 6-9). No âmbito das migrações encontram-se ainda os chamados deslocados internos, que não ultrapassam fronteiras internacionais, mas deslocam-se dentro de seu próprio país, por motivos semelhantes aos refugiados, permanecendo porém sob a responsabilidade de seu governo (muito embora na maioria dos casos seja justamente este governo a causa da fuga). Sua proteção está prevista em tratados internacionais de Direitos Humanos e de Direito Humanitário. Originariamente, o ACNUR não amparava deslocados internos, mas, em função das características desses deslocados (muito parecidos com os refugiados) e pela competência da agência em deslocamentos, este grupo de pessoas também passou a contar com a proteção do ACNUR que cuida de sua proteção nos campos de refugiados (ACNUR, 2014, p. 8).

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Sobre migrações internacionais ver ZOLBERG, A. R. A Nation by Design - Immigration Policy in the Fashioning of America. New York: Russell Sage Foundation, 2006. 11 Questiona-se: países vitimados por desastres ambientais, graves epidemias e pobreza extrema, não gerariam migrações forçadas, além das previstas para o refúgio?

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Existe ainda um outro grupo de pessoas, 12 milhões em todo mundo, que também conta com a proteção do ACNUR: os chamados apátridas. Mesmo que possam ser refugiados, importante frisar que se tratam de categorias distintas: apátrida é todo aquele que não possui vínculo de nacionalidade com Estado algum, por arbitrariedade estatal ao não reconhecê-los na legislação interna, ou por não haver consenso sobre qual o Estado que deva reconhecê-los (ACNUR, 2012, p. 3). Duarte (2000, p. 45) observa que “os apátridas compartilham do trágico destino dos seres humanos que, por não contarem com a proteção das leis ou de qualquer acordo político, não são mais do que meros seres humanos”, condição que para Hannah Arendt (1989, p. 329), afeta diretamente os direitos humanos dessa população, e que ultrapassa inclusive o direito da igualdade perante a lei, já que para eles, não existem mais leis. Quando há possibilidade, o ACNUR trabalha com a repatriação, para que os refugiados possam voltar a seu país de origem: são os chamados retornados. Cabe salientar que para isso aconteça, o retorno deve ser voluntário, com a garantia da segurança e dignidade para os até então refugiados e o monitoramento do ACNUR para que esta seja uma solução duradoura, que pode ser de três tipos: a repatriação voluntária, a integração local e o reassentamento em um terceiro país, neste último caso, quando inexista a possiblidade de permanência no país onde se encontra o refugiado e na impossibilidade da repatriação (ACNUR, online). Outro instituto que diz respeito às migrações é o asilo. Segundo Barreto (online) o instituto do asilo está dividido em duas modalidades: o asilo territorial e o asilo diplomático, que constituem o chamado asilo político. Por asilo territorial, entende-se a discricionariedade de um Estado de atender à solicitação, desde que feita em local de sua jurisdição, dependendo ainda de legislação interna que o preveja. Já o asilo diplomático é aquele concedido em extensões do território dos países, como embaixadas, navios e aviões com a bandeira do Estado. A concessão de asilo diplomático não implica necessariamente a de asilo territorial. Jubilut (2007, p. 39) observa que a maioria dos doutrinadores afirma que o asilo é restrito à América Latina, uma vez que os dispositivos sobre o instituto encontram-se em documentos regionais que tratam do tema. Na Europa os solicitantes de refúgio são comumente chamados de asylum seekers, em aparente confusão de institutos. Neste cenário complexo, importa voltar o olhar aos fluxos migratórios mistos, que se referem aos movimentos populacionais complexos, onde se incluem diferentes tipos de migrantes, entre refugiados, solicitantes de asilo, migrantes econômicos, além

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de outros grupos de migrantes (OIM, 2009). Chama-se a atenção para complexidade desses fluxos, dos quais fazem parte crianças desacompanhadas e separadas e pessoas que acabam por se tornar alvo de tráfico de migrantes, uma vez que estão em fuga de seus países por motivos diversos, que incluem a pobreza e a exclusão social, e a busca por melhores condições de vida (MURILLO, 2008, p. 25/26). Percebe-se assim, a complexidade do fenômeno das migrações, cujos diferentes grupos gozam de proteção internacional, como se verá a seguir.

3. Proteção aos migrantes na esfera internacional No que diz respeito à proteção desses migrantes, na esfera internacional esta está ligada à proteção aos direitos humanos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra em seu artigo 13, § 2 que “Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”, e ainda, o artigo 14, § 1 traz que “Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.” O artigo 15, § 1 da Declaração, garante que “Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade” (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 296). Ainda, existem diferentes tratados referentes à nacionalidade, apatridia e refúgio, como a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967; a Convenção Relativa ao Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção Relativa à Redução dos casos de Apatridia de 1959; a Declaração sobre os Direitos Humanos dos indivíduos que não são nacionais do país em que vivem de 1985; a Declaração sobre Asilo territorial de 1967 e o Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados de 1950 (BITTAR; AMEIDA, 2010). Podem ainda ser citados os Tratados Regionais e as legislações nacionais para proteção às diferentes formas de migração humana. Por outro lado, salienta-se que, em razão do aumento considerável dos conflitos armados em diferentes regiões, existe uma relação também com o Direito Humanitário, que remete às Convenções de Haia, de Genebra e de Nova Iorque. No âmbito das fontes do direito internacional dos direitos humanos, além dos tratados, devem ainda ser considerados o costume internacional, os princípios gerais do direito, as decisões judiciárias e a doutrina (JUBILUT, 2007). No ano de 2002, o Secretário Geral das Nações Unidas, em relatório distribuído à Assembléia Geral, afirmou que acreditava ser o momento de lançar um olhar mais

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abrangente e compreensivo sobre as diferentes dimensões da questão da migração, que envolve milhares de pessoas e afeta países de origem, trânsito e destino. Ressaltou a necessidade de uma melhor compreensão sobre as causas dos fluxos internacionais de pessoas e sua complexa inter-relação com o desenvolvimento (UNITED NATIONS, 2002, p. 10). Essa afirmação revela a preocupação das Nações Unidas para o fenômeno das migrações, que havia adotado ainda em 1990 a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, mas que somente entrou em vigor em 2003, sendo que, até o momento, apenas 47 países aderiram a ela. Para Flávia Piovesan (2013, p. 141), tendo no horizonte o crescimento do fenômeno migratório e de seus impactos, a Convenção objetiva a harmonização de condutas dos Estados, com a acolhida de princípios fundamentais no que diz respeito aos trabalhadores migrantes e suas famílias e seu tratamento e consagrando a proteção internacional dos direitos desses migrantes, tendo em vista a situação de vulnerabilidade em que comumente se encontram. A Convenção consagra ainda o princípio da não discriminação em seu artigo 7º: Artigo 7º: Os Estados Partes comprometem-se, em conformidade com os instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos, a respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todos os trabalhadores migrantes e membros da sua família que se encontrem no seu território e sujeitos à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, religião ou convicção, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, nacionalidade, idade, posição económica, património, estado civil, nascimento ou de qualquer outra situação NAÇÕES UNIDAS, online).

Aliás, este princípio parece estar em foco no atual momento dos fluxos migratórios internacionais: com o aumento da entrada de estrangeiros nos países europeus, aliado à crise econômica mundial, o que se presencia é um fortalecimento nas agendas políticas dos partidos de plataformas racistas e xenófobas, cujo pretexto é o combate ao terrorismo e a imigração ilegal e a defesa do nacionalismo. No Brasil, com a entrada de milhares de haitianos pelo estado do Acre a partir de 201012, e, mais recentemente com um maior influxo de estrangeiros vindos especialmente de países

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Sobre a imigração haitiana para o Brasil, vale a leitura do texto Wout, raketè, fwontyè, anpil mizè: reflexões sobre os limites da alteridade em relação à imigração haitiana para o Brasil, escrito pelos professores Marília Pimentel e Geraldo Castro Cotinguiba, da Universidade Federal de Rondônia.

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africanos, se proliferam os discursos discriminatórios. Aliado a isso, as práticas governamentais de tratar a questão da imigração como problema, sem uma política migratória definida, acaba por marginalizar ainda mais um numeroso contingente de pessoas com língua e cultura diferentes.13 Cabe salientar ainda, no âmbito dos Estados Americanos, a atuação da Organização dos Estados Americanos-OEA, na proteção aos direitos humanos dos migrantes. Exemplo disso é a opinião Consultiva de número 18/03, sobre os direitos dos trabalhadores indocumentados: o parecer faz menção ainda à responsabilidade dos Estados com relação às obrigações na determinação de políticas migratórias à luz dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, lembrando que “ao ratificar ou aderir a um tratado internacional, os Estados manifestam seu compromisso de boa fé de garantir e respeitar os direitos nele reconhecidos. Além disto, os Estados devem adequar seu direito interno ao Direito Internacional aplicável” (BRASIL, 2014). Em apertada síntese, a Corte Interamericana de Direitos Humanos- CIDH, por unanimidade, proferiu parecer no sentido de referendar o dever dos Estados no respeito e garantia aos direitos fundamentais, devendo para isso, adotar medidas que não restrinjam esses direitos; que o princípio da igualdade e não discriminação integra o Direito Internacional sendo aplicável a todos os Estados, independente de ter aderido a determinado tratado internacional; que o respeito aos direitos humanos pelos Estados independe do status migratório das pessoas, devendo ser garantido o devido processo legal; que os direitos humanos trabalhistas dos trabalhadores migrantes devem ser respeitados e protegidos, independente da condição de regularidade desses indivíduos e “que os Estados não podem subordinar ou condicionar a observância do princípio da igualdade perante a lei e de não discriminação à consecução dos objetivos de suas políticas públicas, quaisquer que sejam estas, incluídas as de caráter migratório” (BRASIL, 2014). 13 Em maio de 2014, o ultradireidista francês Jean- Marie Le Pen declarou que o vírus ebola poderia resolver o problema da explosão populacional mundial e, em consequência, da imigração ilegal para a Europa. No Brasil, não são raras as manifestações de preconceito contra os imigrantes haitianos, senegaleses e ganeses: “vieram tirar nossos empregos”; “trazem doenças”, são declarações comuns. O jornalista gaúcho Políbio Braga, em um vídeo divulgado no youtube declarou que os imigrantes ganeses que vieram para o Brasil durante a Copa do Mundo de 2014 e por aqui ficaram, são “mão de obra sem qualificação” e “além disso são muçulmanos”; o jornalista segue dizendo que “nós já temos problemas demais para incorporar um novo problema”; “migração de mão de obra que venha a contribuir ou de gente que tenha dinheiro que venha para cá para contribuir com o desenvolvimento do Brasil, muito bem. Bom nível de escolaridade, como bom dinheiro...” E arremata: “esses ganeses e haitianos que estão vindo para o Brasil, são forças humanas que vem para cá jogar as coisas para baixo” Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F42wx5VzwAk. Vídeo publicado em 16 de julho de 2014.

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Este parecer representou um marco na proteção dos migrantes nos Estados membros da OEA, sendo que a CIDH tem condenado as práticas violatórias aos direitos humanos dos migrantes tendo como exemplo a condenação da República Dominicana no caso Crianças Yean e Bosico vs. República Dominicana, sentença de 2005, e o caso Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana, sentença de 2012. Ainda, a condenação do Panamá, no caso Vélez Loor vs. Panamá, sentença de 2010 (BRASIL, 2014). Na União Europeia, é a Corte Europeia de Direitos Humanos a responsável pela proteção aos migrantes: a Corte tem se posicionado em diversos casos, com matérias distintas, como proibição da escravidão e trabalho forçado, direito à liberdade e segurança pessoal, direito de reunião, proteção da família e princípio do non refoulement. Os casos Hirsi Jamaa e outros vs. Itália sentença de 2012; Cisse vs. França sentença de 2002; caso Silidian vs. França sentença de 2005, são alguns exemplos.14

4. Migrações na União Europeia e no Brasil: as políticas migratórias e sua vinculação com as políticas de segurança A migração, ou o deslocar-se de um ponto a outro, exige do migrante muito mais do que o mero desejo de se mover: mesmo quando se trata de algo planejado, significa a adaptação à uma nova cultura, um idioma diferente, uma dinâmica de vida nova. A isto Hannah Arendt chamaria de natalidade, ou seja, a ação que provocou um novo começo, o início de algo novo. Assim, frisa a autora que, a condição humana representa tudo aquilo ao que o homem é condicionado, ou seja, todos os elementos com os quais ele entra em contato, se transformam em sua condição de existência (ARENDT, 1999, p. 17). O que aparentemente está em conflito com o desejo, ou a necessidade, dessa natalidade no contexto das migrações, é o respeito ou a aceitação da pluralidade, que “é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (ARENDT, 1999, p. 16). Trata-se de um pressuposto perigoso para os que não aceitam a igualdade como condição da relação entre homens ou entre povos, uma vez que pode

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Todos os casos podem ser acessados http://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=home.

na

página

da

Corte

Europeia

na

internet:

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levar a situações como as descritas anteriormente, com traços fortemente racistas e excludentes do outro, do diferente. Wincker (2001, p. 119) observa que traços como a volta do racismo e da xenofobia como elementos centrais da unidade nacional europeia, a atenção às políticas para estrangeiros, “o ressurgimento dos campos de internamento para imigrantes e refugiados nas fronteiras e o surgimento em massa de pessoas que estão à margem da proteção dos direitos humanos”, são os mesmos trazidos por Hannah Arendt em sua análise sobre os regimes totalitários. É possível falar então em novas formas de segregação e agressão a estrangeiros, em um movimento que se espalha por vários países da União Europeia, inclusive naqueles com percentuais reduzidos de população imigrante, como é o caso da Espanha. Para Rodriguez (2014, online) alardear a discriminação contra os outros durante anos, instrumentalizar a imigração para desviar a atenção dos desmandos governamentais, tem sido a estratégia de vários governos europeus nestes últimos anos. Em 2012, o então ministro do interior da França, Manuel Valls, ordenou que os acampamentos de ciganos fossem desfeitos e que seus ocupantes fossem expulsos da França, sob a alegação de que “tem modos de vida extremamente diferentes” e que geravam “mendicância e delinquência”. Apesar das críticas recebidas, pouco depois Valls acreditava ter expulso 5000 ciganos do país e assegurava, sem pudor algum, que os índices de delinquência haviam caído graças a isso. Na Alemanha e em outros países do norte europeu tem aumentado o racismo institucional contra a migração pobre do sul da Europa (ou seja, contra os próprios europeus). Bélgica e Suíça representam os precedentes mais duros em matéria migratória e tem se dedicado a defender o reforço da fortaleza europeia para excluir “os de fora”, para proibir sua entrada, criar um inimigo externo para culpar pelos males criados e impulsionados por um poder interno (RODRIGUEZ, 2014, online). Na Espanha são criados centros de internação para estrangeiros, onde se prendem pessoas pelo simples fato de não ter documentos e expulsão de pessoas sem considerar seu direito de asilo, maus tratos e ataques racistas. Tanto o poder político como os diferentes meios de comunicação tem contribuído para apoiar medidas semelhantes, com títulos e chamadas alarmistas e termos como “avalanche”, “perigo”, “invasão” ou “desestabilização”, quando não há maior desestabilização para as pessoas do que as medidas de austeridade aplicadas pelos diferentes governos (RODRIGUEZ, 2014, online).

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Percebe-se aí uma clara relação entre migração e segurança: os imigrantes são tratados como uma ameaça à segurança dos países e não do ponto de vista do direito, como detentores de direitos15. Aliás, para Deisy Ventura (2014) notadamente são três os paradigmas da migração: do direito, do mercado e da segurança. No primeiro caso, os imigrantes são tidos como sujeitos de direitos, com garantias na esfera internacional, que gozam de proteção estatal e contam com o apoio da sociedade civil. No segundo caso, o mercado, o imigrante aparece enquanto consumidor e mão de obra especializada: os países abrem as portas para o migrante que não representa uma ameaça, que possa consumir e trabalhar, uma vez que tem condições (financeiras e de qualificação) para tanto. Para aqueles que não tem essas condições, mas que procuram um país diferente do seu para trabalhar, em busca de melhores condições de vida, resta o subemprego.16 É a transformação, na concepção arentiana, do homo faber em animal laborans, da liberdade de ação, à refém da necessidade de sua existência (ARENDT, 1999, p. 157). Em relação ao terceiro paradigma, os migrantes são tratados como uma ameaça à segurança dos países receptores, que fecham fronteiras, restringem seu direito de locomoção e impõe inclusive, legislações rigorosas para “controle” dessa população sendo que, não raro, migrantes são devolvidos aos seus países de origem.17 Este é o entendimento de Canales (2013), para quem, na última década, tem se consolidado uma análise da migração internacional com um enfoque na segurança nacional dos países receptores. Não por acaso, neste período tem ganhado força as posições políticas conservadoras que defendem a criminalização dos migrantes indocumentados e que impulsionam várias políticas de controle migratório, incluindo a construção de muros 15

Sobre a relação migrações forçadas e segurança, ver MCADAM, Jane (org.). Forced Migration, Human Rights and Security. Portland: Hart Publishing, 2008. 16 No Brasil, segundo o Ministério do Trabalho, há uma estimativa de que existam cerca de 300 mil bolivianos, 70 mil paraguaios e 45 mil peruanos somente na região metropolitana do estado de São Paulo, a maioria sujeita à condições de trabalho análogas a de escravo. O Brasil é o único país do Mercosul que não ratificou a Convenção sobre a Proteção dos Trabalhadores Migrantes e Membros de sua Família. 17 Contribuiu para isso a chamada “guerra ao terror”, termo cunhado pelos norte americanos após os ataques de 11 de setembro. Esta guerra ao terror acabou por se espalhar também para a Europa, que passou a ter controles mais rígidos sobre a entrada e saída de estrangeiros em seu território, adotando uma política de securitização das migrações. Uma das medidas foi a criação, em 2004 da Frontex,- Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia, pelo Regulamento 2007/2004, com o objetivo de melhorar a gestão integrada das fronteiras externas da União Européia, melhorar e eficácia na luta contra o terrorismo, a imigração clandestina e o trafico de seres humanos. Sobre o tema ver ainda: Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu relativa a uma política comum em matéria de imigração clandestina (COM(2001) 672) e Convenção de Schengen que contém as disposições gerais relativamente à entrada nos países da União Europeia para uma estada que não exceda três meses, as obrigações dos Estados-Membros no âmbito do controle, a responsabilidade dos transportadores e o Sistema de Informação Schengen(SIS) (UNIÂO EUROPEIA, online).

