\"Dar voz a um lugar vazio\". Sobre Jerzy Ficowski, memória, silêncio e poesia.

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Projeto de Extensão – Curso de Graduação em Artes Cênicas – UFSC

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Dar voz a “um lugar vazio”. Sobre Jerzy Ficowski, memória, silêncio e poesia – Piotr Kilanowski Links úteis

Dar voz a “um lugar vazio”. Sobre Jerzy Ficowski, memória, silêncio e poesia *[1] .

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Piotr Kilanowski **

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Editorial Fascículo Atual

No quadro da poesia polonesa dedicada ao tema do Shoah, ao lado das contribuições

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pontuais e grandiosas dos mais famosos entre os poetas poloneses, como Czesław Miłosz e

Integrantes

Wisława Szymborska, já apresentadas nas edições anteriores desta revista, cabe destacar o

ISSN 2237-0617

nome de Jerzy Ficowski e de seu livro Odczytanie popiołów – (A leitura das cinzas), quiçá, o

Qualis (CAPES) – B5

único livro poético de um poeta polonês integralmente dedicado a esse tema. Apresentaremos

Site sobre Ecopoesia (Universidade de Alberta/Canadá)

a seguir a figura do poeta em seu contexto histórico, para depois falar do livro e dos poemas que compõem a obra.

Sobre Teatro na Praia/ Textos Criativos »

Curso de Graduação em Artes Cênicas Departamento de Artes e Libras UFSC

O filho da época

“… à procura de autor”/Entrevistas »

Somos filhos da época e a época é política. Wisława Szymborska

Diferentemente de seus colegas mais famosos, Jerzy Ficowski, embora pertença à mesma geração poética de Wisława Szymborska, Zbigniew Herbert ou Tadeusz Różewicz, não obteve em vida o devido reconhecimento. Mas no seu caso, a aparente falta de atenção da crítica não deve ser tanto creditada ao fato de sua poesia não ser de qualidade comparável à dos melhores, nem ao fato de o autor não ter conseguido obter forte resposta dos leitores aos seus versos. A vida de Jerzy Ficowski, suas opções políticas (embora não fosse de modo algum uma pessoa ligada à política) e engajamentos atraíram para ele as atenções,

E-mail: [email protected]

desatenções, maldições e anátemas do sistema comunista.

Ficowski nasceu em 1924 e por esta circunstância de nascimento pertenceu à geração que é conhecida na história da Polônia como os Colombos. Sendo a primeira geração nascida no país que, depois de 123 anos de inexistência como Estado, conseguiu reconquistar a independência, os Colombos foram criados num espírito particularmente patriótico. Foram formados no amor à pátria, sendo leitores assíduos dos romances históricos de Henryk Sienkiewicz, que retratavam os momentos gloriosos da história polonesa, e nos quais seus protagonistas sempre defendiam a Polônia das invasões inimigas. Sendo assim, não é de se estranhar que foi essa a geração que pagou o preço mais alto na Segunda Guerra Mundial. Idealistas, jovens, apaixonados pela ideia da Polônia livre e independente, rapidamente adentraram as estruturas da Resistência que lutava contra os invasores alemães e russos. O nome da geração teve sua origem no livro de Roman Bratny Kolumbowie (Os Colombos) que descreveu o momento que para eles foi o da entrada na maturidade e da descoberta do novo mundo – a Segunda Guerra Mundial. Os protagonistas do livro, assim como aqueles em cujas vidas o livro se inspirou, vivem, amam, lutam e morrem em combate contra os alemães. O momento mais marcante para a geração foi o Levante de Varsóvia, de 1944, que tentou libertar a capital polonesa dos alemães e fracassou. Se por um lado a decisão política dos chefes do Estado polonês, de iniciar o Levante, teve como uma das esperanças libertar a capital antes das forças soviéticas, por outro, não contou nem com a força real dos alemães, nem com o movimento político de Stalin, que preferiu ver a flor da nação ser destruída pelos alemães, do que ajudá-la a combatê-los e depois ter que lidar com sua oposição. Como resultado, a ofensiva soviética parou na linha do Vístula, após ter expulsado os alemães da metade da cidade e assistiu ao Levante do outro lado do rio. O Levante, após os sucessos iniciais, se transformou em longa chacina da população civil, culminando com a destruição planejada do que restou da cidade após 63 dias de combates. O Exército Vermelho só adentrou o outro lado da cidade meio ano depois do início do Levante e quatro meses depois de sua queda, para transformar o país em estado satélite da Rússia soviética pelos próximos 45 anos. Assim foi a iniciação dos Colombos na vida real. A geração que viveu os ideais patrióticos primeiro foi perseguida por invasores, chacinada no Levante, enganada pela irresponsabilidade dos políticos que decretaram o início do Levante, mesmo sabendo da quase impossibilidade da vitória e, posteriormente, perseguida pelos comunistas, que assumiram o comando do país escudados pela Rússia soviética.

