Entre galego-português e castelhano: sobre a marginalia da tradução dos Salmos no manuscrito R da General Estoria de Afonso X

June 6, 2017 | Autor: Mariana Leite | Categoria: Medieval Spanish Literature, Translation, General Estoria
Share Embed


Descrição do Produto

Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega

Universidade de Santiago de Compostela, 2017. ISBN 978-84-16954-41-4, pp. 893-903 DOI http://dx.doi.org/10.15304/cc.2017.1080.52

Entre galego-português e castelhano: sobre a marginalia da tradução dos Salmos no manuscrito R da General Estoria de Afonso X Mariana Leite

École Normale Supérieure de Lyon / Seminário Medieval de Literatura, Pensamento e Sociedade [email protected] Between Galician-Portuguese and Castilian: on the marginalia of the Psalms in the R manuscript of Alfonso X’s General Estoria Resumo Um dos mais antigos testemunhos da General Estoria de Afonso X, o manuscrito CXXV 2/3 da Biblioteca Pública Municipal de Évora, designado pela crítica como R, comprova a existência de um projecto de cópia selectiva da história universal alfonsina, apenas preservando a matéria bíblica. Neste códice do séc. xiv os capítulos reservados à tradução do Saltério, em castelhano, apresentam um número abundante de correcções, em letra gótica librária de uma cronologia próxima da letra do corpo do texto. Estas correcções surpreendem sobretudo pela ambiguidade linguística que apresentam: algumas palavras em castelhano grafadas conforme hábitos portugueses e vice-versa, estruturas sintácticas bilingues, e uma interessante ausência de correcção a partir do texto em latim. Este estudo apresenta uma selecção destes comentários de cariz linguisticamente compósito, observando como se aproximam ou afastam da Vulgata latina e dos outros testemunhos castelhanos para compreender as circunstâncias em que foram elaboradas as marginalia bilingues do testemunho R da General Estoria.

Abstract One of the oldest testimonies of Alfonso X’s General Estoria, manuscript CXXV 2/3 in the Biblioteca Pública de Évora, known as R, proves the existence of a project of selective copying from this universal chronicle, since it only transmits Biblical material. In this 14th-century codex, the chapters reserved for translations of the Psalms into Castilian contain a large number of corrections, written in a gothic libraria script which closely resembles thescript of the main text. These corrections are surprising in their linguistic ambiguity: some words in Castilian are written with Portuguese orthography and vice-versa; syntactic structures from one language are transposed into another; and there is a curious absence of corrections based on the Latin source text. This article presents a selection of these linguistically composite comments, observing how they resemble or deviate from the Latin Vulgate and the other witnesses to the General Estoria. Studying these bilingual marginalia will allow us to understand more clearly the circumstances in which theywere produced.

Palavras-chave Literatura medieval, General Estoria, tradução, plurilinguismo, tradição manuscrita

Keywords Medieval literature, General Estoria, translation, multilingualism, manuscript traditions