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para barrar a imigração, bem como políticas de deportação e retenção de migrantes, além da disseminação de centros de detenção e retenção de imigrantes. Essa é a realidade da Europa, mas o Brasil também trata a questão dos imigrantes como um problema de segurança. O Estatuto do Estrangeiro, a Lei 6815/1980, em vigor ainda hoje, remete ao acervo autoritário da ditadura civil militar brasileira e está alicerçado na doutrina de segurança nacional. O Projeto de Lei de número 5655/2009 apresentado pelo Ministério da Justiça para alteração da lei, mantêm o paradigma da segurança nacional. Os artigos 106 e 107 da referida lei, proíbem a atividade política pelo estrangeiro e o artigo 110 dá ao Ministro da Justiça a prerrogativa de proibir a reunião de estrangeiros. Nas palavras de Deisy Ventura (2014) esse dispositivo legal dá ao Estado total discricionariedade sobre a condição do estrangeiro, com uma visão baseada no dueto segurança/insegurança. Lembra a autora que as pessoas cosmopolitas, que circulam livremente, são pessoas que se auto protegem, não necessitando da ajuda o Estado. Já os imigrantes, sobretudo os ilegais e refugiados, ou seja, os forçados são extremamente vulneráveis, fazendo com que a proteção estatal seja condição para uma vida digna. Ademais, o Brasil não possui uma política migratória18, apresentando uma série de leis e dispositivos esparsos, editados isoladamente e que respondem a questões pontuais para regular a condição do estrangeiro no país. Não que se possa falar em política de criminalização19, com detenções e expulsões sumárias, a exemplo da Europa, mas a visão da sociedade sobre os migrantes tem essa conotação, e o próprio migrante sente-se nessa condição: após a denúncia de trabalho escravo praticado por uma rede internacional de lojas de vestuário, disseminaram-se notícias de crimes de autoria de estrangeiros, mesmo que banais. Algumas inclusive veiculavam a ideia de que os

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Entende-se por Política Migratória o conjunto de ações governamentais para regulação da entrada, permanência e saída de estrangeiros do território nacional, além de ações com vistas a regular a manutenção dos laços entre o Estado e seus nacionais, residentes no exterior. Sobre políticas migratórias ver ZOLBERG, A. R. A Nation by Design Immigration Policy in the Fashioning of America. New York: Russell Sage Foundation, 2006. 19 Sobre criminalização das migrações ver STUMPF, Juliet. The crimmigration crisis: immigrants, crime and sovereign power. Disponível em: . Acesso em 09 out. 2014. A autora, ao tratar da questão da imigração nos Estados Unidos, refere que o ano de 2006 marcou um ponto de viragem no futuro da imigração: o debate nacional restou polarizado entre os defensores da legalização da população de imigrantes indocumentados e aqueles que defendiam o uso do poder do Estado para reprimir a população "ilegal". Os legisladores escolheram a segunda opção.

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imigrantes latino- americanos faziam do centro da cidade de São Paulo um lugar inseguro (VENTURA, 2014).20 Essa condição afeta diretamente a vida activa dos imigrantes: diante de uma nova cultura, uma nova língua, longe de suas raízes, em situação de total vulnerabilidade, sem a proteção do Estado, onde “difunde-se a ideia de que os imigrantes tiram dos nacionais os postos de trabalho, sobrecarregam os serviços sociais e põem em risco a segurança das pessoas” (WINCKLER, 2001, p. 120), resta ameaçada a sua cidadania. Para Winckler (2001, p. 121) privar os migrantes de sua cidadania afeta de forma substancial sua condição humana, pois mesmo quando recebem vistos de residência e trabalho, que costumam ser provisórios, encontram grandes dificuldades de integração na vida social e política. Hannah Arendt (2004) observa que a política é uma necessidade imperiosa ao ser humano, tanto para a vida do indivíduo, quanto para a sociedade. Na medida em que o homem depende de outros para sua existência, a política tem como tarefa e objetivo a garantia da vida em um sentido mais amplo. Dessa forma, para Arent, a política tem uma estreita relação com a ideia de liberdade, que vai além da faculdade de ir e vir, alcançando a vida política. Celso Lafer (1979, p. 32) ao analisar a obra de Hannah Arendt, assevera que a constituição de um espaço público que permita “a palavra viva e a ação vivida, numa unidade criativa e criadora”, significa a constituição de um diálogo plural entre liberdade e política, onde a liberdade se efetiva na participação democrática do espaço público, tanto por meio da palavra quanto por meio da ação. Em sendo este espaço frágil e a verdade nele contida, factual e também frágil, abre-se espaço para a ideologia, a mentira, a propaganda que visa reescrever a história a posteriori, fenômenos que comprometem a verdade dos fatos. É nesta condição que se encontram os imigrantes: privados de sua cidadania, uma vez que lhes é negada a participação política, e vítimas de verdades artificiais, propagadas por sistemas excludentes, que dominam o espaço público. No Brasil, por exemplo, existem 1,7 milhões de imigrantes registrados na Polícia Federal. Por força do artigo 14 da Constituição de 1988, estes imigrantes que vivem no Brasil, muitas vezes à décadas, estão excluídos do processo eleitoral (MIGRAMUNDO, online).

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Sobre a reação da sociedade à chegada de imigrantes à procura de trabalho, ver reportagens televisivas: Programa Profissão Repórter: Profissão Repórter mostra jornada de refugiados que chegam ao Brasil exibido em 03 de junho de 2014; Fantástico: Milhares de estrangeiros buscam oportunidades no Brasil exibido em 17 de agosto de 2014 e a série Os Novos Imigrantes disponíveis na página da internet do Jornal Zero Hora.

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Na América Latina o voto aos migrantes já foi reconhecido por Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, México e Peru (VENTURA, 2014). Estes podem ser considerados elementos do que Hannah Arendt chama de anti - semitismo moderno: o inimigo interno e a mentira. Trata-se de uma atitude suspeita generalizada, “sustentada pelo uso da mentira que desfigura os fatos para ajustá-los às necessidades do poder” (LAFER, 1979, p. 25). Os imigrantes, neste momento, são o “bode expiatório”, e mesmo sendo vítimas de flagrantes injustiças, isso não lhes tira a responsabilidade pela própria condição. O componente aqui é a arbitrariedade na escolha das vítimas: elas são objetivamente inocentes e selecionadas sem que se considere o que fizeram ou não (ARENDT, 1989, p. 26). Ventura (2014) afirma que “a migração fez-se de bode expiatório da profunda crise econômica em curso e grande trunfo dos partidos de direita.” Desta maneira, governos tratam de “construir” verdades sobre os imigrantes, sendo estas, nas palavras de Foucault (2007) “um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”, interligada, portanto, aos sistemas de poder, responsáveis por sua produção e manutenção. Para Hannah Arendt, a mentira sempre foi considerada como um instrumento necessário e legítimo, seja na profissão política, como na de homem de estado, o que a leva a questionar: Será da própria essência da verdade ser impotente e da própria essência do poder enganar? E que espécie de realidade possui a verdade se não tem poder no domínio público, o qual, mais do que qualquer outra esfera da vida humana, garante a realidade da existência aos homens que nascem e morrem - quer dizer, seres que sabem que surgiram do não-ser e que voltarão para aí depois de um breve momento? Finalmente, a verdade impotente não será tão desprezível como o poder despreocupado com a verdade? Estas são questões embaraçosas, mas que as nossas convicções correntes sobre a matéria necessariamente suscitam (ARENDT, 2001).

Enquanto na Europa as políticas migratórias são cada vez mais duras, no sentido de controlar os fluxos migratórios de entrada e circulação de pessoas dentro dos países da União Europeia, no Brasil as discussões avançam. Por solicitação do Ministério da Justiça, foi criada uma Comissão de Especialistas para elaborar um Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil. Para a redação do anteprojeto, foram realizadas reuniões da Comissão com representantes de órgãos de governo e de instituições internacionais, parlamentares, especialistas e acadêmicos

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convidados. Ainda, foram promovidas duas Audiências Públicas com a participação de entidades sociais e da cidadania, e reuniões em diferentes regiões do país, sendo que uma primeira versão do projeto foi apresentada entre março e abril de 2014, e discutida em audiência pública (BRASIL, online). Baseado nessa primeira versão, a Comissão recebeu diversas contribuições de entidades públicas e sociais, e individuais de imigrantes e especialistas e, ainda, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. A Comissão também reconheceu as recomendações da 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio, realizada entre maio e junho de 2014 (BRASIL, online). As principais características do Anteprojeto são: Abandono do Estatuto do Estrangeiro, primariamente por necessidade de compatibilidade com a Constituição Federal e com os tratados internacionais de Direitos Humanos vigentes; Mudança de paradigma na política migratória, atualmente subordinada à lógica da segurança nacional e controle documental voltado ao acesso de mercado de trabalho; Abandono da tipologia “estrangeiro”, que tem conotação pejorativa; “migrantes” incluem os brasileiros que deixam o país; Incorporação de reivindicações da sociedade civil como a criação de um órgão estatal centralizado para atendimento aos migrantes, em especial para regulamentação; Brasil é um dos únicos países no mundo sem serviço especializado de migrações; Adaptação legislativa à realidade de mobilidade humana e globalização econômica (BRASIL, online).

O Anteprojeto é um mecanismo de direitos humanos e não de segurança nacional e a criação de uma autoridade nacional migratória, retirando a responsabilidade dos órgãos governamentais, que terceiriza o trabalho burocrático, é um avanço para a superação do “alto grau de restrição e burocratização da regularização migratória.” Além disso, supera a “discricionariedade absoluta do Estado, a restrição dos direitos políticos e da liberdade de expressão, além de explícita desigualdade em relação aos direitos humanos dos nacionais” (VENTURA; REIS, 2014). Cabe a lembrança de que é conhecida a implicação tradicional entre nacionalidade e cidadania, assim como também são conhecidos os critérios baseados na descendência e lugar de nascimento para estabelecer a nacionalidade e, em consequência, os direitos das pessoas. No entanto, tanto os processos de construção de bloqueios regionais como as realidades de cidades interculturais colocam em questão essa simples

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implicação. Se a nacionalidade está associada a pertencimento, a cidadania se associa a direitos e obrigações e, dessa forma, o horizonte de uma sociedade realmente democrática e igualitária exige retomar um dos critérios menos utilizados pelos Estados: o lugar de residência. Este lugar tem outorgado – inclusive em diversas legislações – direitos, mas ainda distante de uma noção de democracia como o governo de todos aqueles que vivem juntos (GRIMSON, 2011, p. 42). Para Grimson (2011, p. 43), a noção de “estrangeria” enquanto forma de amputar direitos, tem levado alguns países, a outorgar direitos políticos, na melhor das hipóteses, à metade da população. Mas, um futuro mais democrático, requer um mundo menos desigual e territórios nos quais tenham direitos políticos os que neles trabalham, vivem e cumprem com suas obrigações. É preciso ainda, rever a noção clássica de soberania estatal, onde o Estado tem direito sobre a vida e a morte dos indivíduos, o que, para Foucault (1999, p. 286) significa que o soberano pode “fazer morrer e deixar viver”, ou seja, é o poder do Estado, que faz com que o indivíduo, o súdito, em relação a este poder, não seja nem vivo nem morto, mas neutro, o que faz com que a vida e a morte dos súditos apenas se tornem um direito “pelo efeito da vontade soberana.” Para Habermas (2007, p. 174), esse conceito de soberania concorre diretamente com o desenvolvimento da proteção internacional dos direitos humanos, uma vez que o clássico princípio da não intromissão “foi minado nas últimas décadas, mormente pela política dos direitos humanos.” Nessa mesma linha, Cançado Trindade (1991) assevera que, no que diz respeito à evolução dos mecanismos internacionais de proteção à pessoa humana, a reciprocidade é suplantada pela noção de garantia coletiva e pelas considerações de ordre public. Tais tratados incorporam obrigações de caráter objetivo, que transcendem os meros compromissos recíprocos entre as partes. Voltam-se, em suma, à salvaguarda dos direitos do ser humano e não dos direitos dos Estados, na qual exerce função-chave o elemento do 'interesse público' comum ou geral (ou ordre public) superior. Toda a evolução jurisprudencial quanto à interpretação própria dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontra-se orientada nesse sentido. Aqui reside um dos traços marcantes que refletem a especificidade dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos.

Com essa evolução dos direitos humanos na esfera internacional, capaz de rever o conceito de soberania estatal, advém um princípio fundamental como critério de organização do Estado-nação: a isonomia. Hannah Arendt chega a conclusão de que a

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afirmação contida no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não é verdadeira. Dizer que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” é uma inverdade na medida em que os indivíduos tornam-se iguais enquanto membros de uma coletividade, em razão de “uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais”, ou seja, a igualdade não é um dado, mas sim uma construção conjunta dos homens, organizados em uma comunidade política. Existe assim, uma indissolubilidade entre o direito fundamental individual de autodeterminação política do cidadão, em conjunto com seus concidadãos, manifestada no exercício dos direitos políticos conjuntamente com a autodeterminação da comunidade, o que acarreta a construção da igualdade (LAFER, 1988, p. 150).

5. Conclusão As migrações de seres humanos entre diferentes países se perdem no tempo. Este fenômeno apresenta muitas implicações, tanto para os migrantes que deixam seus países, de forma voluntária ou forçada, perdendo suas referências e sofrem para se adaptar a uma nova cultura, reduzidas a “displaced persons” nas palavras de Hannah Arendt, quanto para os países que os recebem, que, ou não tem uma política definida para a inserção desta população ou tem políticas insuficientes, que não abarcam a complexidade da situação. Em várias partes do mundo, é possível afirmar que existe um certo desconforto trazido pelas migrações (SANCHEZ RUBIO, 2010), tendo em vista que milhares de pessoas se deslocam diariamente, em busca de melhores condições de vida, seja por motivos de perseguição em seu país, seja por almejarem uma vida digna para si e suas famílias, em uma terra desconhecida. Isso implica em que os países destino desses migrantes adotem políticas cada vez mais severas para entrada desse fluxo de pessoas em seus territórios. Desta forma, o direito humano de migrar, torna-se um risco aos indivíduos que buscam melhores condições de vida: relatório de 2014, produzido pela Organização Internacional para as Migrações- OIM, informa que, desde o ano de 2000, cerca de 40 mil migrantes perderam suas vidas tentando chegar a outro país, em média oito pessoas por dia. Tal cenário parece não comover os governos dos países desenvolvidos, cuja tendência é tentar restringir ao máximo a imigração, através da adoção de políticas rigorosas de controle de fronteiras, inclusive com o fechamento de fronteiras

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internacionais. Aos que conseguem ultrapassar essas barreiras, resta a incerteza sobre sua condição no novo país: vistos como um problema, os migrantes sofrem com o preconceito social e, em muitos casos, com a intolerância estatal, gerando novas formas de totalitarismo (ARENDT, 1989). Trata-se de um tema atual, cujo estudo é de grande relevância, uma vez que as migrações internacionais estão hoje na pauta das discussões, devido às novas dinâmicas observadas nos fluxos migratórios: países como o Brasil, que tradicionalmente não era destino de migrantes vindos de países periféricos, hoje recebe um número cada vez maior de pessoas vindas de países como o Haiti, Senegal, Gana, Bolívia e também, vem recebendo um número maior de pedidos de refúgio de pessoas fugindo de conflitos armados em países do Oriente Médio, África e Ásia (BRASIL, 2014). Na União Europeia, a cada dia chegam barcos carregados de pessoas vindas de países, sobretudo africanos, que almejam entrar pelo litoral europeu, em países como a Itália e Grécia, visando a migração para algum país da União Europeia. O fato é que a política migratória nessa região tem dificultado tanto a entrada quanto a permanência dos migrantes na Europa (LEONARD, 2009). A política migratória adotada no Brasil é alicerçada na Lei 6815/1980- Estatuto do Estrangeiro, acervo autoritário herdado da ditadura civil-militar, que dá ao Estado total discricionariedade sobre a condição do estrangeiro (VENTURA, 2014). Na União Europeia, por outro lado, a política migratória tem sido cada vez mais pautada em questões de segurança, como o terrorismo (MCADAM, 2008). A partir deste cenário, cabe a discussão sobre a adoção de políticas baseadas nos direitos humanos dos migrantes, aonde o foco é o indivíduo e não o Estado e aonde ganha relevo a promoção e proteção aos direitos humanos desses indivíduos. Hannah Arendt, ela própria uma migrante, refugiada e apátrida, contribui para o entendimento da ação que a migração tem sobre a vida activa do migrante, transformando-o, no mais das vezes, de homo faber, em animal laborans, excluído da ação política em uma nova comunidade. Em um contexto como o descrito acima e em que há hoje no mundo, mais de 200 milhões de migrantes internacionais, sendo que destes, mais de 40 milhões são migrantes forçados (OIM, 2014) não raro, a migração é tratada como uma ameaça, o que levou a questão central deste trabalho: diante da alteração dos fluxos migratórios nos últimos anos, tanto no Brasil, quanto na União Europeia, e observando-se as políticas migratórias adotadas, é possível falar em uma visão securitária das migrações que ameaça os direitos humanos dos migrantes?

