destinos despertos

Share Embed


Descrição do Produto

destinos despertos

“A carta do desejo que o coração dobra para a enviar, na qual a efusão das lágrimas serve de tinta, e qual a mão, sob meus gemidos, traça sobre meu fígado as linhas que ditam as insônias”1.

O que nos mantém despertos durante a noite senão o desejo de nossos destinos. Seria o destino apenas um lugar para desembarcarmos? A trajetória, porém, é feita de idas e vindas, as vezes mais vindas do que idas, por percursos circulares, entrecruzados, embrenhados, enrolados, embolados, sobrepostos, interpostos, dispostos, fincados, arrancados ou simplesmente depositados sobre o mundo. Não. Um destino é o traço em si mesmo: mão e linha que o desenham irrevogavelmente unidos, ainda que violentamente dilacerados. Não poderia ser diferente com a trajetória da qual esse livro é parte. Nem começo, nem meio, nem fim, este livro é também entranha, órgãos e vísceras, de um fazer na arte. Aqui se encontram reunidos textos de diferentes autores que lançaram suas redes à captura de sentidos da vida/arte/vida da Cia Excessos. Cada texto é uma tentativa de ler a estranha anatomia de uma produção que se estende por mais de dez anos. Mais que desvendar os segredos do funcionamento de um corpo, o que tais textos buscam é compreender os mistérios de um destino. Não foram os gregos que inventaram o destino, mas o destino grego foi trágico, lancinante e pulsante. Inspirados por Apolo e lidos no mundo, por Pítia ou por Sibila, nas vísceras abertas de animais ou nos sinais visíveis na natureza, o destino escrevia, sob gemidos, a trajetória do herói. É a Sileno, todavia, que devemos a

1

Ibn Adhari apud MERX, Adalbert. Le rôle du foie dans la littérature des peuples sémitiques. In: Florilegium ou recueil de travaux d’érudition dédiés à Monsieur le Marquis Melchior de Vogüé à l’occasion du quatre-vingtième anniversaire de sa naissance 18 octobre 1909. Paris: Imprimerie Nationale, 1909. p. 427- 444. [tradução nossa]. Disponível em: https://archive.org/details/ florilegiumourec00voguoft

revelação de nosso destino mais profundo e inexorável: nascer2. Perseguido e pressionado pelo Rei Midas, o companheiro de Dionísio afirma que o melhor para nós, “filhos do acaso e do tormento”, era “não ser, nada ser”3. Contudo, não poderíamos evitá-lo: nascemos. Logo, afirma Sileno, “o melhor para ti é logo morrer”4. Ao nos narrar aventura intrépida de Midas, Nietzsche tornou visível um outro gênero de destino, insondável por qualquer oráculo, mas não menos implacável. No destino grego “soa[va] o grito de horror ou o lamento anelante por uma perda irreparável”5. A contemplação desse abismo é também o laço que amarra a vida e a arte. A arte é o que permite ao homem suportar “os temores e os horrores do existir”6. Mistério desvelado não por uma ordenação visível das coisas no mundo, mas por um deus dilacerado, por um oráculo em forma de abismo. Nietzsche mais do que nos apresentar uma origem para a Tragédia Ática, fez emergir a angústia de seu nascimento. Angustia em partilha com o nosso próprio nascer e fazê-lo significou amarrar a própria existência à arte. A arte, todavia, não nos faz suportar a vida para apaziguá-la, entorpecê-la, ela nos faz sentir a tormenta, vivencia-la em todas suas intensidades. Das linhas da mão que transbordam pelo continente de um corpo à aliança assinada em batom cor de rosa-vermelho-violeta, dos caminhos tortuosos dos sonhos às marcas de um corpo que deseja ser multidão, a trajetória da Cia Excessos não é um desvio da vida, é um caminho de curvas para ela. É uma vida plena. Compostas por seus nadas cotidianos, pelo apetite, pela pele, pelos os limites de um corpo envelhecendo, pelos pactos (des)feitos. Como um beijo, o destino da Cia Excessos se desmancha em afagos de enlaces amorosos, se retesam seus músculos na fria insensibilidade de

2

Seguimos aqui a história tal como Nietzsche a registrou em O Nascimento da tragédia. Cf: NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinzburg. São Paulo: Companhia das letras, 1992. 3

Idem, p. 36. [grifos do autor]

4

Idem, p. 36.

5

Idem, p. 34.

6

Idem, p. 36.

narcisos, de egos, de normas, de modas, de padrões. Despem-se para melhor vestir a pele, a carne, o corpo. O conjunto de autores que compõem este livro lançaram olhares e teceram pensamentos a partir dos trabalhos de Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey realizados nos mais diferentes suportes — muitas vezes entrelaçados — corpo, fotografia, vídeo. Tais suportes dão formas às diversas manifestações da arte contemporânea que definimos como perfomance art, fotografia, vídeo-art, vídeo perfomance, foto perfomance, etc. Todos eles são modos de estar da arte, difíceis de delimitar ou conceituar, precisamente por estarem em zonas para além de fronteiras. Os textos aqui reunidos formam uma rede, na qual as suas diversas linhas nos levam às combinações, aos encontros e desencontros com as obras, as ideias, os suportes, os problemas estéticos e as questões éticas presentes nos trabalhos da Cia Excessos. As criações aqui elencadas foram produzidas entre os anos de 2002 e 2015. Ainda assim, cabe ressaltar que este livro não se pretende um catálogo raisonné e não corresponde à ideia de encerramento que ele traz consigo. A ideia que aqui prevalece é, sobretudo, a de abertura, de inconclusão, de variação, de desvio e de devir. Como o foco é provocar aberturas, alguns trabalhos o leitor reencontrará, portanto, em mais de um texto. Da mesma forma, o índice é apenas uma ordenação possível, e necessária para que se consolidasse a edição, o leitor que esteja a vontade para circular pelos textos. A trajetória dos autores que compõem esta coletânea é tão variável como poderíamos desejar, logo este livro não é a palavra do crítico, do historiador da arte, do artista… e ele apenas faz sentido enquanto prática cartográfica do pensamento. Nenhuma palavra aqui tem mais peso ou mais força que aquela que o leitor lhe quiser atribuir, por nela encontrar maior sentido para si. Por isso, os textos dos próprios artistas e aqueles dos autores que se debruçaram sobre a produção da Cia Excessos não formam blocos separados; todos eles são partes de um arquivo que contam histórias de mais de uma década de criação e parceria. Um arquivo no qual pensamento e prática se imiscuem como duas formas indissociáveis da arte. Os textos, re-publicados ou inéditos, da presente edição são testemunhos dos processos de experimentação artísticas e das experiências estéticas registradas ao longos desses anos.

A Cia Excessos é um corpo que quer ser multitude. Para um destino é preciso desejo e desvio. Desejante e desviante segue fazendo a vida ser arte e a arte ser vida. Tormenta e terror, mais ainda assim sublime. Não. A vida não cabe numa mera página em branco — inseparáveis — a arte tampouco pode se comprimir entre simples caracteres com espaço. Justamente por isso os textos aqui presentes rompem os limites das margens, do texto, da obra. Somam-se numa adição impossível. Não são síntese, são construção infindáveis de possíveis pois vida/arte/vida possui apenas um destino: não ter direção, apenas sentidos.

vem, te direi em segredo Aonde leva esta dança.7

7

JALAL AL-DIN RUMI. Poemas místicos. Seleção de Diva de Shems de Tabris, Jose Jorge de Carvalho. 2. ed. São Paulo, SP: Attar, c 2006.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.