Direito administrativo global, financiamentos internacionais e licitações públicas

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Direito administrativo global, financiamentos internacionais e licitações públicas Leonardo Coelho Ribeiro Mestre em Direito Público pela UERJ. Especialista em litígios e soluções alternativas de conflitos pela FGV Direito Rio (LL.M Litigation). Coordenador do LL.M em Direito da Infraestrutura e do Curso de Regulação da Infraestrutura e dos Recursos Naturais no Ibmec/ RJ. Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito Administrativo. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/RJ, IAB e Idaerj. Advogado.

Daniel Silva Pereira Professor do Curso de Regulação da Infraestrutura e dos Recursos Naturais do Ibmec. Pós-graduado em Direito Administrativo Empresarial pela Universidade Candido Mendes. Advogado.

Resumo: O presente artigo busca analisar o regime jurídico do financiamento de licitações públicas com o emprego de recursos de origem estrangeira, verificando especificamente a possibilidade de adoção das regras próprias de contratação estipuladas por organismos internacionais, de modo a afastar o regime doméstico de contratações administrativas. Para tanto, busca analisar o tema sob a ótica do direito administrativo global e, assim, lançar novas ponderações sobre sua compreensão. Palavras-chave: Licitações internacionais. Financiamento. Contratações com recursos de origem estrangeira. Guidelines. Direito administrativo global. Organizações internacionais. Sumário: Introdução – I O direito administrativo global e a atuação das organizações internacionais – II O regime jurídico de utilização de recursos financeiros internacionais por entidades públicas – Conclusão – Referências

Introdução O financiamento de licitações públicas com o emprego de recursos de origem estrangeira sempre foi um tema amplamente debatido, merecendo a atenção de artigos e livros específicos. Com efeito, os estudos em torno do tema sempre enfocaram a possibilidade (ou não) da incidência das regras próprias de contratação estipuladas por organismos internacionais – as denominadas guidelines –, de modo a afastar o regime doméstico de contratações administrativas.1 NR: As citações de obras estrangeiras foram livremente traduzidas.

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Em outras palavras, até o presente momento, os debates travados em torno do tema cingiram-se a verificar a compatibilidade e a extensão da aplicação das normas e procedimentos estabelecidos por organismos multilaterais de crédito e de cooperação ao desenvolvimento com as normas constitucionais e legais do direito administrativo pátrio que tutelam o tema. Atualmente, e em paralelo a essa discussão, tem ganhado espaço no cenário jurídico mundial o enfoque do que se convencionou chamar de direito administrativo global. O direito administrativo global surge como um direito situado entre os direitos nacionais e o direito internacional, forjado em foros de negociação internacional e cunhado em agências e organizações não estatais, com o objetivo de atender às necessidades dos novos setores e agentes econômicos que atuam no espaço global. Com efeito, o objetivo do presente artigo é o de, se valendo dessa nova e relevante ótica do direito administrativo global, lançar novas ponderações sobre a compreensão dos temas relacionados à realização de licitações com o financiamento de recursos de origem internacional. É o que passamos a desenvolver nos itens seguintes.

I O direito administrativo global e a atuação das organizações internacionais As mudanças paradigmáticas pelas quais a sociedade vem passando na atualidade, como resultado do processo de globalização, têm gerado a multiplicidade de questões econômicas e ambientais que não respeitam mais fronteiras geográficas predeterminadas. Assim, temas como estes, que antes eram tratados internamente, no âmbito de cada Estado, hoje, demandam a ação conjunta de um grande número de agentes públicos e privados, assumindo a feição de objetivos públicos, mas não estatais.2 Para fazer frente ao desafio, os Estados têm se integrado em organizações jurídicas supranacionais e se vinculado a instituições internacionais de feição intergovernamental (ex.: Organização Mundial de Comércio, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial). Isto é, entidades que, formadas por Estados soberanos e possuindo personalidade jurídica de direito internacional, são criadas com finalidade de endereçar, de forma coletiva e participativa, dificuldades comuns3 para assim encontrarem

Sobre questões públicas não-estatais, cf.: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; GRAU, Nuria Cunill. Entre o Estado e o mercado: o público não-estatal. In: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; GRAU, Nuria Cunill. O público nãoestatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 15-48. 3 Nesse sentido, afirma Luizella Giardino Barbosa Branco: “impulsionado em grande parte pelas forças de globalização, o sistema de governança começou a se modificar vagarosamente, mas de forma significativa ao longo das últimas décadas. Essa transformação não se deu pela substituição dos Estados, mas pela

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respostas mais efetivas a alguns desafios da pós-modernidade, seja em áreas como a proteção do ambiente, dos direitos humanos ou mesmo da regulação econômica.4 Como já se teve a oportunidade de pontuar, essas organizações e entidades, por sua vez, produzem regulação que foge aos formatos e ao alcance dos instrumentos tradicionais do direito internacional – desprovidos de vinculação e obrigatoriedade – mas que também não se enquadram na normatividade típica dos ordenamentos (administrativos) internos.5 É justamente nesse contexto, pois, que surge, entre os direitos nacionais e o direito internacional, um direito paralelo, forjado em foros de negociação internacional, cunhado em agências e organizações não estatais, com o objetivo de atender às necessidades desses setores e agentes que operam no espaço administrativo global.6 Trata-se do que se convencionou chamar de direito administrativo global.7 O direito administrativo global tem como símbolo principal a sua capacidade de influenciar/condicionar as atividades das administrações públicas de cada Estado sem, contudo, haver a necessidade das vinculações típicas decorrentes da assinatura dos tratados internacionais, permitindo assim distingui-lo do direito internacional administrativo, e para além dos compromissos mútuos assentes em esquemas informais em rede, que caracterizam o direito administrativo transnacional ou o direito administrativo das interligações.8 Daí Nico Krisch e Benedict Kingsbury9 afirmarem que:



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extensão de seus limites para abranger novas questões e atores” (BRANCO, Luizella Giardino Barbosa. Transnormatividade e cosmopolitismo jurídico: interfaces do direito administrativo global. Revista Direito UNIFACS, n. 168, 2014). Nesse sentido: SILVA, Suzana Tavares da. Um novo direito administrativo? Seminários Desenvolvidos de Direito Administrativo – 2º Ciclo, 2009/2010. Disponível em: . Acesso em: 9 jun. 2015. Cf.: BAPTISTA, Patrícia Ferreira; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Direito administrativo global: uma nova ótica para a regulação financeira de investimentos. In: RIBEIRO, Marilda Rosado Sá. Direito internacional dos investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 803. Segundo Nico Krisch e Benedict Kingsbury: “[o] surgimento de um espaço administrativo global é constatado a partir da observação de que muito da governança global pode ser entendida como regulação e administração. Trata-se de um espaço onde a estrita dicotomia entre direito interno e internacional está em amplo declínio, no qual as funções administrativas são realizadas por meio de interfaces complexas, entre representantes dos governos e instituições de diferentes níveis, e onde a regulação pode ser amplamente efetiva, ainda que desprezando suas preponderantes formas obrigatórias. Na prática, o crescente exercício do poder publico nessas estruturas está dando origem a uma grande preocupação sobre legitimidade e accountability, instigando a procura de padrões de resposta dessas preocupações em várias áreas da governança global” (KRISCH, Nico; KINGSBURY, Benedict. Introdução: governança e direito administrativo global na ordem legal internacional. Revista de Direito Administrativo – RDA, n. 261, p. 15, set./dez. 2012). Sobre a existência do direito administrativo global, vide: BAPTISTA, Patrícia Ferreira; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Direito administrativo global: uma nova ótica para a regulação financeira de investimentos. In: RIBEIRO, Marilda Rosado Sá. Direito internacional dos investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. SILVA, Suzana Tavares da. Um novo direito administrativo? Seminários Desenvolvidos de Direito Administrativo – 2º Ciclo, 2009/2010. Disponível em: . Acesso em: 9 jun. 2015. KRISCH, Nico; KINGSBURY, Benedict. Introdução: governança e direito administrativo global na ordem legal internacional. Revista de Direito Administrativo – RDA, n. 261, p. 29, set./dez. 2012.

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No espaço administrativo global, a linha que separa as ordens interna e internacional é, muitas vezes, indistinta. Reguladores se juntam em instituições globais e definem padrões, que depois são adotados dentro de suas atribuições internas; e indivíduos ou entidades privadas que são, muitas vezes, os reais destinatários desses padrões globais, os seguem, mesmo que o regulador que tenha se encarregado não pratique o ato formal de adoção legal desses padrões. Indivíduos ou entidades privadas são, em alguns casos, sujeitados diretamente às decisões internacionais obrigatórias; e os tribunais internos estão, talvez, começando a fazer valer grandes poderes de revisão em relação às ações de regulação global. Assim, as funções de ordem desempenhadas pela dicotomia, entre interno/internacional, no direito internacional, podem se tornar mínimas.

Ganha espaço, assim, um esquema de governance without government ou, simplesmente, de “cooperação sem soberania”, segundo o qual as soluções para promover o interesse público são alcançadas a partir de arranjos de coordenação dos diversos interesses conflitantes, o que significa que este modelo acarreta consigo novos tipos de estruturas normativas formadas a partir da interação e complementação entre o Estado (tradicional titular desse poder) e a sociedade (tradicional destinatária das normas).10 11 Pois bem. Uma vez admitido que as atividades exercidas no espaço administrativo global correspondem a manifestações típicas de direito administrativo, é possível identificar ao menos quatro tipos principais de entidades nele atuantes: (i) organizações internacionais formais; (ii) redes transgovernamentais e transnacionais; (iii) sistemas regulatórios globais informais, híbridos ou multiníveis; e (iv) organizações público-privadas híbridas e organismos privados que exercem funções públicas.12 As organizações internacionais formais “consistem naquelas entidades intergovernamentais fundadas por tratado, em geral constituídas por secretarias permanentes e assembleias plenárias envolvendo todos os Estados membros e órgãos executivos com participação mais limitada”.13 Trata-se dos principais atores administrativos a

SILVA, Suzana Tavares da. Um novo direito administrativo? Seminários Desenvolvidos de Direito Administrativo – 2º Ciclo, 2009/2010. Disponível em: . Acesso em: 9 jun. 2015. 11 Ressalte-se, entretanto, que a admissão da existência efetiva de um direito administrativo global, porém, encontra resistência naqueles que enxergam a presença da autoridade pública como um dos elementos essenciais ao direito administrativo. Para aqueles que sustentam essa posição, a ausência de uma autoridade hierárquica capaz de dar suporte as normas ali editadas gera uma desconfiança quanto à possibilidade de enquadramento desse novo ramo do direito administrativo. Como pude registrar em: BAPTISTA, Patrícia Ferreira; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Direito administrativo global: uma nova ótica para a regulação financeira de investimentos. In: RIBEIRO, Marilda Rosado Sá. Direito internacional dos investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. 12 CASINI, Lorenzo. Além do Estado: o surgimento da administração global. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, v. 267, p. 13-39, set./dez. 2014. Como esclarece o autor, na prática, muitas dessas camadas se sobrepõem ou se combinam, mas a divisão nesses tipos ideais facilita ainda mais a investigação. 13 ALVAREZ, José Enrique. International organizations: then and now. American Journal of International Law, 324, 2006 apud CASINI, Lorenzo. Além do Estado: o surgimento da administração global. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, v. 267, p. 13-39, set./dez. 2014. 10

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nível internacional, dos quais são exemplos a Organização Mundial da Saúde – OMS; as Nações Unidas; e a Organização Internacional do Trabalho. Por sua vez, as denominadas redes transgovernamentais e transnacionais consistem em estruturas que, ao contrário das organizações internacionais, são caracterizadas pela ausência de uma estrutura formal de tomada de decisões, ficando, pois, no âmbito da cooperação informal entre os entes reguladores estaduais.14 O Comitê da Basiléia, que reúne os chefes de vários bancos centrais, fora de qualquer estrutura de tratado, para que eles possam coordenar questões de política financeira, bem como requisitos de adequação de capital para os bancos, é um exemplo desse tipo de instituição internacional. Seus acordos não são vinculativos, na forma legal, mas podem ser altamente eficazes.15 De forma próxima, os sistemas regulatórios globais informais, híbridos ou multiníveis, se manifestam como sistemas regulatórios globais igualmente informais, caracterizados por mecanismos e procedimentos compostos envolvendo vários atores em nível internacional e nacional. Nesse caso, o exercício das funções públicas é assegurado pela criação de um conjunto de princípios, regras e instituições que atuam em mesmo tempo tanto em nível nacional quanto em nível internacional.16 Por último, como atores de destaque nesse espaço administrativo global estão, ainda, as organizações público-privadas híbridas e os organismos privados, enquanto fruto da atual tendência de realização de parcerias entre Estados soberanos, entidades comerciais privadas e entidades da sociedade civil, na busca por instrumentos de direito privado para realização de atividades de interesse público supraestatal.17 Nas palavras de Lorenzo Casini:18 [...] esse tipo de administração global abarca tanto as organizações público-privadas híbridas quanto os organismos privados que exercem

KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The emergence of global administrative law, p. 21-23. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2015. 15 Sobre o tema, confira-se: BARR, Michael S.; MILLER, Geoffrey P. Global Administrative Law: The View from Basel. The European Journal of International Law, v. 17 n. 1, 2006; SLAUGHTER, Anne-Marie. Global government networks, global information agencies, and disaggregated democracy. Harvard Law School, Public Law Working Paper, n. 18. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2015; e ERLING, Marlos Lopes Godinho. Regulação financeira sistêmica no Brasil: desafios e propostas de aprimoramento institucional. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. 16 ALVAREZ, José Enrique. International organizations: then and now. American Journal of International Law, 324, 2006 apud CASINI, Lorenzo. Além do Estado: o surgimento da administração global. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, v. 267, p. 13-39, set./dez. 2014. 17 A esse respeito, Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma que, nos dias de hoje, o Estado-nação sofre constantes processos de esvaziamento e enfraquecimento (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, direito e Estado: o direito administrativo em tempos de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 93). 18 CASINI, Lorenzo. Além do Estado: o surgimento da administração global. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, v. 267, p. 13-39, set./dez. 2014. p. 30. 14

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funções públicas. Essas instituições podem ser definidas de forma depreciativa como organizações intergovernamentais não formais. Buscando um entendimento mais positivo dessas entidades, elas representam um exemplo muito interessante de como o uso dos instrumentos do direito privado para realizar funções públicas é comum também em nível internacional. (Grifos nossos)

Esses organismos representam, assim, a atuação de entidades privadas constituídas por Estados soberanos no plano internacional, os quais, ainda que podendo se valer da criação de organizações internacionais formais, com personalidade jurídica de direito internacional público, escolhem adotar a forma jurídica de direito privado para melhor desempenharem funções de apoio a atividades de interesse público desenvolvidas por entidades públicas e privadas nos mais diversos países. Um exemplo de organização dessa natureza é o Fundo Global de Combate à AIDS, ligado à Organização Mundial de Saúde, que funciona repassando os recursos fornecidos por Estados doadores a Estados beneficiários representantes de grupos afetados pelo HIV e outras doenças infecciosas combatidas pela instituição.19 Essa última perspectiva é, justamente, a hipótese que ora analisamos no presente artigo. Isto é, a singular hipótese de que Organismos Financeiros Internacionais de Desenvolvimento – OFIDs, à semelhança do Fundo Global de Combate à AIDS, atuam, enquanto pessoas jurídicas de direito privado atuantes na esfera internacional, repassando os recursos fornecidos por Estados doadores a Estados receptores. Não bastasse isso, ao conceder crédito para o financiamento de projetos em países pobres, ou com economia em transição, esses organismos formulam parâmetros (guidelines) para a aplicação desses recursos que, embora não tenham pretensão normativa, são de obrigatória aceitação por aqueles que queiram receber seus recursos. Com efeito, os parâmetros formulados acabam interagindo intensamente com as regulações nacionais existentes sobre o assunto e, por vezes, até as afastando, ao modo que o fenômeno do direito administrativo global informa. Por isso, uma regulação que em tese não seria vinculante, na prática, acaba sendo, inclusive para os países que sequer são membros desses organismos internacionais, na medida em que todo o país interessado em obter financiamentos junto a eles terá de se adequar às suas condicionantes. Portanto, à luz do direito administrativo global, entidades dessa natureza se qualificam como organizações público-privadas híbridas ou organismos privados que exercem funções tradicionalmente públicas, os quais adotam mecanismos de “co­ operação sem soberania”, eis que formulam parâmetros (guidelines) que CASINI, Lorenzo. Além do Estado: o surgimento da administração global. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, v. 267, p. 13-39, set./dez. 2014. p. 30.

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condicionam a doação de recursos de países desenvolvidos (doadores) aos países em desenvolvimento ou com economia em transição (receptores) para a realização de projetos ligados à sua área de atuação. Diante disso, é a partir do pano de fundo do direito administrativo global que na sequência cuidaremos do regime jurídico de utilização de recursos financeiros internacionais por entidades públicas.

II O regime jurídico de utilização de recursos financeiros internacionais por entidades públicas

II.1 O sistema brasileiro de contratações públicas Diferentemente do que se passa no financiamento dirigido a particulares – o qual é desprovido de maiores controvérsias, eis que as relações estabelecidas são privadas –, o financiamento às entidades públicas, a par do procedimento aqui apontado, se submete a peculiaridades do próprio regime de direito público, como se verá na sequência. Destarte, a sistematização das contratações públicas nacionais se inicia no art. 37, inc. XXI, da Constituição, que preceitua: Art. 37. Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Grifos nossos)

Como se observa, a licitação é fixada como procedimento obrigatório para a alienação e aquisição de bens realizadas pela Administração Pública no exercício de suas funções. Ou seja, a regra é que o Poder Público realize suas contratações por intermédio de licitações, ressalvada a hipótese de previsão legal em sentido contrário.20 Daí se dizer que a licitação consiste, pois, no “procedimento administrativo pelo qual a Administração Pública, obediente aos princípios constitucionais que a norteiam, escolhe a proposta de fornecimento de bem, obra ou serviço mais vantajoso para o erário”.21 Ou seja: a realização de licitação visa a garantir a observância dos

Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma: “Ao contrário dos particulares, que dispõem de ampla liberdade quando pretendem adquirir, alienar, locar bens, contratar a execução de obras e serviços, o Poder Público, para fazê-lo, necessita adotar um procedimento preliminar rigorosamente determinado e preestabelecido na conformidade da lei. Tal procedimento denomina-se licitação” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 490). 21 MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas licitações e contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 2. 20

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princípios da isonomia e da competitividade, de modo a selecionar a proposta que, objetivamente, melhor atenda ao interesse subjacente à contratação. No âmbito infraconstitucional, a Lei nº 8.666/1993 disciplina o art. 37, XXI, da CRFB, instituindo normas gerais para licitações e contratos administrativos, pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações e, seguindo o estabelecido na norma constitucional, em seu art. 2º determina: Art. 2º As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.

Por sua vez, o art. 3º da referida lei ressalta que a necessidade de observância do procedimento licitatório é uma decorrência direta dos princípios constitucionais a que se encontra submetida a Administração Pública: Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos.