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Não há uma resposta pronta para esta questão, porém, algumas tentativas para superação desse cenário estão em curso: no caso do Brasil, a expectativa está centrada na nova lei de migrações. No caso da União Europeia, cada vez mais “fechada” aos imigrantes, é a Corte Europeia de Direitos Humanos a responsável pela proteção das displaced persons, nas palavras de Hannah Arendt. No que diz respeito a esta pesquisa, ela tem o intuito de contribuir para o debate atual das migrações e suas inter-relações, tanto com os direitos humanos quanto com a segurança. De imediato, é possível afirmar que o modelo excludente em curso não se sustenta e cabe aos Estados tomarem para si a tarefa de proteger a todos, independente de origem.

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REFLEXOS JURÍDICO-SOCIAIS DA INSTRUÇÃO CRIMINAL E DA PENA APLICADA NO BRASIL DO SÉCULO XXI

Bertholdo Hettwer Lawall21 Vinícius D’Andrea de Medeiros22

RESUMO O presente trabalho busca explorar, de forma geral, a opinião pública, principalmente a partir da análise social, a respeito da ceara processual criminal no Brasil, bem como as diversas interpretações cabíveis à lei e do cenário político-jurídico-social presente na Justiça. A grande ênfase no presente trabalho é tentar entender a descrença da sociedade na força do Direito Penal, demonstrando as contradições presentes no senso comum da coletividade.

Palavras-chave: Direito Criminal; Instrução Criminal; Opinião Pública. 1. Introdução Dentre as maiores revoluções ocorridas ao longo da história no Direito como um todo, encontra-se o direito de punir (jus puniendi). Historicamente, a sociedade sempre produziu meios de punir os indivíduos que agissem contra os interesses da coletividade. Desde o isolamento primitivo às carceragens cotidianas, a repressão penal é uma constante para o homem. O avanço dos ideais humanistas modificou de maneira derradeira o sistema penal em todo o mundo, provocando a busca por condições mais humanas de punir, não afastando o reeducando da sociedade, pelo contrário, reinserindo-o nesta. Estes ideais, propostos a partir do período Iluminista, encontramse presentes até os dias de hoje, de forma a ser a reinserção do criminoso na sociedade um dos principais objetivos da pena aplicada. Todavia, a humanização das punições impostas àqueles que transgrediam a lei tornou-se tamanha que hoje praticamente não se pode ver a pena como um castigo, pois por mais severa que seja, frente aos crimes que a ensejam, parece sempre branda demais. 21

Graduando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: [email protected] Advogado. Professor de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: [email protected] 22

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A sociedade clama por um Direito Penal mais repressivo, que consiga efetivamente punir o transgressor da lei. No entanto, essa repressão, à luz da opinião pública, não pode recair sobre toda a forma de punição, conforme se verá adiante. Não obstante, este trabalho busca trazer para o debate, se os direitos da coletividade estão sendo deixados de lado em prol da preservação dos direitos humanos do transgressor da lei, podendo representar, por si só, uma ineficácia do Direito Penal, gerando assim a sensação de insegurança? Para tanto, observar-se-á a opinião pública a respeito do papel que possuem, no curso da instrução criminal e até mesmo ante à sociedade, trazendo ao debate a interface entre o sentimento social e as regras processuais constitucionais. Além do já exposto, farse-á breve demonstração sobre a descrença da sociedade para com as cortes superiores brasileiras nos dias atuais.

2. Da opinião pública 2.1 Da pena propriamente dita

Neste tópico, será traçado o perfil a respeito da opinião pública quanto à atividade judiciária criminal brasileira contemporânea, visando criar o ambiente adequado para a discussão teórica, bem como o aprimoramento do posicionamento da coletividade sobre a atividade pública de punir sem que esta passe a impressão da impunidade. É possível dizer que o Brasil vive hoje o momento de maior descrença na legislação penal desde a reforma constitucional de 1988, observa-se, por exemplo, a execução penal. Observado o devido processo legal, passa-se a execução da pena, que contemporaneamente não proporciona o fiel cumprimento dos dispositivos legais, sendo que se vive a sensação da necessidade de castigos, vinganças, sofrimentos e dor. Pode-se dizer, portanto, que a prática forense busca a concretização do caráter positivo preventivo da pena aplicada. A matéria penal brasileira contemporânea divide a pena em dois caracteres gerais: retributivo e preventivo. Este, por sua vez, divide-se em preventivo positivo e preventivo negativo. O caráter retributivo da pena aplicada ao indivíduo que comete algum ato delituoso paira na ideia do castigo, remanescente, ainda, dos primórdios da sociedade.

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Para Franco (2013), uma das funções da pena é a busca pela justiça. Nesse sentido, não se observa nenhuma preocupação para com o combate à criminalidade, uma vez que a retribuição só pode ocorrer em momento posterior a um determinado ato danoso. Não se vislumbra, também, nenhum interesse em buscar a reinserção do criminoso à sociedade, muito menos intimidá-lo para que não volte a cometer novos delitos. O único fim determinado é a retribuição da sociedade ao criminoso pelo cometimento de um ilícito penal. Verificamos, portanto, que trata-se de consequência natural da aplicação da pena. Por outro lado, se a retribuição da sociedade pode ser dita como consequência natural, temos a busca pela prevenção como consequência imediatamente derivada. É imprescindível, para que se busque a prevenção, a aplicação da devida punição ao infrator. Nucci (2014, p. 56), conceitua o caráter preventivo da pena: O caráter preventivo da pena desdobra-se em dois aspectos. O geral, subdividido noutros dois: a) preventivo positivo: a aplicação da pena tem por finalidade reafirmar à sociedade a existência e a força do Direito Penal; b) preventivo negativo: a pena concretizada fortalece o poder intimidativo estatal, representando alerta a toda a sociedade, destinatária da norma penal. O especial também se subdivide em dois aspectos: a) preventivo positivo: é o caráter reeducativo e ressocializador da pena, buscando preparar o condenado para uma nova vida, respeitando as regras impostas pelo ordenamento jurídico [...]; b) preventivo negativo: significa voltar-se a pena igualmente à intimidação do autor da infração penal para que não torne a agir do mesmo modo, além de, conforme o caso, afastá-lo do convívio social, garantia maior de não tornar a delinquir, ao menos enquanto estiver segregado. (Grifos originais).

Sobre o caráter preventivo da pena, Franco (2013, p. 46), por sua vez, diz que a teoria da prevenção geral positiva não se baseia na imitação de uma parte dos membros de uma sociedade, tampouco na ideia de compensação do mal do crime pelo mal da pena. Procura-se alcançar todos os cidadãos, reforçando a confiança das pessoas na integridade do ordenamento jurídico.

Em síntese, vislumbra-se que, embora as sanções impostas ao criminoso sejam personalíssimas, extrai-se que os verdadeiros destinatários da lei penal são, de fato, os demais membros da sociedade. Um cidadão que, por exemplo, comete o delito disposto no art. 121, caput, do Código Penal, vindo a ser condenado, estará sendo punido (caráter retributivo), reforçando a crença das pessoas de que quem comete um crime é punido (preventivo negativo geral), mas, também, demonstrando que há um diferencial entre os criminosos e as pessoas que vivem dentro da lei, devendo aqueles ser punidos na medida

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dos atos que praticaram (preventivo positivo geral). O cumprimento da pena pelo condenado busca, além do já disposto, ressocializá-lo (preventivo positivo especial) e adverti-lo de que novo delito ensejará nova punição (preventivo negativo especial). Vislumbra-se, portanto, que é através deste instrumento processual adequado, ou seja, é pelo Processo Penal Constitucional, que se encontra a resposta à Justiça, mediante a observância dos direitos e garantias fundamentais. Sendo assim, o fim que se almeja, além da justa adequação do fato à norma é, sem sombra de dúvida, a paz social. 2.2 Da opinião pública

Neste momento, passa-se a trabalhar com o debate envolvendo a ceara social, na busca de elementos informativos e elucidativos para o atual cenário sistêmico. A partir disso, ao que se denota, a descrença na capacidade punitiva do Estado tende a aumentar quando certas atitudes são tomadas ante crimes cometidos contra pessoas do meio público. Para Gomes (2013), o que interessa ao receptor da informação não é sua qualidade ou seu índice de veracidade. É cediço que o homem vê o Estado como um inimigo a todo tempo, e uma das principais causas deste ódio é a carga de tributos, historicamente vilã do contribuinte. Munido deste ódio, tomar conhecimento de fatos violentos ocorridos e que, em tese, deveriam ter sido coibidos pelo Estado, faz com que o cidadão absorva a notícia sem que entenda seu verdadeiro teor ou busque saber se, de fato, é esta notícia verídica. Cita-se, por exemplo, o julgamento da Ação Penal n.º 470, STF, popularmente conhecida por Mensalão. Neste caso, a maciça condenação dos envolvidos no esquema fraudulento, muitos deles membros do alto-escalão político do governo de 2003 a 2009, a descrença da população virou-se, definitivamente, ao Direito Penal. Mesmo condenados, muitos dos réus receberam penas efetivamente baixas, restando a maioria nos regimes aberto ou semiaberto, razão pela qual transcende a compreensão social e sua visão do ordenamento jurídico. Para exemplificar melhor, traz-se um dos crimes mais bárbaros que aconteceram nos últimos anos no Brasil: o crime da motosserra. O réu do referido crime era Hildebrando Pascoal, ex-deputado e ex-coronel da Polícia Militar, que, utilizando de uma motosserra, a fim de vingar-se da morte de seu irmão, decepou os braços, pernas e pênis de Agilson dos Santos Firmino. Não obstante, perfurou-lhe os olhos, cravou-lhe

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um prego na testa, quebrou-lhe diversas costelas e disparou inúmeros tiros contra sua cabeça. Tal crime gerou uma condenação de 18 anos de prisão ao réu. Vejamos que trata-se de flagrante crime de homicídio qualificado, previsto no art. 121, § 2º, II, III e IV, cuja pena pode variar de doze a trinta anos, sem levar em consideração as causas de aumento e diminuição que podem eleva-la ou reduzi-la além do máximo ou mínimo legal. Sobre estas afirmações, Gomes (2013, p. 313) manifesta-se: Salvo melhor juízo, tal mensagem, advinda de um alto graduado da segurança pública, conduz a um verdadeiro pânico moral, instaurando medo, insegurança e, por fim, o descrédito popular para com os Poderes Judiciário e Legislativo, pois leva o leitor, em regra desconhecedor da funcionalidade do sistema penal, a crer que a prisão perpétua, avessa ao princípio da humanidade, é um bom mecanismo de prevenção à criminalidade. Ademais, remete à suposição de que a reprimenda imposta para aqueles que cometem crimes contra o patrimônio é de apenas alguns dias, pois não explica que a referência diz respeito à prisão processual e não à definitiva. A ocultação dessa informação, parelela à defesa da eliminação da progressão da pena privativa de liberdade após seu cumprimento de 1/6, pode, igualmente, induzir o receptor do jornal a pensar que um dos grandes responsáveis pelo diminutos cumprimento da pena apontado é o sistema progressivo, reforçando, assim, a reprovação e o brado pelo seu afastamento da normatividade jurídico-penal brasileira.

A verdade é que o sistema penal brasileiro não mais tem condições de arcar com o caráter preventivo especial positivo da pena. Isso tudo porque o sistema carcerário brasileiro, para onde vão os criminosos condenados ao regime fechado ou semiaberto, não provê a ressocialização que dele se espera. Além disso, outros fatores são sopesados, atualmente, considerando que os órgãos de policiamento ostensivo (Dever do Estado) encontram-se plenamente defasados e sem condições de evitar o cometimento de crimes, o que resta ao Poder Judiciário é aplicar a legislação penal e, se for o caso, colocar o indivíduo na cadeia. Ocorre que, as penitenciárias – maioria delas -, por sua vez, encontram-se totalmente superlotadas e sem condições de suportar mais pessoas, de forma que inexiste qualquer maneira de reeducar o criminoso, sendo seu alojamento tão somente útil para dar-lhe uma contrapartida pelos males causados anteriormente. As dificuldades são de várias ordenas, neste sentido, o problema em resolver esta mazela na sociedade é o círculo vicioso que gira em torno da construção dos presídios. Primeiramente, porque assim como os presídios, as escolas estatais também encontram-

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se desassistidas de atenção do poder público, faltam políticas públicas efetivas e concretas. Cita-se, de maneira ilustrativa, o Estado do Rio Grande do Sul, onde se sabe, nem mesmo o piso estabelecido (por Lei) aos professores pôde ser pago. Assim, investir em novos presídios geraria extensa revolta da população, que há anos clama por melhorias na Educação. Não obstante, mesmo que se decidisse pela construção de novos presídios, poucas comunidades aceitaram recebê-lo, uma vez que preferem deixar a situação distante da sua realidade social. Em síntese, a população clama pelo combate ao crime com condenações justas e com o cumprimento desta pena em presídios, porém faltam presídios e não convêm à sociedade abrigar mais, uma vez que arrazoam estar “trazendo bandidos para perto de suas casas”. Este conglomerado de consequências e situações leva à mais simples das afirmações por parte dos administradores do Estado: apesar de estarem cientes das necessidades e carências do sistema prisional, construir presídios é tarefa estrutural, complexa e que deve ser compartilhada. No entanto, não é somente sobre crimes de colarinho branco, liberdades provisórias, barbáries, indicações políticas e devido processo legal que pairam as reclamações da população. Interessante mencionar que, tamanha a contrariedade dos interesses da sociedade, esta clama por mais policias na rua, mesmo existindo vozes a questionar a atuação ostensiva, função e finalidade legalmente positivada. Observa-se, de outro viés, o sentimento geral é o descrédito e da impunidade, diante do quadro apresentando. Outrossim, age-se, em determinados momentos na contramão do sistema processual, no momento em que se contextualiza a atuação das partes processuais, as quais estão legitimamente exercendo seu ofício técnicoprofissional. Certamente, se realizada uma pesquisa de opinião pública a respeito de um modelo perfeito de presídio, o grande vencedor seria o modelo utilizado pelos Estados Unidos com a penitenciária de Alcatraz: uma ilha de difícil acesso no oceano. Frisa-se, oportuno a necessidade de análise imparcial e isenta, a atuação técnica é direito fundamental, assegurado a todos os acusados. Garantia legitimada pelo ordenamento constitucional, justamente, para evitar julgamentos arbitrários ou tribunais de exceção. Por isso, é preciso deixar claro que o exercício técnico não se confunde com a figura do acusado, nos autos processuais, demonstrando equivoco ao art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, que preceitua a ampla defesa aos acusados em geral.

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Neste contexto, de um lado, onde a opinião pública tem a liberdade de manifestação e opinião, de outro, encontra-se, independentemente, do fato praticado (hediondo ou não), o direito fundamental ao exercício de defesa, significa dizer que o acusado, no processo penal constitucional, não ficará sem defensor, impossível diante do princípio do devido processo legal e do Estado de Direito. Por outro lado, se a atuação técnica estiver a margem das regras do ordenamento jurídico-constitucional, atuando sob pressão e/ou por força de interesse alheios ao regramento processual, que é clamar pela verdadeira justiça (a qualquer preço, mesmo passo pela ordem legal), pedindo, por exemplo, a condenação do réu, verificar-se-á a ausência total de defesa do réu, o que no ordenamento jurídico brasileiro acarreta a designação de novo julgamento. Nesse sentido relata o Ministro Sebastião Reis Júnior (2012, http://atualidadesdodireito.com.br): In casu, o paciente foi condenado à pena de 14 anos de reclusão, como incurso no art. 121, § 2º, I e IV, do CP. Sustenta-se a nulidade do processo por ausência de defesa técnica efetiva, pois o patrono do paciente, na sessão plenária do júri, teria utilizado apenas quatro minutos para proferir sua sustentação oral. Invoca a aplicação da Súm. N.523/STF, asseverando que, após a sustentação proferida, deveria ter a magistrada declarado o réu indefeso, dissolvendo o conselho de sentença e preservando, assim, o princípio do devido processo legal. O Min. Relator observou que a matéria objeto da impetração não foi suscitada e debatida previamente pelo tribunal a quo, razão pela qual o habeas corpus não deve ser conhecido, sob pena de supressão de instância. Contudo, entendeu a existência de ilegalidade flagrante, visto que emerge dos autos que a atuação do defensor do paciente, na sessão de julgamento do tribunal do júri, não caracterizou insuficiência de defesa, mas a sua ausência. Como se verificou, o defensor dativo utilizou apenas quatro minutos para fazer toda a defesa do paciente. É certo que a lei processual penal não estipula um tempo mínimo que deve ser utilizado pela defesa quando do julgamento do júri. Contudo, não se consegue ver razoabilidade no prazo utilizado no caso concreto, por mais sintética que tenha sido a linha de raciocínio utilizado. O art. 5º, XXXVIII, da CF assegura a plenitude de defesa nos julgamentos realizados pelo tribunal do júri. Na mesma linha, o art. 497, V, do CPP estatui ser atribuição do juiz presidente do tribunal do júri nomear defensor ao acusado, quando considerá-lo indefeso, podendo, neste caso dissolver o conselho e designar novo dia para o julgamento, com a nomeação ou a constituição de novo defensor. Cabia, portanto, a intervenção do juiz presidente, a fim de garantir o cumprimento da norma constitucional que garante aos acusados a plenitude de defesa, impondo-se que esta tenha caráter material, não apenas formal. Diante dessa e de outras considerações, a Turma concedeu a ordem de ofício, para anular o processo desde o julgamento pelo tribunal do júri e determinar outro seja realizado e ainda o direito de responder ao processo em liberdade, até decisão final transitada em julgado, salvo a

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superveniência de fatos novos e concretos que justifiquem a decretação de nova custódia. HC 234.758-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 19/6/2012. (Grifos originais).

