Elos de Uma História do Presente

June 30, 2017 | Autor: A. Teixeira | Categoria: Youth Studies, Violence, Human Rights, State Complicity in Torture
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http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf






Francisco Carlos Teixeira
Elos da história se uma história presente!

Ministério da Justiça
Arquivo Nacional
Comissão Memórias Reveladas
Dia 16 de setembro de 2015


Segundo relatório recentemente publicado pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública, em 2014, a cada dia a polícia brasileira mata ao menos cinco pessoas. Uma dezena são presos são qualquer justificativa, espancados e lançados em cadeias superlotadas, não antes sem uma sessão de torturada, suavizada sob a denominação de "dar um pau" ou "levar umas porradas". Da mesma forma, dezenas de policiais são mortos Nos confrontos com o crime organizado, muitos deles – pessoas honradas – abatidos de forma desigual pelo narcotráfico fortemente armado por um contrabando descontrolado, feito desde as fronteiras mais remotas do país até as praias urbanas do Rio de Janeiro. A morte de policiais, e eventualmente de soldados destacados para funções de GLO – conforme a Constituição de 1988 – recebe imensa publicidade e justifica o aumento da violência policial. A violência nas ruas – assaltos, mortes, arrastões, roubos, etc. – por outro lado, malgrado o aumento desmesurado da violência do Estado, mantem-se em níveis elevados. Algumas vezes atinge setores das classes médias urbanas, em bairros de alto poder aquisitivo, causando estupor público e justificando, de afogadilho, a corrida de legisladores de ocasião visando tornar mais draconianas as leis em vigor. Sob o impacto do "clamor popular" exige-se "As FFAA nas ruas", a pena de morte, a redução da maioridade penal, banaliza-se a tortura e as execuções extrajudiciais. A imprensa, sempre pronta para um gancho que a catapulte nos horários nobres, elege temáticas aterrorizantes, como a "onda do crime das facas" ou dos "menores assassinos", desenvolvend0 = sem qualquer caráter crítico – um frenesi cada vez mais fascistizante de amplos setores da opinião pública, em especial das classes médias e das classes médias baixas. Nesta espiral autoalimentada (polícia despreparada e vitimada/criminalidade urbana/ execuções extrajudiciais/tortura generalizada/impunidade policial/terror da classe média), o número de mortes violentas no brasil tornou-se epidêmico.
Outra organização independente, a "Human Rights Watch", em relatório de 2014 denunciou a sistematicidade e persistência da tortura nas prisões brasileiras, ressaltando que mesmo sob a custódia de um Estado (de Direito), a tortura é uma realidade cotidiana no Brasil. Da mesma forma, um número de surpreendentes de brasileiros, nas grandes capitais, não só justificava, como ainda exigia a tortura, como um método legitimo de tratamento de presuntivos criminosos. Em estudo realizado pelo Núcleo de estudos da Violência, da USP, constatou-se que em alguns casos 47.5% dos brasileiros entrevistas consideravam válida a tortura, em instituições públicas feita por funcionários públicos, para atingir objetivos de instrução porcessual. Este percentual, em 1999 era de apenas 28.8%, permitindo supor que os grandes programas policiais de televisão, que ocupam grande parte dos horários de tv, no qual o mantra "bandido bom é bandido morte", em total desrespeito aos preceitos básicos da Constituição, surtem um imenso feito sobre o imaginário popular sobre a violência.
Em alguns casos recentes, como no Maranhão, as condições de tutela dos apenados nos presídios estaduais, chegou a causar condenações internacionais ao país e vergonhar as mentes minimamente responsáveis. Embora com grande cobertura televisava, envolvendo aspectos políticos-partidários, as máterias não atingiam o cerne da questão; os direitos inalienais de qualquer brasileiro, incluindo os sob tutela criminal do Estado. Refletir sobre números tão absurdos é uma necessidade imperiosa [1]. Já o "Mapa da Violência no Brasil", de 2015, copatrocinado pela UNESCO, nos mostram que, entre 1980 e 2012, morreram mais de 880 mil pessoas vítimas de disparo de algum tipo de arma de fogo (AF). Nesse período, as vítimas passam de 8.710 no ano de 1980 para 42.416 em 2012, um crescimento de 387%. Temos de considerar que, nesse intervalo, a população do país cresceu em torno de 61%. Entre os jovens de 15 a 29 anos, esse crescimento foi ainda maior: passou de 4.415 vítimas em 1980, para 24.882 em 2012: 463,6% de aumento nos 33 anos decorridos entre as datas, sendo a maioria das vítimas do sexo, masculino, negros e pardos. Também na maioria dos casos as vítimas voltavam do trabalho e ou da escola, ou de algum tipo de festa, e foram confundidos com traficantes – no mais das vezes em virtude de trajes e de cor. Na maioria absoluta dos casos, o crime é encoberto sob a alegação de "auto de resistência", instituto que dá ao agente público brasileiro o direito, líquido e certo, de matar impunemente. Foi emblemático, e já esquecido, nesta categoria a morte do bailarino da TV GLOBO Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG. Na maioria absoluta dos casos, há profunda manipulação no corpo da vítima, no local, destruição de provas ou abandono de procedimentos, inclusive nos institutos médico-legais capazes de levar aos assassinos de tais pessoas.