894

Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega

A General Estoria, história universal composta de e para Afonso X de Castela, reveste-se de uma grande complexidade de transmissão textual. Redigida a partir de 1274 até à morte do seu promotor em 1284, a obra insere-se na tradição das histórias universais da Idade Média europeia, começando na criação do mundo e propondo-se chegar até à vida do monarca. Para tal, seguir-se-á a narrativa bíblica, a par da matéria pagã – de Tróia ou de Roma – incluindo-se assim traduções integrais de várias fontes, como é o caso da própria Vulgata1 mas também de autores latinos, como Ovídio2 e Lucano, ou de romances inteiros, como os Roman de Troie3, de Thèbes4 ou d’Alixandre5. A proposta de contar toda a história da humanidade, fazendo-o em grande medida pela inclusão de traduções integrais, manifesta a visão alfonsina da narrativa historiográfica – contar a história é também registar tudo o que se pode compreender como legado histórico – o que fará da General Estoria um projecto que ultrapassa em grande medida qualquer outro projecto de historiografia universal coevo. Talvez apenas o opus magnum de Vincent de Beauvais, que compõe, no início do séc. xiii, o seu Speculum Maius, que inclui um Speculum Historiale de cariz universal, para o rei S. Luís de França, se possa aproximar em dimensões, mas enquanto o texto do autor francês está composto na tradicional língua de cultura, o Latim, a General Estoria é inteiramente redigida em castelhano, língua do rei que a promove e que reclama a autoria da obra, e propõe-se incluir toda a informação disponível sobre a história da humanidade até ao reinado do Afonso X. A morte do monarca em 1284 ditará o fim do projecto no início da sexta parte6, onde se iria começar a narrar a vida de Santa Maria, levando também à rápida dispersão dos testemunhos e à difusão de cópias bastante peculiares. Com efeito, dos quarenta e dois testemunhos7 que transmitem matéria da General Estoria, nenhum inclui integralmente a obra alfonsina – tarefa difícil dadas as dimensões do texto – e apenas dois foram produzidos ainda na corte régia: um testemunho da primeira8 e outro da quarta9 parte. Ao mesmo tempo, a rápida dispersão de testemunhos ditará a fortuna editorial da obra, apenas editada integralmente em

Os estudos sobre o papel da Bíblia na redacção da General Estoria são os mais numerosos. Vejam-se os estudos de Morreale (1982, 1984) e Menéndez Peláez (1977); além destes trabalhos, indicamos as considerações de Sánchez-Prieto Borja (2001, 2009). 2 Sobre a presença deste autor latino na obra alfonsina, é indispensável a consulta da tese de doutoramento de Salvo García (2012). 3 Vejam-se os estudos de Solalinde (1916) e Casas Rigall (1999). 4 Gracia, Paloma (2003). 5 Willis, Raymond Smith (1934, 1935). 6 São as indicações do prólogo à sexta parte da obra, único vestígio desta secção do projecto, conforme se pode consultar na edição utilizada de 2009. 7 O elenco e estudo dos manuscritos podem ser consultados em Fernández-Ordóñez (2002). 8 Trata-se do manuscrito 816 da Biblioteca Nacional de España, conhecido como A. 9 Designado pela crítica como U, o manuscrito Urb. lat. 539 encontra-se na Biblioteca Apostólica Vaticana, Roma. 1

MARIANA LEITE Entre galego-português e castelhano: sobre a marginalia da tradução dos Salmos no manuscrito R da General Estoria