Como vários outros de sua geração, Ficowski sofreu perseguições nazistas. Em 1943, foi encarcerado na infame prisão de Pawiak, que ficava então no meio das ruínas que restaram do gueto de Varsóvia. Após ser milagrosamente solto, graças à ação e propina de sua mãe (ele mesmo falava que foi a segunda vez que a mãe lhe deu à luz), lutou no Levante de Varsóvia, para depois da sua derrocada ser preso nos campos alemães onde permaneceu até o fim da guerra. Teve a sorte de sobreviver, negada a muitos de sua idade. Jovens poetas de grande talento como Krzysztof Kamil Baczyński ou Tadeusz Gajcy foram mortos no Levante. Esta sorte de ter sobrevivido, quando a maioria de seus colegas e amigos não conseguiu, foi uma façanha que lhe trazia injustificado sentimento de culpa, do qual tanto se fala nos testemunhos dos sobreviventes.

Após a guerra, estudou filosofia e sociologia na reativada Universidade de Varsóvia. Estreou em 1948 com o livro de poemas Ołowiani żołnierze (Soldados de chumbo) . Mas nos tempos imediatamente após a guerra, o estado comunista começou a perseguir violentamente aqueles que estavam envolvidos na Resistência contra os alemães. Vários de seus colegas estavam sendo presos, desapareciam, eram condenados à morte em processos com acusações falsas. Uma dentre as presas e torturadas foi Irena Sendler, que, como ele, tinha sido outrora prisioneira dos nazistas no Pawiak. Posteriormente, ficou conhecida mundialmente como a Mãe das Crianças do Holocausto. Sendler estava atuando na Resistência salvando crianças judias, cuja morte tinha sido decretada pela lei nazista. Quis o destino que uma dentre as crianças salvas fosse Elżbieta Kopel, depois Bussold (nome de sua mãe adotiva),

posteriormente Ficowska, que veio a ser esposa do poeta. O próprio Ficowski, além de saber da morte de seu melhor amigo pelas mãos da polícia secreta, foi por várias vezes detido, ameaçado, interrogado e torturado (como ele mesmo afirma, não foi espancado, mas o deixavam à beira da exaustão, não permitindo que dormisse durante dias a fio).

Ficowski conseguiu mais uma vez fugir das perseguições. Nos tempos da caça mais violenta aos ex-membros da Resistência, integrou uma caravana cigana e durante anos participou do grupo nômade. Durante as suas andanças, conheceu a poetisa cigana Papusza (leia-se Papucha), cujos poemas, posteriormente, ele traduziu para o polonês. Papusza, poeta semiletrada, acabou desenvolvendo um transtorno mental ém notíciasapós ter seus poemas publicados e ter sido escorraçada pela comunidade cigana, com a justificativa de que teria revelado aos gentios os segredos da comunidade. Criou-se assim em torno dela uma lenda que resultou em livros e filmes sobre sua vida. Ficowski que, com toda a boa vontade e empenho ajudou na divulgação do trabalho da poeta, tentou ajudá-la nos momentos críticos, mas estava desamparado diante da comunidade fechada e da própria poeta, que, seja por medo, seja querendo viver de acordo com as leis da sua comunidade, afastou-se dos gentios, não escrevendo mais poesia durante muito tempo.

Quando já era possível viver sem a ameaça de ser preso, Ficowski voltou à vida normal e se integrou à vida literária. Editava livros de poemas, escrevia letras de canções (recebeu vários prêmios como letrista), e mereceu destaque como autor de poesia para as crianças. Durante anos, Ficowski, além de ser poeta, foi também exímio tradutor de poesia. Traduziu do espanhol (entre outros, Lorca), cigano, russo (entre outros, os poemas russos do grande poeta polonês Bolesław Leśmian), alemão, italiano, francês, romeno e iídiche (cabe aqui destacar a tradução congenial do Canto do povo judeu assassinado (

- Dos lid fun

ojsgehargetn jidiszn folk), de Itzhak Katzenelson).

