\"Derreto e me misturo aos milhões que me carregam\": análise do discurso no videoclipe de “Rota”, da Apanhador Só, em meio digital

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

"Derreto e me misturo aos milhões que me carregam": análise do discurso no videoclipe de “Rota”, da Apanhador Só, em meio digital 1 Belisa Zoehler GIORGIS2 Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS Resumo Este trabalho apresenta a análise do discurso em videoclipe em meio digital, tendo por objeto o da canção “Rota”, Apanhador Só. No estudo, é realizado o detalhamento relacionado à análise do discurso, tendo como base Patrick Charaudeau (2002; 2008; 2009). São apresentadas também questões relacionadas à pós-modernidade e à cibercultura como contexto, com Stuart Hall (2006), Pierre Lévy (1999) e André Lemos (2005; 2013), assim como aos itens pertinentes ao videoclipe e à performance, com Thiago Soares (2013) e Paul Zumthor (1997). Palavras-chave: Análise do discurso; Pós-modernidade; Cibercultura; Videoclipe; Performance. 1 Introdução O presente estudo apresenta a análise do videoclipe da canção “Rota”, da Apanhador Só, banda de rock independente de Porto Alegre. O vídeo foi lançado em 2016 em meio digital, tendo sido disponibilizado no canal da banda no site YouTube e compartilhado em suas inserções em sites de redes sociais, que são seu perfil no Twitter e sua página no Facebook. No contexto atual, a tecnologia e a comunicação por meio de mídias digitais permeia todos os aspectos da vida, momento em que se desenvolvem processos como as produções artísticas independentes, a disseminação das informações relacionadas a elas e também a reconfiguração dos meios no uso para as diferentes finalidades. Para além das possibilidades da evolução das técnicas, no entanto, permanece a importância do conteúdo da mensagem que se deseja transmitir. Desse modo, verifica-se a relevância da realização da análise do discurso presente em um videoclipe veiculado em meio digital, na relação das imagens com a letra da canção, assim como do vídeo em si com a identidade da banda, no processo linguageiro que se estabelece por meio de um contrato de comunicação entre os sujeitos, oportunizando que se compreendam as imbricações.

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Trabalho apresentado no GP Cibercultura, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale, e-mail: [email protected]

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Com isso, coloca-se a questão de pesquisa, de como se articulam os diferentes elementos do videoclipe de “Rota”, da Apanhador Só, em meio digital, sob o olhar da análise do discurso, em conjunto com a identidade da banda. O objetivo geral é analisar o discurso neste videoclipe, considerando o meio em que foi disponibilizado. O referencial teórico construído para este trabalho baseia-se principalmente na análise do discurso, com Patrick Charaudeau (2002; 2008; 2009). Complementarmente a isso, foram consultadas obras de Stuart Hall (2006), Pierre Lévy (1999) e André Lemos (2005; 2013), para estabelecer o contexto da pós-modernidade e da cibercultura, e de Thiago Soares (2013) e Paul Zumthor (1997), apresentando as questões relacionadas a videoclipe e performance.

2 Discurso: elementos, questões e estruturas para a sua análise

De acordo com o Charaudeau (2002) o objeto da análise do discurso é o agir comunicacional constituído de finalidades acionais e linguageiras. Nesse âmbito, o autor aponta que há diferentes formas de concepção das relações entre ação e linguagem. Considerar que a linguagem, seja verbal ou visual, representa as ações dos seres humanos, é a característica do ponto de vista representacional. Ver a linguagem como um ato orientado para o interlocutor, revelando a intenção linguageira do sujeito falante, é a do ponto de vista pragmático, que considera a linguagem como um ato dotado de certa força. Nesse caso, a ação é integrada na linguagem. Ainda segundo o autor, o ponto de vista interacional observa a linguagem como o resultado das trocas produzidas entre membros de um grupo social, no âmbito das interações verbais. Em relação a isso, “toda ação é orientada para um fim, depende de uma intenção que é programada em plano de ação e resulta ao mesmo tempo de uma regulação das trocas controlada por normas e convenções sociais” (CHARAUDEAU, 2002, online, grifos do autor). O uso da linguagem implica na provocação de efeitos e nas suas condições de produção e existência, que, conforme Monte (2014), inspirada em Charaudeau (2008), devem ser os pontos de partida para o exame da problemática quando é realizada a análise do discurso. Charaudeau (2002) apresenta, ainda, o ponto de vista comunicacional, que integra os anteriores e que considera os fatos de linguagem como de comunicação. Eles possuem uma dupla dimensão: a externa, que se baseia nos atributos psicológicos e sociais dos atores, e interna, que configura os atores como seres de linguagem, por meio de atributos linguageiros com a possibilidade de remeter a questões psicológicas e sociais. Nesse âmbito, o autor propõe uma distinção entre “fim” e “intenção”, considerando o primeiro como o objeto de