895

dez volumes no ano de 2009, levando à difusão do texto através de cópias parciais e à colocação de problemas editoriais complexos. Tal é o caso da terceira parte da obra. Relatando a história do mundo entre o final do reinado de Salomão até ao fim do exílio na Babilónia, a terceira parte da General Estoria inclui, no que é uma inovação em relação às histórias universais suas contemporâneas, uma tradução integral dos livros sapienciais bíblicos, ou seja, dos livros atribuídos a David e a Salomão. A inclusão destas traduções revela o propósito alfonsino de nada deixar por contar: se por um lado se traduzem os textos de David e Salomão, modelos do poder régio com os quais Afonso X se identifica – nomeadamente pela produção literária/ jurídica – para que nada fique por dizer, por outro lado a tradução integral da Vulgata sublinha a concepção de que nada do texto sagrado poderia ser excluído. Em grande medida, a tradução integral do texto bíblico terá levado ao uso da General Estoria como uma história universal que também é uma bíblia romanceada e historiada, ou seja, uma tradução da Vulgata para uma língua vulgar que poderá incluir pequenos apontamentos de cariz historiográfico ou explicações teológicas de certas passagens. Este é o caso dos testemunhos CXXV 2/3 da Biblioteca Pública de Évora, que continua no manuscrito I.I.2 da Real Biblioteca de San Lorenzo del Escorial10. O manuscrito preservado na biblioteca eborense, denominado pela crítica como R, apresenta uma série de complexidades que o tornam um dos testemunhos mais surpreendentes da General Estoria. Com efeito, apenas se pode adiantar que é um manuscrito da primeira metade do séc. xiv – pelo que o estado da língua e o estudo paleográfico deixam constatar11 – que teve acesso a um testemunho integral da General Estoria – a inclusão de alguns elementos da matéria pagã comprovam o recurso a um testemunho anterior que incluiria o texto completo – que descende de um estado arquetípico da obra12. É um manuscrito pergamináceo de grande luxo, composto por 261 fólios, embora incompleto, como se pode verificar pela profusão de imagens e capitais ornamentadas, na sua maioria inacabadas13. A sua produção e aparência estética aproximam-no da escola alfonsina, embora o estado da língua revele alguma posterioridade em relação ao castelhano do séc. xiii14. Ao mesmo tempo, é um manuscrito que, revelando um cuidadoso labor gráfico, não deixa de transmitir uma série de erros e incoerências de cópia que manifestam Este manuscrito é descrito e estudado por Trujillo Belso (2009). A proximidade entre R e os manuscritos alfonsinos é já indicada no estudo introdutório à primeira edição da segunda parte da obra de Alfonso X (García Solalinde / Kasten / Oelschäger 1957-1961). 12 Seguimos as propostas indicadas por Fernández-Ordóñez (2002: 53). 13 A descrição deste manuscrito pode ser consultada no catálogo online da plataforma Philobiblon (ManId 1062): http://bancroft.berkeley.edu/philobiblon/beta_en.html. 14 Sánchez-Prieto Borja (2009: CXXIV) enuncia o seguinte sobre o testemunho: “Hemos situado R en los primeros años del siglo xiv. Mantiene bien ciertos rasgos de la lengua alfonsí, pero, con todo, se aprecia una notable modernización (...). Incluso presenta algún rasgo innovador, que sirven 10 11

896

Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega

a maior importância atribuída ao valor estético do objecto. Finalmente, é um dos testemunhos da General Estoria que transmite de forma parcial a história universal alfonsina, seleccionando apenas a matéria bíblica15. Todas estas facetas do manuscrito R contribuem para a dificuldade em compreender quer as circunstâncias em que o manuscrito foi produzido16, quer as razões para a sua fortuna. Ao mesmo tempo que nada de seguro se pode saber sobre as circunstâncias que levaram à produção de R, também o seu destino se apresenta enigmático. As margens do manuscrito, especialmente para a tradução do livro dos Salmos17, estão repletas de anotações, correcções e apontamentos de leitura peculiares. Ao longo das mais de trezentas correcções que não se resumem à rasura ou acrescento de letras18, apenas duas notas não estão redigidas na mesma grafia, embora possam ser contemporâneas dos outros comentários. Ainda assim, manifesta-se a tendência para o hibridismo linguístico19. D/escendera como la lluuja en el uelloscino e como/ destelleznos que destellan sobre la tierra nacera en os dias dele iustiça, auondança de paz ataa que seia tirada a/ lũa/ E asenhorarsse a de lo mar ataa o mar e de lo rrio ataa os termos do/ mundo das terras/ deante dele cairam os etyopios e os emigos dele lamberam a terra Los/ Reyes de tharso (R, 95rI, 48-51)20