Um dos grandes feitos de Ficowski foi resgatar e popularizar o autor cuja obra conheceu um pouco antes de ser preso pelos alemães, durante a guerra. Recebeu na época, emprestado, o livro As lojas de canela (Sklepy cynamonowe), de Bruno Schulz, cuja leitura o transformou em eterno divulgador e estudioso da obra schulziana. Chegou até a escrever para Schulz, mas naquela época este já havia sido aprisionado no gueto de Drohobycz e provavelmente não recebeu a carta. Ficowski, no fim dos anos oitenta, por duas vezes intermediou a tentativa de resgate da obra prima perdida de Schulz, o romance O Messias , cujo manuscrito estaria nos arquivos da KGB. Um pouco antes da queda do regime soviético, um oficial da KGB queria vendê-lo, primeiramente a um americano que se apresentava como parente de Schulz, e depois a um embaixador sueco. Mas antes de finalizar as duas transações, os compradores morreram e o pretenso vendedor sumiu.

A obra ensaística de Ficowski referente a Bruno Schulz é um raro exemplo de um estudo apaixonado executado por um autor que se dedicou totalmente a ler e divulgar a obra de um outro escritor em vez da sua própria. Sem dúvida tanto nos estudos schulzianos, quanto na popularização da sua obra, a influência de Ficowski foi decisiva. Podemos afirmar que, o fato de hoje a obra de Schulz ser mundialmente conhecida, se deve em grande parte à atuação do poeta. Graças a Ficowski, que desde o fim da guerra incansavelmente procurava por documentos ligados a Schulz, temos acesso hoje não apenas aos desenhos, mas também a muitas das cartas do autor de Sanatório. Como crítico, Ficowski se opunha às leituras que queriam provar que Schulz era marxista e ateu (Artur Sandauer), como também àquelas que queriam ver nele um católico, após a pretensa conversão de Schulz nos anos 30. Sem dúvida, uma das maiores contribuições de Ficowski à schulzologia foi ter mostrado, utilizando os textos, as diferenças fundamentais entre Schulz e Kafka, destacando a originalidade do autor nascido em Drohobycz e a falta de significantes influências kafkianas, que muitos queriam ver na sua obra. Aos que querem conhecer Ficowski especialista em Schulz remetemos à página

de bibliografias schulzianas dedicada à contribuição do poeta. Uma lista deveras impressionante: http://www.brunoschulz.org/ficowski-biblgr.htm

Outros ensaios de Ficowski que ganharam renome foram os estudos sobre o folclore cigano e judeu.

Apesar de ser conhecido e reconhecido no meio poético, Ficowski sofria, ora mais, ora menos, o boicote do sistema pelo seu passado e suas atitudes. Ele mesmo teve dificuldade de viver no sistema que constantemente limitava a liberdade de seus cidadãos. Nos anos setenta, integrou ativamente os movimentos oposicionistas que resultaram depois na eclosão do Solidariedade. Protestava contra o antissemitismo oficial do governo comunista, que ainda em 1968 promoveu a expulsão, da Polônia, das pessoas de origem judaica. Subscreveu a carta de protesto dos intelectuais contra as mudanças na constituição polonesa que oficializariam o país como vassalo da União Soviética. Foi então que seu nome foi posto no índex e sofreu a proibição de publicação. Seus poemas nesta época foram editados no exterior e nas editoras clandestinas, mas oficialmente o seu nome não podia ser publicado, até os anos oitenta, quando por influência do Solidariedade a censura foi obrigada a ceder em alguns pontos. No tempo em que foi proibido de ser publicado, o poeta sobreviveu graças aos donativos anônimos e pacotes de comida que chegavam para ele do exterior. Foi obrigado a se desfazer da sua casa de veraneio e de vários de seus bens, entre eles a carruagem que recebeu como presente dos ciganos com quem viveu e sobre quem tanto escreveu. Mas, como disse, paradoxalmente foi libertador para ele em termos artísticos não ter que se preocupar mais com as limitações que a autocensura lhe impunha.

Foi assim que o seu livro de poemas mais famoso e, segundo o autor, o mais importante, veio a lume. Odczytanie popiołów (A leitura das cinzas) foi editado em 1979, em Londres, e posteriormente nas editoras clandestinas, na Polônia. Nos anos 80, visitou a Inglaterra e Israel como pesquisador do folclore judaico. Os anos da Polônia livre foram marcados por livros poéticos nos quais o autor tratava dos temas ligados à morte e à passagem do tempo. Jerzy Ficowski faleceu em 2006. O seu túmulo exibe o texto preparado pelo autor para a ocasião.

