Eu sou, eu era, não sou mais: relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas.

July 14, 2017 | Autor: Antonieta Megale | Categoria: Bilingualism
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP

Antonieta Heyden Megale

“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

São Paulo 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP

Antonieta Heyden Megale

“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Maria Antonieta Alba Celani.

São Paulo 2012

BANCA EXAMINADORA _________________________________ _________________________________ _________________________________

FICHA CATALOGRÁFICA MEGALE, Antonieta Heyden. “Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. São Paulo: 187 p., 2012. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Área de Concentração: Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Bilinguismo, Identidade, Análise de Discurso de Linha Francesa, Representações Sociais. Orientadora: Professora Doutora Maria Antonieta Alba Celani.

Autorizo, para fins acadêmicos ou científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, por processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde que citada a fonte.

Hoc est corpus meum

Este é o meu corpo. Minhas substâncias: fantasias, humor, poesia, estórias, fragmentos de conhecimento, imagens, cenas e memórias... Não desejo que você simplesmente entenda o que escrevo. Entender é um ato racional. O que eu desejo é que o meu texto seja comido antropofagicamente.1

1 ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p.40.

APRECIAMENTO EM QUATRO ATOS Acredito que amor não se deva agradecer, mas sim apreciar. Por todo amor recebido que se materializou em gestos, quero expressar tudo que apreciei. DE ANTES DO COMEÇO

Cheguei ao fim. Já é madrugada. Sempre idealizei terminar assuntos importantes vendo o sol nascer: ideia romântica que sugere o início de uma nova fase. E aqui estou, esperando o momento mágico que um dia idealizei. Janela aberta, vento no rosto, o barulho desta cidade que também não dorme. É... Não há mágica, ou talvez, todo este percurso seja repleto de mágica, o que faz com que agora eu não veja a magia esperada em ação. Porém, se por um lado, falta a mágica idealizada, por outro, não me faltam lembranças. E lembrei-me de minhas primeiras idas à PUC e do desejo enorme de fazer e experimentar coisas novas que, talvez, só fossem possíveis acontecer desta forma. Era final de 2009. Tudo era uma grande imensidão de desconhecido e demorei a entender o funcionamento daquela nova história que começava. Meu primeiro contato com a PUC foi por meio de um convite do professor Marcello Marcelino, que além de ter muita importância nesta história, com sua generosidade enorme, proporcionou-me novas e ricas possibilidades que em muito ampliaram minha visão de mundo. Marcello me convidou a fazer parte do Grupo de Estudos de Educação Bilíngue da PUC (GEEB) e foi nesse grupo que esta história teve início. Foi lá também que conheci uma pessoa fundamental em minha trajetória, a professora Fernanda Liberali, que, com sua generosidade imensa, proporcionou-me inúmeras oportunidades ao longo destes dois anos e, com isso, fez-me crer que eu era melhor do que acreditava, e acreditando ser melhor do que era, algumas vezes o fui. Pouquíssimas pessoas no mundo têm esse poder de nos tornar melhor. E foi assim que cheguei à PUC, como chegam as pessoas de sorte: cercada de duas pessoas marcantes e inesquecíveis neste processo. Dali em diante, seriam pessoas que guardaria com carinho no coração.

DO COMEÇO

Oficialmente esta história teve seu início no ano de 2010 com o esperado encontro com minha orientadora – Antonieta Celani. Estranho encontrar alguém que a gente já ouviu falar tanto... Parece até que a gente já conhece a pessoa, embora essa pessoa não tenha a menor ideia de quem somos – relação estranha essa... Relação que foi sendo construída, entre silêncios, sorrisos e dúvidas. Dentre as qualidades que aprecio, uma das principais e rara é a capacidade que poucas pessoas têm de acreditar uma nas outras e minha orientadora-xará nunca hesitou em acreditar em mim (ou pelo menos nunca deu indícios de qualquer descrença). Primeiro, quis mudar meu tema de pesquisa. Depois, a escola na qual a pesquisa aconteceria não mais permitiu que isso ocorresse e, assim, tive de mudar novamente. E então, encantada com tudo que aprendia, quis transformar o pouco que tinha. Antonieta sorria, procurava entender ou apenas acreditava... Essa lição eu levo comigo, essa capacidade de acreditar na capacidade do outro. Nunca vou esquecer os momentos compartilhados com alguém tão importante... Lembro-me dos gestos de encorajamento e principalmente da generosidade com a qual fui tratada nestes dois anos. Minha querida orientadora fez com que este percurso fosse cheio de descobertas agradáveis. Minha gratidão vai muito além dos limites desta pesquisa. Ainda em 2010, conheci o restante do grupo: Rogério, Cynthia, Priscila, Francisco, Eliane, Luciana, Luzia, Neiva, Paulo e Paula. Colegas de mestrado e de pesquisa que começaram a fazer parte do meu cotidiano na PUC. Com cada um deles cresci e aprendi. E sorri tanto com eles. Na PUC, ainda, conheci duas amigas que serão permanentemente importantes para minha vida: Eva e Camila. Amizades construídas no mestrado que levarei para sempre: as viagens, a cumplicidade, as dúvidas... Minha gratidão pelo companheirismo dessas amigas é imensa. Também fundamentais neste caminho, foram os professores: Mara, Toni, Maximina, Fernanda e Ciampa – pessoas que ampliaram minha visão de mundo. Ainda no processo de pesquisa, conheci muitas pessoas que me abriram portas para conseguir aplicar os questionários

necessários. Aprecio a generosidade de todos. Como também aprecio a disponibilidade de todos os participantes desta pesquisa. DO MEIO DE TUDO O ano de 2011 foi um ano inesquecível, por tudo o que vivi. E duas pessoas inicialmente: Marcello e Fernanda foram novamente fundamentais nesta história. Marcello deu-me a oportunidade ímpar de ocupar um lugar que já foi dele na coordenação de um colégio – confiança essa que não sei se, algum dia, conseguirei retribuir. Foi, neste colégio, que várias questões identitárias afloraram e muitas das reflexões deste trabalho são frutos desta vivência. Nesse ano, também, motivada pela professora Fernanda, participei de congressos nacionais e internacionais, escrevi artigos e aprendi que não basta fazer mestrado, tem de viver o mestrado. Conheci também uma amiga que levarei para sempre: Selma Moura, doutoranda da UNICAMP. Amiga de congressos, confissões e devaneios. Além disso, não poderia aqui, de maneira alguma, deixar de expressar textualmente o quanto apreciei a colaboração efetiva em meu exame de qualificação e a disponibilidade em acompanhar meu trabalho dos professores Orlando Vian Junior e Mara Sofia Zanotto.

DO INÍCIO DO FIM

É, neste momento que o sol começa a nascer, que me lembro fundamentalmente de minha família e de meus amigos mais próximos. Todos eles. O que seria de mim sem a presença e influência deles em minha vida… A generosidade, o amor, a troca, a crença, tudo isso junto, dão-me as alegrias maiores deste mundo. De muitas formas, eles estão vivos neste trabalho. Aprecio tudo que meus pais me proporcionaram: ensinamentos, vivências e oportunidades diversas. E meus irmãos, presenças constantes em toda a minha vida, companheiros na diversão e nos desentendimentos. Alexandre, meu amigo de toda uma vida, não há como agradecer seu incentivo, sua leitura cuidadosa de meu trabalho, sua amizade sem fim. Rosana, que tão prontamente se voluntariou à leitura desta dissertação. Meu marido, lindo, que

me acompanha e, mesmo sem entender, aceita minhas ausências, meu silêncio, minha busca... Aqui começa o início deste fim.

“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas Antonieta Heyden Megale

RESUMO

No Brasil, são faladas mais de 200 línguas. Somando-se a isso, não se pode ignorar os impactos da globalização que, como argumentam McGrew e Held (1992), conectam comunidades em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo mais interconectado. Outro fator desencadeante do interesse por línguas estrangeiras no Brasil foi a ascensão econômica da classe C, o que representa mais de 90 milhões de brasileiros com acesso à educação e ao mercado de trabalho. Com isso, a procura por escolas de idiomas aumentou consideravelmente, assim como o número de brasileiros que tem a possibilidade de estudar no exterior ou que opta por colégios internacionais ou bilíngues. Frente a estes dados, o objetivo deste trabalho é o de estudar o funcionamento da linguagem na constituição da subjetividade dos sujeitos, apontando deslocamentos identitários nos discursos de falantes de inglês e português. Para tanto, analiso recortes discursivos selecionados entre as respostas a um questionário de indivíduos bilíngues – simultâneos e sequenciais, a fim de mostrar a irrupção de discursos em torno da identidade. Proponho uma interpretação discursiva destes recortes apoiada teoricamente na Análise de Discurso de linha francesa, com contribuições teóricas da psicanálise, de autores e de teóricos da identidade como Hall (2005), Norton (1995), Bauman (2005) e Ciampa (1984; 1990; 2004). Dentro deste quadro teórico, adoto a noção de sujeito como cindido, heterogêneo, atravessado pelo inconsciente e constituído no e pelo olhar do outro (LACAN, 1966/1998). Assim, a identidade é aqui entendida (i) como tendo sua existência no imaginário do sujeito, que, de acordo com Coracini (2007), constrói-se nos e pelos discursos imbricados que o constituem, o discurso da ciência, do colonizado e da mídia e (ii) como um processo de metamorfose a partir de uma identidade que é sempre pressuposta (CIAMPA, 1984). A análise dos dados sugere que há diversas maneiras de se viver entre línguas, mas que é impossível negar que saber mais de uma língua imprime, como afirma Coracini (2007), marcas indeléveis à subjetividade que se (re)constrói a todo o momento.

Palavras-chave: bilinguismo, sujeito bilíngue, identidade, análise de discurso.

“I am, I was, I am not anymore”: Living in inter-languages spaces Antonieta Heyden Megale

ABSTRACT

There are over 200 languages spoken in Brazil. Moreover, one cannot ignore the impact of globalization. As McGrew and Held (1992) argue, it connects communities in new combinations of time-space, making the world more interconnected. Another triggering factor of the interest in foreign languages in Brazil was the economic rise of low income classes, which represent more than 90 million Brazilians with access to education and the labor market. Thus, the search for language schools has increased considerably, as well as the number of Brazilians who have the possibility to study abroad or who opt for bilingual or international schools. Faced with this data, the objective of this research is to study the functioning of language in the constitution of the subjectivity of individuals, pointing to identity shifts in the discourse of speakers of English and Portuguese. The corpus was gathered from questionnaires answered by simultaneous and sequential bilingual individuals. As to the analysis of the corpus a transdiciplinary approach is adopted. It includes concepts from French discourse analysis with theoretical contributions from psychoanalysis, as well as authors who study identity such as Hall (2005), Norton (1995), Bauman (2005) and Ciampa (1984, 1990, 2004). Thus, identity is here understood (i) as having its existence in the imagination of the subject which according to Coracini (2007) is built through and by overlapped discourses which constitute the subject; the discourse of science, of the colonized and of the media and (ii ) as a process of metamorphosis from an identity that is always assumed (Ciampa, 1984). The analysis of data suggests that there are different ways of living between languages, but it is impossible to deny that speaking more than one language prints, as Coracini (2007) states, indelible marks on the subjects’ identities which are (re) built all the time.

Keywords: bilingualism, bilingual subject, identity, discourse analysis.

SUMÁRIO

NOTAS DE UM PERCURSO PESSOAL

17

PRIMEIRA PARTE – DO ENREDO TEÓRICO

27

O PERCURSO ESCOLHIDO

32

1.1 Análise de Discurso de Linha Francesa

34

1.1.1 Discurso

38

1.1.2 Ideologia

39

1.1.3 Sujeito discursivo

41 45

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 2.1 Representações sociais

47

2.2 Ancoragem

50

2.3 Objetivação

52

2.4 Núcleo central e sistema periférico

53

2.5 Representações sociais, ideologia e AD francesa: breve diálogo

55

IDENTIDADES

57

3.1 O conceito de identidade empregado

60

3.2 Estigma e preconceito

65

VIDA ENTRE LÍNGUAS

72

4.1 O que é esta língua dita materna?

74

4.2 O que é esta língua dita estrangeira?

77

4.3 Algumas considerações sobre a noção de bilinguismo e bilingualidade

79

SEGUNDA PARTE – DO QUE SE DESCOBRIU NO CAMINHO

90

TRAJETÓRIA

93

1.1 A LA e os princípios filosóficos que norteiam esta pesquisa

95

1.2 A análise de discurso de linha francesa

100

1.3 A constituição do corpus e os instrumentos de coleta

101

1.4 Os participantes da pesquisa

104

1.5 Mo(vi)mento de análise

110

ENTRE DITOS E NÃO DITOS

114

2.1 Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

120

2.2 Entre o mito, o possível e o desejo do outro

128

2.3 Entre as diversas concepções do eu

145

2.3.1 Da importância

145

2.3.2 De quem sou

152

2.3.3 Das transformações

161

E, POR FIM, UM RECOMEÇO

165

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

174

CRÉDITOS

183

APÊNDICE

185

45 47

LISTA DE OBRAS DE ARTE Com exceção da obra 1, Who am I? que é de autoria da fotógrafa Mushy Pea, todas as demais obras são de autoria do artista holandês Maurits Cornelis Escher. 1

Obra 1:

Who am I?

Obra 2:

Hand with Reflecting Sphere

18

Obra 3:

Stair Cases

33

Obra 4:

Three Worlds

46

Obra 5:

Bond of Union

58

Obra 6:

Tower of Babel

73

Obra 7:

Relativity

94

Obra 8:

Balcony

115

Obra 9, 10 e 11:

Metamorphosis II

119

Obra 12:

Rind

175

LISTA DE QUADROS Quadro 1:

Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário

103

Quadro 2:

Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa

107

Quadro 3:

Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa

109

Quadro 4:

Critérios para seleção dos partiipantes

116

Quadro 5:

Relação das perguntas de pesquisa e das representações localizadas

117

Quadro 6

Relação das seções organizadas e das representações

118

Quadro 7

Perguntas que suscitaram as representações sobre o que é ser bilíngue

145

Quadro 8

Transformações em decorrência de ser bilíngue

161

LISTA DE FIGURAS Figura 1:

Common Underlying Proficiency

85

Figura 2:

Bilinguismo dinâmico

87

Figura 3:

Uma visão transdisciplinar para análise dos dados

98

Figura 4:

Procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa

111

Figura 5:

Preocupação com o sotaque – bilíngues sequenciais e simultâneos

128

Figura 6:

Aulas de redução de sotaque

137

Figura 7:

Curso de redução de sotaque

138

Figura 8:

Curso de redução de sotaque

139

Figura 9:

Material para redução de sotaque

140

Figura 10: Língua de maior importância para bilíngues simultâneos

146

Figura 11: Língua de maior importância para bilíngues sequenciais

147

Figura 12: Universidade de São Paulo tornam inglês língua oficial

150

Figura 13: Inglês: saber o idioma é cada vez mais importante

151

“It

seems

to

me

that

in

any

other

language happiness is not so sweet,

logic

is not so clear. I am not sure that I could believe in my

neighbors as I do if I

thought about them in un-English words. I

could almost say that my conviction

of immortality is bound up with

the

English of its promise. And as I am attached to my prejudices,

I must love

the English Language!”.

Mary Antin, um judeu russo que emigrou para os EUA em 1894.

“I had to work like a coal-miner in his pit quarrying all my English sentences out of a black night”. Joseph Conrad, aprendeu inglês aos 20 anos, depois de aprender polonês e francês.

"Spanish is my right eye, English my left; Yiddish my background and Hebrew my conscience. Or better, each of the four represents a different set of spectacles (nearsight, bifocal, night-reading, etc.) through which the universe is seen". Ilan Stavans, escritor que escreve em inglês e espanhol.

"The Nazis robbed me of my mother tongue, but the rest of the separation, of the violent severing of culture, was my own choice. My writing, my intense drive to become an 'American Writer' had pushed me into leaving the language of my childhood behind, never counting the cost". Gerda Lerner, uma escritora judia e austríaca.

"No words in English have this power, to take me back home to childhood”. M.J. Fitzgerald, filha do tradutor Robert Fitzgerald, que cresceu na Itália.

"I am an orphaned writer." Declarou o escritor Louis Begley, ainda lamentando a perda de uma língua materna, o polonês, quando sua família se mudou para os EUA, aos 13 anos.

"For me, one language is complementary to the other, one always lacking a capacity that the other has". Ha-yun Jung, que escreve ficção em inglês, mas recentemente retornou para seu país de origem, Coreia do Sul, e se sente incompleta tanto em inglês quanto em coreano.

Trechos extraídos do livro “The Genius of Language: Fifteen Writers Reflect on Their Mother Tongues”, de Steven G. Kellman (2004).

Notas de um percurso pessoal Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que o desejo dos outros fizeram de mim1.

1 CAMPOS, A. (Fernando Pessoa). Obra poética e em Prosa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986, p. 413.

17

18

INTRODUÇÃO Notas de um percurso pessoal

Segundo o antigo costume da Universidade Charles, de Praga, o hino nacional do país da pessoa que está recebendo o título de doutor honoris causa é tocado durante a cerimônia de outorga. Quando chegou minha vez de receber essa honraria, pediram-me que escolhesse entre os hinos da Grã-Bretanha e da Polônia [...] Bem, não me foi fácil encontrar a resposta (BAUMAN, 2005, p. 15).

Sou constituída por línguas e culturas: brasileira de família imigrante, estudante estrangeira em um país distante, professora de língua inglesa em uma escola judaica. (Con)vivi, esqueci, imaginei, cantei, brinquei, estudei e trabalhei em línguas diversas que me constituem, que me fazem ser quem sou e se revelam (ou não) no meu modo de viver, de ver, de pensar, de expressar o mundo e de ocupar nele um espaço. Acredito mesmo que escrever uma dissertação é buscar nas lembranças algo que, mesmo inconscientemente, nos faz (re)fazer um percurso e deslizar entre lembranças e esquecimentos. É buscar, “entre a palavra e a coisa”, algumas camadas de sentidos e “muitas camadas de sonho”2. Ao fazer, desfazer e refazer as “camadas” de minha história, muitas vozes se misturam, histórias de meu avô acerca da guerra, lembranças de minhas aulas de alemão, dativos, genitivos, acusativos de quem sou. Essas lembranças fazem memória e me constituem. Ao relembrar a opção por uma carreira profissional, um dizer de Pêcheux toma corpo, ganha presença e passa a fazer novos e outros efeitos de sentido; pois, como o autor, me incluo no grupo dos “homens loucos por suas línguas” (PÊCHEUX; GADET, 1981/2004, p.45). O desejo (que move o sujeito) em descobrir: “que língua é essa?” me fez optar por este caminho que resolvi seguir. Caminho este que me caminha. Quando optei por meu tema de pesquisa, buscava entender questões que, desde pequena, acompanham-me, questões que falam de quem eu sou, 2 BRITTO, P. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.15.

19

de quem e como me sinto em ambientes que me causam estranheza e me fazem pensar se pertenço a algum lugar, a alguma língua. Mas, como diz Saramago: “como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica e com que se escreve?”3. Neste percurso me deparei com diversos depoimentos que, por vezes, fizeram-me pensar que me revelam e que dizem de mim coisas que não saberia dizer. Bauman (2005), parafraseado no início desta seção, ilustra com precisão alguns dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes que tendem a fazer da identidade um tema de graves preocupações e agitadas controvérsias. O autor narra sua decisão de, naquela situação, tocar o hino europeu; decisão essa “excludente” e “includente”: Referia-se a uma entidade que abraçava os dois pontos de referência alternativos da minha identidade, mas ao mesmo tempo anulava, por pouco relevantes ou mesmo irrelevantes, as diferenças entre ambos e assim, também, uma possível “cisão identitária”. Tirava da pauta uma identidade definida em termos de nacionalidade – o tipo de identidade que me foi negado e tornado inacessível. Alguns versos comoventes do hino europeu ajudaram: “alle Menschen werden Brüder” [...]. A imagem da “fraternidade” é o símbolo de se tentar alcançar o impossível: diferentes, mas os mesmos; separados, mas inseparáveis; independentes, mas unidos (BAUMAN, 2005, p.16).

O autor, em busca de identidade se vê, como muitos, diante da tarefa intimidadora de alcançar o impossível – expressão genérica essa que implica em “tarefas que não podem ser realizadas no tempo real, mas que serão presumivelmente realizadas na plenitude do tempo – na infinitude” (BAUMAN, 2005, p.16). Foi essa busca pelo impossível que me impulsionou a realizar este trabalho.

Inicialmente,

coletei

98

questionários

de

sujeitos4

bilíngues

constituídos por línguas diversas: coreano, alemão, espanhol, sérvio, entre outras. Reconheci muitas de minhas dúvidas, angústias e desencontros em

3 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal, 2004. Disponível em: . Acesso em: dez. 2011. 4 Este estudo tem como base teórico-metodológica a análise de discurso de linha francesa que faz uso da denominação sujeito. O sujeito difere do indivíduo por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a uma memória discursiva. Orlandi explica que: “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 1999, p.17). A partir dessa perspectiva, emprego o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto tratado for discutido a partir da análise de discurso de linha francesa.

20

suas narrativas, porém, por uma questão metodológica e temporal, detive-me neste trabalho a sujeitos bilíngues falantes de português e inglês. Além do mais, a língua inglesa tem uma história de imposição por razões políticas e materiais em muitos países do terceiro mundo, o que implica na constituição identitária de seus falantes. A partir dessa perspectiva, apoio-me em Canagarajah (1999) para afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do inglês, esses sujeitos fazem também uma opção ideológica e social, ainda que de modo inconsciente. Outro motivo que me levou, neste momento, a delimitar meus sujeitos de pesquisa desse modo, é a crescente propagação da língua inglesa no Brasil. Observa-se, como aponta Marcelino (2009), que o crescimento do bilinguismo, no Brasil, evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares. O autor aponta também para o fato de que se anteriormente os pais escolhiam as escolas para seus filhos com base na proposta de ensino e a necessidade de se aprender outra língua era suprida por meio de institutos de idiomas, atualmente, essa escolha é muitas vezes definida pela importância dada à língua inglesa nas escolas regulares. Frente a esse panorama, percebe-se, no Brasil, a disseminação das escolas bilíngues, de programas de intensificação de língua inglesa e de escolas de idiomas. Nessa direção, meus objetivos neste trabalho são: 1) Estudar a imbricação da língua materna e da língua estrangeira na constituição da subjetividade de sujeitos bilíngues sequenciais e simultâneos falantes de inglês e português. 2) Apontar deslocamentos identitários nos discursos desses sujeitos. 3) Rastrear o olhar do outro na constituição identitária desses sujeitos. Para tanto, esta pesquisa pretende responder às seguintes perguntas: 1) Como as identidades desses sujeitos foram se (trans)formando na sua relação com as línguas? 2) Como é a relação desses sujeitos com as línguas que os constituem? 21

3) Como esses sujeitos, ao se enunciarem, constroem imagens de si e do Outro? O percurso a que me proponho neste trabalho parte do pressuposto principal de que a língua é construtora da identidade do sujeito e dos processos discursivos, e não mero instrumento de mediação/comunicação com o mundo externo. Atrelada a essa concepção de língua, quando abordo a questão da identidade

e

essencialmente

da

subjetividade,

histórico,

remeto-me

ideológico

e

a

uma

heterogêneo,

visão

de

interpelado

sujeito pelo

inconsciente e constituído na e pela linguagem. Na esteira desses conceitos, recorro, também, aos estudos sobre representações sociais e bilinguismo para compreender os processos discursivos que forjam a identidade do sujeito e seu sentimento de pertencimento ao grupo. Sendo assim, proponho-me interpretar, à luz das teorias explicitadas anteriormente, recortes discursivos que, por vezes, denunciam recalques, inibições, invenções e imagens que constituem o imaginário desses sujeitos – como eles se veem e acreditam serem vistos – construindo, como afirma Coracini (2007), momentos de identificação que permitem a ilusão da permanência de uma certa identidade. Com este trabalho pretendo contribuir com os estudos sobre bilinguismo e ensino de línguas a partir da discussão de um enfoque que considera as línguas como parte constitutiva do sujeito e o sujeito como parte constitutiva da história que o interpela. Nessa esfera, espero trazer contribuições para o entendimento de como as condições de produção vivenciadas por bilíngues falantes de inglês e português e as relações de poder que estão em jogo nesse processo têm implicações diretas na constituição identitária desses sujeitos. Essas premissas norteiam uma pesquisa inovadora, uma vez que vários estudos já foram desenvolvidos sobre a relação língua e identidade, mas nenhum deles parece abordar esse prisma. Em 2007, Marques realizou uma dissertação de mestrado que analisou as representações construídas no discurso de quatro professores brasileiros de inglês de escolas de idiomas com o intuito de compreender mais ampla e profundamente alguns de seus aspectos identitários. Embora partilhe de matrizes teóricas semelhantes, minha 22

dissertação faz uso de teorias de identidade e de bilinguismo para investigar a relação de bilíngues brasileiros falantes de português e inglês com suas línguas, com o povo brasileiro e com o nativo de língua inglesa. Sendo assim, vai além do proposto por Marques, uma vez que procura, por meio dessas teorias, analisar os laços que prendem esses sujeitos aos discursos pelos quais constroem biografias que tecem as diferentes partes de seus “eus” divididos. Sob a mesma lupa das representações, Andrade (2008) pretendeu identificar e discutir as representações de língua e de ensino aprendizagem de línguas, principalmente do inglês, que emergem do dizer dos professores em formação. Tanto Marques (2007) quanto Andrade (2008) apoiam-se na análise de discurso (AD) de linha francesa e nos conceitos de representações, porém, diferentemente de minha pesquisa, têm como foco professores de línguas e não fazem uso de teorias de identidade e de bilinguismo para a compreensão dos processos discursivos que fundam os quadros de que se alimentam as representações sociais. Netto (2008), por sua vez, estudou a constituição identitária de professores de língua portuguesa que não possuem exclusivamente essa língua em sua inscrição no campo da linguagem. A pesquisadora analisou as narrativas desses professores em contexto de imigração e concluiu que histórias de vida caracterizadas por uma constituição linguística marcadamente plural trazem incidências para a formação desses professores. A pesquisa de Netto (2008), assim como esta dissertação, discute a relação língua e identidade e utiliza a análise de discurso francesa como aporte teóricometodológico. Entretanto, como o contexto no qual a pesquisa de Netto (2008) ocorreu é o de imigração alemã, as questões ideológicas e sociais que envolvem o uso dessa língua são muito diferentes das que envolvem o uso da língua inglesa por brasileiros. Análoga a esses estudos, encontra-se a pesquisa realizada por Tavares (2010), que investigou possíveis deslocamentos na constituição identitária do professor de inglês da educação básica, durante um processo de formação contínua. Como nos estudos mencionados anteriormente, Tavares (2010), 23

diferente do estudo aqui apresentado, também analisa o discurso de professores. Vale frisar que, apesar das diferenças descritas entre esses trabalhos e minha pesquisa, esta foi certamente influenciada pela leitura cuidadosa dos trabalhos mencionados que corroboraram na minha opção pela análise de discurso francesa como aporte teórico para realização da mesma. Este estudo é, desse modo, inovador e deverá ser o motor essencial para o desenvolvimento de novos saberes relacionados ao binômio língua e constituição identitária na área da Linguística Aplicada. Acredito ser de grande valia para a leitura deste trabalho discorrer, nesta introdução, sobre o título escolhido para minha pesquisa: “Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. Para isso, primeiramente, faz-se necessário explicitar a concepção de sujeito empregada neste estudo. A análise de discurso de linha francesa recorre a três autores para definir sua concepção de sujeito. Foucault (1987) e Pêcheux (1997) concebem o sujeito associado à ordem do social e do discursivo. Lacan (1972-1973/1982), por sua vez, pensa o sujeito como efeito de linguagem e em relação ao inconsciente. De acordo com Coracini (2007), essas concepções, apesar de apresentarem pressupostos diferentes, têm o aspecto social presente, uma vez que: “o sujeito é também alteridade, carrega em si o outro, o estranho, que o transforma e é transformado por ele” (CORACINI, 2007, p.17). A partir desse prisma, parte-se do pressuposto de que o sujeito não tem o controle sobre a produção de sentidos: ele é interpelado pelo interdiscurso que é reatualizado em seu discurso, ocorrendo um processo de ressignificação. Com isso, há a produção de outros sentidos, de outras leituras e de outras interpretações, o que marca a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, uma vez que o discurso é constitutivamente atravessado pelo discurso do outro e do inconsciente. Esse processo de (re)significação permite pensar um sujeito além da pura interpelação ideológica. Retomando essas condições, o sujeito é, de acordo com Lacan (1966/1998), determinado pela linguagem e pela falta. Em função disso, o sujeito é inacabado, produzindo-se, interminavelmente, em um 24

eterno movimento de vir-a-ser, impulsionado pelo desejo, deslizando entre o desejar e o gozar, posições que, imbricadamente, constituem-no. Assim, podese falar de um sujeito que é falante e faltante, uma vez que, na teoria psicanalítica, todo sujeito é faltante da permanência do gozo. Portanto, ser fal(t)ante implica em permanentemente buscar – pelos meandros da linguagem – a ilusória completude. Uma vez esclarecido o que entendo por fal(t)ante, destaco, a seguir, o que pretendo com a expressão “entre línguas”. Melman (1992) afirma que o inconsciente não cria obstáculo para o contato das línguas. Sendo assim, entendo que estar entre línguas significa que não existe uma fronteira determinada entre uma língua e outra. Recorro, também, ao início de cada seção, às ilustrações do artista holandês Mauritus Cornelis Escher, que sinto materializarem, por meio de imagens, o que minhas palavras escrevem. As imagens de Escher são constituídas de paisagem-corpo, corpo-paisagem e outras subjetivações, e abrigam jogos de ilusão que referem ao impensado e ao paradoxo. Por meio desses

jogos

de

realidades,

Escher

produz

gravuras

que

causam

estranhamento e permitem deslocamentos a percursos inusitados, a partir de suas relações de composição onde o ser, o tempo e o espaço coexistem e produzem novos modos de subjetivação. Suas obras parecem demonstrar conceitos pelos quais transito: deslocamentos, estranhamentos, subjetivações e paradoxos. Em sua série Metamorfoses, utilizada na seção “Entre ditos e não ditos”, Escher faz com que várias estruturas se transformem inesperadamente. Nessas imagens, há repetições que metamorfoseiam por meio de pequenas mudanças em um contexto próximo, assim, produzindo o diferente. É como se não existisse separação entre o fora e o dentro, o que proporciona uma visão ininterrupta do dentro e do fora, do sujeito e do social. Essa ideia de metamorfose corrobora a concepção de identidade adotada por Ciampa (1990), que compreende a identidade como um processo de metamorfose permanente; visão esta empregada neste estudo e desenvolvida na seção “Identidades”. Para terminar esta introdução, cabe-me apresentar a organização deste trabalho. Divido meu texto em duas grandes partes. A primeira parte, “Do 25

enredo teórico”, está organizada em quatro seções e, nelas, desenvolvo o arcabouço teórico que fundamenta minha pesquisa. O “Percurso Escolhido” discorre sobre os principais conceitos que embasam a análise de discurso de linha francesa: o discurso, o sujeito discursivo e a ideologia. A seção “Identidades” apresenta as teorias de identidades empregadas na análise dos dados neste estudo. Em “Vidas entre línguas”, enfatizo o aporte teórico sobre língua materna, língua estrangeira e bilinguismo. A seção “Representações Sociais” aborda esse conceito a partir dos estudos de Moscovici (1961; 2003) e Jodelet (1990; 2001). A segunda parte, “Do que se descobriu no caminho”, está organizada em duas seções. Em “Trajetória”, apresento os aspectos metodológicos e detalho os procedimentos para geração e análise dos dados. Na seção “Entre ditos e não ditos”, discuto os resultados da análise, dividindo-os em três subseções: “Entre o desejo da completude e a falta do sujeito”; “Entre o mito, o possível e o desejo do outro” e “Entre as diversas concepções do eu”.

Na seção “E, por fim, um recomeço”, teço comentários em relação à relevância e à necessidade de outros pesquisadores ampliarem o tema em questão. As “Referências Bibliográficas” compõem a última parte deste trabalho.