El segundo fizo ezechias madado de samuel/ Rey de juda e es este el que dizen en latin/ Ego dixi in dimidio dierus meorum Et el/ terçero fizo otrossi anna (R, 106rI, 51-54)21 Exceptuando estes dois apontamentos em escrita gótica mais cursiva, encontramos correcções elaboradas numa elegante letra gótica librária, bastante próxima da do corpo do texto, numa tonalidade de tinta mais escura, mas que nitidamente pertence sempre ao mesmo copista. De facto, esta marginalia sobressai não só pela abundância e pelo facto de corrigir sem cuidados estéticos um manuscrito de grande qualidade, mas também, e sobretudo, pela língua, ou línguas, em que os comentários estão redigidos. para insertarlo en el espacio castellano norteño (...) [um elemento linguístico] parece situarlo en el oriente de Castilla”. 15 O mesmo fenómeno ocorre com o testemunho I.I.2; já o manuscrito Res. 279 da Biblioteca Nacional de España, do séc. xvi, descrito em Sánchez-Prieto Borja (2000). 16 Algumas hipóteses levantadas em Leite (2012: 27-30) são reavaliadas no presente estudo. 17 Matéria compreendida entre os fólios 85r a 107v. 18 Um corpus de 317 correcções foi apresentado em Leite (2012: 34-139); os critérios de transcrição para os fragmentos podem ser consultados no mesmo trabalho (2012: 31-32). 19 Os elementos a destacar estão assinalados a negrito. Marcou-se a sublinhado todo o comentário, a par do texto a que corresponde em castelhano; mantiveram-se os itálicos que assinalam o desenvolvimento de abreviaturas. 20 Leite (2012: 75). 21 Leite (2012: 128).

MARIANA LEITE Entre galego-português e castelhano: sobre a marginalia da tradução dos Salmos no manuscrito R da General Estoria

897

Na verdade, será difícil determinar qual a língua de partida do corrector das margens de R: a diglosia do autor da marginalia verifica-se pela flutuação ortográfica e lexical entre o castelhano e o galego-português, o que levou a que, num primeiro momento de pesquisa, fosse difícil determinar se estamos perante um corrector português que procura corrigir com anotações em castelhano ou um corrector castelhano demasiado contaminado por hábitos de escrita portugueses. Seja qual for o caso, parece nítido que as correcções foram executadas em contexto português, ou pelo menos em meios familiarizados com os hábitos de escrita chancelaresca introduzidos em Portugal a partir do reinado de Afonso III22. Foram seleccionados do extenso corpus de correcções e anotações apenas alguns exemplos para cada uma das circunstâncias em que a língua do seu autor apresenta flutuações linguísticas. Considerem-se primeiramente algumas anotações com abreviaturas cujo desenvolvimento implica a formação de uma palavra em galego -português. Nestes casos, o uso da abreviatura que, em latim, corresponde a us, leva à formação de nomes e pronomes que se afastam do castelhano: en la çiudat del/ nuestro dios deus la fundo para en siempre (R, 92rI, 9-10)23 Sacrifica a dios sa/crificio de alabança e da teus uotos todos sacrificios al muy/ alto (R, 92rII, 21-23)24 Menbreme de los teus juizos mandados del/ sieglo aca sennor e conorteme Desfallesçi/mjento me touo por los peccadores que desenpara/uan la tu ley (R, 102vI, 8-11)25

Os três exemplos seguintes revelam a aproximação à Vulgata latina pelo recurso a correcções que se aproximam, quer etimológica, quer semanticamente, do latim. Estes exemplos devem ser vistos em comparação com os outros dois testemunhos, mais tardios, da terceira parte da General Estoria que também transmitem os Salmos26. No primeiro caso, o corrector rasura “alegratvos”, para o substituir pelo verbo “gloriar”, derivado do verbo em latim. Os outros dois testemunhos apresentam uma tradução mais afastada do texto latino: laetamini in Domino et exultate iusti et gloriamini omnes recti corde (Sal. 31: 11)27 24 25 26

A este propósito, remetemos para Moreira (2012). Leite (2012: 59). Leite (2012: 60). Leite (2012: 108). Os dois manuscritos usados para confronto são o Y-I-8 da Real Biblioteca de San Lorenzo del Escorial, ou Y8, e o 7563 da Biblioteca Nacional de España, ou BN. 27 Utilizou-se a edição da Bíblia Vulgata integralmente disponível em http://www.thelatinlibrary.com/ bible.html (Março 2016), versão digital da edição de Estugarda. 22 23