Eu abaixo assinado JERZY FICOWSKI mudando-me no dia 9 de maio de 2006 para a Eternidade (versão igualmente válida: o Nada) terminei a existência local sem ter terminado coisa alguma de acordo com o Regimento do Criador e a prática perene dos habitantes deste mal concebido mundo que se conduz de modo pior ainda peço encarecidamente

aos meus Próximos e aos meus Distantes a benção do sorriso e a graça da serenidade em vez de suspiros e tristeza pois não aconteceu nada de extraordinário Por atender o meu pedido antecipadamente agradeço a todos e peço desculpas pelo incômodo /-/ Jerzy Ficowski Varsóvia, fora do alcance do tempo[3]

Poeta é aquele que não esquece

eu queria apenas calar mas calando minto eu queria apenas andar mas andando pisoteio Jerzy Ficowski

Falar de toda a poesia de Ficowski, de suas múltiplas facetas e características ultrapassaria em muito os limites deste trabalho. Estudioso do folclore, da obra schulziana, dos ciganos, tradutor, letrista, autor de 14 livros de poesia, de livros infantis e de ensaios, dava Ficowski, na sua escrita, o espaço privilegiado ao mito, à imaginação, ao estudo dos objetos e à observação do cotidiano. Por um lado, autor de poesia de uma rara inventividade linguística, por outro, eterno defensor dos oprimidos e guardião da memória. A rara capacidade de ser ao mesmo tempo simples e sofisticado é o que caracteriza a maioria de seus poemas. A poesia era para ele uma forma de conexão com o sagrado, a linguagem – a porta para acessar este espaço.

O livro Odczytanie popiołów (A leitura da cinzas) foi escrito ao longo de décadas. Desde os poemas escritos durante a guerra (nunca publicados e sempre destruídos, pois o autor rasgava

minuciosamente os seus manuscritos), efeitos de se defrontar aos 17 anos com crianças judias sofrendo frio, fome e perseguições nas ruas de Varsóvia, passando por poemas dedicados ao Levante do Gueto de Varsóvia, Ficowski procurava uma linguagem capaz de expressar o inexpressável. Queria dar o testemunho, queria expressar a empatia, mas temia fazê-lo e de algum modo ofender. Ciente da impossibilidade da tarefa, não conseguia deixar de fazer o que considerava a sua obrigação. Como fazê-lo, foi uma grande pergunta. “Busco palavras/que não existem” (*** [Nie zdołałem ocalić ] (Não consegui salvar ) dizia, pois como se pode expressar o silêncio… Este poema, que abre o livro, além de ser uma expressão de desamparo e impotência (“Não consegui salvar/nem uma vida/não soube deter nem uma bala”), expressa também a empatia e solidariedade para com a tragédia da nação judia – marcos distintivos ao longo de toda a vida de Ficowski: “corro/para o socorro não pedido/para o resgate tardio/quero chegar a tempo/mesmo que tarde demais”. Percorrer os inexistentes cemitérios, cemitérios nos ares, como diria Celan, em busca de palavras que não existem, é também o trabalho da ajuda não solicitada, mas necessária – o resgate tardio da memória. A memória que além de desaparecer por seus próprios mecanismos é também silenciada – o tema do Shoah era um tema que por muito tempo foi silenciado pelos governantes na Polônia comunista. Era famoso o caso da Grande Enciclopédia Universal, publicada pela Editora Científica do Estado (Państwowe Wydawnictwo Naukowe, popularmente PWN), que em 1968 ousou afirmar que os milhões de vítimas de Auschwitz eram predominantemente judeus (e não poloneses como queria a mitologia sustentada pelo governo). O comitê científico da enciclopédia foi acusado de falsear história e nas edições seguintes a informação foi retificada, de acordo com a versão oficial que silenciava sobre o Holocausto, acrescida de um pedido de desculpas. O poeta sentiu a necessidade de acudir, resgatando a memória, chegando “a tempo/ mesmo que tarde demais”.

O drama da necessidade de falar sobre o que merecia respeitoso silêncio é refletido em um outro poema, (***) [ Muranów góruje] (Muranów se ergue). O poema é dedicado à construção de um novo bairro, Muranów, durante muito tempo planejado como o cartão de visita do comunismo, diretamente sobre os escombros do gueto, que eram na verdade um imenso cemitério, contendo no meio inclusive o que restou do campo de concentração KL Warschau, criado ao redor das prisões de Pawiak e Gę siówka, bem como o Umschlagplatz, lugar de onde cerca de 300 mil judeus foram deportados para Treblinka. No lugar de Umschlagplatz, no sítio onde hoje se ergue o monumento aos levados à morte, construído em 1988, quando o comunismo emitia seus últimos estertores, funcionava na Polônia comunista um posto de combustível. A falta de preservação da memória e a tentativa de construir em cima dela uma nova realidade fazem com que o poeta diga: “eu queria apenas calar/ mas calando minto/ eu queria apenas andar/ mas andando pisoteio”. A tarefa impossível de manter o silêncio sobre os “cemitérios/que não existem” e sobre os mortos que não são devidamente comemorados (como diz em outro poema dedicado a Janusz Korczak e suas crianças, mortos em Treblinka, 5 VIII 1942: “está cheio deles em lugar nenhum”), para não ser confundido com aqueles que “calando mentem”, fez com que o poeta tentasse expressar o silêncio. E como em vários dos poemas ligados com o Shoah, o silêncio é o tema principal do livro. Silêncio dos mortos, silêncio apavorado dos que foram obrigados a assistir o genocídio, silêncio indiferente dos outros espectadores, silêncio dos que queriam silenciar a memória, silêncio daqueles que querem respeitá-la, silêncio do esquecimento, seja ele natural, autoimposto ou imposto de fora…