Desse modo, diferentemente do que ocorre com os particulares, a Administração Pública deve, por regra, preceder suas contratações por procedimentos licitatórios. Trata-se, em suma, de um dever especial que contrabalança os poderes especiais que a Administração Pública exerce na busca da efetivação de interesses públicos.

II.2 As licitações públicas internacionais Dentre as espécies licitatórias possíveis estão as chamadas licitações internacionais. Perceba-se, desde já, que o termo não possui definição uniforme, pois embora a Lei nº 8.666/1993 o empregue em alguns de seus dispositivos,22 não lhe conferiu conceito específico. Dito isso, o regramento legal das “licitações internacionais” se encontra previsto na Lei nº 8.666/1993 em três momentos distintos. Em seu art. 23, §3º, prevê-se que, em caso de licitação internacional, em regra, a modalidade de licitação cabível será a concorrência:

São exemplos os arts. 23, §3º; 32, §6º; 40, IX; 42 e §§; e 53, §3º.

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Art. 23. As modalidades de licitação a que se referem os incisos I a III do artigo anterior serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratação: [...] §3º. A concorrência é a modalidade de licitação cabível, qualquer que seja o valor de seu objeto, tanto na compra ou alienação de bens imóveis, ressalvado o disposto no art. 19, como nas concessões de direito real de uso e nas licitações internacionais, admitindo-se neste último caso, observados os limites deste artigo, a tomada de preços, quando o órgão ou entidade dispuser de cadastro internacional de fornecedores ou o convite, quando não houver fornecedor do bem ou serviço no País. (Grifos nossos)

Já no art. 32, §6º, a Lei nº 8.666/1993 exime as empresas estrangeiras do cumprimento de determinados requisitos de habilitação, no caso de licitações internacionais: Art. 32. Os documentos necessários à habilitação poderão ser apresentados em original, por qualquer processo de cópia autenticada por cartório competente ou por servidor da administração ou publicação em órgão da imprensa oficial. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994) [...] §4º As empresas estrangeiras que não funcionem no País, tanto quanto possível, atenderão, nas licitações internacionais, às exigências dos parágrafos anteriores mediante documentos equivalentes, autenticados pelos respectivos consulados e traduzidos por tradutor juramentado, devendo ter representação legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente. [...] §6º O disposto no §4º deste artigo, no §1º do art. 33 e no §2º do art. 55, não se aplica às licitações internacionais para a aquisição de bens e serviços cujo pagamento seja feito com o produto de financiamento concedido por organismo financeiro internacional de que o Brasil faça parte, ou por agência estrangeira de cooperação, nem nos casos de contratação com empresa estrangeira, para a compra de equipamentos fabricados e entregues no exterior, desde que para este caso tenha havido prévia autorização do Chefe do Poder Executivo, nem nos casos de aquisição de bens e serviços realizada por unidades administrativas com sede no exterior.

E, por fim, o art. 42, §5º, da Lei nº 8.666/1993, prevê a possibilidade de adoção de procedimentos de contratação estabelecidos em compromissos internacionais internalizados pelo Brasil, bem como aqueles propostos por organismos financeiros internacionais como condição ao repasse de recursos para entidades da Administração Pública: Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes. [...]

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§5º Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994). (Grifos nossos)

Como se percebe, o legislador ordinário não foi uniforme no tratamento da matéria, valendo-se do termo “licitações internacionais” em diferentes momentos e com diferentes significados. Daí porque, a depender do critério adotado, o termo “licitação internacional” pode ser utilizado em quatro acepções distintas, podendo designar: (i) as licitações realizadas no exterior; (ii) as licitações divulgadas no exterior; (iii) as licitações em que for admitida a participação de estrangeiros; e, por último, (iv) as licitações realizadas com recursos provenientes de fontes externas.23 Assim, segundo o primeiro critério, a caracterização de uma licitação como internacional dependeria de sua realização fora do território brasileiro.24 Pelo segundo critério, a licitação seria considerada internacional caso sua divulgação viesse a ocorrer em veículo informativo no exterior.25 Outra concepção, entretanto, leva em consideração a admissão à participação de estrangeiros no certame. Sob esta ótica, “as licitações internacionais são certames aos quais podem acorrer tanto empresas nacionais quanto empresas estrangeiras”.26 Essa parece ter sido a ideia adotada pelo legislador na parte final do art. 23, §3º, da Lei nº 8.666/1993, quando aduz que é possível “o convite, quando não houver fornecedor do bem ou serviço no País”. SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 28. 24 SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 28. 25 Nesse sentido, Lucas Rocha Furtado afirma: “É considerada licitação internacional aquela em que a Administração promove sua divulgação no exterior, convocando empresas constituídas e regidas por leis de países estrangeiros para participar do certame [...]. Somente quando a divulgação do certame for feita no exterior será ela considerada internacional” (FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Atlas, 2001. p. 107-108). Da mesma forma, Sidney Bittencourt: “Para que a licitação seja realmente internacional, é fundamental que haja forte divulgação no exterior” (BITTENCOURT, Sidney. Entendendo as licitações internacionais. Direito Administrativo, Contabilidade e Administração Pública – DCAP, n. 8, ago. 2000. p. 11). 26 Adotando essa posição: NORMANDO, Fernando. Licitações Internacionais. Boletim de Licitações e Contratos – BLC, n. 192, abr. 1999. 23

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Apresentadas as três primeiras classificações, o sentido das licitações internacionais que efetivamente importa para o presente estudo segue o quarto critério, segundo o qual licitações internacionais são aquelas realizadas com recursos provenientes de fontes externas. Seguindo essa concepção, “havendo a aplicação de recursos de origem estrangeira, provenientes de financiamento ou doação concedidos por organismos internacionais ou agências de cooperação, tratar-se-ia de uma licitação internacional”.27 Essa, aliás, parece ser exatamente a ideia embutida nos arts. 32, §6º, e 42 §5º, da Lei nº 8.666/1993, quando o primeiro deles determina que nas licitações internacionais que utilizam recursos financiados por organismos internacionais não há a necessidade de atender a determinados requisitos que devem ser observados em certames que não envolvem o financiamento internacional, ao passo que o segundo possibilita a adoção de normas e procedimentos licitatórios estabelecidos por organismos internacionais que financiem atividades desenvolvidas pela Administração Pública brasileira. Ressalte-se, ainda, que esse parece ser também o sentido do termo “licitações internacionais” adotado pelo caput do art. 3º, e §1º, da Lei nº 11.732/2008, que instituiu o denominado sistema de drawback, como se pode observar da leitura do dispositivo: Art. 3º Para efeito de interpretação do art. 5º da Lei no 8.032, de 12 de abril de 1990, licitação internacional é aquela promovida tanto por pessoas jurídicas de direito público como por pessoas jurídicas de direito privado do setor público e do setor privado. §1º Na licitação internacional de que trata o caput deste artigo, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado do setor público deverão observar as normas e procedimentos previstos na legislação específica, e as pessoas jurídicas de direito privado do setor privado, as normas e procedimentos das entidades financiadoras. (Grifos nossos)