898

Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega

Alegratuos en el señor et/ exalçatuos los iustos exalçatuos los iustos e alegratuos e gloriadeuos todos/ los derechos de coraçon (R, 89vI, 21-23)28 alegraduos en el señor los/ justos a los derecheros con/ujene el alabamjento (Y8, 10vI, 36-38) [a]legradvos enl señor/ los justos a los dereche/ros conviene el alaba/mjento (BN, 14vI, 11-14)

O segundo exemplo apresentado demonstra, tal como no caso anterior, a escolha de um nome derivado do original em latim, afastando-se assim da opção inicial, provavelmente presente já no arquétipo, mandados. Embora não haja rasura do nome, a nota indica que o termo mais adequado, segundo o corrector, seria juízos e não mandados. confige timore tuo carnes meas a iudiciis enim; tuis timui ain feci iudicium (Sal. 118: 120-121) Apega/ las mis carnes con el tu dedo miedo ca me temi/ de los tus mandados juizos (R, 103rI, 10-12)29 apega las/ mjs carnes con el tu mjedo ca me/ temj de los tus mandados (Y8, 34rI, 29-31) Apega las mjs carrnes/ con el tu mjedo Ca me temj/ de los tus mandados (BN, 46rI, 30-32)

Finalmente, o terceiro exemplo apresentado revela a consciência linguística do corrector. Se na Vulgata latina se menciona a presença sob o olhar de Deus (in conspectu), naturalmente que a conjunção como, presente no arquétipo, que implica uma comparação, não será considerada pelo corrector opção mais adequada para a tradução. quia non iustificabitur in conspectu tuo omnis vivens (Sal. 142: 2) ca non sera fecho ius/to ante como ti ningun uiujente (R, 105rII, 8-9)30 ca non sera/ fecho justo como tu njnguno biuiente (Y8, 38rI, 16-17) ca/ non sera fecho justo commo tu njnguno/ bjbjente (BN, 51vI, 37-51vII, 2)

O último conjunto de exemplos apresentados é constituído por casos em que ocorre a introdução de morfemas ou estruturas sintagmáticas do galego-português. Se em alguns exemplos, como os primeiros, se encontram sintagmas completos em Leite (2012: 47). Leite (2012: 112). 30 Leite (2012:123). 28 29

MARIANA LEITE Entre galego-português e castelhano: sobre a marginalia da tradução dos Salmos no manuscrito R da General Estoria

899

galego-português, nos exemplos seguintes pode verificar-se a flutuação entre línguas no corpo de um mesmo sintagma, prova do hibridismo linguístico do corrector. Como exemplo, atente-se na contracção de proposição e artigo, apenas possível no galego-português, assim como a forma feminina do determinante possessivo; os outros dois testemunhos castelhanos omitem o sintagma nominal. enfermaran ellos e perescran da tua face Ca/ feziste tu el mi juysio (R, 86rII, 29-30)31 enfermeran ellos y peresçran/ Ca feziste tu el mi juysio (Y8, 5rI, 30-31) enfermeran ellos e pe/rescran Ca feziste tu el mi// juizio (BN, 6vI, 31-32)

Um fenómeno similar ocorre com o exemplo seguinte: Espera en el señor e faz ua/ronilmente e sosten al señor tu coraçon/ esforçado o teu coração esforçare (R, 88vII, 44-46)32 Espera al señor faz varo/njl mente y sosten al señor. (Y8, 9vI, 7-8) espera al señor/ faz baronjlmente e sosten al señor (BN, 12vII, 21-22)

O terceiro caso, similar aos anteriores, apresenta também o determinante possessivo na sua forma feminina, que não existe em castelhano: Manda dios a la tua uirtut con/firma dios a la tu uirtud esto que obreste en nos (R, 94vI, 8-9)33 Manda dios/ a la tu vjrtud confirma dios esto que/ obreste en nos (Y8, 19rII, 33-35) manda dios a la/ tu virtud confirma dios esto que obre/ste en nos (BN, 26rII, 6-8)