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busca da ação, e o segundo como a intenção de influenciar o interlocutor, produzindo o efeito visado, com o objetivo de modificar sua própria intenção. A medição do impacto desse efeito visado é realizada pela observação do comportamento do outro, no que o autor chama de efeito produzido. Esse processo pode ser percebido na produção e publicação de um videoclipe em mídia digital, com um efeito visado que se desdobra no efeito produzido no público. Cabe considerar nisso o apontado por Charaudeau (2009) no que se refere à identidade social e à identidade discursiva. De acordo com o autor, a tomada de consciência do sujeito sobre sua existência é permitida pela identidade, com a tomada de consciência de seu corpo, de seu saber, de seus julgamentos e de suas ações. Ela se articula por meio do princípio de alteridade, ou seja: na relação com o outro, o sujeito se reconhece semelhante e diferente desse outro, o que constrói com mais força sua consciência identitária. Segundo o autor, a percepção da diferença desencadeia um processo de atração em relação ao outro, como um enigma a resolver, ao mesmo tempo em que inicia o de rejeição, pois a diferença é, também, uma ameaça. A identidade, conforme Charaudeau (2009), é o resultado de um mecanismo de construção de traços de identidades. As diferentes identidades de uma identidade social são construídas por meio de atos de discurso ou de linguagem. A identidade social, de acordo com o autor, funda a legitimidade de um sujeito, como um direito à palavra que lhe é conferido, e tem a necessidade de ser reconhecida pelos outros. Isso ocorre em nome de um valor aceito por todos, a partir de normas institucionais que regem práticas sociais, num processo de atribuição de funções, lugares e papeis. É possível relacionar esses aspectos com a identidade social de uma banda de rock, explicitada nas suas canções e nos seus videoclipes, como atos de linguagem que possibilitam a construção dessa identidade. Em relação a isso, a identidade discursiva depende de um espaço duplo de estratégias, que são as de credibilidade e as de captação. As de credibilidade, conforme Charaudeau (2009), representam a necessidade do sujeito de que acreditem nele, e se desdobra nas atitudes discursivas de neutralidade, distanciamento e engajamento. Estas são atitudes relacionadas à imposição de argumentos, em uma atitude demonstrativa. De acordo com Charaudeau (2009), as estratégias de captação se articulam num processo de construção da identidade discursiva com base “nos modos de tomada da palavra, na organização enunciativa do discurso e na manipulação dos imaginários sócio-discursivos” (CHARAUDEAU, 2009). O surgimento dessas estratégias acontece quando o Eu-falante não