26

27

PRIMEIRA PARTE Do enredo teórico Na parte primeira deste trabalho, apresento a matriz conceitual que sustenta esta pesquisa. Esta parte está organizada em quatro seções, a seguir: A

primeira

seção,

O

percurso

escolhido,

discorre

sobre

os

pressupostos teóricos da AD francesa, linha teórico-metodológica adotada neste estudo. Inicio essa seção, contextualizando seu surgimento a partir dos estudos de Orlandi (1998; 1999; 2005; 2006). A seguir, enfatizo seus conceitoschave: o discurso, a ideologia e o sujeito. O conceito de discurso é discutido a partir de Foucault (1970/1996) e de Pêcheux (1969/1993; 1975/1993), assim, abordo a noção de formação discursiva e heterogeneidade do discurso. A discussão sobre o conceito de ideologia é realizada a partir de uma releitura que Althusser (1985; 1996) faz de Marx, trazendo à tona o que denomina Aparelhos Ideológicos do Estado. O sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a ideologia é o último conceito abordado nessa primeira seção. Essa relação dá origem ao fenômeno denominado assujeitamento ideológico. Para sua compreensão, recorro a Pêcheux (1997), que desenvolve a noção de interdiscurso, a Foucault (1979; 1987; 1998) que discorre sobre a noção de poder disciplinar para fundamentar o conceito de descentramento do sujeito; e, uma vez mais, remeto-me a Pêcheux (1975/1988) e Pêcheux e Fuchs (1975/1997) para abordar a noção de duplo esquecimento. A partir dos conceitos discutidos na primeira seção, parto do pressuposto que, dentro das formações discursivas produzidas pelos sujeitos, há marcas linguísticas que revelam as representações sociais que o sujeito tem do mundo. Nessa seção, ressalto o papel dessas na constituição da subjetividade dos sujeitos com base nos mecanismos de ancoragem e objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990; 2001) e Abric (2003). Estabeleço, também, uma relação entre ideologia, representações sociais e a AD francesa a partir da pesquisa de Sousa Filho (2003). Esse autor 28

pensa a ideologia como um conjunto de representações, com isso, assume-se que, identificando as representações sociais que o sujeito tem do mundo, por meio das marcas linguísticas que se repetem dentro das formações discursivas, inicia-se o processo de reconhecimento da ideologia que interpela o indivíduo em sujeito. Dessa forma, torna-se tangível analisar a inscrição do Outro, ou o interdiscurso, no discurso do sujeito, e consequentemente se reconhece valores e ideias circulantes em dada sociedade. Essas ideias têm influência direta na identidade do sujeito, uma vez que aquilo que o sujeito acredita é justamente o que o faz agir ou não agir, direcionando sua relação com o mundo e o modo como o mesmo se percebe na sociedade. Na terceira seção, Identidades, abordo os estudos sobre identidade a partir da perspectiva da Pós-Modernidade, com base em Hall (2005), Bauman (2005), Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Nessa perspectiva, retomo os estudos de Ianni (1999) para discorrer a respeito das implicações da globalização na conceptualização da identidade e na fragmentação do sujeito na Pós-Modernidade. Nessa seção, recorro também a outras áreas de conhecimento para melhor compreender minhas questões da pesquisa, uma vez que a linguística aplicada converge em um processo transdisciplinar de produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Busco esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990; 2004) que entende a identidade como um construto social e, a partir disso, desenvolve os conceitos de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA, 1990). Esses conceitos são essenciais para a análise de dados desta pesquisa, uma vez que relacionam a identidade a uma predicação atribuída ao sujeito pelo outro e a AD francesa, base teórico-metodológica desta pesquisa que tem, como postulado fundamental, o fato de que não há discurso que não tenha ou não apresente a inscrição de outros. Retomo também o conceito de estigma, do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito, resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno (2002). Os conceitos de estigma e preconceito linguístico são empregados na análise dos dados deste trabalho, uma vez que os sujeitos bilíngues que

29

participaram da pesquisa parecem apresentar estigma relacionado ao sotaque e à condição de ser brasileiro. É importante ressaltar que os conceitos discutidos na seção um e dois se entrelaçam com o conceito de identidade exposto na terceira seção. A AD francesa reflete o percurso histórico, social e cultural do sujeito, revelando quais discursos que perpassam a sua identidade diante da materialização da sua linguagem. Portanto, parto da premissa de que a identidade se forma ao longo do tempo por meio de processos inconscientes, uma vez que o processo de identidade é constituído no decorrer da vida do sujeito e orientado por vários interdiscursos que se revelam por meio da produção discursiva. Além disso, não se pode desprezar o fato de que a identidade também se constitui a partir das representações que um grupo ou sociedade possui em torno dele mesmo. Desse modo, entender como os bilíngues desta pesquisa, falantes de português e de inglês, percebem-se e percebem as línguas que os constituem é essencial para entender como captam essas referências e são por elas afetados na construção de suas identidades. Finalmente, na última seção, Vida entre línguas, enfatizo o elo língua, sujeito e identidade com base nos estudos de Revuz (1998), que tem como base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem. Essa parte tem como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira atribuída à língua. Para tanto, apoio-me nas pesquisas de Coracini (2003, 2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada e nos estudos psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que explicam o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da constituição do Eu (Lacan, 1958/1998 e 1966/1998). Na terceira parte, discuto a

evolução

dos

conceitos

de

bilinguismo

partindo

de

concepções

unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorro também sobre concepções teóricas que contemplam, em sua definição de bilinguismo, tanto a dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o conceito de bilingualidade; e García (2009) e Cummins (1984), que advogam a 30

favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzo a perspectiva derridiana (2001), que discute a construção de próteses a fim de explicar o conflito/sofrimento experimentado por diversos sujeitos em sua condição bilíngue. Esses conceitos, discutidos na quarta seção, são essenciais para a análise das representações que os sujeitos desta pesquisa têm sobre as línguas que os constituem e sobre sua bilingualidade dentro do quadro teórico da AD francesa.

31

O Percurso escolhido Gide disse que o diabo desta vida é que entre cem caminhos, temos de escolher apenas um e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove[ ...]5

5 SABINO, Fernando. O Encontro Marcado. Rio de Janeiro: Record, 1981. p. 44.

32

33

SEÇÃO 1 O percurso escolhido: análise de discurso de linha francesa

É ideia central, no projeto de diversos teóricos, a noção de que a linguagem funda a compreensão de mundo do sujeito. Muitos estudiosos, dentre eles, filósofos, linguistas e psicanalistas, debruçaram-se sobre diferentes aspectos da linguagem. De acordo com os distintos pontos de vista atinentes à linguagem, ela pode ser compreendida de várias formas. Neste estudo, que se filia à análise de discurso (AD) de linha francesa, compreendese a linguagem a partir de uma perspectiva discursiva, o que significa buscar entender e compreender o seu funcionamento como sendo um lugar de conflito e de confronto ideológico. Nesta seção, inicialmente, contextualizo o surgimento da AD francesa. A seguir, discorro sobre seus conceitos-chave: o discurso, o sujeito discursivo e a ideologia.

1.1 Análise de discurso de linha francesa

A AD francesa surgiu, de acordo com Maingueneau (1989), no final da década de 60, e estava associada a uma tradicional prática escolar francesa: a explicação de textos. O marco inaugural de seu nascimento foi a publicação de Michel Pêcheux - “Análise Automática do Discurso” - e o lançamento da revista “Langages”, organizada por Jean Dubois, no ano de 1969. Para a sua criação, Pêcheux (1993) realizou rupturas com as pesquisas estruturalistas, que figuravam como verdadeiro paradigma de formatação do mundo, das ideias e das coisas para toda uma geração de intelectuais franceses. Os estruturalistas, rompendo com a fenomenologia, o psicologismo e a hermenêutica viam a língua apenas como um simples ato de fala ou um veículo para transmissão de informações. Excluíram de suas análises o sujeito, que era, por eles, encarado como um elemento suscetível de perturbar a análise do objeto científico. Essa visão equivocada, estava relacionada ao domínio do objetivismo, como forma 34

única de ciência, que defende “o possível acesso a verdades absolutas e incondicionais sobre o mundo, e entende a linguagem como mero espelho da realidade objetiva” (ZANOTTO et al., 2002, p.11). O movimento de maio de 1968, na França, e as novas interrogações que surgiram, no âmbito das ciências humanas, foram decisivas para subverter o paradigma então reinante e trazer o sujeito para o centro do novo cenário, permitindo-lhe “reaparecer pela janela, após ter sido expulso pela porta” (DOSSE, 1993, p. 65). A AD francesa nasce, assim, na perspectiva política de uma intervenção, de uma ação transformadora que visava a combater o excessivo formalismo linguístico vigente, outrora, considerado como uma nova facção burguesa. Outro aspecto que merece atenção é de que, diferentemente do estruturalismo,

a

AD

francesa

toma

a

linguagem

como

mediadora

indispensável entre o homem e o meio social e natural em que vive. A língua não é aqui vista como um sistema abstrato, ou como mero método de interação, como explica Orlandi (2005). A linguagem é entendida como ação, transformação, como um trabalho simbólico em que “tomar a palavra é um ato social com todas as suas implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidade, etc.” (ORLANDI, 1998, p.17). Ao se propor analisar o discurso, a AD francesa analisa-o ultrapassando os aspectos formais, aprofunda-se em aspectos extradiscursivos a fim de chegar à construção de sentidos, considerando o contexto social, histórico e ideológico em que o discurso foi produzido. Nessa perspectiva, o discurso é o meio pelo qual o processo de interação verbal se concretiza e, como Orlandi (2005) assevera, “o discurso é a palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso, observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2005, p.15). Por conseguinte, a AD francesa resgata o sujeito excluído pelo estruturalismo e é, na busca desse sujeito, que se articula principalmente com três

áreas

de

conhecimento:

a

psicologia/psicanálise,

as

ciências

sociais/marxismo e a linguística, formando uma espécie de tríplice aliança. Por meio da releitura de Marx, feita por Althusser, da releitura de Freud por Lacan, 35

e da releitura do estruturalismo linguístico de Saussure, realizada por Pêcheux, a AD francesa nasce na tentativa de suprimir a falta que cada uma dessas áreas possui isoladamente e cria um objeto que está na fronteira de todas elas: o discurso. Da psicanálise, a AD francesa resgata o sujeito oriundo do inconsciente freudo-lacaniano, sujeito este, desejante, descentrado, afetado pela ferida narcísica que se pensa livre e dono de si. De acordo com Orlandi (1999), o sujeito da linguagem é descentrado, uma vez que o real da língua e o real da história lhe afetam, não tendo o controle sobre o modo como é afetado. Isso, segundo a autora, redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia. A partir das ciências sociais, a AD francesa interessa-se pelo materialismo histórico, com base na leitura que Althusser faz dos textos de Marx. Dessa vertente, resgata-se o sujeito assujeitado, materialmente constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia. O materialismo histórico defende que a evolução histórica sempre se deu pelos confrontos entre diferentes classes sociais, decorrentes da exploração do homem pelo homem. Sendo assim, esta teoria é também empregada como forma essencial para explicar as relações entre sujeitos. Segundo Pêcheux (1993), o sujeito, enquanto membro de uma sociedade estratificada por classes sociais, assume diferentes papéis, porém participa apenas de situações autorizadas, uma vez que, em cada situação, é exigido um estilo, um conhecimento sobre o contexto histórico-social, enfim, um discurso. Além disso, o contexto sócio-histórico contribui para a construção de sentido de um enunciado. Assim, a linguagem é a materialização do discurso e carrega consigo as manifestações ideológicas de ordem sócio-histórica enunciadas pelo sujeito do discurso. No entanto é importante entender que o sujeito da AD francesa não é o sujeito ideológico marxista-althusseriano, nem o sujeito do inconsciente freudolacaniano; e não é, tampouco, uma junção entre esses dois sujeitos. O que representa esse sujeito é o papel de intervenção da linguagem, da marca discursiva, na perspectiva linguística e histórica que a análise de discurso lhe 36

atribui. Pêcheux, que foi um atento leitor de Saussure, desloca o conceito saussuriano de função para funcionamento das línguas, ultrapassando, assim, os limites estritos do linguístico e permitindo a descrição da materialidade específica da língua. Frente a essas articulações propostas pela AD francesa, é fundamental compreender que, embora apresente áreas de contato com a linguística, a psicanálise e o marxismo, ela não se confunde com essas disciplinas. Orlandi (2006) explica que a AD francesa pressupõe tais disciplinas à medida que se constitui da relação de três regiões científicas: a teoria da ideologia, a teoria da sintaxe e da enunciação, e a teoria do discurso como determinação histórica dos processos de significação, tudo isso atravessado por uma teoria psicanalítica do sujeito. Vale frisar ainda que é necessário entender que a AD francesa não pretende ser nem uma disciplina autônoma, nem uma disciplina auxiliar, o que pretende é trabalhar o objeto discursivo como sendo um objetofronteira

nos

limites

das

divisões

disciplinares,

sendo

constituída

simultaneamente de uma materialidade linguística e de uma materialidade histórica. Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que é inapropriado conceituar a AD francesa como uma disciplina interdisciplinar, como alguns teóricos insistem em fazer. A esse respeito, Orlandi (1996) atribui à AD francesa a condição de disciplina de entremeio, uma vez que sua constituição se dá às margens das chamadas ciências humanas, entre as quais, ela opera um profundo deslocamento de terreno. Assim, é importante reiterar que os conceitos que a AD francesa traz de outras áreas, como a psicanálise, o marxismo, a linguística e o materialismo histórico, ao se integrarem ao corpo teórico do discurso, deixam de ser aquelas noções com os sentidos estritos originais e se ajustam à especificidade e à ordem própria da rede discursiva. Diante do exposto, nas subseções seguintes, discorro a respeito de conceitos-chave para análise de discurso francesa e, consequentemente, para a análise dos dados deste trabalho segundo esta perspectiva: o discurso, o sujeito discursivo e a ideologia.

37

1.1.1 O discurso O conceito de discurso da AD francesa fundamenta-se, principalmente, em Foucault (1970/1996), que define o discurso como um conjunto de enunciados regulados numa mesma formação discursiva. Para este autor, se uma proposição, uma frase ou um conjunto de signos podem ser considerados enunciados, não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas, sim, na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito. Para Foucault, o discurso é um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade, é um conjunto em que pode ser determinada a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. Por sua vez, o conceito de formação discursiva, assim como explica Pêcheux (1969/1993), compreende o lugar de construção dos sentidos, determinando o que pode e deve ser dito num determinado contexto. É importante ressaltar que a formação discursiva não só se circunscreve na zona do dizível – do que pode e do que deve ser dito – definindo os enunciados possíveis, a partir de um lugar determinado, mas também circunscreve o lugar do não dizível – o que não pode e o que não deve ser dito. Prosseguindo com suas reflexões, Pêcheux (1975/1988) argumenta que, no interior de uma formação discursiva, coexistem discursos provenientes de outras formações discursivas. Assim, o discurso não constitui um bloco homogêneo, idêntico a si mesmo, pois reproduz a divisão e a contradição presentes na formação discursiva da qual procede. A formação discursiva passa, então, a ser caracterizada pela heterogeneidade, o que determina, consequentemente, a natureza heterogênea do discurso. Authier-Revuz (1982/2004) confere à noção de heterogeneidade discursiva maior definição, tendo como base a problemática do discurso como produto do interdiscurso, a teoria do sujeito constituída pela psicanálise e o dialogismo e a política de Bakhtin. Segundo a autora, o princípio da heterogeneidade parte da premissa de que a própria linguagem é heterogênea em sua constituição; e, como a materialidade do discurso é de natureza linguística, é lógico considerá-lo também heterogêneo. Authier-Revuz (1990) distingue duas formas de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada. 38

A heterogeneidade mostrada no discurso indica a presença do outro no discurso do sujeito e divide-se em duas modalidades: a marcada, da ordem da enunciação e visível na materialidade linguística; e a não marcada, da ordem do discurso e não provida de visibilidade. A heterogeneidade constitutiva ocorre quando o discurso é dominado pelo interdiscurso, ou seja, uma articulação de formações discursivas que se refere a formações ideológicas antagônicas e, com isso, esgota a possibilidade de captar linguisticamente a presença do outro no um. Levando isso consideração, a AD francesa não só desfaz a ideia de um discurso homogêneo como também desestabiliza os conceitos de unidade do sujeito e unidade do texto dos estudos tradicionais da linguagem. Como o sujeito e o discurso são heterogêneos em sua constituição, a ilusão de unidade tanto do sujeito quanto do texto não passa de efeitos ideológicos. Por conta disso, os estudiosos da AD francesa postulam que não há discurso destituído de ideologia, assim como não há discurso que não tenha ou não apresente a inscrição de outros. Portanto, para tratar de formações discursivas, é imprescindível estudar as interações entre essas, uma vez que a identidade do discurso se constrói na relação com o outro, que pode ou não ser marcado linguisticamente.

1.1.2 Ideologia

A AD francesa, como descrita na subseção anterior, situa-se num campo de debate que envolve as condições de produção do objeto investigado – o discurso e as relações existentes entre ele e a ideologia. Ideologia é atualmente um termo difícil de ser definido, o filósofo Eagleton (1993) enumera, em sua obra, vinte e seis definições de ideologia utilizadas hoje em dia. Perante a tamanha complexidade, neste trabalho, atenho-me a estudiosos que discorrem a respeito de ideologia dentro do quadro teórico da AD francesa. A base teórica adotada pela AD francesa, a fim de relacionar ideologia e discurso, advém do marxismo estrutural, uma vez que a teoria pecheutiana se origina na matriz althusseriana, da qual Pêcheux retira os conceitos de ideologia e assujeitamento, dessa maneira, reinterpretando-os e obrigando-os 39

a abrir sua grade estrutural ao mesmo tempo em que repensa a noção de discurso de Foucault. Segundo Orlandi (2005), a ideologia materializa-se no discurso como conjunto de valores e crenças que constituem as práticas sociais dos sujeitos. Para Pêcheux (1997), as ideologias constituem os sujeitos, uma vez que circunscrevem um espaço social de práticas e condutas por meio de relações sociais concretas. Althusser complementa a teoria marxista à medida que defende que há não apenas Aparelhos Repressivos de Estado6, mas também o que ele chama de Aparelhos Ideológicos de Estado. De acordo com Althusser (1996), os Aparelhos Ideológicos de Estado (doravante AIE) correspondem a certo número de realidades que se apresenta ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas, como, por exemplo: o Religioso (o sistema de diferentes igrejas), o Escolar (o sistema de escolas públicas e privadas), o Sindical (o sistema de organização dos sindicatos), o Político (o sistema eleitoral e partidário), o Cultural (Letras, Belas Artes, esportes, etc.), o de Informação (a imprensa, o rádio e a televisão, etc.), o Jurídico e o Familiar, entre outros. Pêcheux (1996), por sua vez, retoma o conceito de AIE para fixar o lugar da ideologia na construção de sua teoria do discurso. Para o autor, os AIE não são a expressão da ideologia dominante (burguesa), mas o local e o meio para a realização dessa dominação, ou seja, a ideologia dominante é propagada nos discursos das igrejas e escolas, com o intuito de interpelar os indivíduos como sujeitos, a fim de “mascarar” – no sentido marxista do termo – a “realidade” e dar continuidade, segundo Althusser (1996), à reprodução das condições de produção que sustentam a posição da classe dominante no sistema capitalista: “está claro que é nas formas e sob as formas da sujeição ideológica que se assegura a reprodução da qualificação da força de trabalho” (ALTHUSSER, 1996, p. 109). Nessa perspectiva, a ideologia também opera no sujeito pelo inconsciente. De acordo com Althusser (1985), em consonância com o primeiro

6 Os Aparelhos Repressivos do Estado são o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais e as prisões que funcionam, basicamente, por meio da violência. Os Aparelhos Repressivos de Estado funcionam principalmente pela repressão, embora possam ter um aspecto ideológico que é secundário (ALTHUSSER, 1985).

40

esquecimento postulado por Pechêux (1975/1988), o sujeito não é a origem de seu discurso ou de suas práticas e, além disso, não domina o sentido de seu dizer. Dentro das relações existentes entre o discurso e ideologia, destaca-se a importância do sujeito na formação do discurso. Na próxima seção, focalizarse-á o sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a ideologia, o que é denominado assujeitamento ideológico.

1.1.3 O sujeito discursivo

Ao longo da história, o sujeito vem sofrendo drásticas transformações referentes à sua conceituação teórica. Apresento, aqui, o sujeito da análise de discurso francesa, concepção que emprego, neste trabalho, afastando-me, portanto, de uma filosofia idealista da linguagem que concebe o sujeito como fonte e origem de tudo o que diz e o sentido como algo já existente. O sujeito do discurso é um sujeito essencialmente histórico, ideológico e heterogêneo, interpelado pelo inconsciente constituído na e pela linguagem. Esse sujeito é concebido como histórico e ideológico, uma vez que sua fala é sempre produzida a partir de um determinado lugar e de um determinado tempo. Sua fala é, na verdade, um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social. Trata-se de um sujeito descentrado, entre o eu e o “outro”. Sujeito esse que não pode ser entendido como um ser uno que se constitui na fonte do próprio discurso. É o que se denomina sujeito assujeitado, pois é submetido a coerções sociais, visto que todo discurso é determinado pelo interdiscurso. O conceito de interdiscurso, segundo Pêcheux (1997), reside no fato de que algo fala sempre antes e independentemente, sob a dominação do complexo de formações ideológicas. Essa concepção de sujeito abarca a noção de alteridade, uma vez que se tem um sujeito que luta para ser uno, mas que, na materialidade discursiva, é polifônico. Portanto, o discurso produzido é heterogêneo, como explica Pêcheux (1975/1988), pois incorpora e assume, pelo diálogo, diferentes vozes sociais, relacionando “o mesmo” com o seu “outro”, de modo a reconhecer, no discurso, a coexistência de várias linguagens em uma só linguagem. 41

Esse “outro” não deve aqui ser

compreendido como o destinatário, ou seja, aquele para quem o sujeito planeja e ajusta a sua fala no plano intradiscursivo, mas deve ser compreendido como os outros discursos historicamente já costurados e que emergem em sua fala. Complementando essa ideia, os estudos de Foucault (1979) sobre a noção de poder disciplinar foram fundamentais para o aprofundamento da noção de descentramento do sujeito. O poder, ao invés de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”, ou, sem dúvida, adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Foucault (1987) explica que, ao ser exercido, esse poder torna-se invisível, mas, em compensação, impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Como diz Foucault (1999, p. 35), “o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles [...] o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”. A partir desse ponto, aliás, é preciso salientar que o sujeito discursivo não se encontra no campo consciente, mas, sim, clivado, submetido ao inconsciente, ou seja, o sujeito do discurso encontra-se dividido entre o consciente e o inconsciente. Não existe um sujeito que tenha consciência daquilo que diz. Há, na verdade, um sujeito que é levado, inconscientemente, a produzir um discurso de uma forma e não de outra. Por conseguinte, o sujeito do discurso cria para si uma realidade discursiva ilusória, sofrendo, de acordo com Pêcheux e Fuchs (1975/1997), de um duplo esquecimento. O primeiro esquecimento, segundo Pêcheux (1975/1988), é ideológico e do nível do inconsciente. O sujeito rejeita, apaga, de modo inconsciente, tudo o que não está inserido em sua formação discursiva e, com isso, tem a ilusão de que é senhor absoluto daquilo que enuncia. O segundo esquecimento é da ordem da enunciação e de caráter semiconsciente. Nesse, o sujeito privilegia algumas famílias parafrásicas e apaga outras no momento em que seleciona determinados dizeres em detrimento de outros. Além disso, o sujeito tem a ilusão de que aquilo que diz tem apenas um significado, acreditando que todo interlocutor captará suas intenções e sua mensagem da mesma forma. Em contrapartida, Sirio Possenti, importante representante da Análise do Discurso Francesa no Brasil, defende, diferentemente de Pêcheux, que há espaço para a inscrição do indivíduo no discurso, onde ele pode deixar a sua 42

marca - mesmo na condição de assujeitado. Para Possenti (2002), o sujeito assume um papel ativo, apesar de estar submetido às questões ideológicas, estruturais e psicológicas da sua formação discursiva. Segundo o autor, o assujeitamento não se dá de forma plena e o sujeito tem certa competência na escolha de seu material discursivo. Segundo Possenti (2002, p. 54-65), “a presença do outro não é suficiente para apagar a do eu, é apenas suficiente para mostrar que o eu não está só”. Produzi, de acordo com o apresentado até então, minhas reflexões em consonância com essa visão de sujeito discursivo, que é essencialmente descentrado, clivado, heterogêneo e perpassado por vozes que provocam identificações de toda sorte. Nesta seção, discorri sobre os pressupostos teóricos da AD francesa. Inicialmente, contextualizei seu surgimento a partir da obra de Oralandi (1998; 1999; 2005; 2006). A seguir, enfatizei seus conceitos-chave: o discurso, a ideologia e o sujeito. O conceito de discurso foi discutido a partir de Foucault (1970/1996) e, a partir de Pêcheux (1969/1993; 1975/1993), abordei os conceitos de formação discursiva e heterogeneidade do discurso. O conceito de ideologia foi descrito a partir de uma releitura que Althusser (1985; 1996) fez de Marx, trazendo à tona o que denominou de Aparelhos Ideológicos do Estado. O sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a ideologia foi o último conceito abordado. Essa relação deu origem ao fenômeno denominado assujeitamento ideológico. Para sua compreensão, recorri a Pêcheux (1997), que desenvolveu a noção de interdiscurso, a Foucault (1979, 1987; 1998) que discorreu sobre a noção de poder disciplinar para fundamentar o conceito de descentramento do sujeito e, uma vez mais, recorri a Pêcheux (1975/1988) e Pêcheux e Fuchs (1975/1997) para abordar a noção de duplo esquecimento. Na próxima seção, exponho o conceito de representação social a partir de Moscovici (1961; 2003) e Jodelet (1990; 2001). Neste estudo, as representações sociais, presentes nas formações discursivas, serão observadas a partir das regularidades discursivas na materialidade

linguística.

Ao

analisar 43

as

representações

acerca

da

bilingualidade dos sujeitos de pesquisa, das línguas que falam, dos povos e dos países envolvidos, busco a compreensão da linguagem, não centrada apenas na língua, mas também na ligação entre o sujeito e o contexto sóciohistórico-cultural. Com isso, procuro desvelar os sentidos manifestos e latentes no discurso dos sujeitos bilíngues a fim de responder às perguntas que norteiam esta pesquisa.

44

Representações Sociais O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez.7

7 MELO NETO, João Cabral de. Rios sem discurso. In: MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p.26.

45

46

SEÇÃO 2 Representações Sociais Como discutido na seção anterior, de acordo com os pressupostos da AD francesa, o sujeito é interpelado pelo inconsciente e pela ideologia. Portanto, não é dono de seu dizer, pois seu discurso é sempre marcado pela presença do discurso do outro, entendido aqui como interdiscurso. O discurso, assim como definido por Foucault (1970/1996), é um conjunto de enunciados regulados numa mesma formação discursiva. Retomando esse conceito a partir de Pêcheux (1969/1993), a formação discursiva compreende o lugar de construção dos sentidos, determinando o que pode e deve ser dito num determinado contexto. Um aspecto que merece especial atenção, neste estudo, é que, nas formações discursivas produzidas pelos sujeitos, há marcas linguísticas que revelam as representações sociais que o sujeito tem do mundo. Sendo assim, o discurso jamais é neutro, pois sempre se volta para um conjunto de representações sociais que o sujeito tem sobre o tema tratado. Segundo Moscovici (2003), as representações sociais convencionalizam objetos, pessoas ou acontecimentos e os localizam em uma determinada categoria, desse modo, colocando-os gradualmente como um modelo de determinado tipo partilhado por um grupo de pessoas. Essas representações funcionam sempre num espaço de tensão entre o consciente e o inconsciente e, como afirma Moscovici (1984), terminam por construir o pensamento em um verdadeiro ambiente onde se desenvolve a vida cotidiana. Nesta seção, ressalto o papel das representações sociais na constituição da subjetividade dos sujeitos a partir dos mecanismos de ancoragem e objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990; 2001) e Abric (2003). Estabeleço, também, uma relação entre ideologia, representações sociais e a AD francesa com base nos estudos de Sousa Filho (2003).

47

2.1 Representações sociais

O conceito de Representação Social surgiu do trabalho de Serge Moscovici, intitulado La Psychanalyse, son image et son public (1961), que se ocupava do estudo pioneiro sobre a difusão da psicanálise em diferentes âmbitos, de sua apropriação e de transformação para outras funções sociais no pensamento popular parisiense da referida época. Para fazer frente a tal perspectiva, Moscovici buscou referência na obra de Durkheim (1895/1982), que preconizava a explicação sociológica dos fatos sociais, mais especificamente, em seu conceito de Representações Coletivas. Entendendo a sociedade como uma realidade em si, Durkheim entende as representações coletivas como categorias que são produzidas e que coletivamente formam a bagagem cultural de uma sociedade. Entretanto Moscovici (2003) adota o termo “social” e não “coletivo” a fim de enfatizar a qualidade dinâmica das representações sociais, em contraposição ao caráter mais fixo que elas tinham em Durkheim. Porém o autor explica que as duas palavras são, muitas vezes, usadas como sinônimas e que prefere social, pois essa palavra remete a “uma ideia de diferenciação, de redes de pessoas e suas interações” (MOSCOVICI, 2003, p. 348). Em relação às diferenças dos conceitos de representações apresentado por

Durkheim

e

Moscovici,

Duveen

(2003),

na

introdução

do

livro

Representações Sociais – investigações em psicologia social (MOSCOVICI, 2003), esclarece que enquanto Durkheim vê as representações coletivas como formas estáveis de compreensão coletiva, Moscovici concentra-se na exploração da variação e da diversidade das ideias coletivas nas sociedades modernas, o que gera uma heterogeneidade de representações. Perante essas diversidades, segundo Duveen (2003), surgem os pontos de tensão e é, ao redor desses pontos de clivagem, que se caracterizam pela falta de sentido, que novas representações emergem com o objetivo de reestabelecer um sentido de estabilidade. Moscovici (2003) explica que as representações são criadas por pessoas e grupos no decurso da comunicação e cooperação, mas alerta para o fato de que, uma vez criadas, elas adquirem vida própria, circulam e dão oportunidade para o surgimento de novas representações. É por isso 48

que, segundo o autor, para se compreender uma representação é necessário resgatar aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu, sendo que quanto mais sua origem é esquecida mais fossilizada a representação torna-se. A partir dos estudos de Moscovici sobre as representações sociais, muitos teóricos e pesquisadores vêm enriquecendo esse campo em diferentes áreas de pesquisa das Ciências Humanas e Sociais. Denise Jodelet, principal colaboradora de Moscovici, contribui significantemente para a sistematização e o aprofundamento teórico das representações sociais. O conceito de representações sociais, proposto por Jodelet (2001), é definido como uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. De acordo com a autora, as representações sociais são saberes de senso comum ou ainda saberes ingênuos e naturais cujos conteúdos manifestam a operação de processos generativos e funcionais socialmente marcados. O estudo de tais fenômenos, como enfatiza a autora, possibilita o desvelamento de diversos elementos que, tantas vezes, foram estudados isoladamente: “[...] informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões, imagens etc.” (JODELET, 2001, p.21). Somando-se a isso, Moscovici (2003) explica que a função primeira das representações sociais é tornar o não familiar em familiar. E isso significa que as representações criadas são sempre o resultado do esforço constante de se tornar comum e real, algo que é incomum ou não familiar. Segundo o autor, supera-se o problema integrando-o em nosso mundo mental e físico, que é, assim, enriquecido e transformado. Esse processo, prossegue o autor, reestabelece um sentido de continuidade no grupo e no sujeito que se encontrava ameaçado pela descontinuidade e falta de sentido. É por isso que, ao estudar uma representação, de acordo com Moscovici (2003), deve-se descobrir a característica não familiar que a motivou e o momento exato em que ela emerge na esfera social. Além disso, as representações sociais possuem outras duas funções. Em primeiro lugar, elas convencionalizam objetos, pessoas ou acontecimentos e os localizam em uma determinada categoria, colocando-os gradualmente como um modelo de determinado tipo partilhado por um grupo de pessoas. Em 49

relação a essa função das representações, o autor alerta que nenhuma mente está livre dos efeitos dos condicionamentos anteriores que lhes são impostos por suas representações, linguagem e cultura. Retomando essas condições, pode-se inferir, primeiramente, que os pensamentos dos sujeitos se organizam conforme um sistema que está condicionado pelas representações. Em segundo lugar, de acordo com o autor, as representações são prescritivas, uma vez que se impõem sobre os sujeitos devido à combinação de uma estrutura que está presente antes de se começar a pensar e de uma tradição que decreta o que deve ser pensado. Finalmente, vale ressaltar que as representações são transmitidas de geração à geração e representam “uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação presente” (MOSCOVICI, 2003, p. 37). Para explicar a transformação do não familiar em familiar, o autor apresenta dois mecanismos: ancoragem e objetivação. Esses mecanismos serão descritos nas partes a seguir.