Como se percebe, ainda que com aplicação restrita ao regime de drawback, que não se confunde com o objeto deste artigo, a referida norma nitidamente atrela o conceito de licitação internacional à adoção de normas e procedimentos de entidades financiadoras internacionais. Apresentado o cenário geral do tema das licitações internacionais, passamos a nos dedicar especificamente ao regime estabelecido pelo art. 42, §5º, da Lei nº 8.666/1993.

SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 30. No mesmo sentido: MUKAI, Toshio. Licitações internacionais, as normas da lei nº 8.666/93 e as dos organismos financeiros internacionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 208, abr./jun. 1997. p. 81-82.

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II.3 As contratações públicas com recursos provenientes de financiamento internacional Para cuidar das contratações públicas com recursos provenientes de financiamento internacional, vale retomar a transcrição do art. 42, §5º, da Lei nº 8.666/1993, como segue: Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes. [...] §5º Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior. (Grifos nossos)

Como se vê, o dispositivo autoriza a aplicação de regras diferentes daquelas previstas na Lei nº 8.666/1993, na peculiar hipótese de uma licitação ser realizada com o emprego de recursos provenientes de fontes estrangeiras. Para sua melhor compreensão, entretanto, é preciso que o artigo seja analisado levando-se em consideração dois cenários distintos de aplicação: (i) o de regras contidas em acordos, protocolos, convenções, ou tratados internacionais; e (ii) o de normas e procedimentos definidos por organismos financiadores internacionais, em função de empréstimos ou de doações. Na primeira dessas hipóteses, o Estado brasileiro celebra um tratado, convenção ou ato internacional, na forma do procedimento previsto na Constituição,28 que é recepcionado com status de lei ordinária29 e estabelece regras próprias acerca

Como prevê o art. 84, VIII, combinado com o art. 49, I, da CRFB. Conforme o entendimento do Supremo Tribunal Federal, o direito brasileiro possui três graus de hierarquias no que tange aos tratados internacionais: i) status de emenda constitucional – somente na hipótese de tratados e convenções que versem sobre direitos humanos, caso se adote, respectivamente, quórum de emenda constitucional, na forma do §3º do art. 5º, incluído pela EC nº 45; ii) status de supralegalidade – especificamente para todos os tratados de direitos humanos que não forem submetidos ao quórum de votação das emendas constitucionais; iii) status de lei ordinária – aplicado a todas as demais hipóteses de internalização de tratados pelo Ordenamento Jurídico pátrio (STF, Pleno. Recurso Extraordinário nº 466.343-SP. Rel. Min. Cezar Peluso. Julg. 22.11.2006. Informativo do STF, n. 449).

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de licitação envolvendo o emprego dos recursos cedidos por organismo financeiro internacional. Com efeito, nessa hipótese, o que ocorre é a aplicação de um procedimento licitatório previsto em lei específica, na medida em que o tratado internalizado passa a representar uma lei especial em face da Lei nº 8.666/1993, de modo a afastar sua aplicação. Por isso, há quem até mesmo defenda que seria dispensável a previsão dessa hipótese no art. 42, §5º, da Lei nº 8.666/1993.30 De forma diferente se passa na hipótese de aplicação das normas e procedimentos definidos por organismos financiadores internacionais, mediante guidelines, em função de empréstimo ou doação feitos por entidade internacional. Nesses casos, uma entidade da Administração Pública obtém financiamento com determinado organismo internacional o qual, por sua vez, condiciona a própria doação ou empréstimo à adoção das guidelines por ele fixadas. Dessa maneira, diversamente do que ocorre na hipótese anterior, o procedimento a ser aplicado não se encontra previsto em lei, mas única e exclusivamente no contrato firmado com a entidade financiadora, o que vem a se harmonizar com os conceitos de direito administrativo global anteriormente deduzidos. Até porque, sendo pragmático, caso a aceitação das normas do organismo internacional não viesse a ocorrer, as doações a entidades públicas restariam inviabilizadas, impedindo que a sociedade brasileira se beneficiasse do resultado das contratações com esses recursos.31 A adoção dessas regras de contratação de organismos internacionais pela Administração Pública brasileira, no entanto, não se passa sem balizas. Para assim ocorrer, o permissivo legal condiciona a hipótese ao atendimento de quatro condicionantes, quais sejam: (i) os recursos empregados na contratação devem ser de origem estrangeira; (ii) o princípio do julgamento objetivo deve ser observado; (iii) a entidade internacional deve exigir a adoção dos procedimentos por ela estabelecidos como condição à obtenção do financiamento ou da doação; e (iv) o órgão executor do contrato, com a aprovação da autoridade superior, deve apresentar sua justificativa pela adoção das diretrizes internacionais. É preciso analisá-los individualmente para identificar seu conteúdo.

SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 87. 31 Antônio Roque Citadini opina nesse sentido: “Duas justificativas existem para esta aceitação de norma estrangeira na licitação: a primeira é que o próprio Brasil sendo participante do órgão internacional (ainda que minoritário) referenda as normas da instituição; e a segunda, de natureza prática, é que, caso o administrador brasileiro não as aceite, órgão não liberará os recursos, logo não havendo, assim, contratação” (CITADINI, Antônio Roque. Comentários e jurisprudência sobre a lei de licitações públicas. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 293-294). 30

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II.3.1 A necessidade de os recursos empregados na contratação serem de origem estrangeira Quanto à primeira dessas exigências, cabe ressaltar que a origem estrangeira dos recursos é o principal fator a justificar o afastamento da legislação nacional exatamente porque, in casu, se cogita da percepção de uma vantagem para a nação brasileira, traduzida na transferência gratuita (doação) ou facilitada (financiamento a entidades governamentais) de recursos para empreendimentos no território nacional.32 Desse modo, advindo o recurso de financiamento externo, a entidade pública poderá se sujeitar às normas estabelecidas pelo organismo financiador, como inclusive já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça:33 1. Em se tratando de concorrência pública internacional com recursos provenientes de agência estrangeira, a legislação pátria admite a inserção de exigências diversas daquelas previstas na Lei Geral de Licitações. Dessa forma, não constitui ilegalidade nem fere o princípio da isonomia entre os concorrentes a necessidade de comprovação de requisitos de capacitação técnica e financeira estabelecidos por instituição internacional como condição para a aprovação do financiamento. Inteligência do art. 42, §5º da Lei nº 8.666/1993. (Grifos nossos)