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está em uma relação de autoridade com seu interlocutor. Desse modo, o sujeito realiza a escolha entre as identidades discursivas de polêmica, de sedução e de dramatização. A influência discursiva, segundo Charaudeau (2009), surge desse jogo de alternância entre identidade social e identidade discursiva. Conforme as intenções do sujeito, seja comunicante ou interpretante, acontece a adesão da identidade discursiva à identidade, processo que resulta na formação de uma identidade única ou então de uma identidade dupla de “ser” e “dizer”. O autor considera o jogo entre identidade social e identidade discursiva dentro da situação de comunicação, em que a identidade social dos parceiros do ato de troca verbal é definida antecipadamente. Nesse processo, são definidos traços da identidade discursiva, resultando em escolhas para o sujeito falante, no que se refere à forma de mostrarse, estando conforme as instruções ou mascarando-as. O modelo comunicacional de análise do discurso proposto por Charaudeau (2009) se baseia em competências e estratégias. Nas competências, temos a comunicacional (ou situacional), referente ao reconhecimento, por parte do sujeito, da estruturação da situação de comunicação; semântica, que corresponde à organização de saberes pelo sujeito; e discursiva, que se relaciona às organizações enunciativa, narrativa e argumentativa do discurso. As estratégias são relacionadas ao contrato de comunicação, e se tratam da avaliação do sujeito sobre o espaço de que dispõe no interior do contrato, assim como a escolha no que se refere a modos de organização do discurso. Desse modo, as estratégias podem ser de legitimação, pela necessidade de reforço de uma posição de legitimidade; de credibilidade, buscando fazer o interlocutor crer na confiabilidade do sujeito; e de captação, buscando uma adesão absoluta e não racional do interlocutor. Conforme Charaudeau (2009) o contrato de comunicação constrói a identidade discursiva convencional, em relação à qual o sujeito escolhe estar ou não de acordo, considerando-se que as estratégias discursivas constroem a identidade discursiva desse sujeito. Cabe compreender, a partir disso, como funciona o ato de linguagem. De acordo com Charaudeau (2008), o ato de linguagem é um encontro dialético entre dois processos: o de produção, que é criado por um EU e se dirige a um TU-destinatário; e o de interpretação, criado por um TU’-interpretante, que por sua vez constrói a imagem de um EU’ do interlocutor. Há uma diferenciação entre o sujeito destinatário, o TUd, que é o destinatário ideal da mensagem, e o TUi, que é o interlocutor como ele realmente é, em uma configuração que escapa ao EU, e que passa a existir no momento que inicia um processo de interpretação. Ao mesmo tempo, se distinguem o sujeito enunciador, EUe, que é uma imagem construída pelo sujeito que produz a fala, o EUc, e que representa a intencionalidade no ato de

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produção; e o EUc, que é o sujeito comunicante em si, aquele que inicia o processo de produção construído em função de circunstâncias do discurso, e testemunha de um real pertencente a seu universo de discurso. Isso consolida a concepção de um ato linguagem não mais como um ato de Comunicação em que um emissor simplesmente produz uma mensagem endereçada a um receptor, de acordo com Freitas (2009). O ato de linguagem, segundo Charaudeau (2008), nasce de circunstâncias específicas de um discurso, acontece onde processos de produção e de interpretação se encontram, e é encenado pelo sujeito de fala e o sujeito agente, ou seja, pelos quatro sujeitos do ato de linguagem: EUc e EUe, TUd e TUi. Desse modo, o ato de linguagem é composto de dois circuitos de produção do saber: o espaço interno dos seres de fala, no circuito da fala configurada, no qual se articula, o EUe e o TUd, como suas imagens, relacionados às representações linguageiras das práticas sociais; e espaço externo, referente ao circuito externo da fala configurada, onde estão o que se coloca como imagem do EUc, o sujeito comunicante, e o TUi, o sujeito interpretante, correspondendo à organização do real, a partir de um saber. Nesse âmbito, poderíamos considerar, para este estudo, a banda Apanhador Só como o EUe e EUc, e seu público como TUd e TUi, no contrato de comunicação que se articula a partir do ato de linguagem do videoclipe com a letra da canção. Junto a isso, conforme Charaudeau (2008), de acordo com a esfera em que se encontram, o mundo falado pelos sujeitos tem dupla representação. Essa diferenciação acontece no âmbito da representação discursiva, quando o mundo é considerado no circuito da fala; e no que se refere à representação da situação de comunicação, relacionada à consideração como testemunha do real, no circuito externo. Após os detalhamentos no que se refere à análise do discurso, cabe passarmos à segunda parte do embasamento teórico deste trabalho. Desse modo, serão apresentadas conceituações no que se refere à identidade no contexto pós-moderno, cibercultura e performance em videoclipe.