O segundo conjunto de exemplos é constituído por ocorrências em que se procede à redacção das consoantes palatais usando grafias características da escrita em português após meados do séc. xiii. Encontramos assim ocorrências do uso dos dígrafos e para representar as consoantes palatais lateral [ʎ] e nasal [ɲ], respectivamente. Estes dados são especialmente interessantes por coexistirem, para a representação da consoante palatal nasal, o uso das formas , e na escrita do corrector: Leite (2012: 36). Leite (2012: 44). 33 Leite (2012: 70). 31 32

900

Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega

Monte quando qualhado/ monte gruesso porque catedes suso a los montes/ qualhados querades (R, 94rII, 42-44)34 Et firio/ las ujnhas uelans e las figueras dellos e quebranto los/ sus aruoles de los sus termjnos (R, 100rI, 38-40)35 Sennor libra la mj alma/ misericordioso e iusto el senhor/ e el nuestro dios a mercet (R, 101vII, 19-21)36

Finalmente, é ainda possível encontrar algumas estruturas frásicas mais longas onde a tendência para a diglosia do corrector é mais evidente. Tal é o caso dos exemplos indicados, onde palavras e grafias galego-portuguesas convivem com palavras e grafias castelhanas, nomeadamente os determinantes artigos galego-portugueses a par dos castelhanos. e seet alçadas puertas/ perdurables e entrara el Rey de gloria Quien es este re/ de gloria senho[…]/ forte e poderoso/ podero/ so/ en batalha Alto/ Alcad los principe/ uostras portas/ sed alcad as po[…]/tas durabres/ tem el rey de gl […]/ Quien/ es este Rey de gloria el sennor de la gloria e el/ sennor de las uirtudes esse es el Rey de gloria (R, 88rII, 44-47)37 La casa de israel espero en el sennor ayudador dellos/ e defendedor dellos es A casa de arom esperou en el senhor su ajudador/ e su defendedor es/ los que temem al senhor esperarom en el senhor su aju/dador e su defendedor es El señor se membro de/ nos e bendixo a nos (R, 101vI, 53-56)38

Interessantes também são as estruturas que podem ser consideradas completamente redigidas em galego-português; menos correntes, estes casos não deixam de colocar interrogações sobre a compreensão linguística do autor das correcções ao manuscrito R: E assento alli los que aujen fam/bre e establescieron cidade para/ morar fruto de su nascimiento natural/ E semearom canpos e prantarom ujnhas e/ fezerom frutu naturalmente E bendixolos e son amuchiguados mucho (R, 100vII, 19-21)39 Enuie/ yo la mi oraçion en la uista del e digo mio/ quebranto a el En desfalecendo de mim o meu spiritu e tu conheceste/ as minhas carreiras En esta carrera que yo/ andaua me ascondieron lazo los soberuios (R, 105rI, 49-52)40 36 37 38 39 40 34 35

Leite (2012: 70). Leite (2012: 94). Leite (2012: 102). Leite (2012: 41). Leite (2012: 102). Leite (2012: 99). Leite (2012: 122).

MARIANA LEITE Entre galego-português e castelhano: sobre a marginalia da tradução dos Salmos no manuscrito R da General Estoria

901

Ley Egem pon a mi señor en la carrera de/ las tus derechuras e demandar la he yo/ siempre Cdame entendimiento e es/codrinne la tu ley e guardar la he em todo meu coraçom/ todo en todo Guya me e adume a la/ carrera de los tus mandados ca essa quis/ Humjlla el mj coraçon em los tus testimonjos et/ non auaricia Torna los mjos oios a outra par/te porque non uean uanidat (R, 102rII, 33-41)41