Observe-se que trata-se a atipicidade, razão pela qual o Superior Tribunal de Justiça considerou erro do juiz presidente do Tribunal a manutenção do réu com aquela situação de defesa, que inclusive condenou-o posteriormente, levando em consideração, por óbvio, a decisão do Conselho de Sentença, de forma a anular o júri ocorrido, ordenando a designação de novo julgamento e determinando que o réu aguardasse em liberdade a nova sessão. É de se considerar, portanto, que a grande mácula que sofre o Direito nos dias atuais é a de interesse público em comentá-lo e divulga-lo sem, contudo, compreendê-lo. Distanciando-se da realidade vivida pelo meio social-jurídico. Não há dúvidas de que a sociedade tem em si o chamado Schadenfreude. A referida expressão alemã remete ao sentimento de alegria e prazer que atinge uma pessoa quando outra está passando por dor e sofrimento. A sociedade entende que o homicida deva sofrer, o ladrão deva sofrer, o estuprador deva sofrer. A sociedade quer penas altíssimas, sem benefícios para todos esses criminosos. O contrassenso está relacionado, em outro paradigma, quando não quer é rigidez nos crimes ou infrações que qualquer um está sujeito a cometer.

3. Conclusão Quanto à opinião pública em relação à instrução criminal e à pena aplicada no Brasil contemporâneo, restou claro que a população não possui extensa crença na capacidade estatal de punir. É interessante que a sociedade, ciente da defasagem e impotência do Poder Executivo em criar meios que diminuam a criminalidade, em curto e longo prazo, como aumento no número de policiais, melhoria na educação e saúde, diminuição de impostos e investimento em presídios, aposta suas fichas, com descrença, em punições justas e severas, não somente aos infratores do cotidiano, mas principalmente aos crimes cometidos por políticos. Interessante ressaltar a opinião da sociedade em relação à construção de novos presídios. Na busca pela repressão severa e imediata, quer o povo a segregação de todo e qualquer criminoso no ergástulos existentes, mesmo que superlotados e sem as mínimas condições de convivência. No entanto, refuta toda e qualquer possibilidade de investimento em novas unidades carcerárias, o que considera um auxílio aos presos, como que no interesse de mantê-los confortáveis. Esta é uma das tantas contradições que tornam difíceis a solução para a questão penitenciária no Brasil, eis que enquanto não

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houver a aceitação da opinião pública, não haverá comprometimento do Poder Executivo, que naturalmente trabalha sob troca de votos. Crítica a opinião da sociedade ante a discrepância nas penas aplicadas pelos magistrados, criticando severamente toda e qualquer disposição que não lhe pareça cabível aos olhos, o que em certas situações se torna perfeitamente compreensível. Ora, que resposta se dá à sociedade ao punir, da mesma forma, grandes barbáries e crimes do cotidiano? Oportuno, também, ressaltar que o direito é uma das únicas áreas que sofre com a opinião de pessoas, da Sociedade Civil e da mídia – direito da liberdade de expressão . O que pode ser dito de opiniões que execram profissionais no exercício de suas funções, sem os quais não há que se falar em condenação ou absolvição, tão somente por estes abraçarem casos de repercussão ou que envolvam o clamor social? É fundamental, separar o exercício da função técnica-processual da pessoa do acusado. Por fim, conclui-se que o que a sociedade busca não é maior rigidez no sistema penal, mas sim naqueles crimes que julgam “somente os maus elementos cometerem”, motivo pelo qual ninguém clama por mais severidade nos crimes de trânsito ou no aumento do valor das infrações, eis que todos estamos suscetíveis, em uma probabilidade muito maior, de infringir estas regras. Todos querem uma Justiça mais rápida e prestativa, motivo pelo qual inclusive compreendem a aplicação do princípio da insignificância, porém ninguém quer abrir mão de nada a fim de que isto se torne possível. Em suma, os mesmos problemas que primitivamente resultaram na criação das formas primárias de condenar, restam vivos até hoje.

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DA RESPONSABILIDADE DO AGENTE PÚBLICO NAS HIPÓTESES DE DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO PÚBLICA Fernanda Brandt34 Pâmella de Campos35

RESUMO O presente trabalho trata do tema “da responsabilidade do agente público nas hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação pública”. Quais as responsabilidades a que se sujeitam os agentes públicos nas hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação pública. O procedimento padrão a ser adotado pela Administração Pública nas contratações é o processo licitatório, obedecendo rigorosamente à legislação e os princípios norteadores desta. Contudo, essa mesma legislação abre a possibilidade da dispensa ou inexigibilidade do processo licitatório. Para que o bem jurídico protegido pela legislação que regra a contratação pública seja obedecida, é necessário um trabalho eficiente e célere dos servidores públicos, os quais devem buscar a melhor utilização da verba pública primando pelas necessidades básicas de toda sociedade. Como principais Conclusão da investigação, os agentes públicos responsáveis pela contratação pública estão sujeitos às responsabilidades civil, administrativa, criminal.

Palavras-chave: licitação; compras públicas; inexigibilidade. 1. Introdução A temática enfrentada com a pesquisa desenvolvida tem como eixo principal as responsabilidades que o agente público está sujeito no exercício da função licitatória no âmbito da Administração Pública, notadamente nas hipóteses de afastamento de licitação pública.

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Advogada inscrita na OAB/RS 84.452. Professora de direito em curso preparatório para concurso e em curso técnico. Especialista em Direito Processual Civil: novo código de processo civil pela Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC (2013). Graduação em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC (2011). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2094346230421073 Endereço eletrônico: www.bhgadvocacia.com e [email protected] 35 Bacharel em direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul- UNISC(2015). Endereço eletrônico: [email protected]

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O processo licitatório regulamentado pela Constituição Federal a partir do inciso XXI do artigo 37, teve sua lei especifica criada em 1993, a Lei 8.666 que institui normas de como devem ocorrer às licitações públicas. Licitação pública é a forma de a Administração Pública fazer suas aquisições, tanto de serviços como de produtos. A regra é a licitação, mas a Constituição prevê a possibilidade de afastamento da exigência licitatória nas hipóteses legais, ou seja, a exigência da licitação pública pode ser relativizada, mas a responsabilidade do agente público não, porque se sujeita aos requisitos legais. Buscou-se pesquisar sobre as regras e os princípios constitucionais, em especial, com o intuito de investigar a responsabilidade dos agentes públicos notadamente nas hipóteses de afastamento da licitação pública. Esclarecer as responsabilidades a que estão sujeitos os agentes públicos no processamento do afastamento da licitação pública, notadamente na esfera administrativa, civil e penal. Justifica-se pela necessidade de uma contribuição para um melhor uso dos serviços públicos, bem como uma correta distribuição da verba obtida através da coleta de impostos, buscando uma melhora da qualidade de vida para todas as classes sociais, para tanto vê se a necessidade de um trabalho digno de confiança de cada cidadão ao seu melhor representante, o agente publico. Assim, percebe se a real importância deste trabalho, sendo de grande relevância jurídica, social, acadêmica e pessoal por todos nós fazermos parte dessa sociedade. Inicialmente tratou-se da licitação pública de forma geral, com análise aos princípios e leis cabíveis ao mesmo, explicando sucintamente como ocorrem as contratações públicas por meio do processo licitatório. Após, ainda tratando das formas de aquisição ou prestação de serviços da Administração Pública descrevem-se as hipóteses de afastamento da licitação com a possibilidade de dispensa, licitação dispensável e inexigibilidade. Apesar de o procedimento padrão ser o licitatório, a lei de licitações nos seus artigos 24 e 25 possibilita aos casos descritos nestes que a licitação seja dispensável ou então inexigível. Esse procedimento faz com que não seja necessário ocorrer todo o processo licitatório com a apresentação de proposta, documentação e avaliação dos mesmos, os processos de afastamento da licitação são simplificados para casos considerados especiais. E por fim, pode se analisar os crimes aplicáveis à Administração Pública, principalmente os aplicados ao processo licitatório e principalmente concluir quais são

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as responsabilidades dos agentes públicos no processo de dispensa e inexigibilidade de licitação.

2. Da licitação pública: aspectos gerais Analisando os aspectos gerais do processo licitatório podemos mencionar a seguir uma breve analise quanto o objetivo do mesmo, quem são os obrigados a licitar definindo assim qual a finalidade da licitação. Ainda, fazendo um aprofundamento nas fases, modalidades, cadastro de fornecedores, análise e julgamento e dos tipos de licitações que ocorrem no sistema brasileiro. A licitação é um procedimento administrativo disciplinado por lei e por um ato administrativo prévio, que determina critérios objetivos visando a seleção da proposta de contratação mais vantajoso e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, com observância do princípio da isonomia, conduzido por um órgão dotado de competência especifica (JUSTEN FILHO, 2013, p. 494).

A Licitação pública é um processo administrativo, por meio do qual, o Poder Público lança proposta ao público para efeitos de aquisição de produtos e serviços, tendo como objetivos a proposta mais vantajosa, a isonomia entre os participantes e o desenvolvimento sustentável. É um processo administrativo composto de vários atos compreendidos em duas fases, a interna e a externa, com o objetivo de controlar os gastos com o dinheiro público. Resumindo, se pode dizer que a licitação nada mais é do que um meio de contratação que a Administração Pública utiliza para atender o interesse público, assegurando tratamento isonômico aos licitantes, com o propósito de fazer o melhor contrato possível, tendo como base constitucional o Artigo 37 da Constituição Federal conforme podemos ver a seguir. 2.1 Do fundamento constitucional

A Constituição Federal no artigo 37, XXI estabelece que ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as

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condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensável à garantia do cumprimento das obrigações. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998). XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Regulamento). (Grifo origina)l.

Isso quer dizer que a Constituição Federal instituiu um processo de licitação para que haja uma forma transparente e correta de escolher o contratado, permitindo que todos os interessados participem do certame isonomicamente e o Poder Público contrate o objeto pelo melhor proposto, de acordo com as regras legais e o instrumento convocatório.

2.2 Dos obrigados a licitar

Baseados nos princípios já mencionados no Art. 37 da Constituição que baseiam a Lei de Licitações estabelece-se quem são os obrigados a licitar a Administração Pública em geral, direta e indireta, fundos especiais e entidades controladas direta ou indiretamente pelas pessoas político-administrativas. O caput do art.1º da Lei 8.666/93 estabelece poderes constituídos aos entes políticos. Empresas públicas, sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos devem se sujeitar à Lei federal n.º 8.666/93. Bem como, empresas no ramo de atividades econômicas. A Administração Direta é formada por órgãos ligados ao poder central tanto federal, estadual como municipal. Atuam como próprios organismos dirigentes como ministérios e secretarias. Já a Administração Indireta é composta de entidades com personalidade jurídica própria, com o intuito de realizar de forma descentralizada atividades do Estado, podemos citar como exemplo: Autarquias, as Fundações, as Empresas Públicas, Sociedades de Economia Mista.

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Questão que, mesmo hoje, merece certa detenção é de se saber se sociedades de economia mista e empresas públicas exploradores de atividade econômica estão ou não sujeitas ao dever de licitar. Estarão também elas obrigadas a licitar, tendo em vista que o art. 173, § 1º, II, da Constituição as declarou “sujeitas ao regime próprio das empresas privadas”? Parece-nos que, com as significativas resalvas adiante feitas, a resposta terá de ser afirmativa. E que, pois, não se pode tomar ao pé da letra a dicção do preceptivo cogitado (MELLO, 2012, p. 549). (Grifo original).

No entanto não se enquadram como obrigatórias a efetuar licitação as empresas privadas, concessionárias e permissionárias de serviços públicos, organizações sociais quando não forem feitas através de repasses voluntários da União, Organização da sociedade civil de interesse público – OSCIPs, e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Todos os obrigados a licitar estão buscando a finalidade do processo licitatório que é a proposta mais vantajosa para a Administração.

2.3 Das finalidades do processo licitatório

As finalidades do procedimento licitatório são buscar a proposta mais vantajosa para a Administração, observar o princípio da isonomia, e ainda a promoção do plano de desenvolvimento nacional sustentável, assim utiliza-se dos princípios licitatórios enquadrando-se nas necessidades diárias. Busca-se que a contratada seja a empresa com condições de atender a Administração no prazo solicitado e que o equipamento seja com a qualidade desejada atendendo ao Termo de Referência anexo ao edital. A obrigação de licitar não é mera formalidade burocrática, decorrente apenas de preceitos legais. Ela se funda em dois princípios maiores: os da isonomia e da impessoalidade, que asseguram a todos os que desejam contratar com a administração a possibilidade de competir com outros interessados em fazê-lo, e da eficiência, que exige a busca da proposta mais vantajosa para a administração. Assim, ao contrário do firmado nas justificativas apresentadas, a licitação, além de ser exigência legal, quando bem conduzida, visa – e permite – a obtenção de ganhos para a administração. E quando a possibilidade de prejuízos existe, a própria lei, novamente com base no principio da eficiência, prevê os casos em que o certame licitatório pode ser dispensado (TCU apud JUSTEN FILHO, 2012, p. 328).

Ainda, seguindo os princípios e finalidade do procedimento licitatório apesar de a licitação ser a regra para a contratação de empresas para fornecer ou prestar serviços

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para a Administração Pública à lei 8.666/93 nos seus artigos 24 e 25 prevê a dispensa e inexigibilidade de licitação conforme analisado a seguir.

3. Do afastamento de licitação pública A regra é a obrigatoriedade da realização da licitação para todas as contratações entre particulares e a Administração Pública, a partir do interesse público para que ocorra sempre a melhor contratação, observando as condições e oportunidades aos interessados em participar do certame. No entanto, a possibilidade de fugir da regra determinada pela própria lei, quando não há a realização do procedimento padrão e sim de um procedimento para a contratação direta aplicando-se as hipóteses de afastamento da licitação. A contratação direta não significa que são inaplicáveis os princípios básicos que orientam a atuação administrativa. Nem se caracteriza uma livre atuação administrativa. O administrador está obrigado a seguir um procedimento administrativo determinado, destinado a assegurar (ainda nesses casos) a prevalência dos princípios jurídicos fundamentais. Permanece o dever de realizar a melhor contratação possível, dando tratamento igualitário a todos os possíveis contratantes (JUSTEN FILHO, 2012, p. 329).

A licitação ocorre como procedimento padrão, cabendo a todas as formas de aquisições e/ou prestação de serviços. Nas hipóteses de dispensa apenas nos casos previsto no artigo referente, é quando é possível o processo tradicional, mas a Lei estabeleceu hipóteses em que seria possível e obviamente interessante a Administração Pública facilitar as contratações. Na inexigibilidade a lei estabeleceu parâmetros que a possibilitam, podendo a partir destes ser aplicadas em tantos outros. As hipóteses de afastamento do processo licitatório estão previstas nos artigos 24 e 25 da Lei de licitações regrando o procedimento de dispensa e inexigibilidade de licitação. Sendo ainda possível a licitação dispensada de acordo com o artigo 17 também da lei nº 8.666/93. Em tese, a dispensa contempla hipóteses em que a licitação seria possível; entretanto, razões de tomo justificam que se deixe de efetuá-la em nome de outros interesses públicos que merecem acolhida. Já, a inexigibilidade resultaria de inviabilidade da competição, dada a singularidade do objeto ou do ofertante, ou mesmo – deve-se acrescentar – por falta dos pressupostos jurídicos ou fáticos da licitação não tomados em conta no arrolamento dos casos de licitação dispensável (MELLO, 2012, p. 554).

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São casos onde de acordo com a necessidade do fato é necessário que o procedimento de licitação não seja o aplicado, utilizando se assim da dispensa ou inexigibilidade para que o processo ocorra de forma mais célere.

3.1 Da dispensa de licitação

A dispensa de licitação é prevista no Artigo 24 da Lei 8666/93, são enquadradas como hipóteses de dispensa as situações que apesar da viabilidade jurídica para aplicar o procedimento padrão, é autorizado pela Lei à contratação direta. Não deve ser aplicada por qualquer servidor, visto que é aplicada apenas nos casos que não é possível a competição. Art. 24. É dispensável a licitação: Vide Lei nº 12.188, de 2.010 Vigência I - para obras e serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente; (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998) II - para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez; [...]. (Grifo original).