3 Pós-modernidade, cibercultura e performance em videoclipe

De acordo com Hall (2006), a pós-modernidade ou modernidade tardia fez com que o sujeito tenha se tornado fragmentado, em contraponto à sua configuração estável em tempos anteriores. Assim, ele passa a ser composto por várias identidades, por vezes contraditórias entre si, no que o autor chama de celebração móvel. Isso se relaciona a como se configuram as sociedades modernas, que são de mudança constante e rápida, em contraponto às sociedades

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tradicionais. A identidade se articula com a cultura, que pode ser conceituada, conforme Geertz (2008) como um documento de atuação em uma determinada sociedade. A cultura e a identidade são construídas, e isso acontece de acordo com as diferentes sociedades. Nesse contexto, cabe considerar as implicações da cibercultura, que, conforme Lévy (1999), consiste na especificação de como se articulam técnicas, sejam materiais ou intelectuais, assim como de práticas, atitudes, formas de pensar e valores que se desenvolvem a partir da existência do ciberespaço. Este é a forma de comunicação a partir da interconexão de computadores por meio da internet, abrangendo a infraestrutura material e também as informações que circulam, assim como as pessoas que nele e por meio dele se articulam. De acordo com Lemos (2013), a cultura pós-moderna é ancorada no presente, enquanto revisita o passado, ao mesmo tempo em que caracteriza o surgimento de tribos em contraponto ao individualismo moderno, referindo Maffesoli (1987), implicando também em múltiplos papeis dos sujeitos sociais. A pós-modernidade também apresenta, conforme Lemos (2013), o rompimento da divisão entre alta cultura e cultura popular. Nesse âmbito, as redes telemáticas desterritorializam, segundo Lemos (2013), assim como a tecnologia faz emergir novas formas de sociabilidade a partir de sua transformação em ferramenta de estabelecimento de convívio e de constituição de comunidades. Lemos (2005) aponta, também, a configuração da cibercultura a partir de três leis fundadoras: a da liberação do polo da emissão, em que os sujeitos têm maior possibilidade de produção e disponibilização de conteúdos; a comunicação em rede, possibilitando novas e diferentes articulações; e a reconfiguração dos meios, também em razão de um processo de remediação, em que um meio media os outros, numa reinvenção e ressignificação de si. No ambiente da cibercultura, articula-se também a indústria da música, no qual temos, como representação imagética das músicas produzidas, o videoclipe. Trata-se de um dispositivo também importante de divulgação, conforme Soares (2013), propiciando que as músicas de um álbum sejam apresentadas em meio audiovisual, como a televisão, ou nos hoje existentes sites de streaming de vídeo, como o YouTube3. São produzidos videoclipes, de acordo com Soares (2013), das músicas que compõem o álbum de uma banda ou de um artista que são apontadas como música de trabalho, ou seja, aquelas que serão utilizadas comercialmente para chamar a atenção a respeito da obra fonográfica como um todo, ampliando as possibilidades de vendas de álbuns e o agendamento de shows.