O que aconteceu no país, entre, por exemplo, 1980 e 2015 – datas da pesquisa acima citada -, que fez com que as esperanças, as expectativas e os justos anseios de que casos tristemente celebres, como a chamada "Caso das Mães de Acari", de 1990, ou da chacina das crianças da Candelária, em 1993, ou a chamada Chacina de Vigário geral, neste mesmo ano, continuassem a se repetir, mesmo com a vigência da "Constituição Cidadã", de 1988 e após, aparentemente, a varredura do "entulho autoritário" criado desde 1964?
Trata-se, numa compreensão radical, ou seja, de ir à raiz da questão, de questionar o tipo de sociedade que se está construindo no país e mesmo no padrão civilizacional que queremos para o Brasil, compreendido este como o conjunto das normas consensuadas entre a cidadania, o Poder P"ùblico e seus representyantes.
Para responder esta questão somos obrigados a retornar na nossa história do tempo presente e rever alguns os dos momentos centrais da chamada "transição democrática" no Brasil, como ela se deu e o que aconteceu com as instituições autoritárias criadas pelas sucessivas ditaduras impostas ao país.

Em 28 de agosto de 1979 o general Figueiredo – aquele que pediu inutilmente para ser esquecido! – Aprovava a Lei 6.683, que estabelecia a anistia para atos considerados criminosos, de motivação política, cometidos entre 1961 e 1979. A lei, aprovada ainda sob regime discricionário e autoritário, sem a plena capacidade de o Congresso Nacional decidir, estabelecia um princípio único no mundo: os possíveis acusados de atos de violência e tortura cometidos sob cobertura do Estado autoritário, por agentes do Estado e em próprios do Estado, eram colocados fora do alcance da Justiça. Em suma, os homens que torturam, sequestraram, mataram e se desfizeram de corpos e das provas de tais crimes, eram "anistiados" no mesmo diploma que "perdoava" os que lutaram pelo retorno da democracia no país.

A Anistia, uma luta de pessoas que sofreram a ditadura e do conjunto do povo brasileiro, foi, pela Lei de Figueiredo, violentada e depravada no Brasil, com o objetivo, tantas vezes repetido pelos setores, inclusive da historiografia, de "virar uma página da história".
A Anistia, foi em princípio, um amplo movimento popular, englobando organizações da sociedade civil, militantes e grupos de apoio das mais variadas tendências. Sob o impulso das ruas, de milhares de comitês e de centenas de atos pela liberdade de presos e retorno dos exilados, e pela reassunção de cargos de onde centenas de brasileiros foram alijados ao arrepio da lei, exigia-se o restabelecimento dos direitos de todos os brasileiros. A ditadura, entretanto, abriu uma cunha jurídica no texto legal – de tipo jabuticaba, ou seja, tipicamente "nacional" - para proteger aqueles que torturaram e mataram pessoas indefesas, sob a tutela do Estado, na maioria dos casos em próprios, prédios, do Estado, sob administração do Estado e por funcionários do Estado em pleno horário de trabalho.
Assim, a ditadura se auto anistiou. Pegou, desavergonhadamente, carona nas lutas populares, para colocar no ninho alheio o seu ovo de impunidade.