2.2 A ancoragem

O primeiro mecanismo ancora ideias estranhas e perturbadoras e as transformam em categorias ou imagens comuns. Ancorar é, nas palavras do autor, “classificar e dar nome a alguma coisa” (MOSCOVICI, 2003, p. 61). Ao classificar o que é inclassificável, ao se dar nome ao que era impossível nomear, superam-se o estranhamento e a resistência ao desconhecido. É importante, como alerta o autor, compreender as implicações dessa classificação.

Classificar

significa

confinar

algo

a

um

conjunto

de

comportamentos e regras que estipulam o que é ou não permitido a todos os indivíduos pertencentes a essa categoria ou classe. Em outras palavras, “categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele” (MOSCOVICI, 2003, p. 63). As classificações, segundo o autor, são feitas comparando pessoas a um protótipo aceito como representante de uma classe. Nesse sentido, Moscovici (2003) complementa que o ser humano não 50

tenta conhecer ou compreender outro indivíduo; de outra feita, tenta reconhecê-lo, o que segundo o autor, é o mesmo que descobrir a que tipo de categoria ele pertence. Assim, ancorar implica veredito sobre esse sujeito; veredito esse que, segundo o autor, é obtido por meio da generalização ou particularização. A generalização é a seleção de uma característica aleatória que passa a ser utilizada como categoria, e essa característica se torna coextensiva a todos os membros dessa categoria. A particularização, por sua vez, tem como objetivo descobrir que característica torna o objeto/sujeito distinto. Classificar, esclarece o autor, implica em nomear. Ao nomear algo, o sujeito é libertado de um anonimato perturbador e incluído em um complexo de palavras específicas, dessa maneira, localizando-o na matriz de identidade de sua cultura. Moscovici (2003) explica que nomear alguma coisa ou pessoa é precipitá-la e são três as consequências: a pessoa ou coisa nomeada pode ser descrita e adquire certas características utilizadas nessa descrição; a pessoa ou coisa, por meio dessas características, torna-se distinta de outras pessoas ou objetos; e, finalmente, a pessoa ou coisa torna-se objeto de uma convenção entre os que adotam e partilham a mesma convenção. Retomando o conceito de ancoragem, Jodelet (1990) explica que a intervenção do social, nesse caso, traduz-se na significação e na utilidade que são conferidas à representação. Ao analisar a ancoragem como atribuição de sentido, a autora afirma que a hierarquia de valores prevalente na sociedade e em seus diferentes grupos contribui para criar em torno do objeto uma rede de significações na qual ele é inserido e avaliado como fato social. Jodelet (1990) prossegue esclarecendo que os elementos da representação não apenas exprimem relações sociais, mas contribuem para constituí-las. Segundo a autora, a estrutura imaginante torna-se um guia de leitura da realidade e, consequentemente, há uma “generalização funcional” que se torna referência para compreender a realidade. Esse sistema de interpretação, de acordo com a autora, tem uma função de mediação entre o indivíduo e seu meio e entre os membros de um mesmo grupo, concorrendo para afirmar a identidade grupal e o sentimento de pertencimento do indivíduo. A ancoragem torna-se, assim, um código comum que permite classificar pessoas e acontecimentos, comunicar-se 51

usando a mesma linguagem e, portanto, influenciar. A autora enfatiza ainda que a ancoragem fornece à objetivação seus elementos imaginados a título de pré-constructos, para servir à elaboração de novas representações. À luz de Moscovici, Jodelet (1990) esclarece que o processo de ancoragem está relacionado dialeticamente à objetivação, uma vez que articula as três funções básicas da representação: a função cognitiva de integração da novidade, a função de interpretação da realidade e a função de orientação das condutas e das relações sociais. Conforme a autora, os processos de ancoragem e objetivação permitem compreender: como a significação é conferida ao objeto representado; como é utilizada quanto ao sistema de interpretação do mundo social e instrumentaliza a conduta; e, finalmente, como se dá sua integração em um sistema de recepção e como influencia e é influenciada pelos elementos que aí se encontram.

2.3 A objetivação

O segundo mecanismo, para explicar essa transformação do não familiar em familiar, foi denominado, por Moscovici (2003), como objetivação e tem a função de transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferindo o que está na mente em algo que existe no mundo físico. Em outras palavras, o autor esclarece que a objetivação “está fundamentada na arte de transformar uma representação na realidade da representação; transformar a palavra que substitui a coisa, na coisa que substitui a palavra” (MOSCOVICI, 2003, p.71). O autor explica que objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou seja, é reproduzir um conceito em uma imagem. Fazendo coro com Moscovici, Jodelet (2001) define a objetivação como uma operação imaginante e estruturante, que dá corpo aos esquemas conceituais,

reabsorvendo

o

excesso

de

significações,

procedimento

necessário ao fluxo das comunicações. A autora distingue três fases nesse processo: a construção seletiva, a esquematização estruturante e a naturalização. A primeira fase corresponde ao processo pelo qual o sujeito se 52

apropria das informações e dos saberes sobre um dado objeto. Nessa apropriação, a autora esclarece que alguns elementos são retidos, enquanto outros são ignorados ou rapidamente esquecidos. As informações que circulam sobre o objeto sofrem, de acordo com a autora, uma triagem em função de dois fatores. O primeiro são os condicionantes culturais, isto é, o acesso diferenciado às informações em decorrência da inserção grupal do sujeito. O segundo fator são os critérios normativos os quais explicam que o indivíduo só retém o que está de acordo com o sistema de valores circundante. Na segunda fase, a esquematização, a autora explica que uma estrutura imaginante reproduz, de forma visível, a estrutura conceitual de modo a proporcionar uma imagem coerente e facilmente exprimível dos elementos que constituem o objeto da representação, permitindo ao sujeito apreendê-los individualmente e em suas relações. A última etapa da objetivação, Jodelet (1900) explica que é a naturalização. Segundo a autora, nessa fase, os conceitos retidos no nó figurativo e as respectivas relações constituem-se como categorias naturais, adquirindo materialidade, ou seja, os conceitos tornam-se equivalentes à realidade e o abstrato torna-se concreto por meio da sua expressão em imagens e metáforas.

2.4 Núcleo central e sistema periférico

Abric (2003) aponta para o fato de que a objetivação se cristaliza a partir de um processo figurativo e social e passa a constituir o núcleo central de uma determinada

representação,

seguidamente

evocada,

concretizada

e

disseminada como se fosse o real daqueles que a expressam. Ao introduzir o conceito de núcleo central à teoria das representações sociais, Abric apresenta o

que

muitos autores

reconhecem

como

o

elemento

essencial da

representação. O autor sustenta a hipótese de que toda representação social está organizada em torno de um núcleo central e de um sistema periférico. O núcleo central, segundo o autor, determina o significado de uma representação e, ao mesmo tempo, contribui para sua organização interna, 53

uma vez que está relacionado à memória coletiva dando significação, consistência e permanência à representação sendo, portanto, estável e resistente a mudanças. O sistema periférico, ou ancoragem, constitui a parte operacional do núcleo central e sua concretização mediante a apropriação individual e personalizada por parte de diferentes pessoas oriundas de grupos sociais diversos. Abric (2003) destaca cinco funções da ancoragem ou do sistema periférico na dinâmica das representações sociais. São elas: a concretização do núcleo central; a regulação das representações sociais, adaptando-as à realidade do grupo; a prescrição de comportamentos; a proteção do núcleo central e a elaboração de representações relacionadas à história e às experiências pessoais do sujeito. À luz dos conceitos discutidos até o momento, entende-se que o sistema central estabelece a base das representações sociais, uma vez que está associado às normas e aos valores partilhados pelo grupo. O sistema periférico, por sua vez, é mais flexível e heterogêneo, pois incorpora a contribuição dos indivíduos de acordo com suas experiências e vivências pessoais. Logo, pode-se dizer que, na ancoragem, o indivíduo tem um papel mais ativo no processo de construção da representação social. É nesse componente que o sujeito pode apresentar abertura para conferir um novo significado para algo. Dessa forma, os elementos periféricos, ou a ancoragem, constituem uma oportunidade de transformação de representações sociais alienadas. Após discorrer sobre os conceitos estruturantes que constituem as representações sociais, considero importante vincular a noção de ideologia, essencial para a AD francesa, ao estudo das representações sociais.

54

2.5 Representações sociais, ideologia e AD francesa: breve diálogo necessário

Retomando o discutido na seção primeira deste trabalho, a AD francesa situa-se num campo de debate que envolve as condições de produção do discurso e as relações existentes entre ele e a ideologia. Pêcheux (1966) retoma o conceito de AIE (ALTHUSSER, 1985) para afirmar que os AIE são o local e o meio para que a ideologia seja propagada a fim de interpelar o indivíduo em sujeito. Relacionando o conceito de ideologia com os estudos de representações sociais, Sousa Filho (2003) argumenta que a ideologia pode ser pensada em termos de um conjunto de representações cuja função é assegurar as condições simbólicas da reprodução das relações de produção dominantes nas sociedades. Para o autor, as representações podem ser definidas como a menor parte da ideologia, constituindo-se no veículo pelo qual a ideologia circula na sociedade. Nas palavras do autor: Como materialização da ideologia em sua menor parte, as representações se tornam visões e práticas duradouras de sujeitos que estão investidos de crenças que as adotam para conceber o mundo, a si próprios e os outros, embora desconheçam a história dessas mesmas crenças e práticas. Através das representações, a ideologia é capaz de significar para cada um o que se é e significar como se deve conduzir em consequência (SOUSA FILHO, 2003, p. 80).

Ao se pensar a ideologia como um conjunto de representações (SOUSA FILHO, 2003), assume-se que identificando as representações sociais que o sujeito tem do mundo, por meio das marcas linguísticas que se repetem dentro das formações discursivas, inicia-se o processo de reconhecimento da ideologia que interpela o indivíduo em sujeito. Dessa forma, torna-se tangível analisar a inscrição do outro, ou o interdiscurso, no discurso do sujeito, e consequentemente se reconhecem valores e ideias circulantes em dada sociedade. Essas ideias têm influência direta na identidade do sujeito, uma vez que aquilo que o sujeito acredita é aquilo que o faz agir ou não agir, 55

direcionando sua relação com o mundo e o modo como se percebe na sociedade.

Nesta seção, ressaltei o papel das representações sociais na constituição da subjetividade dos sujeitos a partir dos mecanismos de ancoragem e objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990; 2001). Retomo, também, os conceitos de núcleo central e sistema periférico propostos por Abric (2003) e considerados por muitos teóricos como elementos essenciais da representação. Ao término da seção, estabeleço uma relação entre ideologia, representações sociais e a AD francesa por meio dos estudos de Sousa Filho (2003).

Na seção seguinte, discorrerei sobre o conceito de identidade e o relacionarei com os estudos de representações sociais, assim, objetivando compreender como as identidades dos sujeitos desta pesquisa transformaramse na sua relação com as línguas que os constituem.

56

Identidades

O senhor... mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. 8

8 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. p.24.

57

58

SEÇÃO 3 Identidades Nesta seção, discuto o conceito de identidade. Na seção primeira, descrevi como a AD francesa reflete o percurso histórico, social e cultural do sujeito, revelando quais discursos que perpassam a sua identidade diante da materialização da sua linguagem. É importante ressaltar que parto da premissa de que a identidade se forma ao longo do tempo e por meio de processos inconscientes, uma vez que o processo de identidade é constituído ao decorrer da vida do sujeito e orientado por vários interdiscursos que se revelam a partir da produção discursiva. Na segunda seção, discuti o conceito de representações sociais, uma vez que, nas formações discursivas produzidas pelos sujeitos, há marcas linguísticas que revelam as representações que o sujeito tem do mundo. A bem da verdade, não se pode desprezar o fato de que a identidade, conceito

discutido

nesta

seção,

também

se

constitui

a

partir

das

representações que um grupo ou sociedade possui em torno dele mesmo. A esse respeito, Woodward (2000, p.17) argumenta que: A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.

Desse modo, entender como os bilíngues desta pesquisa, falantes de português e inglês, percebem-se e percebem as línguas que os constituem é essencial para entender como captam essas referências e são por elas afetados na construção de suas identidades. Somando-se a isso, Shotter e Gergen (1989) afirmam que nossas identidades são construídas através de nossas práticas discursivas com o 59

outro. A esse respeito, Moita Lopes (1998) esclarece que os indivíduos têm suas identidades construídas de acordo com o modo que se vinculam a um discurso – o seu próprio e o discurso dos outros. Logo, pode-se dizer que não há construção identitária desvinculada do discurso. Portanto, a identidade do sujeito bilíngue constrói-se nas diferentes práticas discursivas em que ele se engaja e pelas quais se relaciona com o outro. Nesse sentido, apoio-me em Moita Lopes (2002) para afirmar que o indivíduo se constitui em um movimento de vai e vem da percepção e da representação do outro sobre ele mesmo. Para subsidiar esta discussão, resgato da literatura construtos teóricos defendidos por autores pós-modernos, como Hall (2005), Bauman (2005), Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Recorro também a outras áreas de conhecimento para melhor compreender minhas questões de pesquisa. Busco esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990; 2004), que entende a identidade como um construto social e, a partir disso, desenvolve os conceitos de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA, 1990). Retomo também o conceito de estigma do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito, resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno (2002).

3.1 O conceito de identidade empregado

O conceito de identidade tem sido amplamente discutido e, ao mesmo tempo, problematizado nos últimos anos, por estudiosos de diversas áreas e a partir de diferentes linhas teóricas. Coracini (2003) enfatiza que vivemos em um momento privilegiado de questionamentos de tudo que parece preestabelecido e justificado, sendo, em meio a tantos questionamentos, que o sujeito procura reconhecer-se e encontrar uma explicação de sua própria condição. A compreensão do sujeito – da pessoa, do ser, do homem/mulher, etc. – sempre foi uma temática instigante, pois, afinal, o ser humano (pre)ocupa-se com ele mesmo na tentativa de responder à célebre pergunta: Quem somos nós?. 60

Porém essa pergunta não pode ser dissociada de onde estamos, de onde viemos, para onde vamos? Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que conhecer o humano não é expulsá-lo do universo, mas sim situá-lo. Historicamente, é possível localizar que, toda vez que uma mudança epistemológica ocorre, torna-se preciso também ver o homem na história e (re)conceitualizar o sujeito para que ele se conscientize sobre o modo como o conhecimento estrutura a mente humana. Hall (2005) contribui para esta discussão ao conceitualizar a noção de sujeito em consonância com os diferentes períodos históricos: a) sujeito do iluminismo: o sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo. b) sujeito sociológico: a noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos, a cultura, dos mundos que ele habitava. c) sujeito pós-moderno: o sujeito pós-moderno torna-se fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. À medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, o sujeito é confrontado por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis e com cada uma das quais se identifica ao menos temporariamente. A identidade do homem pósmoderno é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro dele, há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que essas identificações são continuamente deslocadas. Neste cenário, emerge também o processo de globalização, quebrando antigos paradigmas e reforçando algumas características desse momento 61

histórico. O fenômeno, que “tende a desenraizar as coisas, as gentes e as ideias” (IANNI, 1999, p. 94), interfere diretamente na conceptualização da identidade e na fragmentação do sujeito, além de atingir as diversas relações sociais nos mais variados níveis e afetar o modo de ser e agir da sociedade, na qual

agora

vigoram

dualidades

como

global/local,

coletivo/individual,

micro/macro e concreto/abstrato. Somando-se a isso, Bauman (2005) acrescenta que a noção de identidade herdada da Modernidade naufraga em um contexto fluido em que verdades, outrora inquestionáveis, são postas em xeque e nascem novas formas de sociabilidade sob os auspícios da globalização no mundo capitalista contemporâneo. Para o autor, na contemporaneidade, a tônica recai no individualismo, na solidão e na exclusão gritantes nos mais diversos contextos sociais. A partir desse mesmo prisma, Coracini (2003) salienta que, ainda que os defensores deste fenômeno neguem, a globalização pretende a centralização e a homogeneização de tudo e todos, o que contribui para a caracterização de uma crise da identidade, provocada, em grande parte, pela ideologia da globalização. Neste estudo, o conceito de identidade é concebido a partir da concepção de sujeito pós-moderno apresentada acima. De acordo com Hall (2005), a identidade de um sujeito é formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais este é representado ou interpelado nos sistemas culturais que lhe rodeiam. Frente a esta postura teórica adotada, pode-se considerar que a identidade do sujeito se constrói na/através da linguagem e, por isso, não se pode falar em identidades fixas; as identidades estão sempre em estado de fluxo. Não é à toa que Bauman (2005) assevera que a constituição identitária deve ser considerada um processo contínuo de redefinir-se e de inventar e reinventar sua própria história, pois a identidade, como afirma Coracini (2007), tem sua existência no imaginário do sujeito que se constrói nos e pelos discursos imbricados que o constituem. Porém é importante salientar que, apesar da identidade ser tratada como um processo ficcional, pois, como salienta Bauman (2005), a inventamos, não se deve desmerecê-la, visto que, por meio desse processo, o sujeito revela como se posiciona no decorrer de sua história. 62

Neste mesmo universo conceitual, Norton (1995) também defende a concepção de uma identidade múltipla e suscetível a mudanças. Para esta autora, o termo identidade refere-se ao modo pelo qual as pessoas compreendem sua relação com o mundo, como tal relação é construída através do tempo e do espaço e como essas mesmas pessoas entendem suas possibilidades para o futuro. Para Norton (1995), a noção de identidade está intimamente ligada aos desejos de reconhecimento, afiliação e segurança. A autora completa que a língua constitui e é constituída pela identidade do sujeito, que, por intermédio dela, negocia a noção do “eu” em meio a ambientes diferentes e em pontos distintos no tempo. A autora afirma ainda que, ao falar, os aprendizes não estão apenas trocando informações com o interlocutor: eles estão constantemente organizando e reorganizando o senso de quem são e de como se relacionam com o mundo. Durante esse processo, os aprendizes estão envolvidos na construção e na negociação de suas identidades. Em consonância à concepção defendida por Norton, um dos estudiosos brasileiros mais significativos do conceito identidade, Ciampa (1990), defende que a identidade é um constructo social resultante da relação dialética entre o sujeito e a sociedade. Nessa relação, de acordo com o autor, o sujeito é configurado não apenas como personagem, mas também como autor de sua própria história. Essa configuração, salienta Ciampa (1984), ocorre uma vez que não se pode isolar, de um lado, todo um conjunto de elementos biológicos, psicológicos e sociais que podem caracterizar um indivíduo 9; e de outro lado, a representação desse sujeito como uma duplicação simbólica que expressaria sua identidade. Dessa forma, há uma interpenetração desses dois aspectos, o que impossibilita a separação da identidade pressuposta e a representação desse indivíduo.

9 Como explicitado na nota de rodapé número 4, da página 20, este estudo tem como base teórico-metodológica a análise de discurso de linha francesa que faz uso da denominação sujeito. Na AD francesa, o sujeito difere do indivíduo por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a uma memória discursiva. A partir dessa perspectiva, emprego o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto tratado for discutido a partir da análise de discurso de linha francesa. Nesta seção, no entanto, recorro a outras áreas de conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa, uma vez que a linguística aplicada converge em um processo transdisciplinar de produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Desse modo, busco esteio na psicología social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociología (GOFFMAN, 1988) e na filosofía (HABERMAS, 1976) para me aprofundar na discussão do conceito identidade. Esses autores, em suas diferentes áreas de conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa, pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores, dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.

63

Sendo assim, faz-se fundamental entender que sempre há a pressuposição de uma identidade (CIAMPA, 1990), isto é, sempre, existe uma predicação atribuída ao indivíduo pelo outro, ou seja, há uma nomeação de atributos individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura social. Trata-se, então, de uma identidade que é dada, atribuída, outorgada e mediada pelo outro. Assim, de acordo com essa pressuposição, o sujeito, como ser social, é um ser-posto (CIAMPA, 1990), uma vez que carrega em si o conhecimento compartilhado socialmente e as expectativas dos outros no que se refere ao modo como um determinado indivíduo deve agir e ser. A partir da pressuposição da identidade, Ciampa (1990) compreende a identidade como um processo de metamorfose permanente, uma vez que pressuposta e posta, a identidade é reposta, o que Ciampa (1984) denomina como mesmice. Em outras palavras, a mesmice é a reposição da identidade pressuposta por meio de ritos sociais ou pela reposição de personagens estereotipados. Isso equivale a dizer que mesmo quando a identidade é percebida como estática – parecendo não sofrer modificação alguma – ela está sendo transformada à medida que, por meio de ações, o indivíduo “repõe” aquilo que a sociedade “põe” como certo, isto é, aquilo que as normas sociais e a ideologia dominante estabelecem ser o mais adequado, criando, como afirma Ciampa (1990), a identidade mito que apenas reproduz o social sem questionamento e/ou responsabilidade por parte do indivíduo com relação à sua identidade. Opondo-se à mesmice, ou ao ser-feito-pelo-outro, como argumenta Ciampa (1990), a mesmidade, ou o ser-para-si é a superação da identidade pressuposta, ou seja, o indivíduo emancipa-se de valores estigmatizantes e preconceituosos

impostos

pela

sociedade

e/ou

apropriados

por

ele,

possibilitando um agir mais livre e criativo para realização de suas metas e desejos. Assim, o indivíduo sai do movimento de reposição e busca o outro; “outro” que também é ele, isto é, o “outro” que se quer ser pela superação da identidade pressuposta.

64

Ciampa (1984) alerta para o fato de que essa nova identidade necessita de reconhecimento social. Esse novo conteúdo identitário do Ego precisa ser reconhecido pelo Alter para que esse sentido pessoal se estabilize como significado socialmente compartilhado, o que permite que se desenvolva uma nova rede intersubjetiva. Sob esse mesmo prisma, Ciampa (1990) afirma que a identidade é a articulação entre a diferença e a igualdade: o outro designa o eu, da mesma forma que a identidade do indivíduo é também “determinada pelo que não é ele, pelo que o nega” (CIAMPA, 1990, p.137). Essa identificação e diferenciação não podem ser apreendidas à margem dos sistemas de significação social vigentes. características

e

O autor prossegue

comportamentos

apontados

salientando

pela

que

sociedade

ter

como

indesejáveis pode suscitar sanções e reprimendas, o que remete à ideia de que a construção da identidade não ocorre de forma harmoniosa ou equilibrada, mas é fruto de um jogo de poderes, em que a dominância dos grupos hegemônicos aponta o socialmente valorizado e influencia a constituição da identidade.

3.2 Estigma e preconceito

À luz das discussões estabelecidas até o momento, busco esteio em Goffman (1988), especificamente na obra Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, para refletir acerca do processo constitutivo da identidade a partir das considerações apontadas a respeito da manipulação da identidade de indivíduos que se distinguem dos outros em determinado contexto, por uma marca que lhe é peculiar - o estigma. Nessa obra, o autor introduz o conceito de identidades sociais virtuais e identidades sociais reais. As identidades sociais virtuais são constituídas pelas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo outro deveria ser. O conceito de identidades sociais virtuais, apresentado por Goffman (1988), pode 65

ser alinhado ao conceito de identidade pressuposta, proposto por Ciampa (1984), uma vez que essas preconcepções são transformadas em expectativas normativas e exigências apresentadas de modo rigoroso pela sociedade. Por sua vez, a categoria e os atributos que o indivíduo, na verdade, prova possuir são chamados de sua identidade social real. A discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real é responsável pela produção do estigma. Segundo Goffman (1988), em contato com o estranho, o indivíduo tem evidências de que esse estranho tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria que pudesse ser incluído. Essas características que o diferenciam são denominadas estigma. Goffman (1988) distingue três tipos de estigma: 1. As abominações do corpo ou deformidades físicas. 2. As culpas de caráter individual, como, por exemplo, o distúrbio mental, a prisão, o vício, o homossexualismo e tentativas de suicídio, entre outros. 3. Estigmas tribais de raça, nação e religião. Este trabalho trata do terceiro tipo de estigma proposto pelo autor, uma vez que, ao se compararem com falantes oriundos de países de língua inglesa, falantes bilíngues brasileiros colocam-se em uma posição estigmatizada, seja por sua condição de latino e de ideias preconcebidas acerca de ser brasileiro, ou por um sentimento de inferioridade pela percepção de diferenças no sotaque quando comparado a falantes oriundos de países de língua inglesa. O termo estigma, ressalta o autor, oculta uma dupla perspectiva: o indivíduo que assume que a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente – condição de desacreditado ou, então, que ela não é nem conhecida pelos presentes nem imediatamente perceptível por eles – condição

de

desacreditável.

Goffman

(1988)

pontua

que

o

sujeito

desacreditável manipula a informação sobre sua marca, decidindo exibi-la ou ocultá-la dependendo de como, para quem, quando e onde. Há, dessa forma, uma manipulação da informação oculta que desacredita o eu, ou seja, um 66

encobrimento (GOFFMAN, 1988). De acordo com o autor, há na literatura cinco ciclos naturais nesse processo: 1. Encobrimento inconsciente, que o indivíduo pode nunca perceber. 2. Encobrimento involuntário, que o indivíduo pode perceber com surpresa no meio do processo. 3. Encobrimento “de brincadeira”, que é o encobrimento em momentos não rotineiros da vida social, como férias e viagens. 4. Encobrimento em ocasiões rotineiras da vida diária, como no trabalho e em situações de serviço. 5. Desaparecimento, que é o encobrimento completo em todas as áreas da vida. Goffman (1988) chama a atenção para o fato de que alguns poucos indivíduos não conseguem viver de acordo com o que é efetivamente exigido e esperado dele, mas que, ainda assim, permanecem alheios à sua inadequação em relação ao que a sociedade espera deles e se protegem por crenças de identidades próprias. No entanto Goffman (1988) ressalta que a grande maioria de indivíduos estigmatizados tende a ter as mesmas crenças sobre identidade que o grupo dominante possui. O autor pontua ainda que indivíduos estigmatizados tendem a ter experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer mudanças semelhantes na concepção do eu, isto é, uma carreira moral semelhante, que é não só causa como efeito do compromisso com uma sequência semelhante de ajustamentos pessoais (GOFFMAN, 1988). Para Goffman (1988), há duas fases nesse aprendizado. Uma das fases é a que a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos outros indivíduos do grupo dominante, adquirindo, dessa forma, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma ideia geral do que significa possuir determinado estigma. Em outra fase, o indivíduo aprende que possui um estigma particular e, dessa vez, detalhadamente, as consequências de possuí-lo. Segundo o autor, a sincronização e interação dessas duas fases 67

iniciais da carreira moral formam quatro modelos, descritos a seguir, que estabelecem as bases para um desenvolvimento posterior e distinguem entre as carreiras morais disponíveis para os estigmatizados: 1. O primeiro modelo envolve indivíduos que possuem um estigma congênito e que são socializados dentro de sua situação de desvantagem, mesmo aprendendo e incorporando os padrões frente aos quais fracassam. 2. O segundo modelo deriva da capacidade da família ou grupo no qual o indivíduo está inserido de controlar as informações que o diminuiriam, enquanto se dá acesso a outras concepções da sociedade mais ampla. Esse indivíduo encapsulado passa, dessa forma, a considerar-se inteiramente qualificado, o que não impede que, em algum momento de sua vida, ocorra a aprendizagem do estigma. 3. O terceiro modelo engloba indivíduos que se tornaram estigmatizados numa fase avançada da vida ou aprenderam muito tarde que sempre foram desacreditáveis, o que envolve uma reorganização radical de seu passado. 4. O quarto modelo, no qual alguns participantes deste trabalho se inserem, diz respeito a indivíduos que são inicialmente socializados numa comunidade diferente, dentro ou fora das fronteiras geográficas da sociedade, e que devem posteriormente aprender uma segunda maneira de ser validado pelo grupo social à sua volta. Em contato com o grupo dominante, o que autor define como situações sociais mistas, os indivíduos estigmatizados tentam corrigir diretamente o que consideram a base objetiva de seu defeito, ocorre aqui a vitimização, que é quando a pessoa estigmatizada se rende a servidores que vendem meios para corrigir a fala, para clarear a cor da pele ou para esticar o corpo, por exemplo. Indo mais além, Goffman (1988) esclarece que, quando o indivíduo adquire tardiamente o ego estigmatizado, como é o caso de muitos dos sujeitos desta pesquisa, as dificuldades para estabelecer novas relações podem se estender também a relações antigas, uma vez que as relações anteriores podem não conseguir tratá-lo “nem com um tato formal nem com uma 68

aceitação familiar total” (GOFFMAN, 1988, p. 45). O autor salienta que há também exemplos de indivíduos que se desviam, quer em atos ou em atributos que possuem, do grupo estigmatizado a que pertencem. Esses indivíduos, como explica Goffman (1988), são denominados desafiliados ou desviantes sociais, e voluntária e abertamente recusam-se a aceitar o lugar social que lhes é destinado. Na esfera do discutido por Goffman (1988), há ainda outra situação a ser considerada: o preconceito linguístico. O preconceito linguístico é um conceito marxista, criado pelo sociólogo Nildo Viana, calcado em escritos de Pierre Bordieu, como demonstração de outra forma de opressão e luta de classes. O principal defensor desse conceito, no Brasil, é o professor Marcos Bagno. Bagno (2002) alerta para a existência do preconceito linguístico como uma forma recorrente e atual de preconceito. Em seu livro, Preconceito linguístico – o que é, como se faz, o autor atém-se a discutir a questão dos vários preconceitos, praticados pelos próprios brasileiros, em relação à língua portuguesa falada no Brasil. Segundo o autor, a noção de correto, imposta pelo ensino tradicional, origina um preconceito contra as variedades não padrão de português faladas no Brasil. O autor ressalta, ao longo de seu livro, uma série de afirmações que já fazem parte da imagem (negativa) que o brasileiro tem de si mesmo e da língua falada por aqui, como a de que o português é uma língua difícil e a de que brasileiros não sabem português. Essas afirmações parecem se estender também no que tange ao sotaque brasileiro ao falar inglês. Possuir sotaque brasileiro parece ser visto como uma desvantagem e, desse modo, existe uma tentativa de encobri-lo, de escondê-lo. Bagno (2002) salienta que os preconceitos impregnam-se de tal maneira na mentalidade das pessoas que as atitudes preconceituosas se tornam parte integrante do seu próprio modo de ser e de estar no mundo e alerta para o fato de que “o tipo mais trágico de preconceito não é aquele que é exercido por uma pessoa em relação a outra, mas o preconceito que uma pessoa exerce contra si mesma” (BAGNO, 2002, p.75). O autor atribui à união de quatro 69

elementos a formação do preconceito linguístico no Brasil: à gramática tradicional, aos métodos tradicionais de ensino, aos livros didáticos e aos comandos paragramaticais, os quais o autor define como sendo “todo esse arsenal de livros, manuais de redação de empresas jornalísticas, programas de rádio e de televisão, colunas de jornal e de revista, CD-ROMS, consultórios gramaticais” (BAGNO, 2002, p.76). Segundo o autor, tanto os livros didáticos quanto os recursos paragramaticais, que poderiam ter utilidade para quem tem dúvidas na hora de falar ou de escrever, acabam perdendo-se por trás da espessa neblina de preconceito que envolve essas manifestações da (multi)mídia. Assim, perpetuam as velhas noções de que brasileiro não sabe português e de que português é muito difícil. Acrescento a isso, a questão do sotaque brasileiro ao falar inglês. Inúmeros são os recursos que, sob a mesma neblina de preconceito, prometem reduzi-lo ou mesmo apagá-lo. Com isso, mais uma forma de preconceito contra o português falado no Brasil é disseminado, o que acarreta em mais uma ideia negativa que o brasileiro tem de si mesmo e da língua que fala. Ideias essas, conscientes ou não, têm implicações direta na construção e na negociação das identidades de sujeitos bilíngues brasileiros. Nesta seção, abordei os estudos sobre identidade a partir da perspectiva da Pós-Modernidade com base em Hall (2005), Bauman (2005), Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Nessa perspectiva, retomei os estudos de Ianni (1999) para discorrer a respeito das implicações da globalização na conceptualização da identidade e na fragmentação do sujeito na Pós-Modernidade. Recorri também a outras áreas de conhecimento para melhor compreender minhas questões de pesquisa. Busquei esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990; 2004), que entende a identidade como um construto social e, a partir disso, desenvolveu os conceitos de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA, 1990). Dentro da filosofia, recorri a Habermas (1976) que enfatiza o conceito de individuação relacionado à noção de mesmice desenvolvida por Ciampa (1984). Finalmente, retomei o conceito de estigma do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. 70

Atrelado a esse conceito, resgatei a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno (2002). Revisando o percurso traçado até aqui, compreendo o desafio de abordar a identidade não como uma descrição em termos objetivantes, mas, sim, como compreensão do processo constante de formação e transformação do indivíduo. Na seção seguinte, enfatizo o aporte teórico sobre língua materna, língua estrangeira e bilinguismo, que servirão de base para minhas análises.