Mas como expressar este silêncio, todos estes silêncios com palavras? Ficowski tenta e o resultado é um volume de 25 poemas, que foi classificado por muitos como o mais tocante testemunho poético do Shoah escrito por um não-judeu. Henryk Grynberg, polonês judeu, sobrevivente, poeta e escritor de literatura testemunhal, disse que Ficowski é o mais importante entre os poetas poloneses que escreveram sobre o Holocausto e que depois dele há um enorme vazio.

Carta a Marc Chagall e o Novíssimo Testamento

Eis os versículos do Novíssimo Testamento. Nele seis milhões de laudas carbonizadas, e mira-se nas sobreviventes, faz anos, o castiçal vermelho do incêndio. Jerzy Ficowski

Um marco colocado nesta escrita, depois dos poemas juvenis, que não sobreviveram, foi o poema escrito ao longo dos anos (aproximadamente de 1950 a 1957) List do Marc Chagalla

(Carta a Marc Chagall). O poema posteriormente integrou o livro Odczytanie popiołów, mas além de se consistir numa primeira tentativa de encontrar a voz poética apropriada para expressar o inexpressável, teve uma história interessante. Foi traduzido para o francês nos anos 60, publicado numa revista de pouco alcance e, por conta de alguma comemoração do Holocausto, lido durante um programa de rádio. A sorte quis que a senhora Chagall estivesse escutando o programa e, ao ouvir o início do poema, foi correndo com o radinho de pilha até o marido, dizendo que ele tinha que ouvir aquilo. Chagall ouviu até o final, entrou em contato com o poeta, recebeu dele o poema e como resultado surgiu um livro – a edição limitada de 175 exemplares numerados do poema de Ficowsk,i ilustrada por aquafortes de Chagall. Segundo o poeta, este foi o maior prêmio que poderia ter recebido na sua vida artística. Esta versão da história é contada pelo autor no filme Amulety i definicje (Os amuletos e as

definições)[4] . Num dos posfácios ao poema escreve só que enviou a tradução a Chagall[5].

O próprio poema é uma mistura de depoimentos infantis que relatam os acontecimentos da guerra com a voz do poeta, que fala das imagens do onírico conto de fadas de Chagall e dos objetos – testemunhas mudas do Shoah. As referências diretas a algumas das pinturas de Chagall ( O violinista verde e Os amantes nos lilás ) são contrastadas pelos testemunhos das crianças. Ficowski, que em todo o seu caminho poético enfatizava a importância da infância, encontrou na simples, indefesa, imperfeita e imatura fala das crianças a chave para tentar expressar o que sentia necessidade de dizer.

Construindo o poema, estilizado de carta para o pintor, em cima do paradoxo “Que pena que o senhor não conhece Rosa Gold ” e “Que bom que o senhor não conhece Rosa Gold!”, palavras que iniciam as primeiras estrofes dos poemas, repetidas posteriormente em relação a outra criança: “Que pena que o senhor não conhece Frycek!” e “Que bom que o senhor não conhece Frycek”), o poeta consegue criar uma base de escrita sobre o Shoah cheia de antinomias, bipolar. Por um lado, que pena que o pintor não conhecesse os horrores da guerra e que o seu mundo continuasse belo e fascinante, como se nada tivesse acontecido. Por outro, que bom que ele continuasse assim transmitindo o mundo da infância para o qual é possível sempre voltar, principalmente diante da destruição de todo o idílio. É assim a tentativa do poeta de refletir a tensão interna de escrever sobre o Shoah: proteger o mundo mítico da entrada da cruel realidade histórica (“que bom que o senhor não conhece”), ou permitir que o mito seja destruído revelando a tragédia que aconteceu (“que pena que o senhor não conhece”). A antinomia instalada assim é refletida pela mistura de testemunhos com a palavra poética, da prosa e da poesia. Cada palavra poética torna-se obsoleta diante das simples palavras das crianças que narram o inenarrável. A tensão entre a prosa e a poesia reflete a tensão que existe entre o grito e o silêncio (“Pois o último, o mais horripilante grito/é sempre apenas o silêncio.”). O grito – inútil, desamparado, sem sentido, diante do que aconteceu e o silêncio – incomodado de ser apenas silêncio, quando é preciso gritar, dizer, transmitir o testemunho…