A violência era, e é, uma política de Estado e aquele Estado se auto anistiou em 1979.

Mas, não precisava ser assim. A Constituinte de 1988 poderia ter mudado isso. Não o fez. Sob impacto da ação do chamado "Centrão", o então "blocão" da direita brasileira - que pela primeira vez se unia com a força do movimento popular, após os rachas no interior do regime civil-militar – e que armou o controle dos trabalhos da Assembleia Constituinte, bloqueou toda iniciativa nesta direção, deixando muito pouco de "soberano" para os trabalhos em curso.
Tratava-se, como cláusulas pétreas invisíveis, de manter alguns temas totalmente fora do alcance do debate popular: a auditoria da dívida externa e forma como ela foi contratada; a abertura de processos ´por corrupção e malversação de recursos públicos e, finalmente, a questão da tortura e dos desaparecidos.
Assim, o regime híbrido, dito de transição, entre a ditadura civil-militar e a democracia procurava – dirigido pelo ex-presidente do Partido da Ditadura, ex-ARENA e então PDS -, e conseguia, colocar-se à margem, para além, do alcance da Justiça, nos temas centrais de igualdade de todos os brasileiros perante à lei. Os autores desta façanha – ou seja, os atores componentes da AD/Aliança de Democrática oriundos da ARENA/PDS que abandonaram, na vigésima quinta hora a ditadura para unir-se ao projeto " de abertura" encabeçado por Tancredo Neves (trazidos por José Sarney, cujo o colo foi o depositório do levante nacional contra o autoritarismo) – foram capazes de barrar quaisquer esforços de imposição de punições, afastamentos ou demissão dos torturadores.

Esta era a essência do "acordo" ou da "Carta de Minas Gerais", que viabilizava, sem maiores traumas, a chamada transição democrática no Brasil, garantido, pelo silencia, a aliança entre a dissidência do PDS e a oposição do PMDB.

Da mesma forma, o véu da corrupção foi mantido sob as instituições nacionais, confirmando a prática nacional de usar as leis somente contra os inimigos, nos momentos oportunos e de forma pontual. No pós-Ditadura não houve CPIs, inquéritos ou investigações sobre homens e instituições que violaram as leis, que se enriqueceram de forma ilícita ou daqueles que quebraram as normas constitucionais em 1964 e nos anos subsequentes montaram uma ditadura no pais. Nem tão pouco, sobre os que sequestraram, torturaram e mataram. Até em 1946, no pós-Vargas, o Congresso Nacional, embora sem resultados, buscou uma CPI sobre o antigo regime, suas torturas e malfeitos. Dessa vez, nada foi feito.

Tratava-se, claramente, dos limites de uma transição "tutelada", onde homens do "antigo regime" reinavam como os condutores da abertura democrática. As presidências José Sarney e Collor de Mello, tiveram, claramente, a função de evitar que a história fosse escrita a partir de uma clara denúncia dos atos bárbaros e dos malfeitos da ditadura. Vieram, então, homens da resistência, que lutaram pela democracia: Itamar Franco, FHC e Lula da Silva. Cada um deles, ao seu modo, buscou corrigir os aspectos mais dolorosos do "esquecimento" do passado recente, mas ajudaram e apressaram-se, de uma forma outra, a "virar a página de uma história" que lamentavelmente ainda não havia sido escrita. Em nome da "unidade nacional" e da "conciliação" de todos os brasileiros decidiram-se pelo "esquecimento" da história do tempo presente no Brasil. Todos aqueles que exigiam transparência, Justiça e restabelecimento de direitos violados foram vistos como "encrenqueiros", "revanchistas" e "radicais".
 
Este era o "transformismo" brasileiro: sempre pronto a negar o passado, sempre a pregar o esquecimento, sempre a defender a "paz social" – claro, que negros escravos, índios, os mortos e torturados, desde a Revolta dos Alfaiates na Bahia, em 1798, passando pelas terríveis punições da Revolta da Chibata, em 1910, até os torturados durante o Estado Novo (1937-1945) e, depois, pelo Regime de 1964, culminando nos tantos "Amarildos" de todos os dias, ficariam esquecidos em nome da "paz" e da "reconciliação" social.