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Vida entre línguas Nós temos sempre necessidade de pertencer a alguma coisa; e parece que a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas, como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica e com que se escreve?10

10 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal, 2004. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=b7cIiiHmFI8 >. Acesso em: dez. 2011.

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SEÇÃO 4 Vida entre línguas Revuz (1998), a partir dos estudos sobre a enunciação e de contribuições da psicanálise a respeito da incidência da língua na constituição identitária do sujeito falante, afirma que a língua é "o material fundador de nosso psiquismo e de nossa vida relacional" (REVUZ, 1998, p.217). Sendo assim, este trabalho parte do pressuposto de que o sujeito se constitui pela e na linguagem. À luz dos estudos lacanianos, tomo como base que o sujeito não tem uma identidade anterior e fora da língua, uma vez que o mundo humano é o mundo da linguagem e não há nada aquém ou além da linguagem. Levando em consideração tal posicionamento, ao se referir a sujeitos falantes de mais de uma língua, qual é o papel da língua materna e da língua estrangeira em sua constituição identitária? No que se constitui essa língua materna e essa língua estrangeira? Nas duas partes seguintes, proponho-me a refletir sobre o que é língua materna e língua estrangeira e a imbricação dessas na constituição da identidade de sujeitos fal(t)antes de mais de uma língua. Na última parte, discorro sobre as noções de bilinguismo, sujeito bilíngue e bilingualidade. Noções essas, importantes para a análise das representações que os sujeitos desta pesquisa têm sobre as línguas que os constituem e sobre sua bilingualidade dentro do quadro teórico da AD francesa.

4.1 O que é esta língua dita materna?

De um modo geral, o termo língua materna leva em consideração a terra onde se nasce, o sangue que se herda e a língua na qual se é criado. Coracini (2003) explica que língua materna significa etimologicamente língua da mãe. Mas acrescenta que não se pode tomar a definição ao pé da letra, uma vez que há sociedades em que a língua ensinada é a língua do pai ou que a criança é educada por outra mulher, a qual possui outra língua. A autora prossegue 74

afirmando que, na escola, assume-se como língua materna a língua na qual a criança é alfabetizada, língua esta que nem sempre coincide com a primeira língua na qual a criança aprendeu a falar. Coracini (2003) aponta ainda para o fato de que língua materna indica também a primeira língua adquirida, todavia esclarece que há casos de bilinguismo simultâneo, quando a criança adquire duas línguas ao mesmo tempo, como é o caso de muitos participantes desta pesquisa. Porém Maher (1998) esclarece que, em termos de língua materna, ultrapassam-se diferenças linguísticas e se coloca em jogo questões relacionadas à identidade. Diante dessa complexidade na qual se deslocam escopos estritamente linguísticos, recorro aos estudos psicanalíticos e aos estudiosos do ser-estar entre línguas, como Melman (1992), Revuz (1998), Maher (1998) e Coracini (2003/2007), que se distanciam de acepções simplistas acerca de constituição da língua materna. Revuz (1998) alerta para o fato de que a língua materna é a língua primeira aprendida por um falante, língua essa que o assujeita e o torna um sujeito da linguagem, uma vez que molda suas bases de estruturação psíquica e solicita uma prática complexa: o relacionar-se consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Melman (1992), por sua vez, relata que, durante muito tempo, perguntou-se o que era uma língua materna, uma vez que frequentemente se fala mais de uma língua e, por vezes, a língua estrangeira é utilizada com uma maior facilidade. Ao prosseguir, o autor explica que se pode pensar que a língua materna veicula a lembrança daquela que introduziu o sujeito à fala e esclarece que a língua materna é aquela “na qual, para aquele que fala, a mãe foi interditada” (MELMAN, 1992, p. 32). Ela é dita “materna”, porque, nela, falta justamente o que pode ser considerado “materno”, ou seja, a lembrança daquela que, primeiramente, introduziu o sujeito à fala, como assinala o psicanalista: A língua materna [...] é aquela na qual funcionou para o pequeno falante, para o sujeito que a articula, o interdito de sua mãe. E a chamamos “língua materna” porque é inteiramente organizada por este interdito que, de algum modo, imaginariza o impossível próprio a toda língua (MELMAN, 1992, p. 44).

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Esse conceito de interdição empregado por Melman advém de Lacan. Em o Estádio do Espelho como Formador da Função do “Eu”, Lacan (1966/1998) apresenta três etapas para a constituição do Eu, trabalhando o fenômeno pelo qual uma criança reconhece sua imagem no espelho. Inicialmente, a criança reage à sua imagem no espelho como uma realidade ou uma imagem de um outro. Após esse período, a criança deixa de tratar essa imagem como um objeto real e entende que o reflexo no espelho não passa de uma imagem. E, em uma terceira etapa, a criança, finalmente, por volta dos 18 meses, reconhece esse outro como sua própria imagem. Trata-se do processo de identificação, como conquista progressiva da identidade do sujeito. De acordo com Fages (1977), essa identificação primária da criança com sua imagem é o tronco de todas as outras identificações. Na terceira etapa, que é a da identificação ao pai, ocorre a aquisição da linguagem e, com isso, a entrada da criança na ordem simbólica. Para tanto, a mãe precisa reconhecer o pai como representante da lei para que a criança identifique o pai como aquele que detém o falo. O pai é aquele que repõe o falo em seu devido lugar: como objeto desejado pela mãe e distinto da criança. Assim, o pai castra a criança, distinguindo-a do falo e separando-a da mãe (castração simbólica) e a criança encontra sua justa posição na família. Com isso, a criança ultrapassa a relação dual com a mãe, adquire subjetividade e entra no mundo da linguagem. Melman (1992) esclarece que a língua materna é a própria condição de estruturação psíquica, pois, a partir da inscrição do sujeito no universo da linguagem, ele subjetiva-se e se torna Eu. Além disso, ao ser a língua na qual a mãe é interditada, é também a língua do desejo, uma vez que o desejo é produzido por essa interdição. Esse desejo, segundo Fages (1977), segue-se a essa falta essencial que, separada de sua mãe, a criança sofre. O desejo tende a preencher a falha – a castração – que é a separação da mãe. Como a criança não consegue satisfazer o desejo de ser o falo da mãe, o desejo de ser a mãe, a criança deseja o Outro, mas precisamente deseja ser reconhecido pelo Outro.

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4.2 O que é esta língua dita estrangeira?

A língua estrangeira, assim como a língua materna, apresenta também diversas acepções. É também chamada de segunda língua, como no caso de imigrantes que aprendem a língua do país para o qual emigraram; ou, em países europeus e no Canadá, tal denominação é concebida pela ordem de colocação das línguas existentes no currículo escolar. Coracini (2003) alerta para o fato de que há diferentes graus de estrangeirização e de estranhamento. Para a autora, a língua estrangeira é a língua “estranha”, a língua do estranho, do outro. Se, como Melman (1992) conceitua, a língua materna é o lugar de interdição, uma vez que carrega o peso da história do sujeito e, assim, do imaginário resultante da ideologia que naturaliza o que foi construído; a língua estrangeira, por sua vez, é o lugar onde quase tudo é permitido, onde os desejos podem irromper mais livremente, uma vez que, como afirma Coracini (2003), ainda, não foi moldada pelos interditos. Melman (1992) afirma ainda que, quando se fala uma língua estrangeira - estrangeira comparada à língua materna que teceu o inconsciente -, o retorno do recalcado na língua estrangeira não é mais escutado como a expressão de um desejo, mas apenas como a expressão de erros gramaticais, sintáticos ou lexicais. Coracini (2003) apresenta como prova cabal desse fenômeno o fato de um falante estrangeiro ser todo comedido em sua própria língua, mas que faz uso de palavras de baixo-calão na língua estrangeira. A autora exemplifica que, muitas vezes, por mais desenvoltura que se tenha em uma língua estrangeira, ela não é capaz de dizer o que se gostaria ou como seria capaz na língua materna. A partir disso, se pode dizer que a língua materna e a língua estrangeira têm funções diferentes. Coracini (2003) afirma que a língua materna é a língua dos desejos interditados que escapam por meio das metáforas, metonímias, deslizes, lapsos ou chistes. A língua estrangeira, por sua vez, é, segundo a autora, a língua que permite dar vazão a esses desejos interditados, criando a impressão de liberdade, uma vez que se constitui nas zonas de não interdição. Para Coracini (2007), a língua chamada estrangeira tem uma função formadora, uma vez que atua na imagem do sujeito falante e dos outros e na 77

constituição identitária do sujeito do inconsciente. Na mesma direção, Revuz (1998) afirma que o encontro com a língua estrangeira faz vir à consciência algo do elo que se mantém com a língua materna. Coracini (2007) complementa que a língua estrangeira sempre traz consigo consequências indeléveis para a constituição do sujeito: outras vozes, outras culturas, outro modo de organizar o pensamento e outro modo de ver o mundo e o outro. São essas vozes que irão se entrelaçar no inconsciente do sujeito e provocar reconfigurações identitárias e rearranjos subjetivos. De acordo com a autora, esses rearranjos produzem-se porque a língua estrangeira, o outro, penetra como fragmentos que incomodam, desarranjam, confundem e deslocam as bases repousantes da língua materna e da cultura local. Para a autora, uma língua estrangeira constitui um conjunto de fragmentos estranhos que perturbam, confundem e, com isso, colocam em questão o modo de ser e de se posicionar do sujeito. Coracini (2003) ressalta também a importância de se compreender que a língua estrangeira traz consigo, à revelia do aprendiz, uma carga ideológica que o coloca em conflito permanente com a ideologia da língua materna. A estranheza à língua estrangeira, apontada por Coracini (2003), pode provocar reações que vão desde o medo de aprender uma língua estrangeira até uma atração irresistível por essa língua. Na mesma direção, Revuz (1998) afirma que a língua estrangeira vai confrontar o sujeito com um recorte do real em unidades de significação desprovidas de carga afetiva. Dessa forma, o arbitrário do signo linguístico torna-se uma realidade tangível, vivida pelos sujeitos na exultação ou no desânimo. Complementando essa ideia, Melman (1992) aponta para o fato de que há hipóteses que explicam a resistência inconsciente ao aprendizado de uma língua estrangeira pelo medo da perda da identidade ou da perda de si que a outra língua pode implicar. Revuz (1998) reforça essa hipótese ao salientar que o medo pode bloquear aprendizagens, impondo uma barreira ao encontro do outro. De outra feita, Coracini (2007) esclarece que os casos em que aprender uma língua estrangeira constitui uma forte atração para o sujeito podem ser explicados como o desejo do outro, outro que o constitui e cujo acesso é 78

interditado e que ilusoriamente tem o poder de o fazer uno e completo. Essa forte atração pela língua do outro compreende muitos dos casos relatados e analisados nesta pesquisa. Prasse (1997) complementa explicando que esse desejo pelas línguas estrangeiras se alimenta de duas fontes: inveja dos bens e da maneira como gozam os outros e a inquietação de não conseguir encontrar seu próprio lugar na língua materna. É, segundo o autor, o desejo de ser livre, de impor-se a uma ordem por um ato voluntário. A partir da discussão realizada nesta seção, é importante ressaltar que, neste trabalho, língua materna e língua estrangeira caminham juntas, num duplo efeito de sentido, o que vem ao encontro com o defendido por Derrida (2001), que salienta a ideia de que a língua é sempre estrangeira, à medida que provoca estranhamentos, e é sempre materna, conforme, nela, o sujeito inscreve-se. Considero pertinente também reforçar o já mencionado por Coracini (2003), que argumenta que o importante não é se algum dia alguém saberá a língua estrangeira como sabe a materna. A questão é, como afirma a autora, compreender que a inscrição do sujeito numa língua estrangeira é sempre portadora de novas vozes, confrontos e questionamentos que alteram a constituição da subjetividade e modificam o sujeito ao trazer-lhe novas identificações sem que ocorra o apagamento da discursividade da língua materna que o constitui.

4.3

Algumas

considerações

sobre

as

noções

de

bilinguismo,

bilingualidade e sujeito bilíngue

Frente ao exposto sobre língua materna e língua estrangeira, pretendo, nesta parte, discutir as noções de bilinguismo, bilingualidade e sujeito bilíngue. A partir de estudos teóricos, como os de Grosjean (1982), constata-se que falar duas línguas pode esconder conflitos identitários difíceis de serem explicados ou equacionados. Na literatura especializada, muito se tem escrito sobre a questão do bilinguismo e do sujeito bilíngue. Apesar disso, não há, até hoje, uma concepção clara do fenômeno, como se pode observar a seguir.

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A noção de bilinguismo tornou-se cada vez mais ampla e difícil de conceituar a partir do século XX. A primeira vista, definir o bilinguismo não parece ser uma tarefa difícil. De acordo com o dicionário Oxford (2000, p. 117), bilíngue é definido como: “ser capaz de falar duas línguas igualmente bem porque as utiliza desde muito jovem”. Na visão popular, ser bilíngue é o mesmo que ser capaz de falar duas línguas perfeitamente; esta é também a definição empregada por Bloomfield (1935), que define bilinguismo como o controle nativo de duas línguas. Opondo-se a esta visão que inclui apenas bilíngues perfeitos, Macnamara (1967) propõe que um indivíduo 11 bilíngue é alguém que possui competência mínima em uma das quatro habilidades linguísticas (falar, ouvir, ler e escrever) em uma língua diferente de sua língua nativa. Entre estes dois extremos, encontram-se outras definições, como, por exemplo, a definição proposta por Barker e Prys Jones (1998), pela qual levantam algumas questões para a classificação de indivíduos bilíngues: - Devem-se considerar bilíngues somente indivíduos fluentes nas duas línguas? - São considerados bilíngues apenas indivíduos com competência linguística equivalente nas duas línguas? - Proficiência nas duas línguas deve ser o único critério para a definição de bilinguismo, ou o modo como essas línguas são utilizadas também deve ser levado em consideração? De forma semelhante a Barker e Prys (1998), Li Wei (2000) argumenta que o termo bilíngue basicamente pode definir indivíduos que possuem duas línguas. Mas deve-se incluir, entre estes, indivíduos com diferentes graus de proficiência nessas línguas e que, muitas vezes, fazem uso de três, quatro ou mais línguas. Seguindo na mesma direção, Mackey (2000) pondera que, ao definir bilinguismo, devem-se considerar quatro questões:

11 Como explicitado na nota de rodapé número 4 da página 20, embora este estudo tenha como base teóricometodológica a análise de discurso de linha francesa, que faz uso da denominação sujeito. Recorro a outras áreas de conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa. Desse modo, busco esteio na psicología social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociologia (GOFFMAN, 1988) e na filosofia (HABERMAS, 1976) Nesta seção, para me aprofundar na discussão do conceito bilinguismo, recorro a autores que, em suas diferentes áreas de conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa, pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.

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- A primeira é referente ao grau de proficiência, ou seja, o conhecimento do indivíduo sobre as línguas em questão deve ser avaliado. Dessa forma, o conhecimento de tais línguas não precisa ser equivalente em todos os níveis linguísticos. O indivíduo pode, por exemplo, apresentar vasto vocabulário em uma das línguas, mas, nela apresentar pronúncia deficiente. – A segunda questão proposta por Mackey (2000) destaca a função e o uso das línguas, isto é, as situações, nas quais o indivíduo faz uso das duas línguas, também devem ser objeto de estudo ao conceituar o bilinguismo. – A terceira questão levantada diz respeito à alternância de código. Segundo o autor, deve ser estudado como e com qual frequência e condições o indivíduo alterna de uma língua para outra. - E, finalmente, deve também ser estudado para classificação correta do bilinguismo, como uma língua influencia a outra e como uma interfere na outra. Fenômeno este conhecido por interferência. Diferentemente dos teóricos citados, Maher (2007) contempla em sua definição de bilinguismo tanto a dimensão linguística como uma dimensão não linguística: O bilíngue – não o idealizado, mas o de verdade – não exibe comportamentos idênticos na língua X e na língua Y. A depender do tópico, da modalidade, do gênero discursivo em questão, a depender das necessidades impostas por sua história pessoal e pelas exigências de sua comunidade de fala, ele é capaz de se desempenhar melhor em uma língua do que na outra ´- e até mesmo de se desempenhar em apenas uma delas em certas práticas comunicativas (MAHER, 2007, p. 73).

Essa visão multidimensional apresentada por Maher (2007) pode ser alinhada com a proposta de Hamers e Blanc (2000), que distinguem o bilinguismo em duas modalidades: a bilingualidade e o bilinguismo12. Os autores definem a bilingualidade como um estado psicológico de um indivíduo que tem acesso a mais de um código linguístico como meio de comunicação. Por outro lado, o bilinguismo, segundo os autores, refere-se ao estado de uma comunidade linguística na qual duas línguas estão em contato e são utilizadas para a interação. Heye (2003) acrescenta que a bilingualidade pode 12 No original bilinguality e bilingualism, respectivamente.

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ser entendida como os diferentes estágios de bilinguismo, pelos quais os indivíduos, portadores da condição de bilíngue, passam em sua trajetória de vida. De acordo com o autor, “esses estágios são vistos como processos situacionalmente fluídos e definem, de forma dinâmica a bicompetência linguística, comunicativa e cultural nas diferentes épocas e situações de vida” (HEYE, 2003, p. 33-4). Dias e Salgado (2010) complementam essa visão argumentando que cada indivíduo possui um grau de bilingualidade, o qual é mutável e dinâmico de acordo com as situações de bilinguismo que lhe são apresentadas, assim, significando

que a manifestação

da

bilingualidade

está diretamente

relacionada às necessidades apresentadas pelos contextos. A partir dessas considerações, os autores acertadamente propõem que a primeira questão que deve ser considerada para a identificação de quem é ou não bilíngue é: Quem decide que alguém é bilíngue? Essa pergunta remete ao fato de que alguns indivíduos podem se considerar bilíngues, mas talvez, isso não corresponda à verdade. Nesse caso, Dias e Salgado (2010) complementam salientando que a verdade deve ser tomada como a condição que satisfaz os critérios e as exigências da situação ou evento social em questão. Esses autores enfatizam que, antes de se identificar o sujeito como bilíngue, é necessária a identificação do contexto no qual esse bilinguismo se manifesta e a análise de quais fatores relevantes, nesse contexto, devem ser levados em consideração para a identificação do indivíduo bilíngue. Corroborando a essa linha de pensamento, Hamers e Blanc (2000) analisam seis dimensões ao definir o bilinguismo individual ou bilingualidade: competência relativa; organização cognitiva; idade de aquisição; presença ou não de indivíduos falantes da língua estrangeira no ambiente em questão; status das duas línguas envolvidas e identidade cultural. Dentre as seis dimensões propostas, enfocarei, neste estudo, quatro delas, descritas a seguir: A dimensão relacionada à competência relativa prioriza a relação entre as duas competências linguísticas. Obtêm-se, assim, as definições de bilinguismo balanceado e bilinguismo dominante. Considera-se bilíngue balanceado o indivíduo que possui competência linguística equivalente em

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ambas as línguas. Por bilíngue dominante, entende-se o indivíduo que possui competência maior em uma das línguas em questão. A segunda dimensão empregada neste estudo está de acordo com a idade de aquisição da língua estrangeira. São identificados: o bilinguismo infantil, adolescente ou adulto. O bilinguismo infantil subdivide-se: em bilinguismo simultâneo e bilinguismo sequencial. No bilinguismo simultâneo, a criança adquire as duas línguas ao mesmo tempo, sendo expostas as mesmas desde o nascimento. Por sua vez, no bilinguismo sequencial, a criança adquire a língua estrangeira ainda na infância, mas após ter adquirido as bases linguísticas da língua materna, aproximadamente aos cinco anos, conforme aponta Wei (2000). Quando a aquisição da língua estrangeira ocorre durante o período da adolescência, conceitua-se esse fenômeno como bilinguismo adolescente e por bilinguismo adulto, entende-se a

aquisição da língua

estrangeira que ocorre durante a idade adulta. A terceira dimensão, aqui utilizada, dá-se de acordo com o status atribuído a estas línguas na comunidade em questão. A partir disso, o indivíduo desenvolverá formas diferenciadas de bilinguismo. A primeira delas é o bilinguismo aditivo, na qual as duas línguas são suficientemente valorizadas no desenvolvimento cognitivo da criança e a aquisição da língua estrangeira ocorre, consequentemente, sem perda ou prejuízo da língua materna. No entanto, na segunda forma de aquisição, denominada bilinguismo subtrativo, a língua materna é desvalorizada no ambiente infantil, gerando desvantagens cognitivas no desenvolvimento da criança e, neste caso, durante a aquisição da língua estrangeira, ocorre perda ou prejuízo da língua materna. Finalmente, a quarta dimensão, que emprego neste estudo, trata de como indivíduos bilíngues podem ser diferenciados em termos de identidade cultural,

obtendo-se

bilíngues

biculturais,

monoculturais,

aculturais

e

desculturais. Como bilinguismo bicultural, entende-se o indivíduo bilíngue que se identifica positivamente com os dois grupos culturais e é reconhecido por cada um deles. No bilinguismo monocultural, o indivíduo bilíngue identifica-se e é reconhecido culturalmente apenas por um dos grupos em questão. Deve ser ressaltado que um indivíduo bilíngue pode ser fluente nas duas línguas, mas se manter monocultural. Já acultural é considerado o indivíduo que renuncia sua 83

identidade cultural relacionada à sua língua materna e adota valores culturais associados ao grupo de falantes da língua estrangeira. Finalmente, o bilinguismo descultural dá-se quando o indivíduo bilíngue desiste de sua própria identidade cultural, mas falha ao tentar adotar aspectos culturais do grupo falante da língua estrangeira. De acordo com Hamers e Blanc (2000), deve-se ressaltar que concepções unidimensionais apresentam alguns pontos desfavoráveis, pois estas definem o indivíduo bilíngue apenas em termos de competência linguística, ignorando outras importantes dimensões. Outro ponto em que tais concepções são falhas é que estas não levam em consideração diferentes níveis de análises, sejam elas: individuais, interpessoais ou sociais. Finalmente, considera-se o ponto mais discutível dessas concepções o fato de não serem embasadas por teorias de comportamento linguístico. Hamers e Blanc (2000) consideram como princípios básicos de comportamento linguístico: a constante interação de dinamismos sociais e individuais da língua, os complexos processos entre as formas de comportamento linguístico e as funções em que são utilizados, a interação recíproca entre língua e cultura autorreguladores que caracterizam todos os comportamentos de ordem elevada - e consequentemente a língua e a valorização que é central para toda esta dinâmica de interação. García (2009), por sua vez, questiona o proposto por Hamers e Blanc (2000), ao afirmar que os modelos de bilinguismo aditivo e subtrativo têm, em seu início e em seu fim, sujeitos monolíngues, uma vez que nomeiam uma língua claramente como a primeira e a língua adicional13 como a segunda, criando duplos monolíngues e, dessa forma, não respondendo mais à grande complexidade linguística do século 21. A autora argumenta que o bilinguismo aditivo, por exemplo, enxerga as práticas linguísticas do sujeito a partir de uma visão monoglóssica e cria, dessa maneira, espaços monolíngues protegidos, uma vez que defende a separação completa das línguas. Ilustrando essa ideia, Cummins (2000) argumenta que o monolinguismo, a partir dessa perspectiva, pode ser comparado a um uniciclo e, com isso, o bilinguismo seria 13 García (2009) advoga a favor do conceito de língua adicional para se referir à língua estrangeira, uma vez que tanto a língua materna quanto a estrangeira são constitutivas do sujeito e a nomenclatura língua estrangeira ou segunda língua podem transmitir a ideia de exterioridade.

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erroneamente visto como dois uniciclos que podem ser, a qualquer momento, pedalados de forma independente, como mostra a figura 1 a seguir: García (2009) complementa que, no século 21, é necessário conceituar bilinguismo de modo muito além do proposto por Hamers e Blanc (2000). É necessário, segundo a autora, de rodas que girem, expandam-se e se contraiam, que sustentem uma a outra e sejam capazes de moverem-se em direções diversas. Na verdade, faz-se necessário, mais de duas rodas, acrescenta García (2009). A autora propõe que os conceitos de bilinguismo aditivo

e

subtrativo

sejam

reconsiderados

a

partir

de

uma

visão

heteroglóssica, que não vê essas línguas como separadas completamente, e, sim, considere que o sujeito se constitui na imbricação de ambas. Nesse sentido, Cummins (1984) propõe o que denominou de Common Underlying Proficiency, como mostra a Figura 1. A ideia é de que as línguas não estão armazenadas separadamente, pelo contrário as informações de uma interagem com a outra.

VISÃO MONOGL ÓSSICA DE LÍNGUA COMMON UNDERLYING PROFICIENCY

Figura 1: Common Underlying Proficiency Fonte: Cummins (1984)

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A partir disso, García (2009) propõe os conceitos de bilinguismo recursivo e dinâmico14. O recursivo, segundo a autora, refere-se a casos nos quais o bilinguismo é desenvolvido após as práticas linguísticas de uma comunidade terem sido suprimidas. Nesses casos, o desenvolvimento da língua materna da comunidade não pode ser considerado uma simples adição que tem início em um ponto monolíngue, uma vez que a língua ancestral continua a ser utilizada em cerimônias tradicionais e por alguns membros da comunidade em diferentes graus. De acordo com García (2009), o bilinguismo, nesses casos, é recursivo porque alcança novamente algumas práticas linguísticas ancestrais, enquanto elas são redirecionadas para novas funções e, com isso, ganham ímpeto para serem projetadas no futuro. O bilinguismo dinâmico, por sua vez, refere-se a práticas linguísticas que são múltiplas e se ajustam ao terreno multilíngue e multimodal do ato comunicativo. Esse modelo, segundo García (2009), está relacionado com o modo como o Language Policy Division of the Council of Europe15 define o conceito de plurilinguismo como a habilidade “de usar línguas para os propósitos de comunicação e para participar de ações interculturais, nas quais a pessoa, vista como agente social, tem proficiência, em variados graus, em várias línguas e experimenta diversas culturas”(COUNCIL OF EUROPE, 2000, p. 168). García (2009) complementa salientando que o bilinguismo dinâmico se refere aos variados graus de habilidade e usos de múltiplas práticas linguísticas necessárias para se cruzar fronteiras físicas e virtuais. A autora criou uma representação gráfica para esse conceito exposta a seguir:

14 O conceito de bilinguismo recursivo será apenas citado, uma vez que, neste trabalho, trato de situações de bilinguismo dinâmico. 15 Divisão que tem sua base em Strasbourg, França, sendo responsável pela concepção e implementação de iniciativas para o desenvolvimento e análise de políticas de educação linguística destinadas a promoverem diversidade linguística e plurilinguismo. Os programas da divisão atendem às necessidades de todos os 48 Estados que ratificaram a Convenção Cultural Europea.

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BILINGUISMO DINÂMICO

Figura 2: Bilinguismo dinâmico Fonte: García (2009)

García (2009) argumenta que a progressão dos modelos de bilinguismo subtrativo e aditivo para os modelos recursivo e dinâmico é ideológico, uma vez que reconhece o valor de discursos heteroglóssicos e de múltiplas vozes. Segundo a autora, práticas e discursos heteroglóssicos não apenas afirmam a inter-relação funcional de linguar bilingualmente16, mas também quebram o ciclo de poder que sustenta práticas monolíngues como dominantes. Linguar bilingualmente ou translinguar passa a ser considerado a norma, uma vez que falantes começam a ser vistos como sujeitos que ocupam diferentes pontos em um contínuo bilíngue, ao invés de partirem de uma totalidade monolíngue. Nota-se que apesar de as concepções de bilinguismo apontarem para diversos elementos-chave, como grau de competência linguística, identidade cultural e a sensação ou não de pertencimento, não conseguem explicar o conflito/sofrimento experimentado por diversos sujeitos em sua condição bilíngue. É, nesse ponto, que julgo valiosa a introdução da perspectiva derridiana, tal como se apresenta no ensaio “O Monolinguismo do Outro” (2001). Nessa obra, que não trata exclusivamente da questão do bilinguismo, Derrida formulou alguns princípios gerais da relação entre ser humano, língua e identidade.

16 No original, language billingually ou translanguaging, como utilizado por García (2008), que usa language como verbo to language.

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O autor não faz uma distinção categórica entre as línguas materna e estrangeira, no sentido de que seria possível atribuir ao falante nativo uma determinada identidade ou um determinado conhecimento linguístico que seria vedado ao falante supostamente não nativo. Na ótica derridiana, há apenas línguas, das quais o falante pode apropriar-se em maior ou menor grau, mas que ele nunca é capaz de possuir por completo. Em consequência, também, não há como sustentar os critérios que costumam ser usados para descrever a condição bilíngue apresentada anteriormente. Nota-se que, nessa ótica, não se distingue o bilinguismo de outras formas de domínio linguístico, dado que todos os falantes são considerados indivíduos plurilíngues e que desejam alcançar um idioma absoluto que se apresenta mais como promessa, como aspiração última do ser humano, cujo acesso, no entanto lhe é interditado, uma vez que sempre, em sua fala, há o vestígio do outro. Por isso, na perspectiva derridiana, não se fala várias línguas apenas quando mesclamos línguas nacionais, mas sempre, visto que é preciso se apropriar da fala do outro para poder significar. Essa sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as pessoas construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. O autor destaca dois tipos de próteses: (i) a procura de história e de filiação, isto é, a recuperação ou invenção de uma narrativa da história familiar e (2) a exigência compulsiva de uma pureza da língua, ou seja, a preocupação exacerbada com a correção linguística. Esta seção foi organizada em três partes. Inicialmente, enfatizei o elo língua, sujeito e identidade, apoiando-me em Revuz (1998), que tem como base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem. A seguir, tive como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira atribuída à língua. Para tanto, apoiei-me nas pesquisas de Coracini (2003, 2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada; nos estudos psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que explicam o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da constituição do Eu (LACAN, 1966/1998), e no filósofo Derrida (2001). Na terceira parte, discuti a evolução

dos

conceitos

de

bilinguismo,

partindo

de

concepções

unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e 88

Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorri também sobre concepções teóricas que contemplam em sua definição de bilinguismo, tanto a dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o conceito de bilingualidade, e García (2009) e Cummins (1984; 2000), que advogam a favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzi a perspectiva derridiana (2001), que discute a construção de próteses por bilíngues. Esta seção marca o término da fundamentação teórica e teve como objetivo descrever os pilares sobre os quais este trabalho se apoia. Marca também o início da descrição dos aspectos metodológicos, que devem possibilitar uma melhor compreensão de como esta pesquisa foi desenvolvida.

89

90

PARTE II – DO QUE SE DESCOBRIU NO CAMINHO Esta segunda parte da pesquisa está organizada nas duas seções, a seguir: Na primeira, Trajetória, defino a visão de Linguística Aplicada (doravante LA) compreendida, neste trabalho, por meio da discussão dos princípios filosóficos que a norteiam. Busco, nesse intuito, esteio em Moita Lopes (2006) para inserir esta pesquisa numa perspectiva de LA contemporânea. Em seguida, discorro sobre a escolha metodológica utilizada nesta pesquisa, a AD francesa, para a manutenção da coerência com os princípios teóricos e filosóficos que dão embasamento a este trabalho. Por fim, descrevo o contexto de pesquisa e a seleção dos dados utilizados, assim como os procedimentos de análise empregados. Na segunda seção, Entre ditos e não ditos, retomo como se deu a coleta de dados neste trabalho, assim como as perguntas de pesquisa que o norteiam. A seguir, exponho a análise do corpus que foi organizada em três partes: Na primeira parte, Entre o desejo da completude e a falta do sujeito, relato duas representações da língua portuguesa e da língua inglesa localizadas nas falas dos sujeitos desta pesquisa: o português como língua difícil e complexa; e o inglês como língua fácil e prática. Na segunda, Entre o mito, o possível e o desejo do outro, procuro mostrar a irrupção de discursos em torno da identidade e apontar a existência de estigma relacionado ao fato de ser brasileiro e de um sentimento de inferioridade por conta de aspectos na produção oral, o sotaque, que se diferenciam dos de falantes oriundos de países de língua inglesa. A terceira parte, Entre as diversas concepções do eu, subdivide-se em três subseções: - Da importância, que relata recortes discursivos que revelam a posição dos sujeitos perante as línguas que os constituem a partir da pergunta: “Qual língua você considera mais importante? Por quê?”. 91

- De quem sou, que apresenta as impressões dos sujeitos participantes perante a questão: “Você se considera bilíngue? Por quê?”. - Das transformações, que descreve as mudanças percebidas pelos bilíngues a partir de sua condição de viver entre línguas.

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Trajetória É inútil procurar encurtar caminho e querer começar, já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver nunca se pode chegar antes17.

17 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 213.