A segunda parte do poema nos mostra a visão do Holocausto como poderia ter sido visto por

Chagall, o galo cego, o espelho em cacos, o castiçal refletindo os incêndios. O Novíssimo Testamento reflete o mundo após o apocalipse, fim do mundo judeu. Surgem então “os novos desertos” resultantes da morte nos campos do extermínio. Os desertos são internos e externos, neles só o poeta, empático e solidário com as vítimas (“Eu – ser humano, eu – filho desta terra,/ eu – irmão não queimado daqueles”) ainda consegue enxergar “as sobras dos assuntos humanos” protegidos por mito aleijado (“ainda vejo como o galo do senhor, que ficou cego,/protege as sobras dos assuntos humanos,/e no último dia da destruição/se eleva acima das cinzas.”) O clima é de desenfreado terror, enfatizado na sua mensagem pelo uso do estilo bíblico. A revelação – apocalipse – advinda da história se assemelha às últimas palavras do grande prenunciador da era moderna, Kurtz d O coração das trevas de Joseph Conrad: “O Horror! O Horror!”[6] O deserto interno deste “Novíssimo Testamento ” é visível nos outros poemas do livro. Pois assim podemos entender a falta de maiúsculas para marcar nomes e lugares e a ausência de pontuação: tudo é igualado, perdeu-se a hierarquia dos valores, perdeu-se qualquer ponto de referência. O Novíssimo Testamento proclama o mundo após o horror, o mundo sem judeus: “A eles lhes foi dito Ausentes/sois por demais numerosos sem contar os vivos/sois consanguíneos das cinzas/póstumos da fumaça” (Pós-escrito à carta a Marc Chagall.

Gênesis”)

A terceira parte da Carta à Marc Chagall é o fechamento dos assuntos iniciados na primeira parte. Após o apocalipse, o deserto externo – o do campo de extermínio – junta-se com o interno – as pessoas que procuram “o ouro nas camadas de cinzas que restaram dos prisioneiros queimados.” As suas mãos batem palmas para os trens nos quais Rosa Gold e Frycek voltam ao poema, para desaparecer para sempre do país no qual restam os seus mortos. Volta também a voz do poeta endereçada a Marc Chagall. E junto com esta volta, de algum modo aponta para a resolução da tensão criada pela antinomia inicial (que pena/que bom). O poeta vê na arte a possibilidade de refúgio, quem sabe o início de um novo mundo, ou pelo menos alguma forma de resgate do antigo, já que o eu lírico acredita que Rosa Gold e Frycek, “acharão abrigo/e que ainda os encontrarei/nos recantos seguros/das cores oraculares/nos seus quadros, senhor Chagall.”

Dar voz a um lugar vazio

E calam milhões de silêncios transformados em signo de sete dígitos E clama clama um lugar vazio Jerzy Ficowski

Odczytanie popiołów começa a encontrar a sua linguagem neste poema, publicado em 1957. Outros cinco poemas incluídos no livro: Milczenie ziemi (O silêncio da terra), Diagnozy

(Diagnósticos), Muranów góruje (Muranów se sobrepõe), Post scriptum listu do Marc Chagalla (Pós escrito à carta a Marc Chagall) e Egzekucja pamię ci (A execução da memória)fizeram parte dos volumes de poesia que Ficowski publicou ao longo dos anos, o primeiro junto com List do

Marc Chagalla (Carta a Marc Chagall), em Moje strony świata (Meus cantos do mundo) , de 1957, e os outros quatro em Ptak poza ptakiem (O pássaro fora do pássaro), de 1968. O próximo volume poético, por conta da proibição da publicação, seria Odczytanie popiołów em 1979. Isto nos permite ver como lentamente madurava a linguagem na qual o poeta juntou a

sua própria expressividade com a necessidade de encontrar uma maneira apropriada para falar do assunto. Por isso foi possível a outro poeta, Zbigniew Herbert, amigo de Ficowski, cuja trajetória em muitos aspectos se assemelhava à dele, dizer: “Ficowski conseguiu algo, aparentemente, impossível – deu uma forma artística convincente àquilo que não é comportado por palavras, devolveu aos inominados o rosto humano, o sofrimento humano individual e, portanto, a dignidade. Contrariando a farisaica indiferença e o conluio do silêncio, mais uma vez aplicou justiça ao mundo visível.”[7]