"Glória, à todas as lutas inglórias, da nossa História"! Assim, a história do Brasil se construiu em continuidades e esquecimentos, "elos" unindo as minorias – às vezes maiores! – Subalternas, maltratadas e espezinhadas e onde a impunidade construía pontes entre os regimes de exceção.

Tratava-se de "superar o passado", "esquecer uma página triste da nossa história". Queimar os registros da escravidão, para apagar a "mancha" nas
História nacional edulcorada e sumir com os documentos da ditadura para garantir que a democracia pudesse vicejar, flor rara e delicada, incapaz de encarar seu próprio passado.
 
No entanto, esforços foram feitos por familiares dos presos e desaparecidos do Regime de 1964, colocando em questão o "esquecimento", e algumas entidades, entre elas a notável "Tortura Nunca Mais", insistiram em buscar toda a verdade. O objetivo era enterrar, não a história do tempo presente, mas, os corpos ainda insepultos da ditadura. Coube a Dilma Rousseff, ela mesmo uma militante anti-ditadura, dar o passo mais avançado, instalando uma Comissão Nacional da Verdade, desde longa dada prevista e uma das mais retrasadas da história contemporânea.

A Comissão, de mandato e poderes restritos, possuía o mérito de abrir aqui e ali frestas no silêncio e recusar-se, pela primeira vez no Brasil, a "virar a página" de um livro que ainda não fora escrito de nossa história. Os resultados, ainda que parciais, aqui e ali marcados por lacunas profundas e alguns erros notáveis e não imune a escolhas duvidosas, já são uma ruptura, uma novidade, na sociedade brasileira.
De posse de tais resultados cabe, ainda uma vez, bater ás portas do STF e pedir que o silêncio e o esquecimento sejam, desta vez, quebrados. Por que? Porque é história, nossa história, nosso tempo e nossa obrigação. Mas, há algo ainda maior a exigir o fim do silêncio: a história, entre nós, se repete! Os massacres, as chacinas, os sequestros, as mortes e explicadas e impunidade estão nas primeiras páginas. Não se trata, como, como nos estudos europeus, de erguer o véu que encobre o passado. Mas, um esforço necessário de impedir uma ampla matança em curso cotidianamente.
Entretanto, o STF, que se manteve em silêncio sobre a validade constitucional do AI-1 e o AI-no. 5, dentre tantos, já em 2010, antes mesmo de qualquer investigação, considerou a proposição da OAB, pedindo a revisão do decreto do último general de 1964, como improcedente.

Os crimes e os malfeitos manter-se-iam, ainda desta feira, na obscuridade legal.

A tortura, como no geral a violência, a truculência e arrogância cotidiana nas relações sociais no Brasil – em especial entre a dita "elite" e a massa do povo -, não foi uma invenção do regime de 1964. Isso seria uma injustiça histórica. No máximo tornou-se, desde então, uma política de Estado. Nem mesmo, como poderíamos pensar de forma indulgente, foi produto de um ensinamento técnico importado do exterior, seja de manuais franceses da primeira Guerra da Indochina ou da Guerra da Argélia, seja dos manuais norte-americanos utilizados urbi et orbi. Uma elite com mais de 400 anos de escravidão não precisa de lições de como torturador seu próprio povo. A novidade era, em 1964, a transformação da tortura em política de Estado, sua extensão e sua aplicação por objetivos específicos e contra grupos de militância política cujos membros, muitos, eram oriundos da própria elite do país. E aqui nos afastamos de algumas das conclusões da Comissão Nacional da Verdade. A compreensão da ditadura como "civil" e "militar! " Não implicava que cabia aos militares, e exclusivamente a eles, a tarefa "suja" do regime. As policias tiveram uma atuação intensa, e já desde o golpe falhada do de 1961.