A análise mais atenta destes exemplos – que, note-se, são uma amostra pequena mas significativa de um corpus muito mais extenso – pode levar a ponderar algumas hipóteses sobre as circunstâncias de correcção do manuscrito e, através delas, das circunstâncias da sua chegada a Portugal. Como é possível verificar, o corrector em questão faz uso de hábitos de escrita afins aos da chancelaria régia portuguesa. Sendo o manuscrito R da primeira metade do séc. xiv, e comparando o tipo de letra do corpo do texto com as marginalia, nota-se a proximidade paleográfica entre ambas as mãos, o que sugere a proximidade cronológica entre a redacção do manuscrito em castelhano e as correcções híbridas de português e castelhano. Por outro lado, é necessário voltar a sublinhar o contraste entre o estatuto luxuoso do manuscrito e as correcções abruptas e sem atenção estética. Estamos assim perante um corrector que está autorizado – ou que se autoriza – a inscrever no manuscrito a sua versão da tradução dos Salmos sem problemas. Finalmente, é nítida a flutuação entre línguas e grafias de que o corrector sofre. Ao debruçarmo-nos sobre as estratégias de escrita e, sobretudo, aos erros do corrector, torna-se possível delinear o seu perfil. Trata-se de alguém com conhecimentos de latim, conhecedor dos Salmos de cor; eventualmente, a imagem que surge no verso do fólio 94 será um autorretrato. Será seguramente alguém de formação eclesiástica, possivelmente um membro do clero, com autoridade suficiente para proceder à correcção do manuscrito. Às características paleográficas acresce a linha chanceleresca seguida pelo corrector: é alguém com formação na escola portuguesa, habituado às grafias em uso na corte de Portugal desde a segunda metade do séc. xiii. Poder-se-á assim colocar o corrector em meios ligados à corte portuguesa, eventualmente um clérigo que ou herdou ou, mais provavelmente, tem acesso a uma biblioteca régia. Finalmente, o tipo de erros cometidos demonstra que o seu conhecimento de castelhano será passivo. A diglosia do corrector sugere que não estejamos perante um falante propriamente bilingue, uma vez que há uma clara tendência para corrigir em castelhano mas acabar por redigir em galego-português. Ora, este fenómeno apenas faz sentido se estivermos perante um autor português que tenta corrigir o texto na língua em que este está redigido mas que, involuntariamente, acaba por denunciar a sua língua materna nos erros de castelhano que comete. Neste sentido, poderemos determinar que o corrector é um nativo de gale Leite (2012: 107).

41

902

Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega

go-português, fluente em latim e provavelmente conhecedor passivo do castelhano, ou seja, alguém capaz de ler e compreender perfeitamente a língua do texto, mas que comete lapsos ao escrever nessa mesma língua. Tendo o texto em latim memorizado, o corrector tenderá a recorrer à sua língua materna, o galego-português, no processo de tradução para o castelhano, o que provoca os fenómenos de hibridismo linguístico assinalados. A obra maior de Afonso X, a General Estoria, apresenta ainda muitos enigmas por decifrar. As circunstâncias da sua produção encerram tantas questões como a sua fortuna. A rápida dispersão de testemunhos, a par da produção de cópias selectivas como a de R, difucultam a identificação de quem terá encomendado cópias. No caso do testemunho R, elaborado num período tão recuado – é o testemunho mais antigo, com excepção dos manuscritos régios – mais indagações se poderia fazer. Podemos, contudo, determinar que, se não a General Estoria na sua totalidade, pelo menos o manuscrito R já se encontrava em Portugal no séc. xiv, sendo lido e corrigido por nativos galego-portugueses. Aguarda-se, assim, a confirmação da existência de outros leitores da obra alfonsina durante este período42.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS García Solalinde, Antonio / Lloyd A. Kasten / Victor Oelschäger (eds.) (1957-1961): Alfonso X. General Estoria. Segunda Parte. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas / Instituto Miguel de Cervantes. Sánchez-Prieto Borja, Pedro (coord.): Alfonso X el Sabio. General Estoria. Madrid: Fundación José António de Castro. Casas Rigall, Juan (1999): La materia de Troya en las letras romances del siglo xiii hispano. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela. Fernández-Ordoñez, Inés (2002): “General Estoria”, em Carlos Alvar / José Manuel Lucía Megías (eds.), Diccionario Filológico de Literatura Medieval Española. Madrid: Castalia. Gracia, Paloma (2003): “Singularidad y extrañeza en algunos lugares de la “Estoria de Tebas” (General estoria, Parte II), a la luz de la Histoire ancienne jusqu’à César”, BulletinHispanique, t. 105, n°1, 7-17. Leite, Mariana (2012): A General Estoria de Afonso X em Portugal: as múltiplas formas de receção do texto alfonsino entre os séculos xiv e xvi. Tese de Doutoramento. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Menéndez Peláez, Jesús (1977): “Las biblias romanceadas y su influencia en la General Estoria”, Studium ovetense, v, 37-65. Possibilidade levantada por Miranda (2015).