Quando as propostas apresentarem preços incompatíveis aos já pesquisados pela administração no mercado atual, ou incompatíveis com valores permitidos pelos órgãos oficiais conforme inciso VII do artigo 24 da lei 8.666/93. Nos casos em que as propostas sejam com valor máximo de R$ 15.000,00 de acordo com o inciso I, e de no máximo R$ 8.000,00 conforme inciso I, II do artigo 24 da lei de licitações. O inciso III prevê que será aplicada a dispensa nos casos guerra ou perturbação da ordem. Já o inciso IV é aplicável aos casos de emergência ou calamidade pública ou ainda: IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços,

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equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

Em casos de guerra ou grave transtorno a ordem, ou em casos de emergência ou calamidade pública, casos em que envolvam a população e seria impossível que esperassem todos tramites do processo licitatório, quando ocorrer o comprometimento dos serviços básicos destinados à população. Neste mesmo sentido pode-se citar o inciso V do artigo 24, lei 8.666/93 que diz “quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas”. E ainda, quando a União necessitar regularizar preços ou abastecimento. Ainda, a dispensa será utilizada para a compra ou locação de imóvel, nos casos previstos no inciso X, quando de acordo com Justen Filho (2012, p. 363), há alguns requisitos necessários “[...] a) necessidade de imóvel para desempenho das atividades administrativas; b) adequação de um determinado imóvel para a satisfação das necessidades estatais; c) compatibilidade do preço (ou aluguel) com os parâmetros de mercado”. No caso mencionado no item anterior podemos entender como precípuas como os itens principais para a Administração como segurança não só de policia, mas de direito a saúde, alimentação, educação, transporte. Nas contratações quando o licitante anterior tiver desistido da contratação, respeitando a ordem de classificação e o preço. Como também nas compras de alimentos perecíveis conforme inciso XII. Já o inciso XIII para a contratação de empresa brasileira em fins lucrativos buscando a pesquisa, do ensino ou desenvolvimento institucional, buscando a recuperação social dos presos. Também é possível para a aquisição baseada no acordo internacional de acordo com o Congresso Nacional ou então para adquiri-las ou restaurar obras de arte ou objetos históricos. Em necessidades diversas, onde for justificado por um motivo especifico atendendo aos seguintes incisos o procedimento licitatório padrão: VIII - para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que

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integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado; [...] IX - quando houver possibilidade de comprometimento da segurança nacional, nos casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, ouvido o Conselho de Defesa Nacional; (Regulamento) XVI - para a impressão dos diários oficiais, de formulários padronizados de uso da administração, e de edições técnicas oficiais, bem como para prestação de serviços de informática a pessoa jurídica de direito público interno, por órgãos ou entidades que integrem a Administração Pública, criados para esse fim específico; (Incluído pela Lei nº 8.883, de 1994). (Grifo original).

No inciso abaixo facilitou muito na diminuição de gastos, visto que muitos contratos de peças eram feitos e as peças ficavam paradas, assim podem-se adquirir peças necessárias vinculadas ao contrato antecedente quando necessário. XVII - para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia; (Incluído pela Lei nº 8.883, de 1994) XVIII - nas compras ou contratações de serviços para o abastecimento de navios, embarcações, unidades aéreas ou tropas e seus meios de deslocamento quando em estada eventual de curta duração em portos, aeroportos ou localidades diferentes de suas sedes, por motivo de movimentação operacional ou de adestramento, quando a exiguidade dos prazos legais puder comprometer a normalidade e os propósitos das operações e desde que seu valor não exceda ao limite previsto na alínea "a" do inciso II do art. 23 desta Lei: (Incluído pela Lei nº 8.883, de 1994). (Grifo original).

Nos casos de compras para as Forças Armadas, não incluindo nestes os materiais para uso pessoal e administrativo. Ou então para associações de portadores de qualquer deficiência física, sendo que esta deve ser inidônea e não possui fins lucrativos. Para as aquisições referentes à energia elétrica e gás natural, de acordo com a lei especifica do mesmo. Ainda, como segue alguns casos transformados em incisos buscando facilitar a melhor aquisição para a Administração: XXIII - na contratação realizada por empresa pública ou sociedade de economia mista com suas subsidiárias e controladas, para a aquisição ou alienação de bens, prestação ou obtenção de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998)

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XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998) XXV - na contratação realizada por Instituição Científica e Tecnológica - ICT ou por agência de fomento para a transferência de tecnologia e para o licenciamento de direito de uso ou de exploração de criação protegida. (Incluído pela Lei nº 10.973, de 2004). (Grifo original).

Quando na celebração de contrato de programa conforme Justen Filho (2012, p. 397), “[...] previu que contrato de programa será o instrumento por meio do qual os entes da Federação constituirão obrigações entre si ou para com consórcio público”. XXVI – na celebração de contrato de programa com ente da Federação ou com entidade de sua administração indireta, para a prestação de serviços públicos de forma associada nos termos do autorizado em contrato de consórcio público ou em convênio de cooperação. (Incluído pela Lei nº 11.107, de 2005). (Grifo original).

O inciso XXVII refere-se à coleta seletiva de lixo como hipótese de dispensa de licitação, seguindo as peculiaridades do mesmo. Para serviços de alta complexidade tecnológica também é possível, como também para a defesa nacional. Para atender aos militares das Forças Singulares do Brasil quando estiverem em operações de paz fora do país. Para contratações do programa Nacional de Assistência da Agricultura Familiar e Reforma Agrária de acordo com lei federal. Nas contratações que envolvam a Lei nº 10.973/94 que dispõe sobre os incentivos à inovação e também para à pesquisa científica e tecnológica referente ao ambiente produtivo. Ainda referente à tecnologia de itens para o SUS de acordo com a Lei nº 8.080/90. E por fim, o último inciso do artigo 24 abrange, que dispõe sobre as contratações para benefícios ás famílias rurais em situação de baixa renda que sofrem com a seca ou falta de água regularmente. XXXIII - na contratação de entidades privadas sem fins lucrativos, para a implementação de cisternas ou outras tecnologias sociais de acesso à água para consumo humano e produção de alimentos, para beneficiar as famílias rurais de baixa renda atingidas pela seca ou falta regular de água. § 1o Os percentuais referidos nos incisos I e II do caput deste artigo serão 20% (vinte por cento) para compras, obras e serviços contratados por consórcios públicos, sociedade de economia mista, empresa pública e por autarquia ou fundação qualificadas, na forma da lei, como Agências Executivas.

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§ 2o O limite temporal de criação do órgão ou entidade que integre a administração pública estabelecido no inciso VIII do caput deste artigo não se aplica aos órgãos ou entidades que produzem produtos estratégicos para o SUS, no âmbito da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, conforme elencados em ato da direção nacional do SUS.

É importante entender que o artigo 24 da Lei nº 8.666/93 é exaustivo, ou seja, as únicas hipóteses de dispensa de licitação são as dispostas nos incisos do artigo mencionado, não podendo de forma alguma ser ampliado pela Administração. Outra disposição importante é que, enquanto o rol das situações de dispensa é taxativo (não admite outras hipóteses, que não aquelas previstas expressamente na lei), o rol dos casos que justificarão a inexigibilidade é meramente exemplificativo (admite-se que haja inexigibilidade de licitação mesmo que o caso concreto não se enquadre em algumas das hipóteses legais). Para se ter uma ideia, atualmente há mais de 45 hipóteses de dispensa de licitação, ao passo que há apenas três situações de inegibilidade (NASCIMENTO, 2013, p. 462). (Grifo original).

Enquanto a dispensa possui rol exaustivo, não pode o mesmo ser ampliado, já a inexigibilidade possui rol aberto, podendo ser aplicada, à medida que apareçam, casos que não estão previstos no art. 25. 3.2 Da inexigibilidade de licitação

Já a inexigibilidade ocorre a partir de particularidades do objeto contratado ou quando apenas alguém em especifico puder fornecê-lo, inviabilizando a competição, estando prevista no artigo nº 25 da lei de licitações. Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;

A inexigibilidade compreende casos em que determinado objeto necessário e de suma importância para a Administração é de exclusivo fornecimento de determinada

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empresa, produtor ou representante comercial. A partir da justificativa aceitável de tal necessidade através de um atestado de inexigibilidade de determinada entidade de classe o devido objeto poderá ser adquirido diretamente. No mesmo deve constar claramente que não existe equipamento similar no mercado, caso isso não ocorra à inexigibilidade se torna impossível de ser declarada. Cumpre salientar que a relação dos casos de inexigibilidade não é exaustiva. Com efeito, o art. 25 refere que a licitação é inexigível quando inviável a competição. E apenas destaca algumas hipóteses. Por isto disse, em seguida: “em especial (...)”. Em suma: o que os incisos I a III do art. 25 estabelecem é, simplesmente, uma prévia e já resoluta indicação de hipóteses nas quais ficam antecipadas situações características de inviabilidade, nos termos ali enumerados, sem exclusão de casos não catalogados, mas igualmente possíveis. (MELLO, 2012, p. 560). (Grifo original).

Para serviços técnicos também é possível à inexigibilidade de acordo com o Art. 13 da lei 8.666/93, como para estudos, planejamento e projetos, pareceres como perícias e avaliação, consultorias, assessorias e auditorias, em obras e serviços par fiscalização e/ou execução, em causas judiciais, treinamento de pessoal, restauração tanto de obras de artes como de bens históricos. II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

Ainda a possibilidade conforme inciso III, que é de certa forma a mais tranquila, pois desde que escolhidos por críticos ou pela população como consagrado, o artista deve ser conhecido, e assim escolhido pelo gosto popular, sem qualquer excepcionalidade. III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública. § 1o Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. § 2o Na hipótese deste artigo e em qualquer dos casos de dispensa, se comprovado superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o

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agente público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis.

Além da dispensa e inexigibilidade temos no artigo 17 a licitação dispensada, que segundo alguns doutrinadores faz parte da própria dispensa de licitação.

3.3 Da licitação dispensada

Consideramos uma possibilidade de afastar o processo licitatório a licitação dispensada conforme art. 17, inciso I §§ 1º a 5º e inciso II da lei 8.666/93. A licitação pode ser dispensada nos casos de alienação de bens imóveis como dação em pagamento, doação para órgão ou entidade da Administração Pública, permuta por outro imóvel cujas características condicionem a escolha, investidura, venda à entidade da Administração Pública, alienação, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de imóvel para programas habitacionais, e também de bens imóveis doação de interesse social, permuta entre órgão e entidades da administração, venda de ações em bolsa ou de títulos na forma da legislação pertinente, venda de bens produzidos ou comercializados por órgão ou entidade, em virtude de suas finalidades, venda de materiais e equipamentos para outro órgão ou entidade da Administração Pública. Nas situações em que há condições para realizá-la, pois há a competição, porém, em função de determinadas circunstâncias, o legislador achou por bem dispensá-la, tendo em vista interesses públicos que predominam no processo, ou seja, não há discricionariedade da Administração na escolha em fazê-la ou não, a licitação não poderá ser realizada, conforme disciplina o art. 17 da Lei 8.666/93. (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ, 2014, ).

A licitação dispensada está enquadrada por diversos autores como uma forma de dispensa de licitação. Sendo assim, está seguirá o mesmo procedimento da dispensa. A partir da analise destas três possibilidades podemos diferenciar a inexigibilidade e a dispensa, pois a inexigibilidade é prevista quando não são previsíveis os pressupostos lógicos, tornando a possível de ocorrer. Já quando não houver o pressuposto jurídico, ou seja, quando não houver interesse jurídico para que ocorra a disputa, pode-se dizer que é de interesse da população que a contratação seja de forma direta e imediata, avaliando-se a oportunidade da licitação, que embora cabível pode não ocorrer.

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É importante asseverar, com espeque no entendimento acima esposado, que a escolha da marca, por exemplo, não desvirtua a lisura da contratação, pois, em verdade, Assim, face à existência de fornecedor exclusivo, restará configurada, indubitavelmente, inexigibilidade de licitação, recomendando-se, destarte, a contratação direta da Administração Pública com a empresa fornecedora do produto, no caso concreto (LUSTOSA, 2014, ).

No entanto, as mesmas têm suas obrigatoriedades. Devendo ser publicadas na imprensa oficial com antecedência de três dias para ratificação e publicação, se assim não for feito poderá este ato perder sua eficácia. Quando a dispensa for por motivo emergencial, este também deve ser comprovado nos autos, além da escolha do fornecedor e do preço contratado. Quando as dispensas e inexigibilidade não ocorrerem seguindo os procedimentos formais, faltando à devida comprovação das suas necessidades serão aplicadas as penalidades conforme previsto na lei de licitações.

4. Da responsabilidade do agente público nas hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação pública Os agentes públicos, no exercício da função pública, devem se submeter à lei e ao Direito e, em caso de descumprimento, sujeitam-se às cominações legais. Ou seja, o agente público não deve atuar de forma arbitrária e irresponsável. O processamento da licitação pública, em sentido amplo, compreendendo inclusive a dispensa e a inexigibilidade, requer uma atuação nos termos da lei e do Direito porque o bem jurídico protegido é a contratação pública em sentido estrito e o interesse público em sentido amplo. De acordo com a doutrina e a legislação, os agentes públicos estão sujeitos à responsabilidade civil, administrativa e criminal. A responsabilidade civil tem por finalidade recompor os prejuízos patrimoniais; a responsabilidade administrativa tem por fim manter a licitude dos atos e a disciplina funcional; a responsabilidade criminal tem por finalidade impedir e punir condutas tipificadas como crime.

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4.1 Da responsabilidade civil, administrativa e penal do agente público na dispensa e inexigibilidade de licitação

A responsabilidade civil conforme artigo 186 do Código Civil Brasileiro é a obrigação de reparar dano causado a outro. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Segundo Di Pietro (2012, p. 666), a responsabilidade civil é de ordem patrimonial e decorre do artigo 186 do Código Civil, que consagra a regra, aceita universalmente, segundo a qual todo aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-lo. Como finalidade a responsabilidade civil busca o equilíbrio perdido pelo dano. Assim, além do ato ilícito recorre a possibilidade de ressarcimento do prejuízo visto que a intenção de reparação deva ser maior do que o ato ilícito. Possuindo assim a função de manter a segurança jurídica em relação ao lesado, mas também de com sanção civil, na busca da natureza compensatória. Por fim entende-se que o agente público responsável pelo processamento da dispensa ou inexigibilidade de licitação pública tem o dever de recompor o patrimônio daquele que sofreu prejuízo em face da atuação ilegal. Normalmente quem sofre o prejuízo é o próprio erário público, mas não se pode afastar por completo a possibilidade de outra pessoa que não seja o estado também sofrer um prejuízo e com isso ter o direito de ser compensado. A responsabilidade administrativa segue dos mesmos pressupostos da civil, da ação ou omissão em desacordo a lei, através de culpa ou dolo e dano. Resulta da violação da norma interna administrativa, é a pratica de ato ilícito no desempenho de cargo/função, conforme artigo 124 da lei 8.112/90 “a responsabilidade civiladministrativa resulta de ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho do cargo ou função”. A responsabilização administrativa é destinada a punir na órbita administrativa o sujeito que praticou condutas indevidas no curso de relações jurídicas administrativas. A responsabilidade administrativa conduz à restrição ou à extinção de direitos no âmbito da atividade administrativa do Estado (JUSTEN FILHO, 2013, p. 580).

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Através de processo administrativo é apurada a responsabilidade administrativa, tendo o servidor direito ao contraditório e ampla defesa conforme art. 5º, LV da constituição Federal e artigo 153 da lei 8.112/90. De acordo com o ilícito praticado será a sanção aplicada podendo ser conforme art. 127 da lei 8.112/90 “Art. 127. São penalidades disciplinares: I - advertência; II - suspensão; III - demissão; IV – cassação e aposentadoria ou disponibilidade; V - destituição de cargo em comissão; VI - destituição de função comissionada.”. Sua finalidade é a de punir comportamento indevido dos agentes públicos, aplicando sanções aos mesmos. Agindo em desconformidade com as regras e os princípios que regem a dispensa e a inexigibilidade do processo licitatório, assim como as regras que disciplinam a conduta dos agentes administrativos no exercício da função pública, os mesmos estão sujeitos à responsabilidade administrativa. Já a responsabilidade penal do agente pública resulta da infração penal em face de condutas tipificadas como crime contra a Administração Pública. De acordo com o artigo 123 da Lei federal n.º 8.112/90 – Estatuto do Servidor Público Federal - a responsabilidade penal abrange os crimes e contravenções imputadas ao servidor, nessa qualidade. Portanto, tanto os crimes quanto as contravenções abrangem a responsabilidade penal do servidor. O Código Penal brasileiro tipifica – nos artigos 312 a 326 – crimes praticado por agente público contra a Administração Pública. Todavia, além dessa previsão no Código penal, existem leis esparsas que também tipificam condutas criminosas de agentes públicos. O crime ocorre da infração de um dispositivo legal, ou seja, só é considerado crime o que a lei assim o definir. O crime é conceituado de acordo com ramo que está direcionado. No caso da Administração Pública, não seria diferente, a sua própria lei define como crime procedimentos que estejam em desacordo com a mesma. E no caso das licitações a Lei dispõe sobre atos em divergência com a lei.