Cabe mencionar a esse respeito, porém, a existência de algumas controvérsias. A primeira controvérsia se refere à necessidade de os recursos empregados na contratação serem integralmente de origem estrangeira. Esse não parece, entretanto, ser o entendimento que melhor realiza a finalidade da norma, que é a de permitir que o país se beneficie de doações e financiamentos de organismos internacionais, faça ele parte, ou não, da carteira de seus doadores. Com efeito, ainda que os recursos sejam parcialmente de origem estrangeira, há razões literais, teleológicas e pragmáticas, que seguem recomendando sua ampla e segura incidência. Isso porque, em primeiro lugar, não há qualquer passagem legal que imponha a condicionante de que os recursos tenham de ser exclusivamente estrangeiros, de modo que, independentemente de haver parcela ou não de recursos nacionais doados ao organismo internacional, a presença de recursos provenientes de fonte estrangeira sempre conferirá alguma margem de vantagem na obtenção destes pelo país, justificando o afastamento da Lei de Licitações. A propósito do tema, esclarece Rafael Wallbach Schwind que:34 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 539. 33 STJ, 2ª Turma. RMS nº 14.579/MG. Rel. Min. João Otávio de Noronha. Julg. 20.9.2005. DJ, 10 out. 2005. 34 SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 103/-104. 32

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De acordo com a interpretação literal do dispositivo, para que haja o afastamento da disciplina da lei nº 8.666, não é necessário que a totalidade dos recursos seja proveniente de doação ou financiamento obtido junto a organismos internacionais. [...] no caso em que parcela dos recursos necessários provém de fonte estrangeira, reputa-se que há igualmente um benefício para a nação brasileira, que é justamente a obtenção (ainda que apenas de parcela) dos recursos a serem utilizados para a contratação almejada.

Seguindo esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça também se manifestou especificamente sobre a hipótese, proferindo decisão no sentido de que mesmo diante da presença de maior porção de recursos nacionais no financiamento obtido junto a organismo internacional, não há incidência rígida do procedimento licitatório tal qual previsto na Lei nº 8.666/1993, sendo preciso observar apenas os princípios insertos no art. 37, da CRFB. Confira-se o julgado:35 Tratando-se de recursos provenientes de contrapartida estadual e de empréstimo pelo qual se compromete o Estado do Paraná a restituir ao BID, em prazo determinado, mediante pagamento de juros, conclui-se que, senão em seu todo, a maior parte dos recursos é de responsabilidade do Estado brasileiro, não havendo como negar a aplicação dos princípios insertos no artigo 37 da Carta Política de 1988 relativos à atuação da Administração Pública, ou tampouco de algumas das regras constantes da Lei de Licitações, Lei 8.666/93. (Grifos nossos)

Trata-se de hipótese absolutamente diferente da mera intermediação de recursos públicos nacionais por organismos internacionais. Por saber, existem casos nos quais a Administração Pública repassa recursos de origem pública a determinado organismo internacional que, por sua vez, os retorna à Administração por meio de empréstimos ou doações para serem empregados em determinada contratação pública. Nesses casos, o organismo internacional serviria de mero intermediador de recursos públicos nacionais, e afastar a incidência da Lei nº 8.666/1993 violaria a lógica pugnada no art. 42, §5º. É que em uma hipótese como essa não haveria qualquer vantagem para o Estado brasileiro em receber esses recursos. Daí Marçal Justen Filho36 defender que “não há cabimento em afastar o regime da Lei nº 8.666/93 quando se trata de recursos nacionais administrados por entidade internacional”. Não por outra razão, o Tribunal de Contas da União já se manifestou no sentido de que

STJ, 2ª Turma. Ag. nº 627.913/DF. Rel. Min. Eliana Calmon. Julg. 7.10.2004. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 542.

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a faculdade prevista no art. 42, §5º, da Lei nº 8.666/93 não se aplica às despesas realizadas em sede de acordo ou projeto de cooperação com recursos próprios nacionais, ainda que tais recursos sejam previamente repassados a agências oficiais estrangeiras ou organismos financeiros multilaterais.37 Em que pese isso, o Tribunal de Contas da União, mesmo nesses casos, tem temperado a exigência da realização de rígido procedimento licitatório nos termos da Lei nº 8.666/1993, permitindo a utilização do denominado Manual de Convergência de Normas Licitatórias,38 por entender que isso seria bastante a garantir a observância dos princípios regentes da matéria. Confira-se:39 Na aquisição de bens e contratação de serviços, custeados com recursos próprios nacionais, no âmbito de projetos de cooperação técnica internacional, são no sentido de ser possível a utilização do Manual de Convergência de Normas Licitatórias, já que aquelas regras e procedimentos coadunam-se com os princípios constitucionais que regem a Administração Pública e estão em harmonia com as disposições da Lei nº 8.666/93.

Visto isso, passamos aos requisitos seguintes.

II.3.2 A necessidade de respeito ao princípio do julgamento objetivo e dos demais princípios que regem a atividade da Administração Pública A segunda condicionante feita expressamente pela lei consiste no dever de observância do princípio do julgamento objetivo. TCU, Plenário. Decisão nº 178/2001. Rel. Min. Guilherme Palmeira. Julg. 4.4.2001. O Manual de Convergência de Normas Licitatórias consiste em um documento que consagra as diretrizes para as contratações realizadas com recursos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD (caso em que, de acordo com o TCU, haveria mera intermediação de recursos nacionais). O manual foi elaborado pelo PNUD, atendendo à determinação firmada pelo Plenário do TCU no subitem 8.4.1 da Decisão nº 178/2001, segundo a qual os recursos repassados pelo PNUD se qualificariam como mera intermediação de recursos por um organismo internacional, de modo que não se justificaria o afastamento da Lei Geral de Licitações. O manual segue, de um modo geral, as regras estabelecidas na Lei nº 8.666/1993 e é aplicado no âmbito dos acordos ou projetos de cooperação técnica firmados com a União em que haja intermediação de recursos nacionais. 39 TCU, Plenário. Acórdão nº 1.918/2004. Rel. Min. Adylson Motta. No mesmo sentido o Acórdão nº 547/2003 do TCU afirma que: “Não é demais frisar, não obstante já ter sido abordado com primor no voto condutor da deliberação em tela, que se está a tratar de recursos próprios nacionais, recursos orçamentários e não aqueles provenientes de financiamentos ou doação doações de organismos internacionais, os quais, esses sim, estariam acobertados pelo §5º do art. 42 da Lei nº 8666/93, que é bastante claro e direto quando estabelece que as licitações poderão se sujeitar a normas dos organismos internacionais apenas quando os recursos são oriundos de financiamentos ou doações das agências oficiais de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral” (TCU, Plenário. Acórdão nº 1.918/2004. Rel. Min. Adylson Motta. Julg. 21.5.2003). 37 38