Antes, ao tempo da escravidão e na República Velha, a tortura era para escravos, pobres, migrantes – internos e externos – e marginais, no melhor sentido da expressão, todos aqueles estranhos à "boa sociedade". Foi o Estado Novo (1937-1945) que generalizou, ampliou, treinou e montou as bases da violência sistemática de Estado como política no Brasil. Órgãos públicos como Depôs, Dops, e a temível Polícia Especial – foram, numa expressão corrente – "o ovo da serpente", todos gestados no Estado Novo. Depois, na "democracia" estabelecida em 1945 e tolerada pelas elites até 1964 (malgrado os golpes "falhados" em 1954, 1955, 1956 e 1961) criaram-se centros policiais de tortura e morte, com os mesmos homens que exerceram o poder de vida e morte sobre os dissidentes do Estado Novo na liderança das instituições policiais da "democracia": as "invernadas", como de Olaria no Rio de Janeiro, as "escuderias" policiais – como a autodenominada "Le Cocq" -, as "Rotas", as chamadas as policias "mineiras" e os esquadrões da morte que torturavam e matavam povoaram o noticiário da democracia brasileira entre 1946 e 1964.
 E como sempre, impunemente.
Depois de 1964, os esquadrões da morte vicejaram. Policiais treinados na tortura, desde 1937, foram emprestados aos órgãos militares, delegados organizaram "repúblicas" próprias onde exerciam o direito de vida e morte sobre oponentes do regime, criminosos de direito comum ou quaisquer outros que merecessem sua atenção.
 
Pelo menos em duas ocasiões, uma em 1963/1964, e a outra de quando da criação da chamada Operação OBAN, em 1969, policias, militares, grandes empresários e autoridades civis se uniram para montar e financiar centros de tortura no país. Muitos destes policiais, alguns com codinomes de "doutor" ou de "capitão" passaram-se, mais tarde, pura e simplesmente para o crime organizado, e lá estão, ainda hoje, impunemente.

A cadeia explicativa da tortura no Brasil (enquanto uma política sistemática) ainda hoje vigente une os porões da polícia do Estado Novo, os órgãos de repressão mantidos vivos na "democracia" de 1946-1964 (como os Dops), a simbiose das polícias, PMs e grandes empresários temerosos do "comunismo", e que financiaram e enriqueceram torturadores, bem com autoridades civis – juízes, promotores -, que mantiveram-se mudos ante os acontecimentos, e aos quais juntar-se-iam a polícia civil, os paramilitares e milicianos dos nossos dias.

Uma exemplar história sem rupturas

Deixamos passar, ignoramos, maltratamos todas as possibilidades, desde 1945, passando pela Constituição de 1988, até hoje, de criar formas jurídicas, e princípios políticos, que pudessem impedir a repetição do trauma histórico, fundante do pior vicio da vida política brasileira: a violência sistemática contra pobres. Pior de tudo: os políticos que fundaram e refundaram a "democracia" brasileira, como os liberais de 1945 e 1946 e os homens no poder em 1985 e 1988, preferiram um discurso, e uma construção da narrativa de nossa história, centrada no "esquecimento", em "virar a página", em "deixar no passado" e em "perdoar à todos" (como se vítimas e algozes fossem iguais) que enlutaram e envergonharam a história do tempo presente no Brasil.

No Brasil, nenhum lugar seria Nuremberg!
E no Brasil, ninguém seria acusado de tramar contra a liberdade, em organizar-se, em prédios e sob a cobertura do poder público, de sequestrar, torturar, matar, ocultar e, então, mais uma vez, repetir toda a história. Os homens que compuseram o Tribunal de Segurança Nacional, por exemplo, entre 1935 e 1945, não só não foram tocados ou "incomodados" em seus postos e nos seus salários, como ganharam cargos prestigiosos, na "democracia" de 1945-1964, na mais alta magistratura do pais. Muitos tornaram-se ministros do Supremo Tribunal Federal e de outras instâncias. Torturadores do Estado Novo tornaram-se delegados da polícia e do Dops depois de 1945 e foram eles que ajudaram e participaram da repressão depois de 1964. Suas vítimas foram esquecidas, os crimes ocultados. Trauma político e pessoal que transforma a história em recalque e repetição, tornando a história do brasil no rol de impunidades.