4.2 Dos crimes e das penas na legislação licitatória

A lei de 8.666/93 tipifica os crimes licitatórios punidos com privação de liberdade e os punidos com multas, diferentes do descrito no Código Penal. O bem jurídico visado com a legislação penal especial que regem os crimes licitatórios é, em

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última análise, a moralidade pública. Exige-se que o servidor público oriente seu comportamento de acordo com as regras e os princípios que regem a boa Administração Pública, fundada no princípio da moralidade pública. Salienta-se que os crimes definidos na lei de Licitações, ainda que simplesmente tentados, sujeitam os seus autores, quando servidores públicos, além das sanções penais, à perda do cargo, emprego, função ou mandato eletivo. Servidor público, para esse fim é todo aquele que exerce, mesmo que transitoriamente ou sem remuneração, cargo, função ou emprego público. São equiparados para este fim, também, quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, assim consideradas, além das fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, as demais entidades sob controle, direto ou indireto, do Poder Público. A pena imposta será acrescida da terça parte, quando os autores dos crimes forem ocupantes de cargo em comissão ou de função de confiança em órgão da Administração direta, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista, fundação pública, ou outra entidade controlada direta ou indiretamente pelo Poder Público. As infrações penais previstas na Lei de Licitações são pertinentes às licitações e aos contratos celebrados pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios, e respectivas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, e quaisquer outras entidades sob seu controle direto ou indireto. De acordo com o artigo 89, é crime dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade. Incorre na mesma pena aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público. Sobre isso, relata a Ministra Maria Thereza de Assis Moura (2010): Prefeito. Contratação sem licitação. Advogado. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, denegou a ordem de habeas corpus cuja impetração buscava o trancamento da ação penal na qual o paciente, ex-prefeito, foi incurso no art.1º, III, do DL n. 201/1967 e art. 89 da Lei n.8.666/1993 e o segundo acusado, advogado contratado sem licitação, foi incurso no art. 89, parágrafo único, da mesma lei. [...] Para a Min. Relatora, a denúncia, embora sucinta, narra o comportamento do paciente, bem como descreve os fatos a permitir sua ampla defesa. Destacou que há, inclusive, sentença condenatória em

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relação ao corréu cuja ação seguiu caminho diferente em razão de desmembramento. [...] Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 21/9/2010. (Grifo original).

O legislador define como crime a conduta de funcionário público que favoreça alguém erroneamente com a dispensa ou inexigibilidade de licitação. Segundo Justen Filho (2012, p. 1034), “a punição penal incide não apenas quando o agente ignorar as hipóteses previstas para a contratação direta, mas também quando, de modo fraudulento, simular a presença de tais requisitos”. De acordo com artigo 90 da lei 8.666, o crime é considerado consumado quando o servidor público frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação. Nesse caso a pena é de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Outro crime, de acordo com o artigo 91 é patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário. Para esse crime a pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. O Código Penal em seu artigo 321 tipifica conduta semelhante, que é patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário. O artigo 91 tipifica conduta criminosa específica para o agente público no exercício de atividade administrativa licitatória. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, nos termos do artigo 92. A pena para esse crime é de detenção, de dois a quatro anos, e multa. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais. O crime não se aperfeiçoa simplesmente pela presença dos aspectos “descumprimento da norma administrativa” e “atribuição de vantagem indevida ao licitante”. É necessário que o descumprimento da norma administrativa seja orientado pelo intento de atribuir vantagem

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indevida ao licitante. Pode-se caracterizar o crime mediante dolo genérico nas hipóteses de infração à ordem de pagamento ou ao prazo de cinco dias. Então, a conduta do sujeito é apta, por si só, a infringir valores jurídicos autônomos. (JUSTEN FILHO, 2012, p. 1043). (Grifo original).

Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório, também é crime, nos termos do artigo 93 e a pena correspondente é detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. O artigo 93 é semelhante ao disposto no artigo 335 do Código Penal, visando à garantia da boa Administração, consumando o crime qualquer conduta que impeça, perturbe ou fraude qualquer processo licitatório. De acordo com o disposto no artigo 94, é crime licitatório devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo e a pena correspondente é a de detenção, de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa. Busca-se proteger o sigilo das propostas, a imparcialidade, a lisura, a transparência nos processos de licitação. Também é tipificada como crime, nos termos do artigo 95, qualquer conduta que afasta ou procura afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo. A pena para esse delito é de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Incorre na mesma pena quem se abstém ou desiste de licitar, em razão da vantagem oferecida. Qualquer conduta que fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente: elevando arbitrariamente os preços; vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; entregando uma mercadoria por outra; alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida; tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato, é crime, de acordo com o disposto no artigo 96 e a pena é de detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. A fim de proteger a moralidade do âmbito da Administração Pública, impedindo que sejam contratados profissionais ou empresas inidôneas, o artigo 97 tipifica como conduta criminosa admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo. A pena para esse delito é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Incide na mesma pena aquele que, declarado inidôneo, venha a licitar ou a contratar com a Administração.

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Com a finalidade de garantir a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais, o artigo 98 descreve como conduta criminosa obstar, impedir ou dificultar, injustamente, a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento de registro do inscrito e a pena correspondente é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Para Justen Filho (2012, 1048), “obstar significa, no caso, negar. Impedir indica a conduta que torna inviável, dificultar consiste na colocação de empecilhos”. A pena pecuniária de multa cominada nos artigos 89 a 98 consiste no pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente. Os índices a que se refere este artigo não poderão ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. O produto da arrecadação da multa reverterá, conforme o caso, à Fazenda Federal, Distrital, Estadual ou Municipal.

4.3 Da exclusão do crime nas licitações públicas

Como toda e qualquer lei para penalizar um infrator é criada a partir do crime cometido de acordo com o Código Penal no “art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Nos crimes de licitações parte-se do mesmo princípio, os agentes públicos são penalizados após cometerem o delito, para tanto é necessário que este esteja enquadrado como delito. No entanto há possibilidades em que é possível afastar a responsabilização penal. A ilicitude conforme Nucci (2013, p. 95), é conceituada como “é a contrariedade de uma conduta com o direito, causando lesão a um bem jurídico protegido. Trata-se de um prisma que leva em consideração o aspecto formal da antijuricidade [...]”. Os excludentes de ilicitude estão previsto nos artigos 23, 24 e 25 do Código Penal, conceituados a seguir: O estrito cumprimento do dever legal consiste na consumação de fato típico, devido a obrigação decorrente de lei. Exercício regular de direito pratica de uma prerrogativa dada pelo ordenamento jurídico, é caracterizada como um fato típico.

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Do estado de necessidade conforme artigo 24 “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. A legitima defesa conceituada no artigo 25 tem se como “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”. Ainda é possível considerar como excludente quando o Fato de terceiro, quando a vitima for à única agente responsável pela causa e Culpa exclusiva da administração quando a mesma for concorrente da vitima, será atenuada a responsabilidade da Administração. A partir das excludentes podemos verificar possibilidades de excluir a responsabilização penal dos agentes públicos por crimes licitatórios. É sabido que a pratica de crimes licitatórios acarretam em prejuízo para toda a sociedade, pois se o processo licitatório prima pela isonomia entre os proponentes, a “escolha” de uma determinada empresa para contratação por motivos de interesse pessoal de qualquer servidor público estará indo da contramão do principio constitucional. Para um processo licitatório transparente e que seja absolutamente capaz de atender ao seu objetivo, ou seja, a proposta mais vantajosa para a administração é necessário que os cidadãos que estão à frente do procedimento, qual seja os servidores públicos, exerçam suas atividades de maneira digna, sem qualquer intenção de que aja privilégio para si próprio ou para outro. Assim como, é importante que cada cidadão assuma uma postura perante o seu meio, e fiscalize, faça com que a Administração caminhe de maneira correta.

5. Conclusão O tema da pesquisa apresenta como eixo central a responsabilidade do agente público nas hipóteses de afastamento da licitação pública e o problema da pesquisa: quais são as responsabilidades a que se sujeitam os agentes públicos nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade de licitação pública? Para tanto desenvolveu-se uma investigação que resultou em três capítulos: o primeiro tratou da licitação pública em geral, o segundo das hipóteses de afastamento da

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licitação pública e, por fim, no terceiro capítulo, as responsabilidades dos agentes públicos. O objetivo geral da pesquisa foi no sentido de esclarecer as responsabilidades a que estão sujeitos os agentes públicos no processamento do afastamento da licitação pública, notadamente na esfera administrativa, civil e penal. Portanto, tendo como pano de fundo o tema, o problema e o objetivo geral, chegou-se as seguintes Conclusão: Administração Pública quando constata a necessidade de adquirir algum produto, equipamento ou necessita de uma prestação de serviço é obrigada a iniciar um processo licitatório. Este processo é regrado por lei e orientado por diversos princípios, cujo objetivo fazer com que a Administração Pública faça o melhor contrato para o interesse público, trate os participantes do processo licitatório em par de igualdade e que a contratação esteja em sintonia com o princípio da sustentabilidade. Tudo isto deve ser processado sob rígida analise e julgamento dos concorrentes, buscando a melhor proposta para contratação da Administração. Há casos expressos em lei que é possível o afastamento da licitação, como o procedimento de dispensa e licitação dispensável, e de inexigibilidade. Onde as hipóteses de dispensa possuem rol exaustivo, ou seja, somente o previsto no artigo 24 da lei de licitações será caracterizado como dispensa, já o artigo 25 da Lei nº 8.666 apenas apresenta parâmetros para os casos de inexigibilidade podendo estes ser diversos. Os agentes públicos quando exercem sua função pública são submetidos à lei e ao Direito, devem agir com responsabilidade sobre as suas funções, podendo em caso de descumprimento sofrerem cominações legais. A licitação pública, em sentido amplo, inclusive a dispensa e a inexigibilidade, prevê que a lei e o Direito sejam seguidos porque o bem jurídico protegido é a contratação pública em sentido estrito e o interesse público em sentido amplo. Quando os agentes públicos praticam atos em desconformidade com a lei, a própria doutrina e a legislação, os sujeitam à responsabilidade civil, administrativa e criminal. Toda penalidade é criada após a infração de um indevido, sendo assim nos crimes aplicados ao processo licitatório foi necessário que fosse aplicado penalidades e medidas para tentar diminuir as praticas penais. É possível ainda o afastamento da responsabilização penal com as excludentes previstas nos artigos 23, 24 e 25 do Código

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Penal, pois a prática de crimes licitatórios acarretam em prejuízo para toda a sociedade, se o processo licitatório prima pela isonomia entre os proponentes, a “escolha” de uma determinada empresa para contratação por motivos de interesse pessoal de qualquer servidor público estará indo da contramão do princípio constitucional. Portanto, o que se concluiu de um modo geral é que o agente público é responsável pelas ações e omissões que causaram dano a alguém, se desviarem da finalidade pública, seja pela falta de observância das regras e dos princípios que orientam a boa administração pública.

Referências BRASIL. Constituição Federal, 05 de outubro de 1988. Diário [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 06 out. 1988. ______. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Institui noras para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, Ano CXXXI, n. 116, 22 jun. 1993. ______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 11 jan. 2002. ______. Direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012. INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ. Ceará. Licitações. Disponível em: Acesso em: 27 mar. 2014. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos 15.ed. São Paulo: Dialética, 2012. ______. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2013. LUSTOSA, Dayane Sanara de Matos. Rio Grande do Sul. 2014. Licitação: inexigibilidade x dispensa. Disponível em: Acesso em: 27 mar. 2014. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

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MOURA, Maria Thereza de Assis. REsp 1.058.261-RS,. Julgado em 16/12/2010. Informativo STJ n. 0460 - Período: 13 a 17 de dezembro de 2010. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2014 NASCIMENTO, Elyesley Silva do. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Impetus, 2013. NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2013.

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CRISE DA JURISDIÇÃO: MEIOS ALTERNATIVOS PARA O TRATAMENTO DOS CONFLITOS DE MASSA A PARTIR DA RESOLUÇÃO Nº 125 DO CNJ E EMENDA Nº 001/2013 DO CNJ

Abner Rogério Flores da Silva36

RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar e discutir as alternativas para o tratamento dos conflitos sociais a partir das novas diretrizes estabelecidas pela Resolução nº 125 e Emenda nº 001/2013, ambas do CNJ. Neste contexto, por meio do método de revisão bibliográfica, coleta de dados, informações e resoluções, procurou-se apontar em linhas gerais as causas mais flagrantes da denominada crise da jurisdição, estabelecendo-se um paralelo direto com o conflito e em especial o conflito de massa, a partir do surgimento de uma nova categoria de direitos, denominados de terceira e quarta gerações. O estudo centrou foco nas novas diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça, notadamente em relação às alternativas consensuais para o tratamento dos conflitos de massa, mecanismos da conciliação e mediação, com as inovações relativas aos sistemas de gestão e atuação junto a grandes litigantes, objetivando, assim, não somente o abrandamento da crise do sistema jurisdicional, mas em busca de um novo paradigma para o tratamento dos conflitos em prol da pacificação social.

Palavras-chave: Crise da Jurisdição; Tratamento do conflito de massa; Conciliação e Mediação. 1. Introdução A jurisdição, entendida como o instrumento pelo qual o Estado-Juiz “diz o direito” encontra-se debilitada, vez que, como parte integrante do próprio Estado, já não consegue emprestar a agilidade e efetividade necessárias na resolução/tratamento dos

36

Escrivão Judicial na Comarca de Sobradinho/RS. Especialista em Direito Processual Civil: novo código de processo civil pela Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC (2013). Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ (2001-2). Endereço eletrônico: [email protected]

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conflitos sociais, gerando, em última análise, descrédito e deslegitimação do próprio Poder Judiciário, encarregado de garantir a pacificação social. Neste contexto, o presente artigo, por meio do método de revisão bibliográfica, coleta de dados, informações e resoluções, procura analisar sucintamente as causas desta crise da jurisdição, delimitando-a no tempo e no espaço, enfocando como principais causas as mudanças sociais ocorridas, o surgimento de novos direitos e a ideia arraigada de litigiosidade. A par disso, no sentido de melhor entender as razões desta crise, a análise também passará por entender a questão do conflito, as causas geradoras e notadamente o surgimento do denominado conflito de massa, que nasce a partir de uma nova categoria de direitos, denominados de terceira e quarta gerações (direitos difusos e coletivos, etc.). O nascimento destes novos direitos fez surgir, com certeza, uma explosão de litigiosidade, demanda que o Poder Judiciário não se encontrava preparado para receber. Como alternativas para o tratamento do conflito, notadamente os de massa, bem como para o enfretamento da crise da Jurisdição, colocam-se em destaque os métodos autocompositivos da mediação e conciliação, em relação aos quais, num primeiro momento, a análise se restringirá à conceituação e delimitação de semelhanças e diferenças para o fim de melhor aplicá-los ao caso concreto e, posteriormente, o estudo fixará ênfase nas diretrizes trazidas na Resolução nº 125 do CNJ, combinada com a Emenda nº 001/2013 – CNJ, regramento que institui a Política Judiciária Nacional de tratamento de conflitos de interesses, colocando a mediação e a conciliação como protagonistas da cena, aptas a tratar e prevenir o conflito, trazendo alternativas exequíveis à Jurisdição com vistas à pacificação social, enfatizando-se, por derradeiro, as inovações trazidas no art. 6º, incs. VII e VIII, da Resolução 125/10, com alteração dada pela Emenda nº 001/2013, alterações bem vindas ao cenário jurídico em prol de uma mudança de paradigma.

2. Crise da jurisdição A jurisdição está em crise, isso é fato. Jurisdição, em seu sentido literal e original, significa “dizer o direito”37. Surge a partir da formação do Estado, juntamente com os 37

Sentido original do termo jurisdictio: jus (direito) dicere (dizer).

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poderes Executivo e Legislativo. Tem por função precípua a regulação das relações sociais, através do poder da coerção, para o fim de dizer o direito ao caso concreto, tendo na figura do Juiz o sujeito imparcial e neutro que neste momento representa o Estado, cabendo a este, em última análise, garantir a pacificação social. Nesse sentido, Moraes e Spengler (2012, p. 58): “A jurisdição surge, portanto, como poder jurisdicional que, sendo função do Estado, cabe-lhe com exclusividade. A tarefa de dirimir os conflitos de interesses passa, pois, a ser exercida por órgãos estatais separados da legislatura e da administração”. Assim, e por via de consequência, detém o Estado (Jurisdição) o pleno e indubitável monopólio da força, outorgada legitimamente pelos cidadãos para a administração dos conflitos sociais, objetivando a paz e coesão social. Releva lembrar que a preponderância da jurisdição estatal como meio de solução dos conflitos se explica diante da convicção de que tais garantias, dentre outras, são exercidas e respeitadas em sua plenitude. Este sentimento de exaltação da justiça estatal seria fruto do mito da justiça, a crença das partes de que um juiz respeitável e compassivo deliberará e tomará a decisão correta e justa (CALMON, 2008). Ocorre que a sociedade mudou, se transformou. Hoje, o modelo de Estado e de Jurisdição concebidos até então se encontram em pleno descompasso com a realidade, necessitando, com urgência, uma maior aproximação com a sociedade, emprestando efetividade e rapidez na garantia dos direitos mínimos dos cidadãos. O Estado, enquanto ente que deve fornecer ao cidadão saúde, educação, segurança, cultura e justiça não consegue minimamente assegurar tais direitos. Com a jurisdição não é diferente. Podemos aqui, brevemente, apontar algumas causas para a crise da jurisdição. Primeiramente, sabe-se que o Estado, em suas esferas executiva e legislativa, não tem acompanhado a velocidade das mudanças sociais. O poder executivo, na sua esfera de atuação, não consegue prover minimamente as garantias fundamentais previstas na Constituição Federal38. O poder legiferante, igualmente, numa crise ética, demonstra letargia para atualizar o direito posto à realidade de nossos dias, deixando à mostra um descompasso extremo entre a lei e a vida (em suas

38

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010).