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Soares (2013) propõe o debate do conceito de performance na discussão de concepção imagética em videoclipe, como forma de trazer possibilidades analíticas no âmbito do audiovisual. Assim, o autor entende performance como uma forma de “fazer ver” a canção (SOARES, 2013, p. 145), a partir de um conteúdo que deverá produzir sentido. Essa questão dialoga com o apresentado por Zumthor (1997), que conceitua a performance como uma forma de reconhecimento, concretizando algo da virtualidade à realidade. A performance, ainda conforme Zumthor (1997), marca o objeto performatizado, para além de constituir-se como um meio de comunicação, modificando o conhecimento. O videoclipe é apresentado por Soares (2013) como uma camada visual sobre a canção, tratando-se de uma performance inscrita na canção. Isso se desdobra, conforme o autor, na relação da movimentação dos corpos no vídeo vinculada aos gêneros musicais específicos, assim como as gramáticas produtivas a partir dos recursos de câmera, de edição e pós-produção. O autor ainda aponta questões que relacionam performance e cenários, a partir de especificidades no tratamento sonoro, articulação vocal do intérprete, configuração biográfica do artista e as geografias reais e imaginárias. Outras questões indicadas por Soares (2013) para a análise de videoclipes se referem à compreensão de quem produz os videoclipes, e com que interesses; como os videoclipes entram em circulação; e quais os interesses existentes em assistir a videoclipes. A partir dessas proposições, o autor coloca a importância da compreensão dessas lógicas para a abordagem e delineamento da dinâmica midiática do videoclipe, no âmbito de uma cultura da mídia. Com base no aporte teórico apresentado, torna-se possível estabelecer um embasamento que propicie a análise do discurso em videoclipe em meio digital. Passamos, dessa forma, à apresentação do objeto empírico e a análise do discurso nele. 4 O videoclipe de “Rota”, da Apanhador Só: análise do discurso e identidade A Apanhador Só realizou o lançamento do videoclipe de “Rota” em abril de 2016. A canção é parte do segundo álbum de estúdio da banda, “Antes que tu conte outra”. O videoclipe foi gravado durante a realização da turnê “Na Sala de Estar”, que, após ser viabilizada por campanha de financiamento coletivo, passou por 21 cidades votadas pelos fãs, em todas as regiões do Brasil, com apresentações em salas de estar de residências e outros espaços alternativos, como hostels. A turnê aconteceu entre agosto de 2015 e junho de 2016.

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O videoclipe foi produzido por Daniel de Bem, com imagens gravadas na praia de Iracema, em Fortaleza, no Ceará, utilizando um smartphone acoplado a um binóculo. O videoclipe foi publicado no canal da banda no site YouTube, e compartilhado em seu perfil no Twitter e em sua página no Facebook. Trata-se de uma forma de tornar acessível a seu público o vídeo. Processo semelhante de disponibilização de conteúdo vem sendo realizado pela Apanhador Só desde o lançamento de seu primeiro videoclipe, da canção “Maria Augusta”, em 2007. É possível apontar que tanto o procedimento de produção do vídeo como o de lançamento está em consonância com o apontado anteriormente neste trabalho no que se refere às três leis fundadoras da cibercultura apontadas por Lemos (2005): a produção independente, a conexão em rede que oportuniza a distribuição e a remediação dos diferentes meios, reinventados e ressignificados. Esse processo se articula no contexto da pósmodernidade, em que o sujeito possui uma identidade fragmentada (HALL, 2006), e em que as mudanças culturais se processam rapidamente, dentro do conceito de cultura proposto por Geertz (2008) como um documento de atuação construído em uma sociedade. Considera-se neste estudo o ato de linguagem como conceituado e detalhado por Charaudeau (2008), composto pelos dois circuitos de produção que são representados pelo esquema da situação de comunicação, no qual se encontram os quatro sujeitos de linguagem. Nesse contexto, o EUe, o sujeito comunicante como ser social, é a banda Apanhador Só em seu espaço externo, como enunciador e ser de fala; o EUc é a banda ligada a um conhecimento da organização do aspecto psicossocial, como sujeito comunicante. Ao mesmo tempo, o público da banda, que assiste ao videoclipe, é o TUd, ou seja, o sujeito destinatário, àquele a quem a Apanhador Só imagina alcançar com sua mensagem; e o público da banda é também o TUi, o sujeito interpretante. Para desenvolver a análise que se propõe, cabe observar a letra da canção “Rota”, obtida no site da Apanhador Só (2013, online), conforme segue: “Minha mente simplesmente volta E eu me esqueço dos sermões Delírios de comodidade nos conformam e convencem Sobre a forma de seguir olhando reto sem ouvir Entre as quadras Vai passando o ponteiro E o meu pé quer tropeçar E o meu pé quer tropeçar O suor arranha, o rosto escorre Olho o caos na palma da minha mão Derreto e me misturo aos milhões que me carregam E alucino na imagem daquilo que devia ter um pouco mais de drama Entre as quadras Vai passando o ponteiro

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E o meu pé quer tropeçar Vou seguindo a minha rota sem que eu possa controlar”