42

MARIANA LEITE Entre galego-português e castelhano: sobre a marginalia da tradução dos Salmos no manuscrito R da General Estoria

903

Miranda, José Carlos (2015): “A Crónica de 1344 e a General Estoria: Hércules e a Fundação da Monarquia Ibérica”, em Marta Haro (ed.), Literatura y Ficción: ‘estorias’, aventuras y poesía en la Edad Media. València: Universitat de València, 209-224. Moreira, Filipe Alves (2012): “Notas sobre a convivência de línguas em Portugal no século xv e a tradução da Crónica de Alfonso X”, e-Spania [Online], 13. Morreale, Margherita (1982): “La General Estoria de Alfonso X como Biblia”, em G. Bellini (ed.), Actas del Séptimo Congreso de la Asociación Internacional de Hispanistas (Venecia, 1980), vol. i. Roma: Bulzoni editore, 767-773. Morreale, Margherita (1984): “La fraseología bíblica en la General Estoria: observaciones para su studio”, em A. Crisafulli (ed.), Linguistic and Literary Studies in honor of Helmut A. Hatzfeld. Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 269-278. Salvo García, Irene (2012): Ovidio en la General Estoria de Alfonso X. Lyon: École Normale Supérieure de Lyon / Universidad Autónoma de Madrid Sánchez-Prieto Borja, Pedro (2000): “Hallazgo de un nuevo manuscrito con segmentos desconocidos de la Tercera Parte de la General estoria”, Revista de Literatura Medieval XII, 247-272. Sánchez-Prieto Borja, Pedro (2001): “Introducción”, em Pedro Sánchez-Prieto Borja (coord.), General Estoria. Primera Parte, vol. I, Génesis. vol. II, Éxodo, Levítico, Números, Deuteronomio. Madrid: Fundación José Antonio de Castro. Sánchez-Prieto Borja, Pedro (2009): “Introducción”, em General Estoria de Alfonso X. Primera Parte. Madrid: Fundación José António de Castro. Sánchez-Prieto Borja, Pedro (2009): “Introducción”, em Pedro Sánchez-Prieto Borja (coord.), General Estoria. Tercera Parte. Madrid: Fundación José Antonio de Castro, CXXIV. Solalinde, Antonio (1916): “Las versiones españolas del Roman de Troie”, Revista de Filología Española, vol. iii, 121-165. Trujillo Belso, Elena (2009): Edición de los Libros de los Macabeos de la Quinta Parte de la General Estoria. Tesis Doctoral. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá. Willis, Raymond Smith (1934): The relationship of the Spanish Libro de Alexandre to the Alexandreis of Gautier de Châtillon. Princeton: Princeton University Press. Willis, Raymond Smith (1935): The debt of the Spanish Libro de Alexandre to the French Roman d’Alexandre. Princeton: Princeton University Press.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.