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relações sociais), vácuo que vem sendo suprido, de forma questionável, pela jurisprudência e doutrina. Com isso, as demandas não atendidas na esfera executiva, nos últimos tempos, têm desembocado maciçamente na esfera judicial, sobrecarregando uma estrutura já vetusta e despreparada para receber o volume de ações judiciais a partir da inoperância do Estado. Desta forma, inegável que as relações sociais mudaram. Surgiram novas relações, novos conflitos, novos direitos, no entanto a jurisdição e sua estrutura não mudaram. Nesta perspectiva, sabemos que a crise da justiça passa por uma deficiência estrutural, pragmática, tecnológica e paradigmática (MORAES; SPENGLER, 2012). Por exemplo, hoje, quando se fala no direito à vida, fala-se também no direito a uma vida plenamente saudável em todos seus aspectos, como a preocupação que a radiação eletromagnética proveniente de antenas de telefonia celular – ERBS39 possa provocar à saúde humana e consequentemente à própria vida, situação que, num passado nem tão distante, era impensável e inimaginável, pois a única previsão existente em relação à vida era, talvez, na seara criminal (crime de homicídio). Nesse sentido, inegável que as transformações da sociedade não vêm sendo acompanhadas com a mesma velocidade pelo Estado, notadamente pelo Poder Judiciário. Moreira (2004, p. 67) afirma que: Tal alargamento das vias de acesso aos mecanismos estatais na prestação da justiça – em que pese todo imperativo às premências contemporâneas de uma sociedade cada vez mais complexa, posta em fase de um Estado de índole ainda nitidamente intervencionista na ordem socioeconômica – acompanhado pela outorga de uma série de direitos subjetivos, individuais ou coletivos, acabou culminando na sobrecarga de um sistema que não se encontrava então funcionalmente e institucionalmente estruturado e preparado para uma potencialização, nesses moldes, de sua tradicional função de equalizador de conflitos. De fato, pela combinação entre demanda reprimida e procura nova por jurisdição, ainda agravada por estruturas funcionais e fórmulas procedimentais antigas e essencialmente formais, intensificou-se de logo um estrangulamento, que já se mostrava crônico, da máquina judiciária, maximizando-se ainda mais o preexistente déficit de atuação na prestação de tutela jurisdicional.

Importante referir que a Constituição Federal de 1988 incorporou várias modalidades de direitos novos, ditos e entendidos como de terceira e quarta geração, os 39

ERB – Abreviatura para denominar Estação de Rádio Base, utilizada na área de telefonia móvel.

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quais passaram a ser tutelados com legislação própria. Dá-se o exemplo dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos afetos às áreas do consumidor, meio ambiente, probidade administrativa, etc. Para estes direitos, também, o Estado-Jurisdição não se encontrava preparado, criando-se mecanismos jurídico-processuais para a tutela destes direitos como forma de fazer frente a essa nova demanda social (ação popular, ação civil pública, ação coletiva de consumo, ação civil coletiva, etc.). Calmon (2008), refere, citando Ada Pellegrini Grinover, como fatores que convergem como obstáculos à efetiva prestação jurisdicional, a sobrecarga de trabalho, a morosidade no andamento dos processos, o sistema burocratizado, a falta de informação para os detentores de direitos em conflito, as deficiências da justiça gratuita a inadequação dos procedimentos atuais para lidar com certos conflitos emergentes e uma sociedade de massa, em que despontam interesses metaindividuais e economicamente menores. Na mesma linha, Moraes e Spengler (2012, p. 78): Paralelamente, surgem novas categorias de direitos e de sujeitos jurídicos legitimados a pleiteá-los. São os direitos coletivos, individuais homogêneos e os difusos. Esses novos direitos produziram novos atores, que determinaram a transferência do conflito da zona política para a jurisdicional. Então as demandas sociais se tornaram jurídicas e a consagração de novos direitos provoca uma explosão de litigiosidade significativa (em termos qualitativos e quantitativos), realçando ainda mais a incapacidade e as deficiências da estrutura judiciária, que passou a ser requisitada de forma ampla.

No Rio Grande do Sul a demora na prestação jurisdicional também se agrava, em que pese ter sido considerado, em recente pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como o Estado mais produtivo do País. Números oficiais de fevereiro de 2013, da Corregedoria-Geral da Justiça, revelavam que, nas comarcas gaúchas, tramitavam 4.102.681 processos no 1º grau40. De outra parte, em nível nacional, sabe-se que no final do ano de 2010 permaneciam pendentes de julgamento 59,1 milhões de processos41. Assim, resta evidenciado que o Estado está em crise, e consequentemente a própria Jurisdição. As relações sociais mudaram, novos direitos surgiram, notadamente

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O CAOS IMINENTE E O COLAPSO ADMITIDO NA JUSTIÇA BRASILEIRA. 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2013. 41 CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números: Relatório Interativo. Disponível em . Acesso em: 18 mar. 2013

em:

. Acesso em 20 de julho de 2015. BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. BRITTO, Cezar. Prefácio. In: CASTRO, C. A. P; LAZZARI, J. B. Manual de Direito Previdenciário. 9 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.

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CASTRO, C. A. P; LAZZARI, J. B. Manual de Direito Previdenciário. 9. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. CAVALCANTE, Marcio André Lopes. Breves comentários às alterações promovidas pela Lei 13.135/2015 nos benefícios previdenciários da Lei 8.213/91. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/>. Acesso em 23 de junho de 2015. IBRAHIM, Fábio Zambitte. As reformas e contrarreformas previdenciárias de 2015. Disponível em: . Acesso em 24 de junho de 2015. LEITE, Celso Barroso. A proteção social no Brasil. 2º ed. São Paulo: LTr, 1978. MOURA, R. L. de, TAFNER, P. e JESUS FILHO, J. de. Testando a Propriedade Redistributiva do Sistema Previdenciário Brasileiro: Uma Abordagem Semi-Paramétrica. In: TAFNER, P. e F. GIAMBIAGI (ed.), Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas. Rio de Janeiro:IPEA, 2007. RAWLS, John. O liberalismo Político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo, 2º ed. São Paulo:Atica, 2000.

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PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO: A CONFIGURAÇÃO DO INSTITUTO FRENTE À JURISPRUDÊNCIA

João Felipe Lehmen51

RESUMO O artigo tem por objetivo analisar o instituto da prescrição nas ações pessoais dos servidores públicos sob a ótica da jurisprudência, que, em algumas hipóteses, acoberta pelo manto prescricional, não só o quinquênio anterior ao ajuizamento da ação, mas sim o próprio direito vindicado. O estudo busca, à luz da interpretação de julgados, estabelecer quais são as ações intentadas pelos servidores públicos que atualmente estão afetas à prescrição do fundo de direito, de tal forma que a partir da sua elucidação o intérprete tenha condições de emitir seguras Conclusão.

Palavras-chave: Servidor Público; Ações pessoais; Prescrição do Fundo de Direito. 1. Introdução As ações intentadas por servidores públicos têm, em sua maioria, particularidades incomuns com relação a outras proposições jurídicas, seja pela competência do Juizado Especial da Fazenda Pública, seja pelos prazos estendidos para contestação e interposição de recursos ao ente federado, seja pela restrição à concessão de liminar, seja pela questão atinente ao pagamento das despesas judiciais, ou então pela especificidade do prazo prescricional que é afeta a matéria. Diferentemente do que ocorre nas relações entre litigantes particulares, cuja abordagem prescritiva perpassa o Código Civil – Lei Federal nº. 10.406/2002, as de direito material que vinculam a Fazenda Pública, a prescrição passa a ser tratada no Decreto Federal nº. 20.910/1932.

51 Assessor Jurídico da Câmara de Vereadores de Passo do Sobrado e Consultor Jurídico da Delegação de Prefeituras Municipais – DPM. Pós-graduando em Direito Tributário. E-mail: [email protected]

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Referida norma indica, em suma, que o prazo prescricional de ações ajuizadas em desfavor da Fazenda Pública ocorre em 5 (cinco) anos da data do ato ou fato do qual se originarem. Além disso, o instrumento jurídico desce a minúcia de enfatizar que àquelas prestações cujo vencimento se dá por dias, meses ou anos, acontece progressivamente na medida em que completarem o prazo da norma, qual seja, 5 (cinco) anos. Portanto, no presente ensaio a intenção é evidenciar ao operador do direito algumas ações e o marcos prescricionais aplicáveis à espécie, observando-se a posição jurisprudencial, especialmente do Superior Tribunal de Justiça – STJ, que consolida, no mais das vezes, não apenas a prescrição progressiva em dias, meses e anos, mas o próprio direito pretendido. Em que pese à inexistência de dúvidas quanto ao lapso temporal da prescrição das ações ajuizadas contra a Fazenda Pública, o operador do direito ainda enfrenta dificuldades naquelas situações cuja prescrição do direito reclamado tolhe do sujeito toda a pretensão. Em verdade, diante da nova conjuntura jurisprudencial os limites temporais da prescrição são sobrepostos, em algumas ocasiões particulares, alcançando toda a relação, ou seja, inclusive o período do quinquenal do até o ajuizamento da ação.

2. A Fazenda Púbica e a Prescrição O termo Fazenda Pública é usualmente empregado como sinônimo de finanças estatais, seja da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, mas não exatamente para designar os entes federativos, já que se inclui aí as autarquias e entidades com capacidade processual (MEIRELLES, 2000, p. 95). O glossário da Câmara dos Deputados conceitua Fazenda Pública como o: Conjunto de órgãos da administração pública destinados à arrecadação e à fiscalização de tributos, bem como à guarda dos recursos financeiros e títulos representativos de ativo e de direitos do Estado.

Samuel Monteiro assim define o instituto: (...) alcança e abrange apenas as entidades públicas (autarquias, Estados, União Federal, Distrito Federal e Municípios), que arrecadam diretamente, com autonomia administrativa e financeira própria, ou recebem tributos e contribuições criados por leis tributárias ou

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previdenciárias, observada a competência impositiva constante expressamente da própria Constituição Federal (1998, p. 10).

Já Leandro José Carneiro da Cunha: A expressão Fazenda Pública identifica-se tradicionalmente como a parte da Administração Pública que trata da gestão das finanças, bem como da fixação e implementação de políticas econômicas. Em outras palavras, Fazenda Pública é expressão que se relaciona com as finanças estatais, estando imbricada com o termo Erário, representando o aspecto financeiro do ente público (2007, p.15).

Em suma, o termo é utilizado para designar as finanças do Estado, seja através dos entes federados ou de suas autarquias. Em matéria processual, a denominação “Fazenda Pública” é assemelhada aos conceitos anteriormente reproduzidos na medida em que a pretensão invocada jurisdicionalmente pelo indivíduo poderá, ao final, ter reflexos nos cofres públicos, a depender do sucesso da demanda. Compreendida a abrangência do termo, calha referir que a prescrição das ações contra a Fazenda Pública é abordada no Decreto Federal nº. 20.910/1932, diferentemente daquelas onde os litigantes são pessoas dotadas de capacidade jurídica exclusivamente de direito privado, cujo respaldo se espelha no Código Civil. O Decreto Federal nº. 20.910/1932, regula taxativamente a prescrição das dívidas passivas da União, Estados e dos Municípios nos seguintes termos: Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

À primeira vista, partindo-se da leitura da parte inicial do dispositivo em apreço, poder-se-ia cogitar a sua aplicabilidade apenas e tão somente aos órgãos da administração pública direta, tais como os Municípios, Estados, Distrito Federal e União. Contudo, na sequência o mesmo artigo refere a terminologia Fazenda, o que congrega, conforme se viu alhures, as autarquias. Neste sentido, a jurisprudência já fixou entendimento de que o regramento aplicar-se-ia também às autarquias: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 1º, DO DECRETO 20.910/32, E 2º DO DECRETO-LEI 4.597/42. NÃOOCORRÊNCIA. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. NATUREZA JURÍDICA: AUTARQUIA EM REGIME ESPECIAL.

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APLICAÇÃO DA PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL. PRECEDENTES. DESPROVIMENTO. 1. O STF decidiu que os conselhos de fiscalização profissional não têm natureza de pessoas jurídicas de direito privado, consolidando o entendimento de que "ostentam a natureza de autarquias especiais, enquadrando-se, portanto, no conceito de Fazenda Pública" (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo, 5ª ed., São Paulo: Dialética, 2007, p. 291). 2. A pretensão indenizatória ajuizada em face do CREA/RS, autarquia em regime especial, sujeita-se ao prazo prescricional de cinco anos previsto no art. 1º do Decreto 20.910/32, nos termos do art. 2º do Decreto-Lei 4.597/42: "O Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, que regula a prescrição qüinqüenal, abrange as dívidas passivas das autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, criados por lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições, exigidas em virtude de lei federal, estadual ou municipal, bem como a todo e qualquer direito e ação contra os mesmos." 3. Agravo regimental desprovido.(STJ - AgRg no REsp: 956925 RS 2007/0124817-4, Relator: Ministra DENISE ARRUDA, Data de Julgamento: 20/09/2007, T1 PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 08.11.2007). (grifamos)

O Decreto ainda regula a prescrição das obrigações de trato sucessivo, ou seja, aquelas cujo vencimento se dá por dias, meses ou anos: Art. 3º Quando o pagamento se dividir por dias, meses ou anos, a prescrição atingirá progressivamente as prestações à medida que completarem os prazos estabelecidos pelo presente decreto.

Conforme se vê, nestas hipóteses a prescrição é progressiva, de tal sorte que ao implementar o prazo de 5 (cinco) anos as parcelas considerar-se-ão prescritas a rigor. Por outro lado, é preciso salientar que o mesmo Decreto, na tentativa de beneficiar a Fazenda Pública com prazos mais exíguos, prevê: Art. 10. O disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constantes das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas às mesmas regras.

Diante desta redação, por muito tempo se argumentou que naquelas ações cujo prazo é trienal (3 anos), a exemplo das ações indenizatórias com marco regulado no art. 206 do Código Civil, este deveria ser o lapso temporal aplicável também aos entes públicos, pois o próprio instrumento que regula a matéria o aborda sob tal enfoque. O Judiciário, contudo, resolvendo a antinomia fixou o entendimento que prevalece o critério da especialidade, de tal sorte que a prescrição contra a Fazenda

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Pública é aquela prevista no Decreto Federal nº. 20.910/1932, qual seja, 5 (cinco) anos e não a previsão do Código Civil. O Superior Tribunal de Justiça – STJ já se manifestou neste aspecto: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. PRAZO PRESCRICIONAL. DECRETO 20.910/32. QUINQUENAL. ACÓRDÃO EMBARGADO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DA PRIMEIRA SEÇÃO. DIVERGÊNCIA SUPERADA. SÚMULA 168/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o EREsp 1.081.885/RR, consolidou o entendimento no sentido de que o prazo prescricional aplicável às ações de indenização contra a Fazenda Pública é de cinco anos, previsto no Decreto 20.910/32, e não de três anos, por se tratar de norma especial que prevalece sobre a geral. 2. "Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado" (Súmula 168/STJ). 3. Agravo regimental não provido.(AgRg nos EREsp 1200764/AC, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/05/2012, DJe 06/06/2012).

Portanto, prevalece o entendimento de que prescreve em 5 (anos) as dívidas passivas da Fazenda Pública, aqui entendida como àquelas integrantes da administração direta e autarquias.

3. A Prescrição do Fundo de Direito O conceito de fundo de direito não é abordado amplamente pela doutrina brasileira, mas encontra-se, em algumas situações, definido pela jurisprudência, que tem desempenhado esta tarefa. A definição mais comum para o termo “fundo de direito” foi exarada pelo Ministro Moreira Alves no julgamento do RE nº. 110/419 – SP: Fundo de direito é a expressão utilizada para significar que o direito de ser funcionário (situação jurídica fundamental) ou os direitos a modificações que se admitem com relação a esta situação jurídica fundamental, como reclassificações, reenquadramentos, direito a adicionais por tempo de serviço, direito a gratificação por prestação de serviço especial, etc.

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A lição do Ministro conduz ao entendimento de que “fundo de direito” é uma situação jurídica ínsita do servidor público, ou seja, o plexo de direitos e garantias à que o indivíduo alçado a esta condição faz jus desde o momento em que ingressa no serviço público. Mas não é só isso, as situações funcionais posteriores também integram este conceito, tais como as promoções, adicionais e gratificações. Portanto, nos parece que a expressão é utilizada como sinônimo da situação jurídica do servidor frente a sua carreira. Diante deste contexto, a prescrição do fundo de direito surge como a ausência completa do direito pretendido pelo servidor público ao invocar a tutela jurisdicional na tentativa de alcançar algum deles. Poderia até se cogitar a ideia de que a prescrição do fundo de direito se assemelha a decadência na medida em que toda a relação é acobertada pelo instituto. Todavia esta equiparação resulta em considerável equívoco na medida em que a prescrição, incluindo a prescrição do fundo de direito, decorre do transcurso do lapso temporal previsto em lei frente à ação ou omissão do Estado, enquanto a decadência se apresenta justamente frente à inércia do titular do direito. Visando elucidar o conceito vale transcrever parte do voto do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro nos autos do RE n. 34.349: Prescreve o fundo de direito quando, por ação ou omissão, o Estado deixa de constituir situação jurídica que enseja a vantagem do funcionário. Prescreve o direito a percepção de parcelas vencidas, anteriores a cinco anos, contados da lide, uma vez constituída a relação jurídica, sendo a relação de trato sucessivo.