Crimes "mal-ditos", ocultados, como traumas guardados no fundo d´alma, se repetem. Os mesmos homens, "grandes" juristas como Francisco Campos e Carlos Medeiros, que apoiaram e fundaram o Estado Novo, tornaram-se os redatores dos Atos Institucionais liberticídas de 1964 e chefes de polícia de 1937, como Filinto Müller, assumiram funções de coordenação da repressão e de poder depois de 1964. O trauma "mal-dito", oculto, transforma-se me repetição e se auto reproduz na sombra da impunidade. Os torturados de 1935 e 1937 renasceram nos "Amarildos" de 2013. Mas, nem então, foi dito basta! A nossa história não se repete como comédia, como quereria Marx. Pior, a história do Brasil gagueja o mesmo trauma: da escravidão, das Leis Celeradas da República Velha, dos porões do Estado Novo até o Regime de 1964 somos uma sucessão de gaguejos. Graciliano Ramos, Olga Benares, Stuart Angel Jones, Amarildo, Dona Claudia Ferreira e ou DG: são todos um só!

Contudo, o pior gaguejo, o entalo da fala, o lapso da razão, deu-se em 2010. Portanto, em plena democracia da Nova República fundada em 1988. Neste ano, o Supremo Tribunal Federal, recusou a ação da OAB questionando a validade da Lei 6.683 e reafirmaram a anistia dos torturadores. A democracia brasileira, e suas sumidades jurídicas, tiveram uma chance única na proposta da OAB: romper com as continuidades, impor o respeito pela dignidade humana e a punição pelo pior de todos os crimes. O STF, então, recusou-se "a abrir velhas feridas". Indo além, a Justiça brasileira estendeu a anistia aos torturadores vindouros num futuro imprevisível: crimes em curso, como sequestro e ocultação de cadáveres, e, acima de tudo, os crimes posteriores à própria anistia – como os atentados contra os jovens do Riocentro, a OAB e o poder legislativo do Rio nos últimos anos da ditadura – foram prévias, e futuramente, anistiados. Na ocasião, a justiça encenou uma farsa, e em 2010 o STF tornou tal farsa numa tragédia permanente da vida brasileira.

Uma massa de policiais civis, militares e alcaguetes comemoraram sua liberdade de tipo "007": a liberdade para matar!

Quando deu-se de forma debochada, evidente, pornográfica a tortura, morte e ocultação do pedreiro Amarildo, no Rio em 2013, estávamos repetindo, gaguejando, a nossa própria história. Os crimes cometidos contra as massas de escravos brasileiros – e viva os heróis da Pedra do Sal! -, contra os trabalhadores migrantes, estrangeiros e nacionais, na República Velha, contra os oponentes do Estado Novo e, enfim, dos resistentes contra o regime de 1964 se repetiriam de forma sistemática e crescente. Agora, restabelecida formalmente a "democracia", as vítimas não seriam mais grupos de advogados, militantes, professores e estudantes da classe média brasileira. Depois de 1988, com a anistia e a decisiva e forte ação do STF de não punir a tortura no Brasil, os trabalhadores, os "associais" e "marginais", os pobres, negros, gays e índios seriam o alvo central de um poder que nunca prestou conta, em toda nossa história, de seus crimes. Mata-se sistematicamente. Impunemente. Abertamente. Cadáveres são ocultados por funcionários públicos, arrastados em praça pública por viaturas públicas; jovens negros nus, amarrados, reencenam involuntariamente aquarelas de Debret, amarrados e espancados em postes públicos, por "justiceiros" e por homens que, com fardas e viaturas públicas, somam mais de cinco dezenas de mortes por "autos de resistência", protegidos pelo Estado e amparados pela Justiça.
 
A decisão do STF, em 2010, como o general Figueiredo em 1979, será inesquecível. A decisão dos nossos juízes supremos anistiou previamente, por ausência de sentido de justiça e ignorância de nossa história, aqueles que matariam Amarildo e, agora, Dona Claudia Ferreira – dona de casa, baleada no trabalho, jogada num camburão e arrasta pelas ruas de seu bairro até a morte numa viatura dirigida por um sargento com já cinco "autos de resistência" resultantes em mortes - e ainda ontem cometeram a chacina de São Paulo.

[1] EL PAIS (edição brasileira): "Polícia brasileira mata cinco pessoas a cada dia", 27/02/2014. Ver, ainda, no mesmo jornal, o artigo: "Tortura é problema crônico em cadeias do Brasil", em 21/01/2014.

(*) Professor Titular de História Contemporânea/IUPERJ


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