É possível verificar no conteúdo da letra uma reflexão existencial, carregada de questionamentos e melancolia. Os versos transmitem uma sensação de desamparo no contexto contemporâneo caótico, apresentando uma caminhada pela vida sem escutar a voz interior, por conta de uma ilusão de comodidade. Também se percebe a presença latente de um chamado à mudança e de uma vontade de seguir um novo rumo. Ao final, se conclui que o caminho vai sendo seguido sem uma possibilidade de controle daquele que o realiza. Assim, passamos ao detalhamento e à análise do videoclipe de “Rota”, em relação aos demais elementos já apresentados. O vídeo inicia com imagens distorcidas e desfocadas. No decorrer do videoclipe, é possível visualizar com mais clareza os elementos na imagem, mas o desfoque permanece em todo o vídeo, assim como se pode ver a borda da lente do binóculo. A seguir, se podem distinguir elementos como a água do mar, a cidade vista da praia, pessoas olhando um barco que se vai e alguns detalhes do que parece ser um píer. Na sequência, é visto ao longe um barco iluminado navegando. Figura 1 – Sequência de frames do videoclipe

Fonte: Vídeo de “Rota” no canal da Apanhador Só no YouTube (2016)

A seguir, aparece uma silhueta de pessoa, que depois se mostra a imagem clara de alguém que parece pensativo, com os cabelos ao vento, seguida de um barco vazio atracado. São mostradas pessoas no mar, brincando e nadando, e também na beira, conversando e rindo. Aparecem em diferentes momentos integrantes da banda, tanto no mar, em grupo, como olhando para as águas, pensativos.

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Figura 2 – Sequência de frames do videoclipe

Fonte: Vídeo de “Rota” no canal da Apanhador Só no YouTube (2016)

No decorrer, é mostrada uma pessoa no alto de uma pedra, preparando-se para saltar: ela salta, e aparece a imagem da água em movimento quando acontece o mergulho. A seguir, se veem pessoas em movimento em uma rua e, após, é mostrado um grupo de pessoas saltando da pedra e mergulhando. Na sequência, aparece um casal fazendo uma fotografia do tipo selfie com o mar e a cidade ao fundo. Figura 3 – Sequência de frames do videoclipe

Fonte: Vídeo de “Rota” no canal da Apanhador Só no YouTube (2016)

A seguir, se veem os integrantes da Apanhador Só tocando em um show. Após isso, aparecem dois deles em contraluz, ao pôr do sol. O videoclipe finaliza com a imagem do mesmo barco iluminado anteriormente mostrado, mas à noite, também navegando.

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Figura 4 – Sequência de frames do videoclipe

Fonte: Vídeo de “Rota” no canal da Apanhador Só no YouTube (2016)

Soares (2013) coloca a questão do videoclipe como um elemento de divulgação de música no âmbito do pop. Normalmente, são escolhidas algumas canções de um álbum de um artista ou banda como as mais representativas de um trabalho, com a função de chamar a atenção para a obra fonográfica, e para estas canções são produzidos os videoclipes. Este é o caso de “Rota”, em relação ao álbum “Antes que tu conte outra”, da Apanhador Só. O videoclipe de “Rota”, seguindo o proposto por Soares (2013) para a análise desse tipo de produção, se coloca ao mesmo tempo com a função de “fazer ver” a canção, assim como tornar-se uma camada visual sobre ela, com um conteúdo específico que produz sentido. Há, nos videoclipes, a questão da performance como meio, ou seja, a sua força imagética se constitui como mídia, que possui uma gramática produtiva específica. A isso se relaciona o apresentado por Zumthor (1997) no que tange à performance como concretização, assim como um agente de modificação do conhecimento, para além de ser um meio. Nisso se incluem diferentes elementos performativos, dentre eles os cenários, e a partir disso se pode verificar quem produz, com que interesses e como esse conteúdo circula, a partir de sua dinâmica midiática própria. Desse modo, é possível visualizar a identidade social da banda, conforme o conceituado por Charaudeau (2009), que, na situação de comunicação, se articula em um jogo com a identidade discursiva, constituindo a influência discursiva. Esses elementos se baseiam nas competências e estratégias de comunicação. Os aspectos estão vinculados ao o que Charaudeau (2002) distingue como o “fim”, sendo o objeto que se busca com uma ação, e a “intenção” que se verifica no efeito visado. Charaudeau (2009) aponta, ainda, que a intenção define se ocorre uma adesão entre identidade social e identidade discursiva, constituindo-se