Portanto, ultrapassados mais de cinco anos do indeferimento tácito ou expresso, estão prescritas as parcelas, bem como o próprio fundo de direito, que se traduz em todo o direito vindicado, importando, assim, na impossibilidade de concessão tanto na esfera administrativa como na judicial. Esse é o entendimento manifestado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – TJ/RS: Administrativo. Servidor público, magistério estadual. Gratificação de risco de vida. Redução do percentual, decorrente de modificação da lei. Prescrição quinquenal implementada, atingindo o próprio fundo de direito. Acolhimento da preliminar de prescrição do direito de ação, nos termos do decreto n° 20.910/32 e verbete 85 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, a ensejar a extinção do processo na forma do art. 269, inc. IV, do Código de Processo Civil. Recurso desprovido. (TJRS,

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Apelação Cível n.° 70004099826, Terceira Câmara Cível, Relator: Des. Luiz Ari Azambuja Ramos).(grifamos)

Vale trazer a colação, trecho do acórdão desta decisão, que diz: [...] uma vez que haja manifestação, ainda que implícita, por parte da Administração Pública, denegando o direito buscado pela parte, o implemento do lapso prescricional disposto no Decreto 20.910/32 atinge não apenas as prestações anteriores ao quinquênio do ajuizamento de eventual demanda, mas, sim, o próprio fundo do direito.

Também já se manifestou o Supremo Tribunal Federal – STF, relativamente a prescrição do fundo de direito, conforme ementa abaixo transcrita: Funcionalismo. Prescrição. Não prescrevem apenas as prestações, mas o próprio fundo de direito se a administração, por ato expresso, ou implicitamente, nega o direito, vindicado, e a ação não é ajuizada, no prazo prescricional. A prescrição incide apenas sobre as prestações anteriores ao quinquênio quando não há tal negativa. Precedentes. Óbice regimental ultrapassado: Súmula 443.(STF, Recurso Extraordinário n.° 106956, Segunda Turma, Relator: Min. Aldir Passarinho).(grifamos)

Frente a essas considerações resta nítido que a prescrição do fundo de direito importa na ausência de reconhecimento à modificação da condição do servidor público frente às situações decorrentes da sua carreira, visto que implícita ou explicitamente a Fazenda Pública negou o pedido e ao mesmo tempo inexistiu a irresignação pertinente dentro do lapso temporal.

4. Das ações acobertadas pela prescrição do fundo de direito O item anterior já proporciona ao leitor uma boa ideia relativa a caracterização da prescrição do fundo de direito, qual seja, a negativa implícita ou explícita do direito pela Fazenda Pública. Logo é elemento essencial a configurar esta hipótese de prescrição que o Estado tenha emitido seu parecer a respeito do tema, denegando ou deferindo o pedido ainda que implicitamente. A manifestação estatal é, portanto, elemento essencial. O Superior Tribunal de Justiça – STJ, seguindo esta linha de raciocínio, fixou o entendimento de que nas ações que versam sobre a promoção de servidor público se opera a prescrição do fundo de direito. Vejamos:

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PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. POLICIAL MILITAR. PROMOÇÃO. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. 1. A jurisprudência do STJ é no sentido de que, quando a ação visa configurar ou restabelecer situação jurídica, cabe ao servidor reclamála dentro do quinquênio seguinte, sob pena de ver seu direito prescrito, consoante estipulado no art. 1º do Decreto 20.910/1932. 2. Agravo Regimental não provido. (STJ, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 27/03/2014, T2 - SEGUNDA TURMA) PROCESSO CIVIL. (...) MILITAR. PROMOÇÃO. RETIFICAÇÃO DAS DATAS. GRADUAÇÃO SUPERIOR. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. (...)3. Na espécie, o aresto recorrido está em consonância com a orientação pacificada nesta Corte Superior, segundo a qual há prescrição do próprio fundo de direito quanto ao prazo para o militar ajuizar a demanda com o objetivo de retificar as datas de promoção e obter as respectivas diferenças remuneratórias. Incidência da Súmula 168⁄STJ.(...)(EDcl nos EAREsp 305.543⁄PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe 05⁄12⁄2013). ADMINISTRATIVO. (...) MILITAR. ATO DE PROMOÇÃO. REVISÃO. PRESCRIÇÃO DO PRÓPRIO FUNDO DE DIREITO. PRECEDENTES. SÚMULA 83⁄STJ. INCIDÊNCIA.(...)2. A decisão recorrida foi proferida em consonância com a orientação jurisprudencial desta Corte, firmada no sentido de que "a pretensão de se revisar ato de promoção, no curso da carreira militar, prescreve em cinco anos, nos termos do que dispõe o art. 1º do Decreto n. 20.910⁄32, ocorrendo assim a chamada prescrição do fundo de direito" (AgRg nos EDcl no AREsp 250265⁄PR, Rel. Ministro Humberto Martins, DJe19⁄2⁄2013).3."Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida" (Súmula 83⁄STJ).(...)(EDcl no AREsp 289.459⁄SC, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe 25⁄03⁄2013).

Para o leitor pode parecer lógica essa conclusão, já que diante do caso prático o servidor público requer sua promoção que é deferida ou indeferida pela administração. Contudo, vale destacar que este procedimento não é unânime, haja vista que alguns planos de carreira e até mesmo os regimes jurídicos - os quais versam sobre a situação funcional do servidor - reproduzem a promoção automática, ou seja, independe do elemento volitivo (requerimento) do indivíduo a dar margem a negativa ou deferimento.

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Automática ou não, a promoção ocorre por ato formal da Fazenda Pública e como tal corporifica-se através de meios próprios, como por exemplo, portaria de promoção. Caberia ao servidor, diante da inação estatal, instá-la a pronunciar-se sobre a situação jurídica deste, já que do contrário a negativa implícita se apresenta. Em outras palavras, não concedida a promoção na época oportuna - diga-se, automática –, caracterizada está a negativa implícita hábil a ensejar a prescrição do fundo de direito da pretensão do servidor que permanecer igualmente inerte. Idêntica posição é adotada pelo mesmo Tribunal ao enfrentar o reenquadramento de servidores públicos: ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO DA FUNAI. REENQUADRAMENTO. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. OCORRÊNCIA. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o ato de enquadramento ou reenquadramento é ato de efeito concreto que deve ser combatido pela via judicial no prazo prescricional previsto no art. 1º do Decreto n. 20.910/32. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp 512.350/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/08/2014, DJe 13/08/2014). (grifamos)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. INTERPOSIÇÃO DE DOIS AGRAVOS PELA MESMA PARTE. NÃO CONHECIMENTO DO SEGUNDO REGIMENTAL. PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE E DA PRECLUSÃO CONSUMATIVA. RECLASSIFICAÇÃO. ANALISTA E TÉCNICO DE PLANEJAMENTO. SUDENE. LEI 5.645/1970. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DO DIREITO. ACÓRDÃO RECORRIDO EM SINTONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83/STJ. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE ENTENDE PELA EXISTÊNCIA DE ATO ADMINISTRATIVO CONCRETO. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. "Interpostos dois recursos pela mesma parte contra a mesma decisão, não se conhece daquele apresentado em segundo lugar, por força do princípio da unirrecorribilidade e da preclusão consumativa" (AgRg no AREsp 191.042/RS, Rel. Ministro João Otávio de Noronha,

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Terceira Turma, julgado em 10/06/2014, DJe 25/06/2014). 2. "O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que o enquadramento ou reenquadramento de servidor público constitui ato único de efeitos concretos que não caracteriza relação de trato sucessivo, de modo que a prescrição incide sobre o próprio fundo de direito" (AgRg no REsp 1360762/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 03/09/2013, DJe 25/09/2013). Incidência da Súmula 83/STJ. 3. Tendo o Tribunal de origem reconhecido a prescrição da pretensão autoral em razão da existência de ato administrativo único e concreto que excluiu os agravantes do reposicionamento de cargos, afastando, desta forma, a existência de ato omissivo, não compete ao STJ rever tal entendimento na via do recurso especial, por força da Súmula 7/STJ. 4. Primeiro agravo regimental não provido. Segundo agravo regimental não conhecido. (AgRg no AREsp 541.143/PE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 01/09/2014). (grifamos)

O Tribunal pacificou sua jurisprudência pela incidência da prescrição do fundo de direito por entender que o enquadramento ou reenquadramento da situação funcional do servidor público é ato concreto52, ou seja, que independe de ato administrativo posterior para tornar-lhe válido e eficaz. A própria Lei, por si só, ao prever a modificação agrega intrínseca validade do enquadramento ou reenquadramento, dando margem à eficácia imediata da medida. Outra demanda decorrente da situação funcional intentada pelos servidores contra a Fazenda Pública, que também possui entendimento pacificado pela jurisprudência, é a revisão de aposentadoria. Vejamos: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO. REVISÃO DE APOSENTADORIA. PRESCRIÇÃO. FUNDO DE DIREITO. PRECEDENTES. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, nos casos em que há pedido de revisão do ato de aposentadoria, a pretensão se submete à denominada prescrição do fundo de direito, prevista no art. 1.º do Decreto n. 20.910/32, tendo como termo inicial para fins de contagem do prazo prescricional a concessão do benefício pela administração. 2. O ato de concessão de aposentadoria se deu em 52

Rel. Min. Moreira Alves, Plenário no MS 23.493-AgR, DJE 13.10.1999: ato de efeito concreto só ocorre quando lei ou decreto trazem consigo mesmo efeitos concretos imediatos, como, por exemplo, leis que concedem pensão a determinada pessoa ou que aprovam planos de urbanização, sem a necessidade, portanto, para alcançar seu fim, de atos administrativos posteriores de individualização específica (...) sendo a norma em testilha de efeitos concretos, materialmente ato de cunho administrativo, a mesma encontra-se imune à impugnação pela via concentrada e abstrata de controle de constitucionalidade.

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1968, e a presente ação só foi proposta em maio de 2012, portanto após o transcurso do prazo prescricional. Agravo regimental provido para dar provimento ao recurso especial. (STJ - AgRg no AREsp: 575819 RJ 2014/0227303-4, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 07/10/2014, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/10/2014). (grifamos) ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO APOSENTADO. REVISÃO DE APOSENTADORIA. CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. OCORRÊNCIA. 1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a revisão do ato de aposentadoria para a contagem especial do tempo de serviço insalubre exercido durante o regime celetista submete-se ao prazo prescricional de cinco anos contados da concessão do benefício, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932. Precedentes: AgRg no AREsp 232.845/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 17/09/2013; AgRg no AREsp 228.972/SC, Rel. Ministra Diva Marlerbi (Desembargadora convocada do TRF 3ª Região), Segunda Turma, DJe 11/3/2013; AgRg no AREsp 11.331/RS, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 4/6/2012. 2. Não ocorre renúncia da Administração Pública à prescrição referente a ação de revisão de aposentadoria na hipótese em que reconhece, através das Orientações Normativas MPOG 3 e 7, de 2007, o direito à contagem de tempo de serviço especial para aposentadoria de servidor público, pois não foram expressamente incluídos por aqueles atos administrativos os servidores que, à época, já se encontravam aposentados e tiveram suas pretensões submetidas aos efeitos da prescrição. Precedentes: AgRg no REsp 978.991/RS, Relª. Minª. Alderita Ramos de Oliveira (Desembargadora convocada do TJ/PE, Sexta Turma, DJe 22/04/2013 e EDcl no AgRg no REsp 1.115.292/RS, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe 22/11/2012. 3. Agravo regimental não provido.(STJ - AgRg no REsp: 1218863 RS 2010/0199593-8, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 23/10/2014, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/11/2014)

No caso da ação revisional de aposentadoria o Superior Tribunal de Justiça assentou entendimento de que o ato de concessão de aposentadoria configura a negativa implícita exigida a caracterizar a prescrição do fundo de direito, ou seja, inexistindo no ato de concessão de aposentadoria determinado direito que o servidor acreditava fazer jus, é como se a Fazenda Pública já externasse sua opinião, o denegando. Embora não se trate de um direito funcional do servidor, calha trazer à baila o benefício da pensão por morte do servidor, cujo requerimento deve ser implementado dentro do quinquênio após o óbito deste, sob pena de aplicação da prescrição do fundo de direito, de acordo com firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

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ADMINISTRATIVO. PENSÃO POR MORTE DE SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. ART. 1º DO DECRETO 20.910/32. 1. A Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, na sentada do dia 16.10.2013, quando do julgamento do Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.164.224/PR, da relatoria da Ministra Eliana Calmon, firmou a compreensão de que "a prescrição atinge o próprio fundo de direito quando transcorridos mais de 05 (cinco) anos entre a morte do instituidor (servidor público estadual) e o ajuizamento da ação em que se postula o reconhecimento do benefício da pensão por morte", bem como o entendimento de que "o requerimento administrativo formulado quando já operada a prescrição do próprio fundo de direito não tem o poder de reabrir o prazo prescricional". 2. Agravo regimental não provido. (STJ - AgRg no REsp: 1398300 MG 2013/0268596-3, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 17/12/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/02/2014) PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. HABILITAÇÃO DE CÔNJUGE A PENSÃO POR MORTE. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. ART. 1º DO DECRETO 20.910/32. 1. O STJ tem firme entendimento de que a prescrição atinge o próprio fundo de direito quando transcorridos mais de 05 (cinco) anos entre a morte do instituidor (servidor público estadual) e o ajuizamento da ação em que se postula o reconhecimento do benefício da pensão por morte. Precedentes. 2. O requerimento administrativo formulado quando já operada a prescrição do próprio fundo de direito não tem o poder de reabrir o prazo prescricional. 3. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1406592 SC 2013/0327477-8, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 03/12/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/12/2013)

Nesta última situação a Corte Superior também visualiza a prescrição do fundo de direito pela concretização da negativa implícita diante do decurso do prazo de 5 (cinco) anos, sem que houvesse a provocação pelo beneficiário junto ao ente competente, resultando na inexistência de direito a ser reconhecido. Portanto, essas são algumas das ações propostas com vistas a reivindicar direitos decorrentes da condição do servidor público que estão afetas a prescrição do fundo de direito segundo a posição jurisprudencial dominante.

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5. Conclusão A prescrição do fundo de direito não possui uma abordagem extensa na doutrina jurídica brasileira, mas em contrapartida é amplamente aplicada pelo Poder Judiciário, cujo destaque aponta ao Superior Tribunal de Justiça - STJ como pacificador de sua aplicação, como visto nas pretensões supramencionadas. Diante da exposição deste ensaio é perfeitamente possível dizer que a aplicação da prescrição do fundo de direito não se restringe aos órgãos da administração direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), mas também incide nos tratos funcionais da administração indireta, como é o caso das autarquias, abrangidas pela expressão “Fazenda Pública”, utilizada pelo Decreto Federal nº. 20.910/1932. Perceptível o posicionamento da jurisprudência pátria, especialmente do Superior Tribunal de Justiça – STJ, pela incidência do instituto naquelas hipóteses em que ocorra uma manifestação administrativa, ainda que implícita sobre o direito pretendido, de que as ações que visam o reconhecimento de promoção, enquadramento e reenquadramento, revisão de aposentadoria e pensão por morte, pelas suas particularidades estão afetas a prescrição do fundo de direito. O elemento, negativa ou deferimento, administrativo do pleito se traduz como verdadeira jóia ao operador do direito quando do enfrentamento de questões específicas ao instituto, sendo possível dar embasamento jurídico adequado acerca das situações particulares e emitir juízo conclusivo, ao verificar a sua ocorrência ou não.

Referências BRASIL. Constituição Federal.Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2015. BRASIL. Decreto Federal nº. 20.910.Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2015. CUNHA, Leandro José Carneiro. Fazenda Pública em Juízo. São Paulo: Dialética, 2007. GLOSSÁRIO. Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2015. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000.

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MONTEIRO, Samuel. Dos Crimes Fazendários. São Paulo: Hemus, 1998. PEREIRA, Flávio Henrique Unes e Elisângela Aparecida Mendes. Prescrição deTrato Sucessivo e Prescrição de Fundo de Direito: Estudo de Casos. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2015

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AUTORES Abner Rogério Flores da Silva Ariane Simioni Bertholdo Hettwer Lawall Daniele Robaina Daniele Scheleder Rossal Fernanda Brandt João Felipe Lehmen Josiane Borghetti Antonelo Nunes Juliana Salgueiro Karina Meneghetti Brendler Luis Gustavo Andrade Madeira Marília Possenatto Nardi Maríllia dos Santos Dias Melani Feldmann Nairo Venício Wester Lamb Nathan Ritzel dos Santos Norberto Luiz Nardi Pâmella de Campos Paula Silveira Serra Justo Valente Simone Andrea Schwinn Vinícius D’Andrea de Medeiros Vinícius Ferreira Laner

ISBN 978-85-62583-73-5

www.livrorapido.com

9 788562 583735

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