O poema que fecha o livro, Twoje matki obie (Tuas mães. As duas), mostra uma outra faceta deste volume. Ao lado da tragédia de uma nação, de uma comunidade, Ficowski mostra as histórias individuais. Seja por meio das dedicatórias, (para Rachela Auerbach, jornalista tradutora, ativista social no gueto de Varsóvia e amiga da Deborah Vogel – noiva de Bruno Schulz; para Bronisław Anlen, dentista que sobreviveu a prisão em KL Warschau, enquanto toda a sua família foi morta em Treblinka; para Bieta, Elżbieta Ficowska, sua esposa milagrosamente salva do gueto quando ainda bebê, os pais dela assassinados por nazistas), seja fazendo de pessoas individuais protagonistas do seu poema (Janusz Korczak, novamente Elżbieta Ficowska e suas duas mães: biológica Henia Kopel e adotiva Stanisława Bussold), usando as suas vozes (Róża Gold e Fryderyk Sztajkeller, crianças que falam no poema Carta a

Marc Chagall; relato da sua própria mãe), ou ainda compartilhando os seus retratos testemunhados em poemas Wniebowzięcie Miriam z ulicy zimą 1942(Assunção de Miriam na

rua no inverno de 1942) e Sześcioletnia z getta żebrząca na Smolnej w 1942 roku (Menina de seis anos do gueto mendigando na rua Smolna em 1942). Sem dúvida, esta forma de dar o rosto humano à morte em massa faz com que a voz poética seja mais tocante, menos abstrata. De algum modo ela nega o silêncio, a mentira da abstração: “E calam milhões de silêncios/transformados em signo de sete dígitos/E clama clama um lugar vazio” (Siedem słów – Sete palavras ). Talvez o fato de dar a voz a este lugar vazio, faça estes poemas tão importantes. O próprio autor falou assim sobre estes poemas, numa carta, por ocasião do recebimento do prêmio de Ka-Zetnik em 1986: “Não sei o que são estes poemas. Um epitáfio? – IZCOR? – Uma prece? – KADISH? Lamentos poloneses? Sei que cresceram da dor, da ira e do amor – e sei que por longos anos, com dificuldade e com temor, extraía de mim suas palavras, temendo que o que eu queria, o que eu preciso dizer é inexpressável, fecha a garganta, sufoca com o silêncio. Mas não pude silenciar, embora me fosse tirado o direito à voz, não me dei o direito de calar, sabia que “calando-minto”, como escrevi mais tarde num dos poemas de A leitura das cinzas . Tinha medo do pathos, palavras grandes, barulhentas que já ouvi tanto sobre os túmulos dos milhões. Tinha medo das palavras que abafam a dor e a memória. Escrevi então estes versos sobre Eles, “eu, seu irmão não queimado”, por quase trinta anos, frequentemente largando por longos períodos a impotente pena e empunhando-a de novo. A tarefa me parecia ser maior do que as forças, não só as minhas, mas também maior do que as forças e capacidade de qualquer palavra humana…”[8]

Fora dois poemas publicados em anais do seminário sobre Jan Karski e os Justos Entre as Nações, que se deu na UFPR, em 2014, (traduções reproduzidas com pequenas alterações na seção Teatro na Praia junto com dois poemas ainda inéditos), desconheço qualquer tradução de Ficowski para português. Da mesma maneira ignoro qualquer estudo crítico sobre a sua poesia feito neste idioma. Como é um autor que com certeza merece destaque, fico feliz podendo introduzí-lo ao mundo letrado brasileiro, e espero que depois de A leitura das cinzas , que deve vir a lume em breve, seguir-se-ão outras traduções.

CISOWSKA, Barbara. “List do Marca Chagalla” Stanisława Wiechowicza. In: Muzyka

instrumentalno-wokalna kompozytorów krakowskich. Materiais de Sessão Científica Nacional comemorando XXX anos de PWSM em Cracóvia 3-4 III 1976 (seleta). Zeszyt Naukowy,

Cracóvia: PWSM, 1979, p. 110-154.

CZYŻ EWSKI, Krzysztof. Nie można tak po prostu…, czyli droga Jerzego Ficowskiego do odczytania popiołów. Disponível em: http://pogranicze.sejny.pl/nie_mozna_tak_po_prostu_czyli_droga_jerzego_ficowskiego__do_odc zytania_popiolow,1357-1,12734.html. Acesso em: 22.05.2015.