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Em verdade, não só o julgamento objetivo, mas todos os demais princípios inscritos no art. 3º da Lei nº 8.666/1993 devem ser de observância obrigatória. Até mesmo porque o atendimento do princípio do julgamento objetivo necessita, para seu pleno atendimento, da atenção aos demais princípios ali contidos.40 De fato, o legislador disse menos do que pretendia, de modo que o dispositivo não pode ser interpretado de outra forma se não uma que pugne pelo respeito aos princípios contidos no art. 3º da Lei Geral de Licitações, bem como daqueles previstos no caput do art. 37 da CRFB.41 Nesse sentido Marçal Justen Filho42 afirma que: A obtenção de recursos de origem estrangeira não autoriza ignorar a ordem jurídica interna, especialmente no tocante a princípios fundamentais consagrados na Constituição. Nem se pode suprimir a independência nacional, a pretexto de captar recursos no estrangeiro, nem cabe imaginar que a origem dos recursos afastaria o princípio do Estado de Direito. Ou seja, a atividade administrativa do Estado continua a submeter-se a princípios fundamentais, mesmo quando envolver a aplicação de recursos provenientes do estrangeiro.

Seguindo essa linha de raciocínio, o Tribunal de Contas da União43 assim já se manifestou: [...] o disposto no §5º do art. 42 da Lei nº 8.666/1993, a doutrina e a jurisprudência afastam a incidência da referida Lei de Licitações em prol da aplicabilidade das normas e procedimentos dos organismos internacionais dos quais o Brasil faça parte, sem que haja qualquer ofensa à soberania da nossa nação. Essa aplicabilidade, no entanto,

Nesse sentido: MUKAI, Toshio. Licitações internacionais, as normas da lei nº 8.666/93 e as dos organismos financeiros internacionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 208, abr./jun. 1997. 41 Nesse sentido, Renato Costa afirma que: “A licitação internacional seguirá as diretrizes de contratação impostas pelas entidades estrangeiras, financiadoras ou doadoras, apenas naquilo que não contrarie os princípios constitucionais brasileiros, preservados os princípios da Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), da soberania nacional e do interesse público. Também são inafastáveis os princípios básicos da licitação insculpidos no art. 3º, caput, da Lei nº 8.666/93, não apenas o do julgamento objetivo. Diante disso, na contratação pública patrocinada, no todo ou em parte, por organismo internacional financiador ou doador não se exclui a incidência das normas internas. Apenas se suspende temporariamente os efeitos jurídicos da norma nacional que conflitarem com aqueles da diretriz internacional imposta pela entendida estrangeira. Contudo, essa primazia que deve ser dada à norma internacional em comento não deve ser absoluta, mas sim limitada aos ditames constitucionais e aos princípios basilares da licitação” (COSTA, Renato. Contratação pública patrocinada por organismo multilateral de crédito: aplicabilidade da norma internacional frente à nacional. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12, n. 44 p. 219-238, jan./mar. 2014). 42 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 541. 43 TCU, Plenário. Acórdão nº 370/2004. Rel. Min. Humberto Guimarães Souto. Julg. 7.4.2004. Aduza-se ainda que, seguindo esse entendimento de necessidade de respeito aos princípios da ordem constitucional brasileira, o TCU declarou a invalidade de certame licitatório cujo edital, a pedido de uma instituição financeira internacional, possuía cláusula vedando a participação de licitantes brasileiros e permitindo a participação somente de empresas oriundas da União Europeia (TCU, Plenário. Acórdão nº 135/2003. Rel. Min. Lincoln Magalhães da Rocha). 40

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ainda segundo o parecer da unidade técnica, está condicionada à conformidade das normas aos dispositivos constitucionais, assim como o princípio do julgamento objetivo, aplicando-se a Lei nº 8.666/93 apenas em caráter subsidiário, no caso de lacunas ou indeterminações de conceitos. (Grifos nossos)

Portanto, será preciso averiguar se o padrão de contratação exigido pelo organismo financeiro respeita tais princípios, o que costuma ser bem atendido, diante das próprias normas de governança que lhe orientam.

II.3.3 A exigência de adoção dos procedimentos estabelecidos pela entidade internacional O terceiro requisito para a aplicação do dispositivo consiste na exigência, por parte da entidade internacional que concedeu os recursos, da adoção dos procedimentos por ela estabelecidos como condição para obtenção do financiamento ou da doação. Ou seja: só será possível a aplicação do §5º do art. 42 da Lei nº 8.666/1993 se o organismo internacional financiador expressamente requereu a adoção de suas normas como condição à concessão do financiamento. Na ausência dessa condicionante por parte do órgão financiador, será obrigatória a adoção do regular procedimento licitatório.44 Dessa forma, para que seja aplicável o permissivo contido no dispositivo é essencial que, antes de mais nada, se comprove que a entidade internacional exigiu a adoção das diretrizes por ela estabelecidas como condição à transferência dos recursos, fato esse que deverá ser documentalmente comprovado pela entidade pública licitante.45 Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União decidiu que:46 Nesse sentido, JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 540. No mesmo sentido, Rafael Wallbach Schwind: “[...] não basta que os recursos em questão provenham de organismos internacionais para que se afastem as normas da lei 8.666/93. É imprescindível que tais organismos imponham como condição para a doação ou concessão do financiamento que tais normas da lei 8.666/93 deixem de ser aplicadas. Assim, se o organismo internacional não fizer qualquer exigência de aplicação de regulamentos próprios ou normas decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais, a Administração deverá aplicar aas regras da Lei nº 8.666/93 (bem como outras normas brasileiras que eventualmente incidam no caso concreto). Nesses casos, a realização da licitação se dará da mesma forma que ocorre com qualquer outra licitação destinada ao emprego de recursos nacionais” (SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações financiadas por organismos internacionais. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2015). 45 Segundo Marçal Justen Filho: “Outro pressuposto inafastável é a incompatibilidade das normas da Lei nº 8.666 com a outorga do financiamento ou doação dos recursos. Ou seja, não basta constatar que os recursos são provenientes de fonte estrangeira. O art. 42, §5º, é muito claro, ao admitir a não-aplicação de dispositivos da Lei nº 8.666 à comprovação de que uma das condições da outorga do benefício foi a adoção de certas regras próprias ou específicas, distintas daquelas constantes da lei brasileira. [...] É inafastável a comprovação documental de que a operação de transferência de recursos para o Brasil foi condicionada à observância das regras distintas da disciplina constante da legislação pátria. Se não existir manifestação formal da entidade nesse sentido, terá de comprovar-se a obrigatoriedade da adoção de procedimentos ou regras incompatíveis com a lei brasileira” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 540). 46 TCU, Plenário. Acórdão nº 935/2007. Rel. Min. Ubiratan Aguiar. 44

