Erros Menores, Tristezas Profundas

Share Embed


Descrição do Produto

Erros menores, tristezas profundas

Gláucio Ary Dillon Soares, publicado no Correio Braziliense, 23/07/09
Um pesquisador me perguntou por que excluíamos as violências do cotidiano do rol dos crimes. É verdade que as sub-representamos. O que é e o que não é crime depende da lei e varia muito no tempo e no espaço. Nas colônias, era comum o choque entre dois corpos de definições.
Na tradição cristã, o adultério já foi considerado "um crime enorme" (Jó, 31-11), mas, hoje, pequenos flertes e seduções já não são crimes; alguns países retiraram a infidelidade e o adultério do rol dos crimes e outros os retiraram de fato, lei ou não lei. Não são aprovados, mas não são crimes. Não obstante, essas ações, que ficaram legalmente menos importantes, continuam a causar um emaranhado de tristezas e dores, como ilustra o seguinte fato real.
Dona Kika e seu Celidônio eram muito pobres, com seis filhos, moradores da periferia de São Paulo. A despeito de seis filhos, dona Kika, com 30 e muitos anos, era uma mulher atraente, muito cansada da pobreza. Numa festa, Kika e Celidônio conheceram um indivíduo justamente apelidado de Néco Demônio, violento e com ficha criminal, que ostentava, para aquele grupo paupérrimo, alguns itens de consumo. Kika se encantou. Após rápido flerte e namoro, Kika assumiu a relação, mas passou um tempo indo e vindo até que Néco ameaçou Celidônio com um revólver no rosto — na frente dos filhos. Celidônio desistiu e Kika foi embora com Néco.
Esse processo deveria ter sido interrompido pelo poder público. Ameaça armada de morte é crime grave. Porém, a área em que viviam e o seu segmento social estavam fora do estado. Celidônio (e a população) tinham mais medo de Néco do que confiança nas "autoridades", na polícia. Dar parte era inócuo e perigoso. Recebiam proteção zero do Estado.
Néco se recusou a assumir os filhos de Kika que, não obstante, insistiu em levar o menor. Erro grave. O menino recebeu maus-tratos de Néco. Não havia um sistema de proteção, nem comunicação entre hospitais, polícia e os serviços sociais. Mais uma violência que passou despercebida. O menino desenvolveu sérios problemas mentais que o tornaram incapaz de trabalhar, sendo, hoje, dependente dos demais.
Celidônio passou a beber, mas estabeleceu outra relação estável, instado por parentes e amigos, que afirmavam que as crianças precisavam de mãe. Teve duas filhas com a nova mulher. Não obstante, Kika nunca deixou o coração de Celidônio e sua nova esposa cedo percebeu que competia com um fantasma. Ela também se entregou ao alcoolismo e passaram de casal a companheiros de cachaça e depressão. Não eram um casal, não eram pais. Sete crianças cresceram nesse ambiente de instabilidade, desemprego, falta de recursos, privações de todo tipo. Com triste frequência encontravam o pai, a mãe, ou os dois, estirados em algum lugar, bêbados.
Mais uma vez, o Estado falhou em sua missão. Nada impedia os bares de vender cachaça a alcoólatras e nenhuma agência velava pelas sete crianças que, entre porres e ressacas, raramente tiveram acesso aos pais. Não defendo a intervenção autoritária do Estado, nem considero tudo "dever do Estado". Entretanto, esse foi um claro caso de abandono dos filhos. Dependendo do grau de aceitação da intervenção do Estado na vida privada das pessoas, o Estado deveria (ou não) ter transferido a responsabilidade das crianças para terceiros, ou ter sido uma presença frequente, fiscalizando o cumprimento das responsabilidades dos pais. Para alguns, deveria intervir e controlar o alcoolismo dos pais. A história não terminou, mas os capítulos já escritos são tristes. Kika teve uma relação infeliz e violenta com Néco, e viveu com a culpa, que jamais a abandonou. Vítima de um câncer evitável, vivia numa área da região metropolitana de São Paulo e num segmento social no qual os exames preventivos não haviam chegado. Mais uma vez, a interação entre variáveis pessoais, como a apatia, a ignorância e a ausência de políticas públicas de prevenção colaboraram para matar alguém. Kika morreu de um câncer que mata muito menos em outras áreas da metrópole e em outros segmentos sociais. In extremis, pediu perdão, mas nem todos os filhos o deram. Mais alguns anos se passaram. Celidônio foi enterrado segunda-feira, vitimado pela cirrose hepática.
A geração seguinte, filhos e filhas, sobrevive, mas com sérias deficiências educacionais e financeiras, e traumas psicológicos profundos. Enquanto isso acontecia, cientistas políticos continuam falando do Estado no singular, em teorias gerais do Estado — o mesmo Estado em todo o tempo e lugar.



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.