FICOWSKI, Jerzy.Lewe strony widoków. Poznań: Wydawnictwo Biblioteki Publicznej i Centrum Animacji Kultury, 2014.

__________ “Od autora” in: FICOWSKI, Jerzy. List do Marc Chagalla . Gdańsk: Tower Press, 2000, p. 12-13

__________ Odczytanie popiołów. Aus der Asche gelesen. Sejny: Pogranicze, 2003.

FICOWSKI, Jerzy apud GROSS, Natan. Jerzy Ficowski czyta z popiołów, posfácio a edição hebraica dos poemas de Jerzy Ficowski A leitura das cinzas. Tel Aviv, 1985. Disponível em: http://pogranicze.sejny.pl/natan_gross_jerzy_ficowski_czyta_z_popiolow_poslowie_do_hebrajski ego_bibliofilskiego_wydania_wierszy_jerzego_ficowskiego_odczytanie_popiolow___tel_awiw_198 5,355-8,11809.html. Acesso em: 22.05.2015. GRYNBERG, Henryk. Poeta pamię ci. In: SOMMER, Piotr (org.) Wcielenia Jerzego Ficowskiego –

według recenzji, szkiców i rozmów z lat 1956-2007 . Sejny: Pogranicze, 2010, p. 200 – 207.

HERBERT, Zbigniew. “O moim przyjacielu” (Sobre o meu amigo) In: SOMMER, Piotr (org.)

Wcielenia Jerzego Ficowskiego – według recenzji, szkiców i rozmów z lat 1956-2007. Sejny: Pogranicze, 2010, p. 218-219.

KAMIEŃSKA, Anna. To moja rzecz bo pospolita. Res Publica Varsóvia (edição clandestina), vol.6/1980, p. 96-104.

KANDZIORA, Jerzy. Narracja historyczna Jerzego Ficowskiego o Zagładzie. Teksty drugie Varsóvia, vol.4/2009, p.183-198.

PRZYŁUBSKA, Dorota; WOLDAN, Paweł. Amulety i definicje czyli szkic do portretu Jerzego

Ficowskiego. [Filme-dvd]. Produção de Dorota Przyłubska, direção de Paweł Woldan. Warszawa, Pado Studio Film (para o canal 2 da TVP),1998. 1 DVD, 42 min. color. son.

SOMMER, Piotr (org.) Wcielenia Jerzego Ficowskiego – według recenzji, szkiców i rozmów z lat

1956-2007. Sejny: Pogranicze, 2010.

SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas . Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 77-78.

* O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. O autor dirige os seus agradecimentos a

filha do poeta Anna Ficowska – Teodorowicz por compartilhar os materiais biobliográficos referentes ao poeta e a Eneida Favre por revisão deste artigo e longo tempo dedicado à leitura em comum dos poemas do livro Odczytanie popiołów e das suas traduções. ** Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC. [3] Todas as traduções ao longo deste trabalho são da minha autoria, a não ser quando assinalado diferente. [4] PRZYŁUBSKA, Dorota; WOLDAN, Paweł. Amulety i definicje czyli szkic do portretu Jerzego

Ficowskiego. [Filme-dvd]. Produção de Dorota Przyłubska, direção de Paweł Woldan. Warszawa, Pado Studio Film (para o canal 2 da TVP),1998. 1 DVD, 42 min. color. son. [5] FICOWSKI, Jerzy. “Od autora” in: FICOWSKI, Jerzy. List do Marc Chagalla . Gdańsk: Tower Press, 2000, p. 12-13 [6] CONRAD, Joseph. O coração das trevas. São Paulo: Compahia das Letras, 2008, p. 109. [7] HERBERT, Zbigniew. “O moim przyjacielu” (Sobre o meu amigo) In: Sommer, Piotr (org.)

Wcielenia Jerzego Ficowskiego – według recenzji, szkiców i rozmów z lat 1956-2007. Sejny: Pogranicze, 2010, p. 218-219. [8] FICOWSKI, Jerzy apud GROSS, Natan. Jerzy Ficowski czyta z popiołów, posfácio a edição hebraica dos poemas de Jerzy Ficowski A leitura das cinzas .Tel Aviv, 1985. Disponível em: http://pogranicze.sejny.pl/natan_gross_jerzy_ficowski_czyta_z_popiolow_poslowie_do_hebrajski ego_bibliofilskiego_wydania_wierszy_jerzego_ficowskiego_odczytanie_popiolow___tel_awiw_198 5,355-8,11809.html. Acesso em: 22.05.2015.

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