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SEÇÃO 1 Trajetória Nesta seção, defino a visão de Linguística Aplicada (LA) compreendida, neste trabalho, por meio da discussão dos princípios filosóficos que a norteiam. Em seguida, discorro sobre a escolha metodológica utilizada aqui para a manutenção da coerência com os princípios teóricos e filosóficos que dão embasamento a este trabalho. Por fim, descrevo o contexto de pesquisa e a seleção dos dados utilizados, assim como os procedimentos de análise empregados.

1.1 A LA e os princípios filosóficos que norteiam esta pesquisa

Nesta seção, pretendo discutir porque entendo que esta pesquisa encontra-se

inserida

numa

perspectiva

de

Linguística

Aplicada

Contemporânea. Segundo Moita Lopes (2006), uma das preocupações dos linguistas aplicados contemporâneos é com as novas teorizações calcadas em novos modos de entender a vida social, o que inaugura não apenas um novo paradigma social e político, mas também um novo paradigma epistemológico, isto é, uma reinvenção das formas de produzir conhecimento. Ao se perguntar se o que mudou foi o mundo social ou a forma de produzir conhecimento sobre ele, Moita Lopes (2006) recorre a autores como Bauman (2005), Giddens, Beck e Lash (1997) e Denzin (1997) para refletir sobre esta questão. Argumenta que, em decorrência das mudanças de natureza social, cultural, econômica e tecnológica nas sociedades, que ocorreram no mundo, a forma de produção de conhecimento foi alterada. No entanto,

o

questionamento

das formas tradicionais de

produção

de

conhecimento ocidentalista e positivista incita um novo modo de produzir conhecimento com implicações nas mudanças da sociedade. Boaventura Santos (2001) salienta que a transformação nos modos de conhecer ocorre 95

não apenas porque a sociedade está diferente, mas porque estas mudanças exigem processos de produção de conhecimento que impliquem em mudanças na vida social. Indo mais além, Moita Lopes (2006) discorre sobre o impacto dos avanços tecnológicos e da mídia em nossa sociedade. As novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes globais de comunicação e têm provocado modificações no estilo de conduta, atitudes, costumes e tendências das populações mundiais. Dessa forma, as pessoas estão cada vez mais expostas a uma multiplicidade de projetos identitários. Nesse sentido, Hall (2005) afirma que a “identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2005, p. 12). A fim de traçar um quadro das implicações dessas percepções da vida social atual e dos modos de produzir conhecimento, nos dias de hoje, para uma LA contemporânea, Moita Lopes (2006) sugere que a LA do século XXI seja pautada em quatro pontos básicos: 1. a imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça; 2. a essencialidade da LA explodir os limites entre teoria e prática; 3. a necessidade de mudar o sujeito da LA; 4. a importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder. Farei, a seguir, algumas reflexões a respeito de cada um dos pontos elencados com o propósito não só de esclarecê-los, mas também de localizálos em minha pesquisa. Quanto à imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça, Moita Lopes (2006) sugere que esta seja entendida não mais como uma disciplina, mas sim como uma área de estudos em que pesquisadores, oriundos de diferentes disciplinas, convirjam em um processo transdisciplinar de produção de conhecimento. Outro ponto central é a necessidade de entender a LA como uma área de indisciplina que se preocupa em compreender a questão da pesquisa na perspectiva de várias áreas de conhecimento, com o objetivo de integrá-las.

96

Nesta vertente, minha pesquisa rejeita o enquadramento em uma disciplina apenas ou a subordinação à linguística como disciplina mãe. Ao contrário, as teorizações aqui presentes pretendem estar mais próximas do que Moita Lopes (2006) propõe como uma linguística aplicada indisciplinar, isto é, que transgride os limites disciplinares fechados. Como, nesta pesquisa, entendo identidade como algo que não pode ser definido como fixo ou preestabelecido, e sim como um processo em constante mudança, é necessário, para entender a identidade do sujeito, conhecer sua ecologia, revelada implícita ou explicitamente em seu discurso e em suas ações, o que implica ir muito além de estudos linguísticos. Para se atingir uma compreensão mais ampla da vida social vivida “pelas pessoas de carne e osso no dia-a-dia” (MOITA LOPES, 2006, p.88), é preciso entender a complexidade das relações envolvidas nas práticas sociais. É preciso revelar sua historicidade, os jogos de poder, os interesses, os sentidos dos envolvidos na ação. Para isso, torna-se imprescindível acessar conhecimentos desenvolvidos por outras disciplinas. Diante desse desafio, optei pelo viés teórico que me possibilitasse dialogar e compartilhar questões com várias disciplinas na abordagem do mundo e da vida desses sujeitos sociais situados em um contexto sócio-histórico, político e ideológico específico, como demonstra a figura a seguir:

97

UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR PARA ANÁLISE DOS DADOS

Norton (1995) Bagno (2002) Coracini (1999; 2003; 2007) Revuz (1998) García (2009) Cummins (1984; 2000)

Lacan (1966;1972-73) Melman (1992)

Moscovici (1984;2003) Jodelet (1990;2001) Abric (2000) Ciampa (1984;1990;2004)

Goffman (1988) Foucault (1969;1970;1979;1987; 1999) Hall (2005) Althusser (1985;1996)

Psicanálise Estudos da linguagem

Psicologia Social

ANÁLISE DOS DADOS AD Francesa

Sociologia

Pêcheux (1966; 1969; 1975; 1993; 1997; 2002) Orlandi (1983; 1989; 1993; 1996; 1998; 1999; 2005; 2006)

Filosofia Derrida (2001)

Figura 3: Uma visão transdisciplinar para análise dos dados Fonte: Dados da pesquisa

Vale ressaltar que a AD francesa, base teórico-metodológica deste estudo, articula-se principalmente com três áreas de conhecimento: a psicologia/psicanálise



releitura

de

Freud

por

Lacan;

as

ciências

sociais/marxismo – releitura de Marx por Althusser; e a linguística – releitura de Saussure por Pêcheux, formando, dessa forma, uma espécie de tríplice aliança. Porém é fundamental compreender que, embora apresente áreas de contato com essas disciplinas, Orlandi (2006) explica que a AD francesa pressupõe as mesmas à medida que se constitui da relação de três regiões científicas: a teoria da ideologia, a teoria da sintaxe e da enunciação, e a teoria do discurso como determinação histórica dos processos de significação, tudo isso atravessado por uma teoria psicanalítica do sujeito. Vale frisar, ainda, que 98

é necessário entender que a AD francesa não pretende ser nem uma disciplina autônoma nem uma disciplina auxiliar, o que pretende é trabalhar o objeto discursivo

como

sendo

um

objeto-fronteira

nos limites das divisões

disciplinares, sendo constituída simultaneamente de uma materialidade linguística e de uma materialidade histórica. Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que é inapropriado conceituar a AD francesa como uma disciplina interdisciplinar, como alguns teóricos insistem em fazer. A esse respeito, Orlandi (1996) atribui à AD francesa a condição de disciplina de entremeio, uma vez que sua constituição se dá às margens das chamadas ciências humanas, entre as quais, ela opera um profundo deslocamento de terreno. Mais uma vez, é importante reiterar que os conceitos que a AD francesa traz de outras áreas, como a psicanálise, o marxismo, a linguística e o materialismo histórico, ao integrarem-se ao corpo teórico do discurso, deixam de ser aquelas noções com os sentidos estritos originais e se ajustam à especificidade e à ordem própria da rede discursiva. Quanto à essencialidade da LA explodir os limites entre teoria e prática, Moita Lopes (2006) refere que a LA precisa, além de produzir teorizações de caráter híbrido, não fazer distinção entre teoria e prática, rejeitando, assim, a herança deixada pela ciência moderna: a ruptura entre o conhecimento científico e o conhecimento do senso comum (SANTOS, 2001), a ilusão da neutralidade científica e a hierarquização do saber. Sendo assim, minha pesquisa abre espaço para as vozes que foram histórica, social e culturalmente silenciadas pelo modelo totalitário de racionalidade científica. No que concerne à necessidade de reescrever o sujeito da LA, Moita Lopes (2006) afirma que este deve ser visto não mais como uno, homogêneo, racional, mas como um sujeito heterogêneo, múltiplo, contraditório e construído dentro de diferentes discursos. Esta afirmação vai ao encontro de meu objetivo de pesquisa, que é o de estudar o funcionamento da linguagem na constituição da subjetividade dos sujeitos, desse modo, apontando deslocamentos identitários nos discursos de falantes de mais de uma língua e que, dessa forma, são atravessados por traços culturais muitas vezes em conflito. Além disso, o sujeito da AD francesa é um sujeito essencialmente histórico, 99

ideológico e heterogêneo, interpelado pelo inconsciente constituído na e pela linguagem e, com isso, descentrado, clivado, fragmentado e desejante. Com relação à importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder, Moita Lopes (2006) salienta a importância de pesquisas que têm a ética como horizonte norteador. Dessa forma, as reflexões a respeito das noções de ética contribuem para a realização de pesquisas responsáveis que não prejudiquem os próprios pesquisados, como ocorre neste trabalho. Somando-se a isso, faz-se necessário, ao término desta reflexão, salientar que minha pesquisa tem como foco apontar deslocamentos identitários nos discursos de falantes de mais de uma língua, o que vai diretamente ao encontro da afirmação de Moita Lopes (2006) ao definir LA contemporânea: Não surpreende, portanto, que na LA, como em outras áreas, as questões identitárias estejam interessando a tantos pesquisadores exatamente quando se problematiza a importância de pensar outras sociabilidades para a vida social, o que é o principal projeto político da atualidade (MOITA LOPES, 2006 p.104).

1.2 A análise de discurso de linha francesa

Ao reivindicar um campo específico no domínio da linguística para si, a AD francesa, segundo Pêcheux (1997), não apenas desestabiliza o sentido de língua, como também rompe com a proposta metodológica de Saussure: a definição do objeto e a metodologia de análise. Além disso, como descrito anteriormente, ao vincular a linguística a duas outras áreas do saber, à psicanálise e ao marxismo, a AD passa a ser vista como uma disciplina de entremeio (ORLANDI, 1996), uma vez que não é absorvida nem pelo marxismo nem pela psicanálise. Nesse sentido, Possenti (2005) enumera as rupturas que a AD francesa causou no domínio da linguística: do campo da interpretação, da língua, da pragmática, do texto, das condições de produção, do sentido, da enunciação, do acontecimento, do interdiscurso e do sujeito. Essas rupturas promovem uma tensão na metodologia e na forma de observar e analisar a língua. Logo, podese considerar que a metodologia da AD francesa está posta seja na forma de 100

pressuposto, seja na forma de implícitos. Isso equivale a dizer que a AD francesa é um campo de pesquisa que não possui uma metodologia pronta, ao lançar mão dos elementos constitutivos de seu arcabouço teórico, o analista do discurso estará, concomitantemente, alçando seus dispositivos metodológicos. Nessa vertente, não há o enquadramento de dados em esquemas prontos. A proposta metodológica é uma construção do analista que tem o papel de problematizar e colocar questões no confronto com os dados. Procura-se, como salienta Orlandi (2009), realizar uma “exausitividade vertical” (ORLANDI, 1999, p. 62) como dispositivo analítico considerando os objetivos da pesquisa que podem incluir os efeitos de memória, da história, as ideologias, as heterogenedidades e os não ditos. Em suma, pode-se afirmar que, na AD francesa, a metodologia de análise não consiste em uma leitura horizontal do texto, do início ao fim, na tentativa de compreendê-lo, uma vez que se parte do pressuposto de que todo discurso é incompleto. De outra feita, realiza-se uma análise em profundidade, como acontece na relação descrição-interpretação, pela qual se faz possível verificarem-se as posições assumidas pelos sujeitos, as imagens e os lugares construídos

a

partir

de

regularidades

discursivas

evidenciadas

nas

materialidades. Enfim, o analista faz uso de procedimentos teóricos que subsidiam sua análise de acordo com o enfoque da pesquisa. Isto é, ao analisar o objeto, é necessário recorrer novamente à teoria e, nesse vai e vem entre a descrição e a interpretação, dá-se o procedimento analítico da AD francesa.

1.3 A constituição do corpus e os instrumentos de coleta

Metodologicamente, este trabalho foi realizado a partir do que Courtine (1981), ao trabalhar com corpus de pesquisa na Análise de Discurso, define como corpus experimental. Para o autor, corpus experimental é aquele produzido a partir de enquetes empíricas, como formulários, questionários e entrevistas. Nessa concepção de corpus experimental, há o corpus previamente preparado, como acontece neste estudo, no qual faço uso do 101

questionário (vide Apêndice A) a fim de coletar textos escritos dentro de um roteiro específico. Frente a essas definições, o corpus deste estudo é um corpus experimental e previamente preparado, uma vez que, ao elaborar as perguntas do questionário, tinha como objetivo responder minhas perguntas de pesquisa. Segundo Nunan (1992), o questionário pode ser fechado ou aberto. No questionário fechado, as possibilidades de resposta são determinadas pelo pesquisador; ao passo que, no aberto, o participante tem a possibilidade de escolher o que dizer e como dizer. Apesar do questionário fechado ser mais fácil para a coleta e análise, optei pelo tipo aberto, pois para levantar as representações desses participantes acerca de quem são e das línguas que os constituem se fez necessário criar um espaço para que compartilhassem narrativas de quem são ou esperavam ser. A parte I do questionário teve como objetivo traçar o perfil dos participantes que compõem este estudo. As perguntas 1, 2 e 3, da segunda parte, tinham como objetivo verificar quais línguas eram utilizadas pelos participantes18, se as utilizavam em alguma das esferas de suas vidas19, e qual tipo de bilinguismo desenvolveram, simultâneo ou sequencial. As demais perguntas foram formuladas a fim de levantar as representações dos sujeitos sobre sua condição bilíngue, suas línguas e os povos com quem se relacionam. Vale ressaltar que, no decorrer da análise, constatei que não se fazia necessário utilizar todas as perguntas do questionário para responder às minhas perguntas de pesquisa. Com isso, as respostas obtidas para as perguntas 4 e 11 do questionário não foram utilizadas na análise por não estarem relacionadas às perguntas de pesquisa. A seguir, retomo os objetivos deste estudo e as perguntas de pesquisa referentes aos mesmos. Relaciono, também, as perguntas realizadas no questionário utilizado.

18 Apenas, ao longo do estudo, optei por trabalhar apenas com falantes de inglês e português. Opção que justifico na introdução e a seguir, no item 1.4 desta seção. 19 Essa é uma condição necessária para ser participante desta pesquisa. Falantes de inglês e português, que não utilizavam as duas línguas em suas interações diárias em alguma esfera de suas vidas, não se tornaram participantes desta pesquisa.

102

Quadro 1 - Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário

OBJETIVOS

PERGUNTAS DE

PERGUNTAS DO

PESQUISA

QUESTIONÁRIO

1) Estudar a imbricação da língua

1) Como é a relação desses sujeitos

Qual

materna e da língua estrangeira

com as línguas que os constituem?

importante para você? Por quê?

de

suas

línguas

é

mais

na constituição da subjetividade

Qual de suas duas línguas você mais

de sujeitos que falam mais de

aprecia? Por quê?

uma língua.

2)

Apontar

deslocamentos

2) Como as identidades desses

Você se considera bilíngue? Por

identitários nos discursos desses

sujeitos foram se (trans)formando na

quê?

sujeitos.

sua relação com as línguas? O fato de se comunicar em mais de uma língua lhe modificou como indivíduo?

Você se preocupa com seu sotaque? Por quê?

3) Rastrear o olhar do outro na

3) Como esses sujeitos ao se

constituição

enunciarem constroem imagens de si

sujeitos.

identitária

desses

e do Outro?

Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às línguas que utiliza? Como você acha que é visto por estes grupos sociais? Você se preocupa com seu sotaque? Por quê?20

Fonte: Dados da Pesquisa

Um comentário pertinente é que, ao observar os questionários preenchidos, notei que as respostas que obtive eram por demais completas, com muitos comentários que foram essenciais à minha análise. Com isso, não foi necessária a realização de algum tipo de entrevista como julguei, a princípio, que seria preciso. Do conjunto dos dezoito questionários, senti a necessidade de contatar quatro participantes para maiores esclarecimentos a respeito de respostas a questões específicas. Esses contatos foram feitos por

20 As repostas a essa pergunta forneceram-me dados para responder a duas de minhas perguntas de pesquisa: Como as identidades desses sujeitos foram se (trans)formando na sua relação com as línguas? e Como estes sujeitos ao se enunciarem constroem imagens de si e do Outro?

103

e-mail e, na análise, são diferenciadas as respostas obtidas por meio do questionário pela sigla CP – contato posterior.

2.4 Os participantes da pesquisa

Primeiramente, a seleção dos participantes foi definida obedecendo a quatro critérios: (i) ser brasileiro; (ii) ser falante de português e de inglês; (iii) utilizar ambas as línguas em alguma esfera de suas vidas, por exemplo, profissional, familiar, entre outras; e, (iv) ser escolarizado, uma vez que responderiam ao questionário por escrito. Inicialmente, coletei 98 questionários de sujeitos bilíngues constituídos por línguas diversas: coreano, alemão, espanhol, sérvio, entre outras. Porém, por uma questão metodológica e temporal, detive-me, neste trabalho, a sujeitos bilíngues falantes de português e de inglês. Ademais, a língua inglesa tem uma história de imposição por razões políticas e materiais em muitos países do terceiro mundo, o que implica na constituição identitária de seus falantes. Nesse sentido, Vian Junior (2008) acrescenta que, inicialmente, pela primazia econômica dos Estados Unidos e também com o desenvolvimento científico e tecnológico liderado pelo país, o inglês passou a ser a língua da ciência e da tecnologia e, também por questões políticas e econômicas, passou a ser a língua utilizada para comunicação internacional. A partir dessa perspectiva, apoio-me em Canagarajah (1999) para afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do inglês, esses sujeitos fazem também uma opção ideológica e social, ainda que de modo inconsciente. Outro motivo que me levou, neste momento, a delimitar meus sujeitos de pesquisa desse modo é a crescente propagação da língua inglesa no Brasil. Observa-se, como aponta Marcelino (2009), que o crescimento do bilinguismo no Brasil evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares. O autor aponta também para o fato de que se, anteriormente, os pais escolhiam as 104

escolas para seus filhos com base na proposta de ensino e a necessidade de se aprender outra língua era suprida por meio de institutos de idiomas, atualmente, essa escolha é, muitas vezes, definida pela importância dada à língua inglesa nas escolas regulares. Frente a esse panorama, percebe-se, no Brasil, a disseminação das escolas bilíngues, de programas de intensificação de língua inglesa e de escolas de idiomas. A partir desse critério, selecionei, dentre os questionários obtidos, um conjunto de nove questionários respondidos por bilíngues simultâneos21 e nove questionários respondidos por bilíngues sequenciais22. Optei por organizar os participantes desta pesquisa desse modo para que fosse possível contrastar e comparar as respostas obtidas por esses dois tipos de sujeitos bilíngues. Os bilíngues simultâneos, aqui representados por B, que participaram desta pesquisa foram: B1: 24 anos, professora de inglês em um instituto de idiomas. O pai é americano e a mãe é brasileira. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. B2: 27 anos, professora em um colégio regular. O pai é americano e a mãe é brasileira. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. B3: 31 anos, coordenadora de uma escola de idiomas. Os pais são brasileiros. Mudou-se, ainda na primeira infância, para Irlanda, onde foi escolarizada. Reside atualmente no Brasil, na cidade de Santo André. B4: 57 anos, diretora de uma escola de idiomas. A família é americana. Estudou e morou entre os EUA e o Brasil até completar a universidade. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. B5: 33 anos, trabalha no setor administrativo, em uma rede de supermercados. Os pais são americanos, mas nasceu e morou no Brasil, por um longo período. Reside atualmente nos EUA, em Miami. B6: 37 anos, professor universitário. Aprendeu a língua portuguesa em casa, com a família, que é brasileira e teve o inglês como sua língua de 21 Entende-se, neste trabalho, por bilíngues simultâneos, indivíduos que adquiriram as duas línguas ao mesmo tempo, sendo expostos às mesmas desde o nascimento (HAMERS; BLANC, 2000). 22 Os bilíngues sequenciais, por sua vez, adquiriram a língua estrangeira após terem adquirido a base linguística da língua materna (HAMERS; BLANC, 2000).

105

instrução a partir dos dois anos de idade, quando ingressou em uma escola americana. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. B7: 34 anos, professora em uma escola bilíngue inglês/português. Aprendeu o português em casa e o inglês em uma escola internacional, na qual ingressou ainda na primeira infância. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. B8: 41 anos, dona de casa. Aprendeu o português em casa e o inglês em uma escola internacional, quando ingressou ainda na primeira infância. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. B9: 43 anos, empresária. Aprendeu o português com a família brasileira e o inglês ao morar nos EUA, quando criança. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. A seguir, exponho um quadro no qual essas informações foram organizadas para melhor visualização.

106

Quadro 2: Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa Participante

Idade

Profissão

Origem do pai

Origem da mãe

Como aprendeu inglês

Como aprendeu português

Residência

B1

24

Americano

Brasileira

B2

27

Americano

Brasileira

Família do pai Família do pai

B3

31

Professora de inglês Professora de área geral Coordenadora de uma escola de idiomas

Brasileiro

Brasileira

Foi escolarizada na Irlanda, onde residia

Família da mãe e escola Família da mãe e escola Família do pai e da mãe

São Paulo – Brasil São Paulo – Brasil São Paulo – Brasil

B4

57

Diretora de escola

Americano

American a

Com a família dos pais.

São Paulo – Brasil

B5

33

Assistente administrativo

Americano

American a

B6

37

Professor universitário

Brasileiro

Brasileira

B7

34

Professora em uma escola bilíngüe Dona de casa

Brasileiro

Brasileira

Com a família dos pais e na escola Com a família dos pais Com a família dos pais Com a família dos pais Com a família dos pais

Viveu entre os EUA e o Brasil até completar a universidade Viveu no Brasil por um longo período Estudou em uma escola

B8

B9

41

43

Empresária

Brasileiro

Brasileiro

Brasileira

Brasileira

Miami, EUA

São Paulo – Brasil

internacional

Estudou em uma escola

São Paulo – Brasil

internacional

Estudou em uma escola

São Paulo – Brasil

internacional

Residiu nos EUA quando criança

São Paulo – Brasil

Fonte: Dados da Pesquisa.

Os bilíngues sequenciais, que aqui serão representados por S, que participaram desta pesquisa foram: S1: 34 anos, tradutor inglês/português. Família brasileira. Aprendeu inglês em programas para estrangeiros nos Estados Unidos, onde residiu por cinco anos até a conclusão de seu mestrado. Reside atualmente no Brasil, na cidade de Guarulhos. S2: 28 anos, doutorando em estudos literários na The City University of New York. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas. Reside atualmente nos EUA, na cidade de Nova Iorque. S3: 32 anos, professora de inglês em uma escola de idiomas. Família brasileira. Aprendeu inglês em escola de idiomas na infância e em interações 107

sociais a partir da adolescência. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. S4: 28 anos, tradutora. Família brasileira. Aprendeu inglês estudando no Canadá. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. S5: 29 anos, dona de casa. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas e intercâmbio para Nova Zelândia. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São José dos Campos. S6: 35 anos, biomédico. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas e viagens para o exterior. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. S7: 27 anos, professora em uma escola internacional. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas e viagens para o exterior. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. S8: 38 anos, pedagoga. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas e intercâmbio para os EUA. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. S9: 29 anos, professora em uma escola internacional. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas e intercâmbio para os EUA. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo. A seguir, exponho um quadro no qual essas informações foram organizadas para melhor visualização.

108

Quadro 3: Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa Participante

Idade

Profissão

Origem do pai

Origem da mãe

S1

34

Tradutor

Brasileiro

Brasileira

S2

28

Brasileiro

Brasileira

S3

32

Doutorando em Estudos Literários na The City University of New York Professora de inglês

Brasileiro

Brasileira

S4

28

Tradutora

Brasileiro

Brasileira

S5

29

Dona de casa

Brasileiro

Brasileira

S6

35

Biomédico

Brasileiro

Brasileira

S7

27

Professora em uma escola internacional

Brasileiro

Brasileira

S8

38

Pedagoga

Brasileiro

Brasileira

S9

29

Professora em uma escola internacional

Brasileiro

Brasileira

Como aprendeu inglês Programas para estrangeiros nos EUA, onde residiu por 5 anos até concluir o mestrado Cursos de idiomas

Como aprendeu português Com a família no Brasil

Residência

Com a família no Brasil

New York, EUA

Cursos de idiomas e com amigos no exterior Estudou no Canadá

Com a família no Brasil

São Paulo, Brasil

Com a família no Brasil Com a família no Brasil

São Paulo, Brasil

Cursos e idiomas e intercâmbio para Nova Zelândia Cursos de idiomas e viagens para o exterior Cursos de idiomas e viagens para o exterior Cursos de idiomas e intercâmbio para o exterior Cursos de idiomas e intercâmbio para o exterior

Guarulhos – SP, Brasil

São José dos Campo, SP. Brasil

Com a família no Brasil

São Paulo, Brasil

Com a família no Brasil

São Paulo, Brasil

Com a família no Brasil

São Paulo, Brasil

Com a família no Brasil

São Paulo, Brasil

Fonte: Dados da Pesquisa

Na seção seguinte, serão descritos os procedimentos adotados para categorizar e analisar os dados advindos da aplicação dos instrumentos.

109

1.5 Mo(vi)mento de análise

Pêcheux (2002) afirma que toda descrição abre sobre a interpretação, ou seja, por meio de descrições regulares de montagens discursivas, pode-se detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem “como tomadas de posição reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 2002, p.57). Logo, como pesquisadora, não me encontro livre das formações inconscientes e dos discursos conflituosos que me constituem como sujeito e, assim, ao depararme com o dispositivo teórico desta pesquisa, produzo sentidos a partir do lugar e das posições que ocupo no discurso. Como explicitado anteriormente, a AD francesa não possui uma metodologia, modelo ou esquema específico. Isso significa que cabe ao analista adotar, como salienta Orlandi (1999), princípios e procedimentos a partir das perguntas e dos objetivos em relação aos dados. A autora afirma que a construção de dispositivos de análise é condição para se desenvolver um conjunto de práticas sobre como trabalhar com os dados e, por fim, essas práticas se constituem em procedimentos metodológicos. Dessa forma, apresento, na figura que segue, as etapas que constituíram os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa. Vale ressaltar que as etapas não estão numeradas e se relacionam entre si por meio de flechas com pontas duplas, pois durante todo o processo de análise do corpus, recorri a esses procedimentos por mais de uma vez e em momentos diversos.

110

Procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa

Definição de objetivo, objeto e perguntas a fazer

Volta ao corpus para efetuar outros recortes específicos e a teoria para o confrontamento com os dados

Recorte dos enunciados e suas paráfrases Localização das representações encontradas nos enunciados

Análise do corpus

Análise das representações que revelam aspectos da identidade dos sujeitos

Agrupamento dos enunciados a partir das representações encontradas

Análise das representações quanto a sua posição ideológica

Figura 4: Procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa Fonte: Dados da pesquisa

Inicialmente, a partir das perguntas de pesquisa, localizei os recortes de enunciados que respondiam ou possuíam relações com meus objetivos. Segundo Orlandi (1989), o recorte refere-se a uma unidade discursiva entendida como fragmentos correlacionados de linguagem e situação. Para essa autora, cada texto é um conjunto de recortes discursivos que se 111

entrecruzam e se dispersam. Pode-se dizer que um recorte é um fragmento da situação discursiva e a análise empreendida efetua-se por meio de seleção dessas unidades extraídas do corpus, ou mesmo de recortes de recortes, de acordo com os objetivos da pesquisa. A partir desses recortes, é possível analisar cada enunciado como Foucault (1969/1995, p. 124) o concebe, “elemento suscetível de ser isolado e capaz de entrar em jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele”. Analisar os enunciados exige uma reflexão sobre as regras que estabelecem suas condições de existência, de aparição, sua produção na história, quais são suas correlações com outros enunciados, qual seu papel desempenhado em meio a outros neste jogo enunciativo, seus limites e qual a memória retomada e efeitos de sentidos produzidos neste contexto. Após o recorte dos enunciados, localizei as representações existentes acerca: a) das línguas inglesa e portuguesa faladas pelos sujeitos desta pesquisa; b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes; c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país que os participantes mantém relação; d) de sua condição bilíngue. Esse conjunto de representações foi delimitado, pois, a partir dessas, seria possível responder às perguntas desta pesquisa e compreender o fenômeno estudado. Como afirmam Freire e Lessa (2003, p.174), as representações são: [...] maneiras socialmente construídas de perceber, configurar, negociar, significar, compartilhar e/ou redimensionar fenômenos, mediadas pela linguagem e veiculadas por escolhas lexicais e/ou simbólicas expressivas que dão margem ao conhecimento de um repertório que identifica o indivíduo e sua relação sócio-histórica com o meio, com o outro e consigo mesmo.

Nessa vertente, o estudo das representações possibilitar-me-ia o acesso de localizar, no discurso desses sujeitos, questões pertinentes à sua constituição identitária, uma vez que a identidade se constitui a partir das representações que um grupo ou sociedade possui em torno dele mesmo. 112

A seguir, separei o conjunto de enunciados de acordo com as representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e no tocante aos aspectos identitários que podiam suscitar. Cabe mencionar que, no decorrer das análises, o retorno ao corpus foi constante, assim como o reajustamento dos agrupamentos, considerando a exclusão ou a inclusão de enunciados. Com a trajetória da pesquisa delineada, tenho subsídios para o trabalho com os dados. Dessa maneira, apresentarei, na próxima seção, a discussão dos resultados a partir da análise do corpus.

113

Entre ditos e não-ditos Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra. E te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?23

23 DRUMMOND, C. Procura da poesia. In: A Rosa do Povo. São Paulo: Editora Record, 1945/2000. p. 12.

114

115

SEÇÃO 2 Entre ditos e não ditos Para iniciar esta seção retomo como se deu a coleta de dados neste trabalho e discorro sobre a organização desta seção. O trabalho de campo foi realizado nos meses de agosto e setembro de 2010. É importante salientar que a seleção dos participantes foi definida obedecendo a quatro critérios: Quadro 4: Critérios para seleção dos participantes desta pesquisa

(i) ser brasileiro;

(ii) ser falante de português e de inglês; (iii) utilizar ambas as línguas em alguma esfera de suas vidas, por exemplo, profissional, familiar, entre outras; (iv) ser escolarizado, uma vez que responderia o questionário por escrito. Fonte: Dados da Pesquisa

Sendo assim, nove bilíngues simultâneos e nove bilíngues sequenciais responderam a um questionário aberto que tinha como objetivo localizar as representações que esses sujeitos têm acerca de sua condição bilíngue, de suas línguas e dos povos com quem se relacionam. Nesta análise, os bilíngues simultâneos serão representados pela letra B e os recortes de suas narrativas estão registrados, para uma melhor visualização, na cor azul. Por sua vez, os bilíngues sequenciais serão representados pela letra S e os recortes de suas narrativas estão registrados na cor vermelha. Além do questionário, contatei posteriormente quatro participantes para esclarecimentos a respeito de algumas de suas respostas no questionário. Esses contatos foram feitos por e-mail e, na análise, são diferenciados das respostas obtidas por meio do questionário pela sigla CP – contato posterior. A partir das respostas obtidas por meio do questionário e dos esclarecimentos realizados por e-mail, realizei o recorte dos enunciados que 116

respondiam ou possuíam relações com meus objetivos. A seguir, localizei as representações existentes acerca: a) das línguas inglesa e portuguesa que os sujeitos desta pesquisa falam; b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes; c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país com que os participantes mantêm relação; d) de sua condição bilíngue. Depois de localizá-las, separei e agrupei os enunciados de acordo com as representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e quanto aos aspectos identitários que podiam suscitar para que, desse modo, as perguntas de pesquisa fossem respondidas. No quadro a seguir, relaciono as perguntas desta pesquisa e as representações, que, após analisadas à luz da AD francesa, permitiram-me responder às perguntas que norteiam este trabalho: Quadro 5: Relação das perguntas de pesquisa e das representações localizadas

Perguntas de pesquisa

Representações Sociais

1) Como é a relação desses sujeitos Representações da língua inglesa e com as línguas que os constituem?

portuguesa

que

os

sujeitos

de

sua

desta

pesquisa falam.

2)

Como

as

identidades

desses

sujeitos foram se (trans)formando na

Representações

condição

bilíngue.

sua relação com as línguas?