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em uma identidade única. É possível observar claramente a relação dos aspectos apresentados por Charaudeau (2002; 2008; 2009) com aqueles apontados por Soares (2013) para a análise de videoclipe. No vídeo de “Rota”, observa-se a escolha da estética oferecida pela forma de produção do vídeo, com o smartphone acoplado ao binóculo, assim como a que se relaciona à forma de edição, dentro da gramática produtiva do meio. Assim, é possível verificar que estas opções trouxeram ao vídeo uma atmosfera etérea e de sonho, que lembra os filmes produzidos em Super 8, um formato cinematográfico da década de 1960. A estética dessas imagens traz a referência a um aspecto envelhecido, com a sensação de que está sendo exibido com um projetor analógico. Estes são aspectos que, junto com o conteúdo das imagens, contribui, em consonância com a identidade da Apanhador Só, para a produção do sentido da letra da canção. Está profundamente relacionada a isso também a forma de disponibilização do videoclipe para o público, utilizando-se do site YouTube com desdobramentos nos perfis da banda em sites de redes sociais. Os aspectos fundamentais da cibercultura estão intrinsicamente vinculados à Apanhador Só, à forma como desenvolve seu trabalho e como se posiciona. É possível verificar que a sequência de imagens no videoclipe apresenta uma narrativa que se constitui como uma leitura da letra, a partir de uma projeção própria da banda e relacionada com o seu contexto na época, que era o de uma turnê. Os elementos que remetem a uma sensação de caos – no caso, interna aos personagens –, assim como aqueles que apresentam uma reflexão e um desejo de agir em relação a um potencial latente estão presentes nas imagens do vídeo. Parece emblemático no videoclipe o aspecto do salto na água, seguido pelo movimento na rua e uma aparente forma de entrega ao amor na imagem do casal, assim como as imagens que se seguem, de outras pessoas mergulhando e da banda tocando, no que se refere ao que poderia ser uma síntese da ideia, decisão e ato da turnê “Na Sala de Estar” em si. O videoclipe foi lançado pouco antes do final da desta turnê, que teve seu último show em junho de 2016. Assim, verifica-se a força da imagem de dois integrantes vendo o pôr do sol, como admirando o que conquistaram até ali. O mesmo barco que no início aparecia com o dia claro, surge novamente na noite, seguindo a navegar, como aconteceu com a banda, em sua trajetória no restante da turnê e de sua carreira. A partir deste detalhamento, é possível observar, considerando-se a Apanhador Só como EUe e EUc, que, a partir da imagem que a banda constrói de si, ela inicia um processo de produção, com o videoclipe, desenvolvido em função das circunstâncias desse discurso. A