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[...] 2. Em se tratando de recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de entidade estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, a aplicação de normas licitatórias externas somente é possível quando o organismo externo impuser tal prática como condição para a obtenção do financiamento ou da doação.

Está aqui, pois, mais uma exigência que precisa constar para que as regras de organismos internacionais sejam adotadas em contratações feitas pela Administração Pública com recursos deles recebidos.

II.3.4 A exigência de aprovação da autoridade superior Por fim, o último requisito exigido pelo dispositivo é a apresentação de justificativa, pelo órgão executor do contrato, de que se valerá das diretivas impostas pelo organismo financeiro, e não pela adoção estrita das normas de direito interno, para a consequente ratificação da autoridade superior. Com efeito, para realização de contratação com base nos procedimentos estabelecidos pela entidade internacional, o agente público beneficiário dos recursos deverá motivar adequadamente a hipótese e comunicá-la à autoridade superior para fins de ratificação. Segundo Marçal Justen Filho,47 “a ratificação retrata o conhecimento e aprovação pelas autoridades superiores, relativamente aos atos praticados por agentes públicos subordinados”. Considerando que a lei não estabelece qual é a autoridade superior a ser comunicada, essa definição ficará a cargo de “regulamento interno do órgão e, na omissão deste, do dirigente ao qual estiver subordinada a comissão de licitação”.48 A comunicação referida deve efetivar-se por despacho motivado e, no que se refere ao conteúdo da motivação a ser apresentada à autoridade superior, a lei é novamente silente, de modo que será suficiente demonstrar o atendimento dos outros três requisitos anteriormente analisados e publicá-la na impressa oficial, à semelhança do que ocorre nas hipóteses de inexigibilidade de licitação.49

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 450. 48 Essa é a solução apresentada por Jorge Ulisses Jacoby Fernandes para a hipótese do art. 26 da Lei nº 8.666/1993, que igualmente não estabelece quem é a autoridade superior responsável pela ratificação da contratação direta com fulcro na inexigibilidade de licitação (FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação. 9. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 36). 49 Nesse sentido, prevê o art. 26 da Lei nº 8.666/1993: “Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2º e 4º do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8º desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos”. 47

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Conclusão À luz do exposto no presente artigo, e diante das ponderações anteriormente desenvolvidas, é possível concluirmos que as organizações público-privadas híbridas e os organismos privados têm assumido um papel relevante como financiadores de projetos ao redor do mundo, o que não se dá sem impactos ao direito interno e, especificamente, às licitações. Tem-se aqui, por assim dizer, um claro exemplo dos métodos de direito administrativo global que, indiretamente, tornam cogente a regulação produzida no espaço extraestatal, inclusive relativizando o direito interno. No caso das licitações, no entanto, interessantemente fazendo isso com o expresso – porém balizado – consentimento da Lei nº 8.666/1993. Com efeito, em que pese, em regra, a licitação ser o procedimento prévio obrigatório para a alienação e aquisição de bens realizada pela Administração no exercício de suas funções, no âmbito infraconstitucional, a Lei nº 8.666/1993, em seu art. 42, §5º, expressamente consagra a possibilidade de afastamento da rigidez do procedimento licitatório na hipótese de licitação realizada com recursos provenientes de financiamento externo. O afastamento das normas da Lei nº 8.666/1993 se justifica pelo fato de os recursos empregados na contração serem fruto de financiamento externo, expressamente condicionado à adoção das regras de contratação de seu financiador, quando não se confundirem com mera intermediação de recursos públicos, como visto. Além disso, o afastamento das normas da Lei nº 8.666/1993 se justifica, ainda, em decorrência de os recursos provenientes dos repasses promovidos por entidades internacionais não possuírem natureza pública para fins de direito administrativo, tampouco de direito financeiro, eis que para fins desses ramos do direito, os recursos públicos seriam somente aqueles recursos financeiros provenientes das entidades de direito público interno, isto é, União, estados, Distrito Federal, municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público. No caso dos financiamentos promovidos por organizações público-privadas híbridas e por organismos privados, esse fato se torna ainda evidente, uma vez que, à luz da classificação do direito administrativo global, essas entidades já possuem personalidade jurídica de direito privado. Em qualquer caso, o padrão de contratação exigido pelos organismos internacionais deve respeitar o princípio do julgamento objetivo e demais princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública. Além disso, é imprescindível a ratificação da contratação pela autoridade superior, como condição de validade das contratações realizadas, com fulcro no art. 42, §5º, da Lei nº 8.666/1993. Feita essa síntese, mais esforços detectando a aplicação da lógica do direito administrativo global no caso brasileiro deverão ocorrer para que seja possível

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Direito administrativo global, financiamentos internacionais e licitações públicas

assimilar o fenômeno e tomar parte desse debate, que tanto tem crescido nos últimos anos no cenário global, produzindo consequências para administrados além de quaisquer fronteiras.

Abstract: This article seeks to analyze the legal regime of public bidding utilizing foreign financing funds, particularly checking the possibility to adopt the own hiring rules established by the international financing organizations, in order to move away the internal public bidding rules. The theme will be revised considering the global administrative law approach and its contributions about it. Keywords: International public bidding. International financing organizations. Guidelines. Global Administrative Law.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): RIBEIRO, Leonardo Coelho; PEREIRA, Daniel Silva. Direito administrativo global, financiamentos internacionais e licitações públicas. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 5, n. 8, p. 111-132, set./fev. 2016.

Recebido em: 23.09.2015 Aprovado em: 01.11.2015

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