3)

Como

esses

sujeitos

ao

se

Representações (a) do Brasil e dos

enunciarem constroem imagens de si

países

e do Outro?

participantes e (b) do povo brasileiro e

relacionados

à

história

dos

do povo relacionado ao país com que os participantes mantêm relação. Fonte: Dados da Pesquisa

117

A análise foi organizada em três seções: (i) Entre o desejo da completude e a falta do sujeito; (ii) Entre o mito, o possível e o desejo do outro e (iii) Entre as diversas concepções do eu. Essas seções foram organizadas a partir das representações localizadas no discurso dos participantes a fim de responder às perguntas que norteiam esta pesquisa. Na sequência, apresento um quadro no qual relaciono as seções e as representações enfatizadas: Quadro 6: Relação das seções organizadas e das representações

Seções

Representações Sociais

Entre o desejo da completude e a (a) Representações sobre a língua falta do sujeito portuguesa e inglesa que os sujeitos desta pesquisa falam.

Entre o mito, o possível e o (a) Representações sobre a língua inglesa desejo do outro que os sujeitos desta pesquisa falam. (b) Representações sobre o Brasil e sobre os países relacionados à história dos participantes. (c) Representações sobre o povo brasileiro e sobre o povo relacionado ao país que os participantes mantêm relação.

Entre as diversas concepções do Representações sobre sua condição eu bilíngue e sobre a imbricação (ou não) das línguas que o constituem. Fonte: Dados da Pesquisa

Vale ressaltar que, ao perseguir as possíveis respostas às perguntas que norteiam esta pesquisa, é importante considerar o fato de que, na perspectiva teórico-metodológica a que me proponho, toda interpretação é múltipla e deslizante. Logo, como afirma Coracini (1999), não existem verdades absolutas, ou seja, ninguém é detentor da verdade, mas sempre um porta-voz de uma interpretação possível. Dito isso, apresento, nas seções seguintes, a análise do corpus desta pesquisa. 118

Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

Entre o mito, o possível e o desejo do outro

Entre as diversas concepções do eu

119

2.1 Entre o desejo da completude e a falta do sujeito Sou um monte confuso de forças cheias de infinito. Tendendo 24 em todas as direções para todos os lados do espaço

Nas

sequências

discursivas

analisadas,

percebem-se

diferentes

representações relacionadas à língua portuguesa e à língua inglesa pelos falantes

bilíngues

desta

pesquisa.

Essas

representações

certamente

constituem o imaginário dos sujeitos envolvidos, e isso acarreta em implicações na relação que travam com a língua materna e com a língua estrangeira e, consequentemente, com eles próprios. Neste trabalho, parto do pressuposto de que o falante é um sujeito da linguagem, constituído socio-historicamente cujas representações, por ele construídas sobre as línguas que fala, apontam para sua constituição subjetiva. Ressalto que a análise dos registros, apresentada a seguir, está organizada conforme as posições enunciativas, que materializam representações quanto às línguas portuguesa e inglesa. É também essencial considerar que as línguas dos participantes são a língua portuguesa do Brasil, língua relacionada a um determinado contexto socio-histórico de um país pós-colonial e a língua inglesa é considerada internacional principalmente devido às políticas expansionistas do império britânico no século XIX e à ascensão econômica dos Estados Unidos como superpotência. Nesse sentido, apoio-me em Canagarajah (1999) para afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do inglês, esses indivíduos fazem também uma opção ideológica e social, ainda que de modo inconsciente. Uma das representações mais recorrentes, neste corpus, no tocante à língua portuguesa é a de que o português é uma língua difícil e complexa. Os sujeitos, desta pesquisa, definem a dificuldade da língua pela quantidade de regras das gramáticas normativas e pela diversidade lexical apresentada pelos dicionários. É importante ressaltar que, nas sequências discursivas analisadas, a representação da língua portuguesa como difícil foi contrastada à da língua inglesa - como fácil e simples. Essa representação da língua inglesa funciona como alicerce para a construção das representações do português. Vale

24 PESSOA, Fernando. Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. In: Poesia de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1993. p.132.

120

ressaltar que as representações dessas duas línguas se entrecruzam e se constituem a todo o momento. As representações, aqui discutidas, foram discursivamente construídas por meio da utilização de adjetivos, como, por exemplo, trabalhosa, complexa, difícil, simples e fácil, como se percebe a seguir: B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para construção de alguns significados. B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa quanto o português. S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta, simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.

A qualificação difícil que se atribui à língua portuguesa é materializada quando os sujeitos, ao justificarem sua posição, dão ênfase às regras gramaticais que para eles são impossíveis de serem colocadas em uso. A percepção de que há muitas regras, as quais não são utilizadas pelos falantes, faz com que esses sujeitos vejam sua língua portuguesa como incompleta, na ilusão de que apenas as gramáticas e dicionários a teriam em sua completude. Pode-se observar esse aspecto quando B5 e B3 enunciam acerca da complexidade da língua portuguesa:

B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.

B3: O inglês me é mais natural, por uma dificuldade psicológica com o Português. Eu faço muitas pausas pra raciocinar em Português com a mesma velocidade. Acho que é medo de errar principalmente conjugações verbais do Português.

Nas sequências discursivas analisadas, o conhecimento gramatical parece ser uma verdade construída sobre a língua. Isso culmina no estabelecimento do que pode ou não ser dito e da forma como pode ser dito 121

em determinados contextos, de acordo com uma língua que não pertence a todos os falantes, mas apenas aos mais escolarizados e socialmente reconhecidos, e, assim, autorizados a dizer algo sobre essas línguas. Foucault (1979) contribui para essa discussão ao ressaltar que são essas verdades que contribuem para o funcionamento das relações de poder entre os falantes nos discursos sobre a língua. O conhecimento da gramática normativa é posto em funcionamento por meio de uma rede de procedimentos e mecanismos que atingem os aspectos mais sutis da realidade e da vida dos sujeitos. Esse saber normativo da língua pode ser caracterizado como um micropoder ou um subpoder, tornando-se, por isso, objeto de desejo daqueles que fazem parte de sua formação discursiva, como se pode perceber nas sequências analisadas. Esse saber, que aparece como ciência, transformou-se naquilo que é acolhido, hoje, como discurso válido e de prestígio. Com isso, esse saber organizado em torno de normas possibilita o controle dos indivíduos ao longo de sua existência. Ou seja, para ascender socialmente é necessário dominar esse saber culto sobre a língua, sendo que a não utilização dessas normas e regras gera um sentimento de não apropriação e não “domínio” da língua. Outro aspecto que merece ser ressaltado nas sequências discursivas é a utilização de construções linguísticas de comparação por meio dos advérbios que acompanham os adjetivos exemplificados anteriormente como “muito”, “mais” e “tão”. Esses advérbios constroem uma escala, na qual se tem, no topo da dificuldade, a língua portuguesa e, na base, o inglês, língua fácil e simples, de acordo com o discurso dos enunciadores.

B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para construção de alguns significados.

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta, simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.

122

S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa quanto o português.

Os advérbios muito, mais e tão têm a função de intensificar a esfera de significados dos adjetivos complexa, simples, fácil e trabalhosa. Esses advérbios funcionam como não coincidência entre as palavras e as coisas, uma vez que contribuem para a intensificação de significados que, sozinhos, parecem não serem suficientes. A leitura desses enunciados evoca o princípio de que os sentidos não são prontos. De outra feita, remetem a um já dito ao qual se filiam. A aparente evidência dos sentidos expressos nos enunciados analisados não passa de um efeito ideológico, uma vez que a ideologia faz parecer que o discurso é homogêneo e transparente. Porém é o interdiscurso que define o dizível para os sujeitos, ou seja, é um já dito que sustenta a possibilidade de todo dizer. Nas sequências marcadas nesta seção, percebe-se o discurso ideologicamente marcado pelas vozes que atravessam o discurso desses sujeitos e afirmam que o português é uma língua difícil. Nesse sentido, Bagno (2002) explica que a ideia de que o brasileiro não sabe português e de que, apenas em Portugal, fala-se bem o português é corriqueira e face “de uma mesma moeda enferrujada” (BAGNO, 2002, p. 20), que reflete o complexo de inferioridade e o sentimento de que o Brasil é, até hoje, uma colônia que depende de um país mais civilizado. Pode-se, com isso, dizer que os sujeitos que se enunciam nesta pesquisa estão exprimindo uma ideologia impregnada em nossa cultura há muito tempo. Essas ideias equivocadas impregnaram o imaginário do brasileiro e se constituíram em um dos preconceitos mais em voga ultimamente, que é o preconceito linguístico. É interessante notar que muitos dos participantes desta pesquisa trabalham com educação25. Segundo Bagno (2002), quatro são os elementos que favorecem a formação desse tipo de preconceito no Brasil: a gramática tradicional, os métodos tradicionais de ensino, os livros didáticos e os comandos paragramaticais. Esses elementos estão, sem dúvida, presentes em 25 Dentre os nove bilíngues simultâneos, seis trabalham no ambiente escolar: quatro como professores, um como coordenador e um como diretor. Dentre os nove bilíngues sequenciais, quatro trabalham com educação e um trabalha na área acadêmica, com pesquisa.

123

nossa sociedade, mas encontram-se em abundância no ambiente da maioria dos participantes desta pesquisa: a escola. Diante disso, é necessário considerar que, ao expressarem suas ideias sobre o português, esses sujeitos não estão apenas relatando suas opiniões. Enquanto sujeitos, interpelados pelas condições socio-históricas, fazem uma escolha por determinada perspectiva discursiva porque estão envolvidos em um jogo de imagens do qual sua própria imagem também é parte integrante. Bagno (2002) afirma que o grande problema do ensino de português no Brasil é que esse ensino, até hoje, depois de mais de cento e setenta anos de independência política, continua com os olhos voltados para a norma linguística de Portugal. As regras gramaticais consideradas “certas” são aquelas usadas por lá, que servem para a língua falada lá, que retratam bem o funcionamento da língua que os portugueses falam (BAGNO, 2002). Portanto essas vozes, que perpassam o dizer dos participantes desta pesquisa, estão imbuídas da ilusão de que os portugueses falam e escrevem tudo certo e que seguem rigorosamente as regras da gramática ensinadas na escola. Para os participantes desta pesquisa, essa língua “perfeita” que pertence ao povo português, pertenceria, no Brasil, apenas a indivíduos especiais, como se pode verificar no enunciado a seguir: S8: Agora, na língua portuguesa, me chama a atenção autores, por exemplo, que são mais inventivos e arriscam até modificar a língua, como Manoel de Barros e Guimarães Rosa.

Ao se referir a esses supostos falantes dessa língua “perfeita”, põe-se uma comparação com os falantes comuns que, de acordo com os enunciadores, não possuem essa língua ideal. Esses falantes ideais, conforme o enunciador, podem até modificar a língua, uma vez que esta lhe pertence. Além disso, neste caso, há um deslize do domínio da língua para a posição que esse falante ocupa na sociedade, o que mostra que olhar para língua é também olhar para o enunciador e tudo o que simbolicamente a ele está relacionado, seu status, profissão e prestígio, dentre outros aspectos. Esse olhar para quem enuncia é determinado pelas identificações do sujeito que são 124

interpeladas pelo seu inconsciente, ancorando suas representações de língua ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que começa a desejá-la e, dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como insuficiente e inacabado, sempre vislumbrando uma falta que é constitutiva ao sujeito. A sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as pessoas construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. Nesse caso, a prótese manifesta-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza da língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística. É como se os participantes desta pesquisa buscassem possuir a língua, dominála, torná-la deles, mas, ao mesmo tempo, reconhecem essa impossibilidade pelo encontro com a alteridade. Faz-se importante ressaltar que essa dificuldade atribuída ao português nem sempre é encarada negativamente, como se observa nas sequências a seguir:

S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa quanto o português. B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.

Essa dificuldade atribuída ao português é considerada motivo de orgulho, pois, para esses enunciadores, parece claro que a língua é difícil por ser rica e bela. Dessa forma, mais uma representação sobre a língua portuguesa é evidenciada: o português é uma língua rica. Essa riqueza é relacionada, por esses sujeitos, à quantidade de palavras e à elasticidade das construções sintáticas e morfológicas. Se, como discorri anteriormente, é o interdiscurso que define o dizível para o sujeito, de onde vêm os sentidos que levam a essa representação? Para responder a essa pergunta, lanço a hipótese de que essa posição enunciativa de língua rica interdiscursivamente dialoga com a ideia que acompanha o Brasil desde seu descobrimento. De acordo com ela, o Brasil seria um paraíso, cheio de riquezas e recursos inesgotáveis. Além disso, a ideia de que o Brasil é um vasto país, gigante pela própria natureza, como 125

postulado pelo hino nacional, é um enunciado atualizado sistematicamente na sociedade. Parece que a ideia de que o Brasil é um país contemplado por sua riqueza e por seu território grandioso mantém-se no imaginário dos brasileiros. Logo, pode-se presumir que esse imaginário relacionado ao país perpassa também as representações da língua portuguesa que passa por ser também um lugar de riqueza inesgotável. É interessante ressaltar que é essa mesma riqueza, vista como motivo de orgulho, como enuncia S5, que seria a responsável pela característica negativa de uma língua difícil. Assim, verifica-se que os discursos que sustentam as representações da língua se entrecruzam e muitas vozes se confundem nos discursos dos participantes desta pesquisa. Essas atribuições do português como uma língua difícil e rica estão ancoradas na comparação com a língua inglesa, classificada como fácil e simples, como nas sequências enunciadas por B8 e S8:

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta, simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.

A representação de fácil, já internalizada nas sociedades que estudam a língua inglesa como língua estrangeira ou segunda língua, parece fazer parte de uma ideologia hegemônica. Isso explicaria o fato de o inglês ser a língua mais difundida no mundo: a língua dos negócios, a língua internacional ou a língua franca, como é classificada. Outro ponto a se considerar é que esse caráter de língua fácil foi estabelecido em contraposição ao latim, no passado, língua obrigatória nas escolas e também classificado como difícil e complexo. Pode-se assumir que os livros didáticos para o ensino de língua inglesa também contribuem para essa representação de fácil, uma vez que, na grande maioria dos casos, a língua apresentada é uma língua homogênea e as variedades são completamente ignoradas, o que contribui para a criação da ilusão de que o inglês é uma língua una e, por isso, mais simples e fácil. 126

Nas sequências analisadas, os enunciadores constroem uma escala de valores para as línguas: o português como língua difícil se contrapondo ao inglês como língua fácil e o português como língua rica em contraposição ao inglês como língua simples. Com a análise dos registros, observa-se que as representações das línguas portuguesa e inglesa são construídas no mesmo sentido por enunciadores bilíngues sequenciais e simultâneos, assim como as construções discursivas empregadas, como o uso de adjetivos e advérbios a fim de intensificar as significações, também, foram equivalentes. Percebe-se nas sequências analisadas a presença do interdiscurso que mobiliza vozes distintas: a voz do colonizado, do colono e da sociedade globalizada. Verifica-se, então, que a constituição do sentido e do sujeito decorre de esquecimentos da ordem enunciativa e ideológica. Isso equivale a dizer que o sujeito tem a ilusão de que é fonte primeira de seu dizer e de que o que diz só pode ser dito dessa forma. Além disso, é, nesse jogo de classificação das línguas, que os enunciadores assumem sua posição no discurso e desenham sua identidade pelo viés da língua. Para completar é importante salientar que, embora aqui a língua inglesa tenha sido classificada como fácil e simples, também, é tomada por esse mesmo sentimento de falta atribuído à língua portuguesa. Esse sentimento é detectado ao analisar relatos desses sujeitos quanto às suas experiências e impressões relacionadas ao seu sotaque, que expressam, em sua grande maioria, o desejo de soar como o outro, o nativo. Esse aspecto será tratado na próxima seção.

127

2.2 Entre o mito, o possível e o desejo do outro Enquanto falar me for possível, e em vida e na morte, jamais esta língua única, estás a ver, virá a 26 ser minha. Nunca na verdade o foi.

Nesta seção, a partir das representações que os sujeitos desta pesquisa têm sobre a língua inglesa, sobre o Brasil e sobre o brasileiro , procuro: (i) mostrar a irrupção de discursos a respeito da identidade, (ii) apontar a existência de estigma relacionado ao fato de ser brasileiro e de um sentimento de inferioridade por conta de diferenças na produção oral, o sotaque, quando se comparam a falantes oriundos de países de língua inglesa. Frente à pergunta: Você se preocupa com seu sotaque? Por quê? Podese destacar que, dentre os nove bilíngues simultâneos participantes desta pesquisa, seis (66,6%)afirmam que se preocupam com seu sotaque. Enquanto isso, esta questão desperta a preocupação de oito (88,9%), dos nove, bilíngues sequenciais, como se observa no gráfico a seguir:

9 8 7 6 Preocupação sotaque

5 4

com

o

Não preocupação com o sotaque

3 2 1 0 Bilíngues Bilíngues Simultâneos Sequenciais

Figura 5: Preocupação com o sotaque – bilíngues sequenciais e simultâneos Fonte: Dados da pesquisa

Ao serem questionados quanto à importância atribuída, por eles, ao sotaque, os participantes, de modo geral, conferem ao seu dizer uma 26 DERRIDA, J. O monolinguismo do Outro ou a prótese da origem. Tradução de Fernando Berardo. Porto: Campo das Letras, 2001. p.14.

128

conformidade com um discurso que atribui ao falante nativo o domínio da língua, como se pode observar nas sequências discursivas desta seção: S5 Sim, porque gostaria de aproximar cada vez mais a minha fala à de um nativo.

S8 Sim, preocupo-me com minha pronúncia porque sou perfeccionista e quero ser compreendida e quero falar “bonito”.

S4 Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um pouco como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se alguém estivesse cantando desafinado.

Pode-se inferir, desses relatos, que falar com sotaque, ou seja, ser identificado como brasileiro, remete a um falar que é feio, comparado por S4 a um cantar desafinado. Possivelmente, o que se tangencia, a partir desses recortes, é a estranheza que provoca a língua do outro, pois essas formulações trazem indícios de que esses bilíngues simultâneos e sequenciais não se veem inscritos nessa outra ordem simbólica e, desse modo, por oposição, seria apenas o nativo (monolíngue?) que desfrutaria do conforto de sua língua materna. Na tessitura desses dizeres, percebe-se que o falar como nativo remete à ilusão de familiaridade e acolhimento experimentada na língua materna. Essas considerações trazem à tona a problematização sobre o que é língua materna e o que é língua estrangeira discutida na seção “Vida entre línguas”, o que reforçaria a ideia de que os sentimentos vivenciados na experiência de ser/estar entre línguas não são tão facilmente mensuráveis; antes, não passam de ilusão, porque, a todo o momento, o sujeito vê-se frente ao desconhecido na língua que pensa ser sua, ao inesperado que não se quer enfrentar ou ao mal dito que não se deseja não ter dito. Sendo assim, a sensação de estranha familiaridade e de familiar estranheza perpassa a inscrição do sujeito, seja na língua materna ou na estrangeira, fazendo com que o “domínio” dessas línguas seja sempre da ordem do semelhante, jamais da totalidade.

129

Vale ressaltar que esse desejo de se aproximar do lugar do falante nativo também aponta para o processo de identificação com a língua do outro, que passa a ser constitutivo da identidade do sujeito bilíngue e, com isso, desloca sua identificação com a língua materna e com o lugar que ela ocupa. Na mesma direção, vislumbra-se, no enunciado de B2, a pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990), isto é, há uma nomeação de atributos individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura social. Nesse caso, esses atributos individuais referem-se a como o sujeito bilíngue deve ou não falar.

B2 Às vezes, me preocupo com meu sotaque na língua inglesa por vários motivos: não convivo com anglofalantes nativos e, às vezes, sinto que perco um pouco das referências; quase não tenho praticado meu inglês e como meu pai é americano as pessoas sempre querem me ouvir falando e me sinto no “dever” de falar com um sotaque nativo, que acredito ter perdido um pouco.

No recorte supracitado, o conhecimento compartilhado socialmente e as expectativas dos outros, no que se refere ao modo como um determinado sujeito deve agir e ser, são tangenciados. Pode-se também acompanhar um movimento de reposição dessa identidade pressuposta, uma vez que B2 se sente no “dever” de falar como esperado, o que evidencia o processo de mesmice, assim como denominado por Ciampa (1984). Ao trazer essas asserções, B2 repõe a personagem estereotipada de como filhos de americanos devem falar, ao se intitular no dever de atender às exigências do que a sociedade espera dela. No dizer de B2, ressoam indícios de um movimento inconsciente para “repor” aquilo que a sociedade “põe” como certo. Além disso, o uso das aspas por B2, neste enunciado, marca a eterogeneidade

mostrada

que

incide

na

construção

dos

sentidos.

Primeiramente, há a tentativa de sinalizar que o “dever” a que B2 se refere não é o mesmo “dever” em outros âmbitos de sua vida. Observa-se, além disso, a não coincidência entre a palavra e a coisa, o que indica uma negociação do sujeito com a alteridade discursiva, pois as aspas indicam que a palavra “dever” não é a mais apropriada para designar o que o enunciador pretendia. Finalmente, o uso das aspas remete à distância ou à crítica que o 130

enunciador pretende manter quanto a esse “dever”, visto que seu uso delimita espacial e discursivamente a palavra que a vincula a uma determinada formação discursiva e indica uma não coincidência das palavras com elas mesmas. Na mesma direção, B7, S7 e S8 também imprimem, em seus relatos, marcas que funcionam como um deslize do enunciador na sua tentativa de apagar a contradição. Ao justificar sua preocupação ou falta dessa, o uso da subordinada adversativa “mas” produz uma significação de contradição. Há, nesses dizeres, uma forma de escamoteamento das lacunas que esses sujeitos possuem em relação ao seu sotaque em língua inglesa.

B7 Não. Na verdade, por falar desde muito nova, não. Procuro sempre falar corretamente, mas não me preocupo.

S4 Sim. Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um pouco como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se alguém estivesse cantando desafinado.

S8 Sim. Preocupo-me com minha pronúncia. Porque sou perfeccionista e quero ser compreendida e quero falar “bonito”. Mas não acho que o objetivo de quem aprende ou ensina língua deva ser falar como nativos (isso seria se preocupar com o sotaque, eu acho). Até porque, o que é falar como nativos?

No fio de seus dizeres, esses sujeitos deslizam entre sua preocupação ou falta dela à racionalização das mesmas, justificando-se, contradizendo-se e se explicando. Nesse momento, pergunto-me se não seriam essas marcas na linguagem a cisão do sujeito e sua constituição heterogênea? Hall (2001) salienta que, dentro de cada sujeito, há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que suas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Esses sujeitos, ao narrarem-se, revelam seu desejo de um dizer controlável. Mostra-se uma “luta” do enunciador com a palavra e, ao mesmo tempo, um encontro com a incompletude nas línguas que o constituem. A bem da verdade, como afirma Coracini (2007), o sujeito não está preparado para lidar com a heterogeneidade que o constitui e, por isso, contrapõe o seu dizer pelo uso de marcas linguísticas, como as adversativas. 131

Ao se comparar a justificativa enunciada por S8 com a explicação proferida por B2, pode-se constatar a multiplicidade de vozes que atravessam o discurso de indivíduos bilíngues. Desse modo, há bilíngues interpelados pelo discurso que versa sobre a competência ideal dos falantes nativos. Semelhantemente, B2 apoia-se na decorrente representação de que o nativo sabe a língua perfeitamente e serve de parâmetro para dizer o que está certo ou errado, consequentemente, para que se avalie quem é, ou não é, um falante competente da língua.

B2 Às vezes me preocupo com meu sotaque na língua inglesa por vários motivos: não convivo com anglofalantes nativos e às vezes sinto que perco um pouco das referências; quase não tenho praticado meu inglês e, como meu pai é americano, as pessoas sempre querem me ouvir falando e me sinto no “dever” de falar com um sotaque nativo, que acredito ter perdido um pouco.

Por sua vez, S8, primeiramente, afirma que se preocupa com sua pronuncia porque quer ser compreendido e quer falar bonito. A seguir, questiona o que seria falar como nativo: S8 Mas não acho que o objetivo de quem aprende ou ensina língua deva ser falar como nativos (isso seria se preocupar com o sotaque, eu acho). Até porque, o que é falar como nativos?

Verifica-se, na construção dessa representação de domínio da língua, um dizer proveniente do discurso da Linguística Aplicada, que defende um ensino de língua inglesa que enfatiza a capacidade de formar indivíduos que possam interagir com esse mundo de diferentes modos e questiona a supremacia do falante nativo. Porém notam-se resquícios da visão de falante nativo ideal quando S8 justifica sua preocupação com o sotaque, sob a alegação de se falar bonito. A preocupação exacerbada com o sotaque, por alguns participantes desta pesquisa, revela-se na tentativa, mesmo que inconsciente, de falar inglês sem sotaque brasileiro. Tanto B4 quanto B6 ressaltam sua condição de desacreditáveis (GOFFMAN, 1988), afirmando que sua brasilidade não é nem conhecida pelos presentes nem imediatamente perceptível por eles: 132

B4 Não tenho sotaque em nenhuma das línguas... pelo contrário nos USA ninguém consegue dizer de onde sou. B6 Presto atenção e tento neutralizar ao máximo o regionalismo do meu sotaque. Não é tão difícil por ter muito conhecimento técnico na área.

B4 afirma não possuir sotaque em língua alguma e acrescenta que ninguém consegue dizer de onde é. Por sua vez, B6 declara que não é difícil para ele neutralizar seu sotaque, uma vez que possui conhecimento técnico na área por ser professor de letras e linguística. B4 e B6 manipulam uma informação oculta, neste caso, o sotaque, que desacredita o eu, ou seja, ocorre aqui o que Goffman (1988) denomina de encobrimento. Observa-se em B4, um encobrimento inconsciente, pois ele afirma que não possui sotaque algum – como se fosse possível não possuir sotaque que o caracterize pertencente a alguma comunidade linguística. Por outro lado, B6 realiza um encobrimento em ocasiões rotineiras da vida diária, como no trabalho e em situações de serviço. Ambos os sujeitos evidenciam uma reposição da identidade pressuposta, denominada de mesmice por Ciampa (1984), assim como foi também observado em B2. Portanto há a criação de uma identidade “mito” (CIAMPA, 1990), que reproduz o social sem questionamentos, nesse caso, referindo-se a como bilíngues simultâneos deveriam falar. Na sequência discursiva enunciada por B6, percebe-se que o enunciador

se



como

um

sujeito

que

controla

o

seu

dizer

e,

consequentemente, é capaz de esquivar-se da alteridade. Esse sujeito parece ter a sensação de que produz algo que ele pode controlar, o que advém de um mecanismo ilusório que, de forma inconsciente, tenta abafar a heterogeneidade constitutiva. É importante ressaltar que, historicamente, o sujeito cartesiano tem pleno controle da língua, ou seja, é um indivíduo autônimo capaz de controlar seu dizer, o que representa, para o enunciador, uma promessa de completude. Ao não atender às expectativas normativas da sociedade acerca do sotaque que um falante competente deve ter, esses sujeitos suscitam sanções 133

e reprimendas, como se pode observar em S7 e S2 ao relatarem o porquê seu sotaque é motivo de preocupação:

S2 Quando falo com falantes nativos me preocupo porque vejo como eles tratam falantes que tem determinados sotaques (inclusive outros falantes nativos). Ou seja, não ser vítima de preconceito linguístico é, sem dúvida, uma preocupação minha. S7 Me preocupo com meu sotaque porque já fui discriminada em meu ambiente de trabalho por não ter sotaque de estrangeiro ou por meu sotaque não ser o mais adequado.

Tanto S2 quanto S7 revelam o desejo de ser racional e centrado, tentando ter controle sobre tudo que dizem e apagando, desse modo, as variantes diatópicas que os constituem. Revela-se, nessas sequências discursivas, a presença do interdiscurso que se vincula ao postulado de que a língua é um fenômeno homogêneo e que pode, assim, ser adquirida em sua totalidade. Mergulhados nessa problemática, S2 e S7 tentam se passar por um sujeito uno, que lutam pelo controle e domínio de sua consciência e da língua que os constitui. Nota-se que S2 faz uso de parênteses, no seu discurso, para salientar que inclusive falantes nativos que falam uma variedade não padrão da língua também sofrem de preconceito. A nota (inclusive outros falantes nativos) rompe o fio discursivo, assim, emergindo, de forma abrupta, em meio do texto com o uso de parênteses, como um sinal de alerta à heterogeneidade que poderá ameaçar a atividade. Nesse caso, haveria a possibilidade de utilização de uma sentença simples, porém o uso de parênteses configura-se como algo emergencial e secreto, que não merece ser compartilhado com todos e, ao mesmo tempo, garante traçar o contorno de um discurso com relação a um outro que é importante distinguir. Além disso, S2 diz que uma de suas preocupações é não ser vítima de preconceito linguístico. Por sua vez, S7 afirma já ter sido discriminada, em seu ambiente de trabalho, por conta do sotaque, o que também remete à noção de preconceito. Na esfera do discutido por Bagno (2002), pode-se inferir que o sentimento de inferioridade que cerca os brasileiros em relação à língua portuguesa também se estende ao falar inglês com sotaque. Uma vez que isso 134

o identifica como brasileiro e, por conseguinte, encontra-se vulnerável, na visão dos enunciadores, para ser vítima de preconceito linguístico. Instada a explicar como foi discriminada em seu ambiente de trabalho, S7 relata: S7 - CP27 No meu caso, a própria coordenadora da educação infantil disse que houve reclamação de pais por meu inglês não ser melhor... E ela acabou completando que meu maior problema era o sotaque e que eu devia me policiar mais.

Vale ressaltar o papel das reticências no discurso de S7 quando afirma que houve reclamações de pais por seu inglês não ser melhor. As reticências parecem representar um espaço indeterminado, de transição e incertezas, o que consiste em uma abertura para que sentidos paralelos aos vigentes possam ser inscritos. Essa é uma marca linguística que tenta exprimir o não dito, paralelamente ao dito, e tem a função de denunciar a heterogeneidade presente na língua. Se o silêncio é, para o falante, uma forma de dizer, podese considerar as reticências como uma marca de heterogeneidade ressaltada do discurso, uma vez que, em seu lugar, é possível a substituição por várias palavras portadoras de muitos sentidos. Nesse caso, o trecho “No meu caso, a própria coordenadora da educação infantil disse que houve reclamação de pais por meu inglês não ser melhor...” evoca a possibilidade de outras questões relacionadas à produção de língua inglesa por S7, que faz a opção por silenciá-las, ao mesmo tempo, que abre ao interlocutor a possibilidade de decifrá-las. O discurso de S3 acerca da importância dada ao sotaque corrobora o exposto por S7:

S3 O sotaque identifica de onde o sujeito é, e com isso carrega estigmas. Por exemplo, de forma geral, considera-se que o carioca é malandro, o nordestino é de baixo nível socioeconômico-cultural, o português é estúpido, o britânico é educado, o alemão é ríspido, etc. Quando se ouve uma pessoa falando, os primeiros julgamentos são feitos dependendo da 27 Como explicitado no capítulo da metodologia, do conjunto dos dezoito questionários, senti a necessidade de contatar quatro participantes para maiores esclarecimentos a respeito de respostas a questões específicas. Esses contatos foram feitos por e-mail e na análise são diferenciados das respostas obtidas por meio do questionário pela sigla CP – contato posterior.

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forma como ela fala, e muitas vezes o sotaque fala mais alto que a gramática ou o vocabulário empregado.

Nesse recorte, S3 afirma que a gramática ou o vocabulário ficam em segundo plano quando comparados com o sotaque que assume papel primordial para se avaliar um falante de língua inglesa. Percebe-se também, no discurso de S3, uma manifestação na qual se distinguem outras vozes constitutivas. Nota-se que S3 não fala de si, mas faz alusão ao sujeito, o que permite a percepção de que ele está inserido em outra formação discursiva. Não se tem aqui a voz isolada de S3; do interdiscurso que interpela seu dizer emergem múltiplas representações de nacionalidades e regiões do Brasil. S3 confere a indivíduos oriundos de diferentes países e regiões do Brasil um veredito: “o carioca é malandro, o nordestino é de baixo nível socioeconômico-cultural, o português é estúpido, o britânico é educado, o alemão é ríspido”, que exprime as representações sociais acerca desses indivíduos. Essas representações são obtidas por meio de um processo de generalização, que é a seleção de uma característica aleatória que se torna coextensiva a todos os membros da categoria. Em consonância com o dizer de S3, observa-se, na trama de outros dizeres analisados nesta seção, uma tentativa, por parte dos enunciadores, de neutralização de seu sotaque. Para esses sujeitos, é motivo de orgulho quando não são identificados como brasileiros, o que conferiria, ao bilíngue, o status de falante competente de acordo com suas representações. A esse respeito, Goffman (1988) salienta que sujeitos que não atendem às expectativas da sociedade tendem a tentar corrigir diretamente o que consideram a base objetiva de seu defeito, ocorrendo a vitimização. Neste trabalho, como o sotaque brasileiro é visto como um problema ou defeito a ser corrigido, observa-se a proliferação de cursos de pronúncia que prometem um apagamento de qualquer sotaque ou marcas na fala que caracterizam esse indivíduo como brasileiro. Essa discussão aparece no recorte que se segue: 136

B6 Presto atenção e tento neutralizar ao máximo o regionalismo do meu sotaque. Não é tão difícil por ter muito conhecimento técnico na área.