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Apanhador Só se utiliza de competências e estratégias, dentro do modelo comunicacional proposto por Charaudeau (2009), nessa produção. É possível dizer que a banda possui competência comunicacional, por reconhecer a estruturação da situação de comunicação que ali se coloca; semântica, na organização dos saberes; e discursiva, no âmbito da enunciação, narração e argumentação no videoclipe em consonância com a letra da canção. Ao mesmo tempo, a Apanhador Só se utiliza de estratégia discursiva, que, neste caso, podemos configurar como a de captação, na busca pela adesão não racional do interlocutor, no que Charaudeau (2009) designa como adesão absoluta. As estratégias discursivas, conforme o autor, constroem a identidade discursiva do sujeito. Assim, a de captação, que se articula na situação em que não há uma relação de autoridade entre o Eu-falante e o interlocutor, se desdobra, no caso da Apanhador Só, nas estratégias de sedução e de dramatização articuladas. Charaudeau (2009) define a estratégia de sedução a partir da construção de um imaginário, por meio de relato que seja suporte para identificação do interlocutor. A estratégia de dramatização é apontada pelo autor como a descrição de fatos com comparações e metáforas, apoiadas em valores afetivos socialmente compartilhados, relacionados a dramas da vida. Desse modo, considerando-se, a partir do apontado por Charaudeau (2008) o TUd como o público imaginado pela banda, e o TUi como este público como realmente é, torna-se possível verificar a relação com os elementos imagéticos apresentados no videoclipe, vinculados à proposição de um imaginário a partir da letra da canção. A identificação do público em relação aos elementos ali presentes ocorre em razão de que estes representam um processo comum aos mais diferentes tipos de pessoas em distintos momentos de suas vidas. O interesse do público em assistir pode desenvolver-se por conta deste conteúdo fazer com que sintam certas emoções – inicialmente, em razão da canção já conhecida; posteriormente, pela relação com as imagens do videoclipe já visto. Considerando-se o contexto que se propõe, da pós-modernidade, em que está presente a cibercultura, que implica na produção, distribuição e remediação, e que este videoclipe está sendo analisado também a partir de sua disponibilização em meio digital, cabe observar a mensuração dos resultados alcançados pela banda nesse âmbito. Com relação às métricas nas plataformas em que foi disponibilizado e compartilhado, foi realizada verificação em 15 de julho de 2016. Assim, no YouTube o vídeo teve 16.219 visualizações, 960 curtidas e 62 comentários – destes, um negativo e um neutro, e os demais todos positivos; no Twitter, o tweet teve 26 curtidas, dez retweets e uma resposta, positiva; e no Facebook, o post teve 1,3 mil reações, entre sendo 1,1 mil curtidas, 139 “amei” e sete “uau”, além de 235

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compartilhamentos e 67 comentários, todos positivos. É fundamental observar que se trata de uma banda de rock independente, ou seja, que não possui contrato com uma grande gravadora. Este é um aspecto que certamente influencia os números em suas inserções em sites de redes sociais. Assim, é relevante considerar estas métricas proporcionalmente ao número de seguidores e curtidas em canal, perfil e página, que são: 26.176 no YouTube, 11,5 mil no Twitter e 147.155 no Facebook. Desse modo, é possível verificar, a partir da análise do discurso desse videoclipe e considerando-se as implicações da cibercultura, as articulações dos diferentes elementos presentes nesse processo. As imbricações entre letra da canção e imagens têm fundamental importância para os resultados alcançados pela Apanhador Só nas plataformas digitais elencadas, e estão profundamente relacionadas à sua identidade e, por consequência, à identificação do público com seu trabalho e à adesão deste às ações realizadas pela banda.

Considerações finais

Este estudo buscou realizar a análise do discurso no videoclipe da canção "Rota", da banda Apanhador Só, disponibilizado em meio digital. A partir da problematização de como se articulam os diferentes elementos do videoclipe, em consonância com a identidade da banda, buscou-se constituir um referencial teórico que desse conta do objeto proposto. Desse modo, este estudo também se coloca como uma proposta teórico-metodológica para a abordagem de videoclipes em meio digital sob o olhar da análise do discurso. A relação com os aspectos da cibercultura como contexto contemporâneo atrelado à pós-modernidade, desdobrada na identidade a partir da cultura e sua relação com conceituações como as identidades social e discursiva também foi uma proposição para estabelecer um diálogo entre esses elementos. Produzindo um olhar sobre o videoclipe e sua relação com a letra da canção, este trabalho buscou explorar o aspecto interpretativo, a partir da análise do discurso de palavras e imagens. No entanto, também foram consideradas, com ênfase menor, mas com significativa importância para o contexto, as questões relacionadas ao meio digital, à forma de produção do vídeo e às escolhas estéticas vinculadas a esses elementos. Verificam-se diferentes possibilidades de uma análise mais aprofundada dos detalhamentos deste videoclipe em relação à canção. A produção de um olhar sobre questões como as das sonoridades presentes na canção, ou mesmo uma contextualização mais ampla

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dos diferentes elementos já analisados neste estudo, são alguns dos caminhos possíveis para uma continuidade desse trabalho.

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