Neste, B6 afirma que possui conhecimento técnico e, com isso, pode neutralizar o regionalismo de seu sotaque. É importante ressaltar que B6 é professor universitário na área de lingüística, com especialização em fonética. Em consonância ao enunciado por B6, diversos cursos surgiram no Brasil com o intuito de neutralização e redução do sotaque. Para ilustrar com maior clareza esta questão, apresento, na continuidade, alguns anúncios de cursos com essa finalidade, encontrados na internet.

Figura 6: Aulas de redução de sotaque Fonte: http://www.cclscorp.com/pt/special-programs/accent-reduction-course/

Esse curso tem como objetivo “aproximar a enunciação do aluno ao discurso padrão americano”. Percebe-se, aqui, a exaltação do mito da natividade e a, ainda presente, idealização e glorificação da figura do falante nativo de língua inglesa, que o coloca como superior em relação ao falante não nativo. Mas é importante ressaltar que não é qualquer falante nativo que está em questão, e sim o falante nativo proveniente principalmente dos EUA e da Inglaterra que fala uma variedade de inglês considerada de prestígio (RP ou

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GA28). É como se esses países tivessem um poder consideravelmente grande sobre o uso da língua inglesa e, sobretudo, sobre os seus outros usuários, e esse poder leva muitos, como os participantes desta pesquisa, a crerem que a língua pertence a americanos e ingleses, e é apenas disponibilizada a falantes de outros países, como os brasileiros. Essa visão também é compartilhada no curso exposto a seguir, que faz uma “revisão profunda dos sons, ênfase e entoação do inglês americano”:

Figura 7: Curso de redução de sotaque Fonte: www.talk.edu.intel/portuguese/programs/english-pronunciation.php

Esse curso parte da ideia central apresentada como subtítulo “Seja claramente entendido!”, o que traz implícita a noção de que o sotaque brasileiro prejudicaria o entendimento e a comunicação de falantes brasileiros com falantes oriundos de outras localidades. Verifica-se, entre o participantes deste trabalho, o efeito desse pré-construído em seus dizeres, como se pode acompanhar nas formulações de S1 e S8: 28 RP – Received Pronunciation, também chamada the Queen’s English (inglês da Rainha), é o sotaque considerado padrão na Inglaterra. GA – General American – é o sotaque considerado padrão, ou não regional, nos Estados Unidos.

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S1 Me preocupo (mas não muito) com o sotaque porque temo comprometer a qualidade da comunicação.

S8 Preocupo-me com minha pronúncia, porque sou perfeccionista e quero ser compreendida.

Nota-se ainda como S8 confunde as noções de sotaque e pronúncia. Ao responder a pergunta sobre sotaque, utiliza a palavra pronúncia e vincula sua preocupação ao fato de querer ser compreendida. É como se, ao possuir sotaque, este não possibilitasse a pronúncia correta de certas palavras e, consequentemente, impossibilitasse a comunicação. Nessa mesma direção, o próximo curso, destinado a professores e futuros professores de inglês, além de minimizar o sotaque brasileiro, também, tem como objetivo o trabalho com técnicas para ensinar pronúncia:

Figura 8: Curso de redução de sotaque Fonte: http://www.summitschool.com.br/sft.htm

Consolida-se, assim, o ciclo vicioso do processo de vitimização, uma vez que há a formação de profissionais que são capacitados para minimizar o sotaque brasileiro. Além disso, Bagno (2002) atribui aos comandos paragramaticais papel fundamental à formação do preconceito linguístico no Brasil. Esses materiais que, segundo o autor, teriam a utilidade para solucionar dúvidas em relação à língua, acabam tendo a função principal de perpetuação de preconceitos. Embora o autor se refira à língua portuguesa, estendo essa ideia também aos 139

materiais de ensino de língua inglesa, como ilustrado no Kit de Redução de Sotaque Zenaric, criado com a finalidade de reduzir o sotaque brasileiro:

Figura 9: Material para redução de sotaque Fonte: http://accentreduction.brainyus.com/

Depreende-se, dos exemplos ilustrados nas figuras 7, 8, 9 e 10(conferir se a numração está correta após juntar todo o material), uma amostra de como o discurso referente ao falante nativo circula na sociedade, interpela o sujeito bilíngue e atravessa seu discurso. Outro aspecto importante capturado na análise das respostas obtidas às perguntas: Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às línguas que utiliza? e Como você acha que é visto por estes grupos sociais? - é a irrupção de questões relacionadas ao estereótipo de brasileiro e o preconceito relacionado a essa condição, como enunciado por S2:

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S2 Ter que constituir minha própria identidade fora do meu país de origem dá mais trabalho do que imaginei, porque as pessoas já têm uma série de ideias preconcebidas sobre como um brasileiro é ou deve ser. Fica mais difícil se constituir como indivíduo, independentemente da minha fluência em inglês. S1 Tudo depende de quanta informação as pessoas têm – ‘sobre mim’. Por exemplo, nos Estados Unidos, algumas pessoas podem te julgar pela aparência. No entanto, a partir do momento que a fala entra em ação, o fato de eu dominar a fala bem como boa parte do sotaque considerado padrão, as pessoas notam que se trata de uma pessoa educada (educação formal), e por isso, muito se é reavaliado. Ou seja, se você é latino nos Estados Unidos, mas tem formação acadêmica e a usa no diadia, boa parte da cobrança racial é esquecida.

Observam-se, nessas sequências, a presença de identidades sociais virtuais (GOFFMAN, 1988) que são constituídas pelas afirmativas em relação àquilo que o sujeito deveria ser. No caso deste trabalho, de como um brasileiro ou um latino deveria ser. Goffman (1988) afirma que é a discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real que é responsável pela produção do estigma. Tanto S2 quanto S1 residem ou residiram nos EUA e têm consciência de que possuem atributos que os diferenciam dos americanos, mas também não se identificam com o rótulo de latino ou de brasileiro. Esses dois casos inserem-se no quarto modelo apresentado por Goffman (1988) de carreira moral, uma vez que ambos foram socializados numa comunidade diferente, no caso, dentro da comunidade brasileira no Brasil e, posteriormente, tiveram de aprender uma segunda maneira de serem validados pelo grupo social à sua volta, os americanos nos EUA. Outro ponto a destacar no recorte supracitado é o uso do deôntico ter (que constituir), o qual sugere um juízo social que não parece ser a escolha primeira do sujeito que tenta impor resistência a essa injunção social. Ao mesmo tempo, há, neste sujeito, na tentativa de constituir sua própria identidade, uma busca em ser completo na língua do outro. Cabe aduzir que S2 vê a si e ao seu grupo social como uno e diferente do outro e, dessa forma, seu sentimento de identidade emana necessariamente do outro. Dentro do universo conceitual da psicanálise, Lacan (1966/1998), em o estádio do espelho, argumenta que é pelo e no olhar do outro que me vejo como um. 141

Outro que, como afirma Coracini (2007), pelo discurso, diz o que e quem sou, como e por que sou e, à medida que assumo esse dizer inconscientemente, submetendo-me a ele e dele me aproprio. Portanto, S2 encontra dificuldades em sua vida fora de seu país de origem. Sua nova vida assume perigo para sua “identidade já conquistada como brasileiro”, dando a impressão de que não se sente preparado para fazer mudanças em sua constituição subjetiva. S2 complementa sua resposta, dizendo:

S2:

Sou do tipo que conhece a língua bem demais pra ser considerado outsider do ponto de vista linguístico, mas é considerado outsider do ponto de vista cultural.

O enunciado de S2 faz emergir indícios de uma polarização entre “nós” e “eles”, o que dá indícios da ideia de uma identidade fixa, imóvel que privilegia um em detrimento do outro. Pode-se também neste recorte, analisar a competência cultural de S2, uma vez que a língua está intimamente ligada ao exercício social, sendo, através da língua, que o sujeito se comunica, troca ideias e impressões, dessa maneira, compartilhando o que é e o que sente. Esse processo do exercício social faz com que a cultura não seja algo estanque, mas em processo, uma vez que é influenciada e (re)formada diariamente por múltiplos falantes que, a todo o momento, podem ser considerados diferentes. Apesar de sua fluência na língua inglesa, S2 ainda sente que é visto como um “outsider”. Nesse caso, a língua inglesa, que também o constitui como sujeito, o destitui de seu lugar na sociedade, o impedindo de ocupar um lugar confortável dentro desse grupo, o que perturba seu sentimento de pertença. Convidado a relatar quais seriam as ideias preconcebidas sobre como um brasileiro deve ser, S2 explica:

S2 - CP: Existem basicamente duas ideias sobre brasileiros em Nova York e arredores: 1) os migrantes: são pouco instruídos, vem fazer trabalho braçal e competir no mercado de trabalho com latinos e (eventualmente) brancos pobres. Os pertencentes a esse grupo não falam inglês muito bem (embora falem melhor que os latinos) e são submissos, o que é considerado uma coisa boa. 2) os turistas: são ricos, arrogantes, bem instruídos e vêm aqui pra fazer compras. São realmente apenas turistas, nunca ficam por aqui pra morar. 142

Ao ser questionado a respeito de como se sente em relação a essas ideias preconcebidas de como deveria ser ou se portar, S2 complementa:

S2-CP: Eis que eu sou um problema pras pessoas que operam com essas definições. Sou branco demais pra ser chamado de latino, não falo inglês com o sotaque que seria esperado, estou de fato morando aqui, mas não faço nenhuma espécie de trabalho braçal, sou estudante de doutorado (nível de instrução que poucos estadunidenses têm), sou financeiramente independente e, como se tudo isso não bastasse, vegetariano (ou seja, não conte comigo pra ir naquela "Brazilian barbecue place" da qual você ouviu falar).

Ao falar sobre como se sente, S2 traz traços diferenciados dos demais sujeitos desta pesquisa de não conformidade com a identidade pressuposta. Em nenhum momento, S2 revela “repor” aquilo que a sociedade “põe” como certo. Não se nota uma tentativa de adequação às expectativas da sociedade na qual ele agora está inserido. S2 demonstra um agir mais livre e criativo para realização de suas metas e desejos, saindo do movimento de reposição e buscando o outro “outro” – mesmidade (CIAMPA, 1990). Dessa forma, S2 distancia-se perante as expectativas dos outros ao desempenhar papéis. Sujeitos como S2, explica Goffman (1988), são denominados “desafiliados” ou “desviantes sociais”, categoria na qual é enquadrado, uma vez que voluntária e abertamente se recusa a aceitar o lugar social que lhe é destinado. Pode-se relacionar esse movimento de S2 ao sistema periférico, que é a apropriação individual e personalizada da representação por parte de sujeitos oriundos de grupos sociais diversos. S2 tem um papel ativo no processo de construção da representação social do que é ser brasileiro e, com isso, vê-se em posição de rejeitá-la e criticá-la, não se sujeitando a ela. Esse movimento vai ao encontro do proposto por Possenti (2002), que afirma que também há espaço para a inscrição do indivíduo no discurso, onde ele pode deixar a sua marca, mesmo na condição de assujeitado. Infere-se, aqui que o assujeitamento não se deu, para S2, de forma plena e, com isso, S2 parece ter certa competência na escolha de seu material discursivo. Logo, S2 inscreve-se no discurso de uma forma diferenciada dos demais participantes desta pesquisa. 143

Fica evidente, pelo discurso dos demais sujeitos, que este movimento de distanciamento apresentado por S2 não é partilhado pelos outros sujeitos participantes desta pesquisa. Enquanto S2 caminha para um processo emancipatório, observa-se que os demais sujeitos estão engajados em um processo de reposição de suas identidades pressupostas. Para complementar esta seção, acredito ser importante retomar que a noção de identidade está intimamente ligada aos desejos de reconhecimento, afiliação e segurança e que é por meio da língua que o sujeito negocia a noção do “eu”. Ao falar, os sujeitos estão envolvidos na construção e na negociação de suas identidades. Esse falar, de acordo com os sujeitos participantes desta pesquisa, está intimamente relacionado à dicotomia sotaque x não sotaque. Porém fica evidente, conforme me aprofundo na análise dos questionários, que a questão do sotaque se insere numa discussão maior, na qual se envolve poder, ideologia e representações sociais. A seguir, apresento, em um quadro, os aspectos relacionados à constituição identitária dos bilíngues encontrados na análise realizada nesta parte da seção: Nesta seção, trabalhei com as representações atinentes à língua inglesa, sobre o Brasil e o brasileiro a fim de mostrar: (i) a irrupção de discursos em torno da identidade, (ii) apontar a existência de estigma relacionado ao fato de ser brasileiro e de um sentimento de inferioridade por conta de diferenças na produção oral, o sotaque, quando se comparam a falantes oriundos de países de língua inglesa. Na seção seguinte, localizo as representações dos participantes sobre o que é ser bilíngue, a partir de três perguntas: (i) Qual língua você considera mais importante? Por quê?(ii) Você se considera bilíngue? Por quê? e (iii) O fato de se comunicar em mais de uma língua lhe modificou como indivíduo?

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3. Entre as diversas concepções do eu

Passa uma borboleta por diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo Que as borboletas não têm cor nem movimento, Assim como as flores não têm perfume nem cor. A cor é que tem cor nas asas da borboleta, No movimento da borboleta o movimento é que se move, O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta 29 E a flor é apenas flor.

Nesta seção, localizo, nas formações discursivas, as representações dos participantes sobre o que é ser bilíngue, a partir de três perguntas: Quadro 7: Perguntas que suscitaram as representações sobre o que é ser bilíngue (i) Qual língua você considera mais importante? Por quê? (ii) Você se considera bilíngue? Por quê? (iii) O fato de se comunicar em mais de uma língua te modificou como indivíduo? Fonte: Dados da Pesquisa

Esta seção está organizada em três partes. Na primeira, Da importância, trabalho com recortes discursivos que revelam a posição dos sujeitos perante as línguas que os constituem. Na segunda parte, De quem sou, apresento as representações dos sujeitos sobre o que é ser bilíngue. Na continuidade, na última parte, Das transformações, analiso os enunciados nos quais os participantes relatam mudanças percebidas por eles a partir de suas vidas entre línguas.

3.1 Da importância

Nesta parte, tenho como objetivo analisar os relatos dos participantes frente à pergunta: “Qual língua você considera mais importante? Por quê?”. A

29 CAIEIRO, A. (Fernando Pessoa). O Guardador de Rebanhos. In: POEMAS de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática. 1964/1993. p.64.

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partir das respostas obtidas, foi possível a localização de representações sobre a imbricação (ou não) da língua portuguesa e da língua inglesa. Considerando que a língua é um construto fundamental da constituição identitária do sujeito, conhecer essas representações sobre as línguas possibilita conhecer os modos de subjetivação daqueles que as falam e são por elas constituídos. Retomando a pergunta que norteia esta parte, dentre os nove bilíngues simultâneos participantes desta pesquisa, sete (77,8%) afirmam ter o inglês como sua língua de maior importância, um (11,1%) afirma que o português é, para ele, a língua mais importante e um sujeito (11,1%) declara-se em dúvida, como se pode visualizar no gráfico que segue:

Figura 10: Língua de maior importância para bilíngues simultâneos Fonte: Dados da Pesquisa

Um único sujeito, B5, diz-se indeciso frente à pergunta e argumenta que as duas línguas são, para ele, importantes por diferentes motivos: B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela sua praticidade no mundo.

Nesse recorte, a adversativa “mas” remete a uma contradição, a uma disputa, a uma tensão no discurso. Para B5, a língua mais importante é o português por sua beleza. Porém esse sentido escapa-lhe e instaura uma contradição quando contrasta a língua portuguesa com a língua inglesa no que tange à sua circulação no mundo. Para isso, B2 recorre ao discurso do inglês como língua internacional para justificar essa tensão. Essa representação pertinente à língua inglesa como língua internacional será recorrente tanto entre os bilíngues sequenciais quanto entre os simultâneos. 146

Dentre os bilíngues sequenciais, três (33,3%), dos nove, participantes desta pesquisa consideram o português como sua língua de maior importância. Dois desses sujeitos (22,2%) acreditam que o inglês é mais importante e quatro destes (44,4%) afirmam que as duas línguas são de igual importância em suas vidas, como ilustrado no gráfico seguinte:

Figura 11: Língua de maior importância para bilíngues sequenciais Fonte: Dados da Pesquisa

Grande parte dos recortes selecionados revela a notória ilusão da possibilidade de neutralidade das línguas que, para os sujeitos desta pesquisa, desempenham papéis diferentes. Logo, percebe-se, em seus enunciados, a ideia de que suas línguas possuem espaços protegidos que as separam, garantindo, dessa forma, sua pureza. É como se, para eles, suas línguas não se misturassem e não trouxessem mudanças subjetivas decorrentes do contato entre elas. Os enunciados de B4, S1 e S5 defendem essa visão de línguas unas, puras e separadas:

B4 As duas. Inglês porque é meu meio de sobrevivência, minha profissão, mas é o Português que preciso para me comunicar diariamente com as pessoas do meu trabalho. S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha formação pessoal e com minha vida de várias formas.

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S5 Apesar de o inglês ser essencial para meu trabalho em escola bilíngue, o português é a língua falado no meu país, a língua que mais utilizo para me comunicar com as pessoas ao meu redor.

B4, S1 e S5, ao enunciarem-se, parecem revelar a ideia de que cada uma dessas línguas é pura e inteira e, dessa forma, não estão em constante transformação graças ao contato com outras línguas. Como se, para B4, “a comunicação diária com as pessoas de seu trabalho” não se altera devido à sua vida-entre-línguas. Nesse sentido, pergunto-me: Será mesmo possível não se “contaminar” pela língua do outro? Sobre essa questão, Coracini (2007) salienta que todo ato de enunciação, todo uso de língua transforma não apenas o sujeito como também sua própria língua e cultura, pois “ele a altera, movimentando-a, deixa na língua e em si mesmo uma espécie de cicatriz, de marca, de ferida” (CORACINI, 2007, p. 50). Outro aspecto importante, percebido apenas entre os bilíngues sequenciais desta pesquisa, é a atribuição do português à característica de materno, colocando o inglês em uma posição de estrangeiridade, como se observa no fio do discurso de S1, S2, S3 e S8:

S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha formação pessoal e com minha vida de várias formas. O português é minha identidade.

S2 Português, por questões familiares. Foi a língua na qual constitui minha identidade na infância e adolescência. Inglês, por questões profissionais.

S3 Ambas, dependendo da situação. A língua portuguesa é usada em casa, nas relações familiares, e não poderia ser substituída. A língua inglesa é meu instrumento de trabalho e o idioma no qual converso com a maioria dos amigos mais íntimos, e nesses caos também não pode ser substituída.

S8 A língua portuguesa é minha língua materna. A maior parte das minhas relações/interações acontece nessa língua. Está ligada à minha cultura. É a língua que ensino ao meu filho. É, por tudo isso, a mais importante para mim.

Depreende-se desses relatos o mito da língua materna como sendo, de acordo com Melman (1992), a língua do saber, do gozo, do desejo, do conforto 148

e do bem-estar e a língua estrangeira como língua de comunicação com o outro, em um mundo globalizado. Além disso, verifica-se, nos enunciados de S1 e S2, a vinculação da língua portuguesa com suas constituições identitárias:

S1 O português é minha identidade.

S2 Português, por questões familiares. Foi a língua na qual constitui minha identidade na infância e adolescência.

Tanto S1 quanto S2 mobilizam, em seus dizeres, uma concepção do ser humano como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consiste num núcleo interior, que emergia, pela primeira vez, quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo. O conceito de identidade defendido, nos recortes de S1 e S2, é de que a identidade é fixa, imutável e que se constitui e se define em um determinado momento histórico da vida desses sujeitos, como explica Hall ao discorrer sobre o sujeito do iluminismo. Outro aspecto marcante que os participantes desta pesquisa trazem em seu funcionamento discursivo e que regem seu dizer é o papel da língua inglesa como agenciamento social, como enunciam B6, B7, S4 e S9:

B6 Hoje acho que o inglês, por motivos profissionais. Meu desenvolvimento e posição estão muito relacionados à língua inglesa.

B7 O Inglês é mais importante, pois a minha profissão se desenvolve nessa língua. S4 O inglês sempre foi meu diferencial na vida acadêmica e profissional, por isso acredito que ele seja o mais importante na minha vida. S9 Por ser de naturalidade brasileira, não há dúvidas de que o português seja a língua mais importante para mim, até porque é a minha ferramenta de comunicação dentro do país. Através da língua portuguesa, tenho acesso a vários estratos sociais e consigo ativar diversas normas da língua a fim de me comunicar melhor com meu interlocutor. Já a língua inglesa é mais importante no que diz respeito à carreira profissional, pois além de ser minha ferramenta de comunicação dentro do meu campo profissional, ela 149

também me traz prestígio, sendo responsável até por alterações de salário, caso possua mais conhecimento do que seus parceiros profissionais.

A língua inglesa é, por esses sujeitos, encarada como sendo importante por questões profissionais. No relato de S9, por exemplo, pode-se perceber o vínculo entre alterações salariais e maior prestígio por conta de sua desenvoltura na língua inglesa, o que vai ao encontro do discurso do inglês como necessário à ascensão social. Nessa direção, faz-se importante ressaltar que as representações da língua inglesa, na mídia impressa, parecem revelar um discurso que estabelece uma relação inextricável entre a língua inglesa e o mercado de trabalho. Essas representações, na mídia, são atravessadas pela promessa de ascensão econômica e social, para a qual a língua inglesa é definida como seu passaporte essencial, como se pode observar nos artigos expostos a seguir:

Figura 12: Universidade de São Paulo tornam inglês língua oficial Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/saber/909675-universidades-de-sao-paulo-tornam-ingles-lingua-oficial.shtml

Nessa matéria, vinculada pelo Jornal Folha de São Paulo, atribui-se ao inglês tamanha importância que, com o intuito de preparar os alunos para o mercado de trabalho, há universidades que ministram suas aulas em inglês. Na mesma direção, a Catho, importante site de classificados de currículos e 150

empregos da América do Sul, também defende a ideia de que o inglês é vital para o mercado de trabalho:

Figura 13: Inglês : saber o idioma é cada vez mais importante Fonte: http://www.catho.com.br/carreira-sucesso/noticias/ingles-saber-o-idioma-e-cada-vez-mais-importante

Nesse artigo, afirma-se que o domínio do inglês se tornou primordial para evoluir na profissão e para alcançar maiores patamares profissionais. O discurso da mídia enfatiza o inglês, dentre as línguas estrangeiras, como língua essencial no mundo atual. Nesse cenário, a língua portuguesa adquire um valor muito menor. Vale ressaltar que esse modo de significação das línguas parece determinar como o sujeito se relaciona com as línguas e é consequência, principalmente, do discurso da mídia. Nesse discurso, as línguas são vistas como mercadorias e suas características primordiais são seu valor em relação a outras mercadorias, ou seja, a outras línguas. É importante enfatizar que o discurso da mídia, assim como outros discursos que circulam na sociedade, interpela o sujeito e, consequentemente, influencia sua constituição identitária. Ao atribuir à língua inglesa o papel de agenciamento social, o sujeito, inconscientemente, identifica-se com o discurso

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hegemônico de superioridade que determina que uma língua seja mais importante do que as demais por seu valor mercadológico. Além disso, faz-se importante lembrar que esse discurso postula que a disseminação da língua inglesa é sempre positiva em qualquer situação e região. Nessa perspectiva, há um apagamento do fato de que o inglês atende a interesses específicos de certas classes e, assim, opera como um meio importante de propagação de desigualdades sociais, políticas e econômicas. Somando-se a isso, é possível vislumbrar, nas posições enunciativas analisadas, a importância atribuída à representação do inglês como língua internacional. Essa representação está associada à outra representação, que é a da língua, como instrumento de comunicação. Isso leva o enunciador a atribuir à língua uma função utilitária, e dela depreende-se o desejo do enunciador de possuir uma língua que é reconhecida pelo outro, o estrangeiro. Os dizeres de B5 e B8 ilustram bem essa ideia: B8 O inglês porque acho uma língua mais “universal”. B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela sua praticidade no mundo.

Nota-se, no dizer de B8, que as aspas na palavra universal assinalam as palavras do outro em seu discurso. Detecta-se, nesse sentido, o processo de heterogeneidade mostrada, que deve ser compreendido como formas linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso. Nesse sentido, pode-se referir que, para os sujeitos desta pesquisa, o apelo da ideologia da globalização é notório e está interdiscursivamente na formação discursiva dos discursos sobre as línguas.

3.2 De quem sou

Na segunda parte desta seção, discuto as representações sobre sujeito bilíngue e bilinguismo obtidas dentre as respostas à pergunta: Você se considera bilíngue? Por quê? 152

Vale ressaltar que as representações sociais sobre bilinguismo desempenham um papel primordial na constituição identitária de indivíduos que se deparam com situações de contato de línguas, como é o caso dos sujeitos desta pesquisa. Não se pode esquecer que as representações sociais, por se tratarem de saberes produzidos na sociedade, são capazes de produzir marcas, positivas ou negativas, no indivíduo ou no grupo em que ele se insere e, com isso, afetam a forma como o indivíduo se percebe e percebe o grupo que faz parte. Nesta pesquisa, dois, dentre os dezoito, participantes, um bilíngue simultâneo e um sequencial, não aceitam serem chamados de bilíngues, apesar de utilizarem o português e o inglês em suas interações diárias. Podese inferir que os enunciados proferidos por S3 e B9 mobilizam uma preocupação em dominar as línguas e, desse modo, utilizá-las com naturalidade: S3 Não. Porque, apesar de me comunicar razoavelmente na língua inglesa, ainda não sou capaz de usá-la com a mesma naturalidade da língua portuguesa.

B9 Não sei, pois creio que não domino nenhuma delas bem e tenho dificuldade com todas.

Observa-se que S3 confere ao seu dizer um sentimento de segurança em relação à sua língua materna, o português, e aduz não experimentar a mesma sensação de conforto em inglês. O enunciador emite, nesse relato, uma ilusão de que tudo o que disser na língua materna é controlável e da ordem do consciente e, assim, pode se expressar com naturalidade. S3 parece esquecer que a língua materna também é um lugar de equívoco e de malentendidos percebidos quando se fala, por exemplo, “não foi isso que eu quis dizer” ou outros enunciados dessa ordem. Na tessitura do dizer de S3, pode-se desvelar também um dizer sobre línguas distintas: a língua materna que o sujeito acredita ser completa e transparente e a língua estrangeira que é a língua do desconforto e do estranho. Depreende-se do dizer de S3 que, para ele, as línguas que o 153

constituem são línguas que funcionam separadamente e, sendo assim, são puras e homogêneas. Porém, de acordo com o discutido na seção “Vida entre línguas”, apreende-se que não há língua com tais características. Segundo Coracini (2007), a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido, pois traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito permanente com a ideologia da língua materna. Por sua vez, B9 afirma não dominar nenhuma língua. O termo dominar, por si só, já é problemático. Primeiramente, porque uma língua não é passível de dominação, uma vez que os sentidos lhe escapam. Seria como se, ao dominar uma língua, o indivíduo pudesse subjugar aquilo que o subjuga na condição de sujeito. Pode-se dizer, portanto, que dominar uma língua só pode ocorrer de maneira ilusória. Percebe-se, também, que tanto o português como o inglês são para esse sujeito como promessa, ou seja, línguas sempre desejadas, porém não alcançadas. B9 deseja a língua em sua totalidade e afirma ter dificuldade com inglês e com português por não dominá-las. Esse desejo de domínio parece conduzir a uma possibilidade ilusória de uma identidade fixa e una, na qual não haja tensão ou conflito. Em contrapartida, dezesseis, dos dezoito, participantes reconhecem legítima a denominação de bilíngue quando se referem a si próprios. Ao discorrerem sobre o porquê se consideram bilíngues, foi possível localizar suas representações sobre o que é ser bilíngue e o que é bilinguismo. A representação mais recorrente, dentre as obtidas nesta pesquisa, é a de que o sujeito bilíngue é aquele que se comunica bem ou com naturalidade em ambas as línguas: B7 Sim, sou bilíngue, pois consigo me comunicar tanto oralmente quanto na escrita em ambas as línguas

S1 Sim, porque gerencio ambas as línguas em todas as situações. S2 Sim, tenho um bom grau de fluência e precisão em mais de uma língua.

S7 Sim, porque consigo me comunicar e me expressar em duas línguas.

154

Essas justificativas dão indícios de que esses sujeitos veem a língua, mais uma vez, como um processo consciente e controlável, não subjugado a deslizes, chistes ou lapsos. Além disso, a visão predominante de bilinguismo aqui é focada na proficiência das línguas. Essas posições sobre quem é bilíngue estruturam-se dentro de uma perspectiva que considera apenas aspectos linguísticos para a definição de sujeito bilíngue e bilinguismo, como proposto por Macnamara (1967) e Barker e Prys Jones (1998), entre outros. Outros sujeitos preferiram distinguir as habilidades da língua, produção oral e compreensão auditiva para autodenominarem-se bilíngues: B2

Sim, porque considero que posso suficientemente bem nessas línguas.

me

comunicar

(verbalmente)

B8 Sim, porque entendo perfeitamente as duas línguas.

Nota-se que essas representações de língua, associadas às habilidades, levam a crer que a língua é tomada em seu papel instrumental de comunicação, reforçando a noção de exterioridade da língua, isto é, a língua, para esses sujeitos, é um lugar externo a eles e à sua identidade, ou seja, um lugar das necessidades sociais, como se comunicar, ou entender. Ademais, pode-se perceber, tanto em B2 quanto em B8, a interpelação pelo discurso tradicional que considera bilíngue apenas aquele que possui competência linguística equivalente em ambas as línguas. Acredito que essa concepção, a de bilinguismo balanceado, como proposto por Bloomfield (1935), que define bilinguismo como o controle nativo de duas línguas, ainda, vigora entre a sociedade atual e é amplamente utilizada para a definição de bilíngues. Na mesma direção, B6 afirma que se aceitou como bilíngue após um americano afirmar que suas habilidades linguísticas eram superiores se comparadas com bilíngues de pai e mãe. É importante relembrar que B6 é oriundo de uma família brasileira e é bilíngue simultâneo, pois estudou em uma escola internacional desde a primeira infância. B6 Sim, ao fazer amizade com um americano que trabalhava comigo, e por ele me tratar como igual e me comparar com outros bilíngues de pai e mãe (apontando que minhas habilidades linguísticas eram até superiores) eu me aceitei bilíngue.

155

Para B6 aceitar-se como bilíngue foi necessário o veredito de um falante nativo da língua que não é falada no país que mora. Nota-se, aqui, o papel do outro, falante nativo, no sentimento de pertença que o sujeito atribui ao grupo de bilíngues. Outra representação bastante recorrente foi a de que o sujeito bilíngue é aquele que adquiriu as duas línguas na primeira infância, sendo expostas a elas desde o nascimento: S4 Sim, pelo fato de tanto inglês e português estarem presentes na minha vida desde muito cedo, acredito que posso me considerar bilíngue nesse sentido.

Essa representação parece excluir outros tipos de bilíngües, como o bilinguismo adolescente e o bilinguismo adulto, conforme proposto por Hamers e Blanc (2000). No senso comum, os bilíngues simultâneos são os chamados “bilíngues reais” ou “bilíngues de verdade”, como se os demais tipos de bilinguismo não fossem legítimos. Outro aspecto interessante observado foi a atribuição de pensar por meio de uma das línguas ao fato de ser bilíngue: B3 Sim, porque misturo as línguas ao falar, e na maioria das vezes, penso em inglês e fui alfabetizada bilíngue. B5 Sim, porque penso nas duas línguas e, às vezes, confundo as duas.

B3 afirma pensar em inglês, enquanto B5 relata pensar nas duas línguas. Nesses recortes, desvela-se a construção de um dizer que remete a uma reprodução de falas, recolhida, pelo sujeito-enunciador, do senso comum, do interdiscurso, e oriunda do discurso pedagógico amplamente pregado no Brasil, que prioriza a oralidade em detrimento de outras habilidades e que dita aos alunos que devem pensar em inglês para serem fluentes. (rever se as alterações mudaram o sentido/estava confuso) Outro ponto interessante nos relatos de B3 e B5 é o fato de que ambos enunciadores atrelam o pensar em determinada língua à ideia de misturar ou mesmo confundir as línguas. Nesses casos, nota-se que B3 e B5 tomam como suas as palavras de uma voz anônima, a qual se produz no interdiscurso, 156

dessa maneira, apropriando-se da memória que se manifesta em seus discursos. Existe, ainda, no senso comum, certo receio ao bilinguismo, uma vez que é associado à confusão ou mistura de línguas, o que resultaria em baixo desenvolvimento cognitivo. Historicamente, o bilinguismo foi visto, por educadores, como prejudicial para o desenvolvimento cognitivo da criança. Pesquisas iniciais sobre o tema apontavam o bilinguismo como causa de baixo quociente intelectual, confusão linguística e até mudança de personalidade. Consequentemente, surgiu o mito de que o bilinguismo seria prejudicial ao desenvolvimento cognitivo da criança. Todavia outras pesquisas revelam que uma série de críticas metodológicas pode ser feita a esses estudos iniciais: os participantes bilíngues da pesquisa estavam em situação desigual, se comparados aos monolíngues, em termos socioeconômicos ou de proficiência na língua do teste aplicado. Além disso, muitas vezes, esses testes foram ministrados na língua de menor domínio dos participantes. Em estudos mais recentes, os quais fazem uso de modelos experimentais mais elaborados, essas variáveis foram mais bem-controladas e, com isso, os resultados apontaram uma direção bastante diferente. Vale ressaltar que, dentre as dezesseis respostas, à pergunta: Você se considera bilíngue? Por quê?, apenas, duas remetem a questões não linguísticas para se justificarem como bilíngues: S8 Sim, porque além de me comunicar na língua inglesa, ao adquirir outra língua, ainda que sem me dar conta no inícios, passei a incluir diferentes maneiras de “ler” o mundo, ou atribuir sentidos.

S9 Sim, por ter vivido em ambas as comunidades e ter presenciados diversas situações linguísticas em ambas as línguas, acredito fazer parte dessa comunidade bilíngue.

S8 direciona seu olhar a como a língua inglesa lhe proporcionou diferentes formas de atribuir sentido ao mundo. Uma das razões que motiva muitas pessoas a engajarem-se na aprendizagem de uma língua estrangeira é o desejo de ampliar os horizontes culturais. Sendo assim, S8 relata as vantagens associadas ao saber uma língua estrangeira, uma vez que a língua inglesa é encarada, no Brasil, como uma língua superior, mesmo por seu 157

percurso histórico. S9, por sua vez, relata que o fato de ter vivido em ambas comunidades linguísticas o caracteriza como bilíngue. Para S9, ser bilíngue não está relacionado apenas às línguas envolvidas, mas também ao fato de ter vivido em comunidades nas quais essas línguas eram utilizadas. Nesse

momento,

faz-se

importante

relacionar

esses

recortes

discursivos, que justificam a classificação desses sujeitos como bilíngues, ao conceito

de

classificação

de

Moscovici

(2003),

discutido

na

seção

Representações Sociais deste trabalho. As classificações, segundo o autor, são feitas comparando pessoas a um protótipo aceito como representante de uma classe. Observa-se, a partir dos recortes selecionados, que o protótipo mais aceito para a denominação bilíngue é a de alguém que utiliza as duas línguas com a mesma naturalidade. Classificar, esclarece o autor, implica em nomear. Ao nomear estes sujeitos como bilíngues, eles são incluídos em um complexo de termos específicos que o localizam no mundo. Embora quase todos os participantes aceitem ser chamados de bilíngues, é importante notar que nem todos aceitam sem ressalvas, como se observa nos enunciados, a seguir: S4. Embora o português seja o idioma predominante na minha vida familiar, pelo fato de tanto inglês e português estarem presentes na minha vida desde muito cedo, acredito que posso me considerar bilíngue nesse sentido. Mas, evidentemente, para certos assuntos, consigo me expressar melhor em minha língua-materna.

S5 Sim (dependendo da visão do que é ser bilíngue). Apesar de não possuir as mesmas competências nas duas línguas, eu me considero bilíngue.

S6 Sim, me considero, pois posso me comunicar em português, inglês e espanhol, claro que cometo erros de pronúncia e erros gramaticais, mas o importante, a meu ver, é transmitir a informação de forma objetiva para que ambas as partes façam cientes do conteúdo do mesmo.

S9 Por ter vivido em ambas as comunidades e ter presenciados diversas situações linguísticas em ambas as línguas, acredito fazer parte dessa comunidade bilíngue, apesar de sempre haver alguns espaços em branco a serem completados na segunda língua. Em resumo, ser bilíngue não é uma tarefa fácil, pois exige a fluência e eficiência de viver em duas línguas, em dois mundos, não digo perfeitamente, mas próximo do ideal.

158

Em todos esses recortes, os sujeitos fazem uso de uma adversativa que marca uma tensão e, com isso, uma nova direção argumentativa na textualidade da narrativa, o que faz emergir contradições do interior das formações discursivas: a língua deixa marcas, traços e instaura a falta e o desejo do sujeito de dominá-la por completo, como se isso lhe fosse possível. Todos esses falantes, ao comentarem sobre seu bilinguismo, justificam-se por não ter um controle nativo ou balanceado nas duas línguas, como sugerem as visões tradicionais de bilinguismo. Na verdade, pode-se constatar que todos os recortes descritos remetem à visão que cada indivíduo possui de sua bilingualidade, que pode ser mutável e dinâmica de acordo com as situações de bilinguismo que lhe são apresentadas. S9 compara ser bilíngue a uma tarefa, que complementa não é fácil, uma vez que exige, nas palavras do participante, viver próximo do ideal em dois mundos. Observa-se, aqui, novamente a ideia de ideal, perfeito e de domínio completo. Este mesmo falante também faz referência a espaços em branco em sua vida, como se a vida em uma língua funcionasse de modo autônomo da vida em outra língua. Este dizer está em conformidade com o discurso de B4 que descreve que:

B4 Tenho déficits culturais e educacionais de ambos os lados, mas isto não me incomoda mais... sei onde achar ajuda quando preciso.

Para B4, a vida em uma língua o privou de outra vida em outra língua e, com isso, há uma sentimento de que falta alguma coisa, algum espaço a ser preenchido. B4 afirma ainda que consegue contornar essa falta e buscar ajuda quando precisa. Esses recortes argumentam a favor de uma visão tradicional de bilingüismo, que defende a ideia da existência de espaços monolíngues protegidos e, desse modo, estar em um desses espaços faz com que o sujeito se ausente do outro espaço reservado à outra língua e, com isso, há sempre a sensação de que se perdeu algo enquanto se ocupava um dos espaços. A meu ver, há pelo menos um motivo para esta dificuldade de se ver como bilíngue. Conquanto se observe no Brasil uma crescente valorização da língua inglesa e uma significativa penetração do inglês por meio de músicas e 159

da tecnologia, indivíduos que aprendem inglês não se enxergam como bilíngues. Vigora, ainda, no Brasil, o ideal monolíngue e, dessa forma, ser bilíngue exige definições e justificativas, como se nota entre as narrativas de dois participantes: S1 A questão do bilingualismo puro e ou total, em minha opinião, deve ser visto partindo do ponto de vista que um se sentirá bilíngue devido ao nível ideal, e ou desejável, do uso e razão do uso de qualquer idioma. Ou seja, se um acredita que dar instruções básicas em outro idioma é suficiente, e as mesmas funções satisfazem as necessidades de comunicação desejada, o mesmo poderá se considerar bilíngue. Em outras palavras, o sucesso é relativo, pois quem o determina é o próprio falante/aprendiz. S9 A palavra “bilíngue” é um pouco traiçoeira. Ser bilíngue, para alguns autores, não significa somente dizer uma porção de vocábulos ou frases em duas línguas, significa conhecer profundamente a cultura da língua em questão e ativar o vocabulário, a frase e a entonação correta para aquela determinada situação.

Nos dizeres de S1 e S9 percebem-se claramente as várias vozes constitutivas de seus discursos. S1, inicialmente, tenta marcar sua voz com “em minha opinião”, porém há um deslize de sentido e em seguida faz uso de “um” para fazer alusão a uma categoria, ao sujeito bilíngue. Há ainda o discurso científico que está implícito em seu dizer, quando traz à tona as necessidades de comunicação. S9, por sua vez, ao trazer as vozes de outros autores, dá credibilidade ao seu discurso. Esse movimento dialógico auxilia na construção de seu ponto de vista. S9 traz essas vozes e se une a elas, utilizando-as como um argumento de autoridade. A análise do corpus desta pesquisa mostra que o discurso científico, ora explícito ora implícito, foi um recurso importante para a definição de bilíngue por parte dos participantes deste estudo. Os conceitos de bilinguismo, sustentados pelos sujeitos, moveram-se dentre as concepções clássicas de bilinguismo, que enfocam o domínio balanceado das habilidades da língua.

160

3.3 Das transformações

Nesta seção, analiso, entre as respostas dos participantes, as transformações decorrentes de tornarem-se bilíngues. O quadro, a seguir, apresenta as características que aparecem nos comentários dos sujeitos como decorrências de sua condição entre línguas: Quadro 8: Transformações em decorrência de ser bilíngue

Características

Número de vezes

1) contato com outras culturas

7

2) visão mais flexível e aberta

3

3) fortalecimento com pessoa/segurança

5

4) maior facilidade em aprender outras 1 línguas 5) vantagens profissionais

3

Fonte: Dados da Pesquisa

O contato com outras culturas é a resposta mais recorrente entre as justificativas de transformações devido à condição de ser bilíngue. Dessa forma, verifica-se o desejo pelo outro, o desejo da língua estrangeira, do estranho, do outro que o constitui. O recorte, a seguir, ilustra, como explica Coracini (2007), casos em que aprender uma língua estrangeira constitui uma forte atração para o sujeito, que pode ser explicada como o desejo do outro. Outro que o constitui e cujo acesso é interditado e que ilusoriamente tem o poder de o fazer uno e completo:

B6 Eu me constitui muito através da minha identidade de aluno e de falante de inglês desde muito cedo. Eu tinha orgulho de falar a língua, eu me sentia especial, diferente. Até por fazer parte de uma família que não falava inglês. Foi uma forma de eu me fortalecer como pessoa durante uma adolescência conturbada e permanência incerta em casas de familiares. Era uma coisa que era minha, era certa e ninguém podia me tirar. Acredito que isso me fortaleceu e me modificou como indivíduo.

Este relato corrobora o já mencionado por Prasse (1997), que exemplifica que o desejo pelas línguas estrangeiras se alimenta de duas 161

fontes: inveja dos bens e da maneira como gozam os outros e a inquietação de não conseguir encontrar seu próprio lugar na língua materna. Neste caso, parece que B6, por não encontrar lugar em sua língua materna: durante uma adolescência conturbada e permanência incerta em casas de familiares, tem a língua estrangeira como um refúgio para se afirmar no mundo e, como não consegue encontrar seu próprio lugar, tem a ilusão de encontrá-lo em sua língua estrangeira, quando diz: Eu tinha orgulho de falar a língua, eu me sentia especial, diferente, foi uma forma de eu me fortalecer como pessoa. Verificase que S4 também afirma ter encontrado este lugar privilegiado por meio da língua estrangeira:

S4 Muitos dos produtos culturais que influenciaram a minha adolescência foram consumidos em inglês (filmes, músicas, revistas, internet e e-mails com pessoas que tinham inglês como primeira língua e como língua estrangeira) e isso, sem dúvida, abriu as portas para novos conhecimentos de mundo e, de uma certa forma, garantia um espaço privilegiado, um espaço que só eu tinha acesso porque só eu falava “o meu idioma”. Era a minha porta para outros mundos, coisa que, considerando a época em que a internet ainda era discada e os acessos muito mais restritos do que os adolescentes tem hoje em dia, me garantia um espaço privilegiado e “secreto”.

A língua estrangeira é, para S4, a língua que permite dar vazão a desejos interditados, criando a impressão de liberdade, uma vez que se constitui nas zonas de não interdição, como afirma Coracini (2007). Outro aspecto recorrente, localizado entre os recortes selecionados nesta pesquisa, é a noção criticada, por García (2008), de que indivíduos bilíngues, muitas vezes, são vistos como duplos monolíngues:

S9 A partir do momento que você se considera um bilíngue, você passa a ter “duas” identidades e isso modifica a pessoa como um todo.

Este recorte, mais uma vez, reafirma a visão monoglóssica com que se olha para o fenômeno do bilinguismo. Esta visão penetra nos discursos e faz com que esses sujeitos criem imagens de quem são, o que reflete diretamente em suas constituições identitárias. Moscovici (2003) ilustra esta ideia ao salientar que, ao classificar-se algo ou alguém, confina-se este objeto a um 162

conjunto de comportamentos e regras que estipulam o que é ou não permitido a todos os indivíduos pertencentes a essa categoria ou classe. Dessa forma, percebe-se, ao longo desta análise, que o sujeito bilíngue ficou confinado, a partir desta classificação, a um conjunto de regras e comportamentos ao qual deve seguir e que culmina na ilusória ideia da existência de dois sujeitos monolíngues em seu ser bilíngue. Dois dos sujeitos participantes relatam conflitos ou sofrimentos experimentados devido à sua condição bilíngue.

B3 Até hoje existe uma confusão mental com as línguas, mas por viver no Brasil acredito que, no começo, era difícil, mais adulta, eu já me sentia brasileira completamente, mas sempre existe um “algo” de diferença que sinto emocionalmente, difícil de explicar, confesso.

B4 Dos 19 aos 21 vivi uma crise bárbara: não sabia minha identidade, se era americana ou brasileira. Tinha cara de americana (biótipo), falava inglês como nativa, mas não me sentia americana de jeito algum...o jeito de me relacionar com os outros era muito brasileiro, o jeito de comer também embora tivesse acostumada a “jello salad, waffles, pancakes”, não me identificava em nada com os americanos- achava-os ingênuos, politicamente alienados. Todos meus amigos, neste período, ou eram brasileiros ou estrangeiros, e a grande maioria pós-graduandos. Fiz minha graduação de 4 anos em 3 para voltar voando para o Brasil, mas ainda em crise. Na volta fiz terapia para me ajudar. Lembro que sentia falta de achar alguém com quem fazê-lo em inglês... na época só conseguia expressar meus sentimentos mais íntimos em inglês... Agora em retrospectiva, acho que na verdade não era a questão de me expressar em inglês, mas de achar alguém que pudesse entender este conflito bicultural, e me ajudar a me aceitar como sendo de duas culturas.

No discurso de B3, verifica-se uma tentativa de manter suas línguas em campos e áreas separadas e autônomas. B3 ressente-se com o que denomina de mistura das línguas, deseja possuir línguas puras, independentes e transparentes. Ademais, relata sentir “algo” de diferença, o uso das aspas remete a uma não coincidência no dizer, como que esse “algo” não representasse, ou coincidisse com esta palavra. B4, por sua vez, busca uma identidade fixa, una e imutável. Sofre por não saber sua identidade e, a partir disso, pergunto-me: Será possível sabê-la, uma vez que é dinâmica, fluída e múltipla? Esta sensação de falta fez com que este sujeito construísse uma prótese no intuito de superar esse conflito. B4 tem 163

na terapia um dos tipos de prótese derridiana. A terapia parece, neste caso, uma tentativa de recuperar ou inventar uma narrativa da história familiar e de alguma forma, entender seu conflito.

164

E, por fim, um recomeço Sempre chega a hora em que descobrimos que sabíamos muito mais do que antes julgávamos. José Saramago30

30 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.143.

165

166

E, POR FIM, UM RECOMEÇO A finalização de uma pesquisa é sempre uma retomada, um momento de amarrar os fios que teceram o texto. Ao reunir as imagens de Escher em um só desenho, faço uma tentativa de alinhavo final ao revisitar as perguntas de pesquisa, que penso terem sido tangenciadas à medida que foi criado um espaço

de

escuta

para

que

os

sujeitos

bilíngues,

neste

trabalho,

compartilhassem narrativas de quem são ou esperavam ser. Inicialmente, ao decidir que teria nove sujeitos bilíngues simultâneos e nove sequenciais entre os participantes desta pesquisa, acreditava que encontraria diferenças, entre os dois grupos, no que concerne às relações destes com as línguas que os constituem e consigo mesmos. O exercício desta pesquisa mostrou-me o contrário: as dúvidas, os conflitos e as questões identitárias mobilizadas foram bastante semelhantes, o que me faz concluir que a experiência de ser/estar entre línguas não é tão facilmente mensurável; antes, não passa de ilusão, porque, a todo o momento, o sujeito se vê frente ao desconhecido na língua que pensa ser sua, ao inesperado que não se quer enfrentar ou ao mal dito que se deseja não ter dito. Minha primeira pergunta referia-se a como as identidades dos sujeitos foram se (trans)formando em sua relação com as línguas. A partir dos dados obtidos, verificou-se, entre os sujeitos desta pesquisa, todos brasileiros, o desejo de se aproximar do lugar do falante nativo oriundo de países de língua inglesa. Este desejo aponta para o processo de identificação com a língua do outro, que passa a ser constitutiva da identidade do sujeito bilíngue e, com isso, desloca sua identificação com a língua materna e com o lugar que ela ocupa. Outro aspecto recorrente entre as narrativas obtidas foram as expectativas compartilhadas socialmente no que se refere ao modo como um sujeito bilíngue deve falar, ser ou agir. A partir dessas expectativas, observase, por parte dos bilíngues, um movimento de reposição de identidades pressupostas. Assim, esses sujeitos trabalham inconscientemente num movimento para “repor” aquilo que a sociedade “põe” como certo, tanto no que 167

se refere ao modo de falar e ao sotaque, quanto à forma como um brasileiro deveria se comportar. Observou-se também, entre os participantes, o encobrimento, isto é, a manipulação da informação que gera o estigma – neste caso, o sotaque. Esses sujeitos tentam corrigir diretamente o que consideram a base objetiva de seu defeito, ocorrendo a vitimização. No caso específico deste trabalho, como o sotaque brasileiro é visto como um problema ou defeito a ser corrigido, observa-se o esforço para o apagamento de qualquer sotaque ou marcas na fala que caracterizam esse sujeito como brasileiro. Alguns sujeitos relataram terem sofrido sanções e reprimendas por não atenderem às expectativas normativas da sociedade acerca do sotaque que um falante competente deve ter. Isso prova que ainda hoje se verifica, em escolas e institutos de idiomas, o interesse na preservação do status quo, pois se considera que a necessidade do aluno está na aquisição fonológica de uma variedade de prestígio do falante nativo, o que contribui para disseminação desse processo de vitimização de falantes brasileiros de língua inglesa. É interessante perceber que há, entre os sujeitos desta pesquisa, um único que parece fazer um movimento diferente dos demais que se engajaram numa constante reposição da identidade pressuposta. Esse sujeito parece superar essa pressuposição e, desse modo, não se observou, em seu discurso, uma “reposição” daquilo que a sociedade “põe” como certo. De outra feita, S2 demonstrou, em seu discurso, um agir mais livre e criativo para realização de suas metas e desejos, saindo do movimento de reposição e buscando o outro “outro”, movimento esse denominado por Ciampa (1990) de mesmidade. Dessa forma, observou-se que S2 se distancia perante as expectativas dos outros ao desempenhar papéis, o que o torna, como explica Goffman (1988), um sujeito desafiliado ou desviante social, uma vez que voluntária e abertamente se recusa a aceitar o lugar social que lhe é destinado. Outro aspecto importante para responder a esta pergunta de pesquisa é o de que todos os sujeitos acreditam ter sofrido transformações em decorrência de sua condição como bilíngue. O contato com outras culturas é a resposta mais recorrente entre as justificativas dessas transformações. Dessa forma, verifica-se o desejo, pelo outro, o desejo da língua estrangeira, do estranho e 168

do outro que o constitui. Esse desejo pelas línguas estrangeiras alimentou-se, entre os sujeitos desta pesquisa, principalmente de uma tentativa de encontrar um lugar que parecia ser impossível ser encontrado em sua língua materna ou em uma de suas línguas. A língua estrangeira, ou no caso de bilíngues simultâneos, uma de suas línguas, serviu como um refúgio para se afirmar no mundo e a possibilidade de encontrar um lugar que lhe foi negado em sua língua materna. A segunda pergunta de pesquisa abordava a relação desses sujeitos com as línguas que os constituem. Dentre os dados obtidos, é notória a ilusão da possibilidade de neutralidade das línguas que, para os sujeitos, desempenham papéis diferentes sem trazerem mudanças subjetivas e sem se misturarem. Os sujeitos, ao enunciarem-se, revelam a ilusão de que cada uma de suas línguas é pura e inteira e, dessa forma, não estaria em constante transformação graças ao contato com a outra língua. Verifica-se, também, uma contradição quando os sujeitos de pesquisa contrastam a língua portuguesa com a língua inglesa no que tange à sua circulação no mundo. Muitos recorrem ao discurso do inglês como língua internacional e franca do mundo, língua de agenciamento social, sendo importante por questões profissionais. Este discurso tende a silenciar aspectos negativos deste fenômeno como o fato de o inglês ser a língua do colonialismo ou do interesse das classes dominantes e desse modo conseguir operar como um meio importante mediante o qual as desigualdades políticas, sociais e econômicas são mantidas. Esses mesmos sujeitos, por sua vez, atribuem ao português a característica de materno, colocando o inglês em uma posição de estrangeiridade, o que reforça o mito da língua materna como sendo a língua do saber, do gozo, do desejo, do conforto e do bem-estar e a língua estrangeira como língua de comunicação com o outro em um mundo globalizado. Somando-se a isso, uma representação recorrente sobre a língua portuguesa é ser considerada uma língua difícil, contrastando com imagem da língua inglesa como uma língua fácil e prática. Ao classificar uma língua como difícil ou fácil, o enunciador vê a língua como sendo externa a si mesmo, e isso equivale a vê-la como um instrumento de comunicação.

169

A dificuldade da língua portuguesa é definida pela quantidade de regras das gramáticas normativas. Esse conhecimento de gramáticas e dicionários são verdades construídas sobre a língua, e isso culmina no estabelecimento do que pode ou não ser dito e da forma como pode ser dito em determinados contextos, de acordo com uma língua portuguesa que não pertence a todos os falantes, mas apenas aos mais escolarizados e socialmente reconhecidos, e, dessa forma, autorizados a dizer algo sobre as línguas. A qualificação difícil que se atribui à língua portuguesa é materializada quando o sujeito, ao justificar sua posição, dá ênfase às regras gramaticais que, para ele, são impossíveis de serem colocadas em uso. A percepção de que há muitas regras e não são utilizadas pelos falantes faz com que veja sua língua portuguesa como incompleta, na ilusão de que apenas as gramáticas e dicionários a teriam em sua completude. Esses enunciados revelam a falta constitutiva do enunciador, assim como seu desejo por uma língua “perfeita”. Essa língua “perfeita” pertenceria, de acordo com os sujeitos desta pesquisa, a indivíduos especiais como escritores e intelectuais. Ao se referir a esses supostos falantes dessa língua “perfeita”, faz-se uma comparação com os falantes comuns, que conforme os enunciadores, não a possuem. Dessa forma, observa-se um deslize do domínio da língua para a posição que esse falante ocupa na sociedade, o que mostra que olhar para língua é também olhar para o enunciador e tudo o que simbolicamente a ele está relacionado, seu status, profissão e prestígio, dentre outros aspectos. Esse olhar para quem enuncia é determinado pelas identificações do sujeito que são interpeladas pelo inconsciente do enunciador, ancorando suas representações de língua ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que começa a desejá-la, e dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como insuficiente e inacabado, sempre, vislumbrando uma falta que é constitutiva ao sujeito. Esta sensação de falta fez com que esses sujeitos construíssem próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la (prótese derridiana). Neste caso, a prótese manifestou-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza da língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística.

170

A terceira pergunta objetivava entender como esses sujeitos ao se enunciarem constroem imagens de si e do Outro. Observa-se, entre as narrativas selecionadas, a presença de identidades sociais virtuais que são constituídas pelas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo outro deveria ser, ou seja, de como um brasileiro ou um latino deveria ser. Essa discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real foi responsável pela produção do estigma identificado entre os participantes. Os sujeitos participantes desta pesquisa têm consciência de que possuem atributos que os diferenciam dos americanos, mas também não se identificam com o rótulo de latino ou de brasileiro. Verifica-se, entre os sujeitos, uma tentativa de constituir sua própria identidade, uma busca em tentar ser completo na língua do outro e um sentimento de identidade que emana necessariamente do outro. Outro ponto importante é a dificuldade dos sujeitos desta pesquisa de se verem como bilíngues. Embora observe-se, no Brasil, uma crescente valorização da língua inglesa e uma significativa penetração do inglês por meio de músicas e da tecnologia, indivíduos que aprendem inglês não se enxergam como bilíngues. Vigora, ainda, no Brasil, o ideal monolíngue, dessa forma, ser bilíngue exige definições e justificativas como se nota entre as narrativas dos participantes, que tentam buscar, na teoria, explicações para a aceitação de sua condição. É como se o sujeito não fosse autorizado a falar sobre sua condição de bilíngue, o que faz com que procure, em enunciadores que considere autorizado, uma justificativa para seu sentir ou pensar. Novamente, verifica-se um deslocamento para a posição que o falante ocupa na sociedade, o que divide os sujeitos em autorizados ou não autorizados a discorrer sobre o tema. Ademais, observou-se a dificuldade em se classificar bilíngue, que decorre também da representação social que se tem a respeito do bilinguismo. Essa classificação é feita ao se comparar pessoas a um protótipo aceito como representante de uma classe, no caso, a de indivíduos que falam duas línguas. Percebeu-se, nesta pesquisa, que o protótipo mais aceito para a denominação bilíngue é a de alguém que utiliza as duas línguas com a mesma naturalidade. Somando-se a isso, a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido, 171

pois traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito permanente com a ideologia da língua materna. Outros sujeitos, ao narrarem aspectos relacionados à sua bilingualidade, apresentam, dentro de suas formações discursivas, marcas de tensão que demonstram que a língua deixa marcas, traços e instaura a falta e o desejo do sujeito de “dominá-la” por completo, como se isso lhe fosse possível. As respostas obtidas por meio das minhas perguntas de pesquisa suscitaram-me um movimento que me faz pensar em como a escola ou institutos de idiomas poderiam trabalhar o ensino de língua estrangeira focalizando a concepção de identidade do sujeito e das diversidades, tendo em vista a importância da relação língua e identidade a partir da dimensão da alteridade discursiva. Primeiramente, acredito ser importante o entendimento de que o encontro da língua materna com a língua estrangeira pode gerar um confronto, pois à medida que mecanismos psíquicos na aprendizagem da língua estrangeira

são

acionados,

mecanismos

inconscientes

remetem

a

particularidades específicas que o sujeito mantém com a língua materna. Como afirma Coracini (1998), a aprendizagem de uma língua estrangeira ocorre na rede emaranhada de confrontos tecidos a partir da língua materna, urdindo o inconsciente e alterando sua configuração pela problematização do outro e da diferença. Além disso, considero importante o entendimento de que aprender uma língua estrangeira implica sempre em um questionamento e uma perturbação do conhecimento adquirido sobre o mundo, dos valores e ideologias inscritos no sujeito. Se, como Revuz (1995) postula, a língua é o material fundador do psiquismo humano, aprender uma segunda língua é um processo delicado, pois significa além da relação com o saber, a relação com nós mesmos. Dessa forma, se, como defendido ao longo deste trabalho, ao aprender a falar se aprende, sobretudo, um conjunto de crenças e desejos das pessoas que cercam esse sujeito, aprender a falar é, em meio ao desejo do outro, formular hipóteses partindo de seu próprio desejo. Assim, pode-se assumir que alguns aprendizes monitoram seu aprendizado aceitando esse novo modo de vislumbrar o mundo; enquanto outros, inconscientemente, podem bloquear sua 172

aprendizagem, rejeitando-a, uma vez que aceitar a nova língua significa um deslocamento das ideologias que já estavam internalizadas no indivíduo. Perante a tais premissas, acredito que a pergunta que se segue a este estudo é: Quais são os desdobramentos para se pensar o ensinoaprendizagem de língua estrangeira a partir das considerações tecidas aqui? Creio que, primeiramente, haja a necessidade de se redefinir a questão do ensino de línguas. De forma geral, observa-se um grande descompasso entre “para que”, “por que” e “como” ensinar a língua inglesa no Brasil. Para tanto, um aspecto fundamental que merece ser repensado é a formação de professores de língua inglesa. Esses profissionais, na maioria das vezes, com uma visão de mundo monocultural e monolíngue, apenas, corroboram a reprodução do pensamento vigente. No Brasil, os professores de língua não são instrumentalizados para pensar meios de tornar a língua inglesa um instrumento

de

singularização

dos sujeitos-alunos dentro do

sistema

dominante. Dessa forma, as aulas de inglês, que seriam um cenário propício para embates culturais e políticos, dessa maneira, possibilitando a tematização de um mundo multicultural construído em outra língua, transformam-se, na melhor das hipóteses, em um mero local para memorização de estruturas linguísticas. Tais práticas só se fariam possíveis por meio de uma formação que possibilite ao professor compreender os sentidos da presença da língua inglesa no cenário brasileiro atual, conhecendo os modos de subjetivação daqueles em contato com essa língua e, consequentemente, avançando na reflexão sobre o binômio língua e identidade. Nesse sentido, ainda há um longo caminho a percorrer. Ao final desta pesquisa, pergunto-me: Como concluir este trabalho? São tantas ainda as perguntas que me perturbam. Talvez, possam ser respondidas em uma próxima pesquisa. Quem sabe? Aprendi mesmo que a pesquisa nunca chega realmente ao fim; tendo-se de forçar, em meio à violência da palavra, um ponto final.

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Referências Bibliográficas

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CRÉDITOS Obra 1: Who am I http://mushy-pea.deviantart.com/art/Confused-32533539 Obra 2: Hand with Reflecting Sphere http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/esfera.html Obra 3: Stair cases http://www.zbrushcentral.com/showthread.php?38838-Escher-Stair-cases Obra 4: Three Worlds http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ en/8/85/Three_Worlds.jpg&imgrefurl=http://en.wikipedia.org/wiki/Three_Worlds &h=425&w=290&sz=44&tbnid=5ZPd5f3Waneu1M:&tbnh=90&tbnw=61&prev=/s earch%3Fq%3Dthree%2Bworlds%2Bescher%26tbm%3Disch%26tbo%3Du&zo om=1&q=three+worlds+escher&docid=qWpomKgJ6IqAcM&hl=ptBR&sa=X&ei=ilxbT-DbJpO2tweqjvmEDA&ved=0CC8Q9QEwAQ&dur=1637 Obra 5: Bond of Union http://www.mcescher.net/photo.php?idx=6 Obra 6: Tower of Babel http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/babel.html Obra 7: Relativity http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/relatividade.html Obra 8: Balcony http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/varanda.html Obra 9, 10 e 11: Metamorphosis II http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320A.jpg http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320B.jpg http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320E.jpg Obra 12: Rind http://www.mcescher.com/Gallery/recogn-bmp/LW401.jpg 183

Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término, certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos dentro da gente..." Guimarães Rosa

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Apêndice A

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem

Parte I - Ficha de dados pessoais do participante Nome: _________________________________________

Sexo: ( ) feminino ( ) masculino

Idade: ___ Nacionalidade___________________________ rofissão:____________________ País de origem do pai: ____________________ País de origem da mãe: ___________________ País de origem dos avós maternos: _________________________________________________ País de origem dos avós paternos: _________________________________________________ Profissão do pai: ________________________

Profissão da mãe:______________________

Parte II - Questionário 1. Quais línguas você utiliza em suas interações diárias?________________________________ 2. Como você aprendeu suas duas línguas? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 3. Em quais situações você utiliza cada uma destas línguas? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 4. Em que língua você se sente mais confortável nas seguintes situações: a) conversar com um amigo? _______________ e) ler? _______________________________ b) orar? _______________________________

f) escrever? __________________________

c) contar? ______________________________ g) reclamar? __________________________ d) xingar? ______________________________ h) explicar seu ponto de vista? ____________ 5. Qual de suas duas línguas você mais aprecia? Por quê? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 186

6. Qual de suas línguas é mais importante para você? Por quê? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 7. Você se considera bilíngue? ( ) sim ( ) não. Por quê? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 8. O fato de se comunicar em mais de uma língua te modificou como indivíduo? ( ) sim ( ) não. Por quê? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ 9. Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às línguas que utiliza? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 10. Como você acha que é visto por estes grupos sociais? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 11. Você se preocupa com seu sotaque? ( ) sim ( ) não. Por quê? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 12. Você acha que crianças devem aprender outras línguas, além da primeira língua da família? ( ) sim ( ) não. Por quê? ____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________

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