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FIGURAS DA VIOLÊNCIA MODERNA: Confluências Brasil/Canadá

A presente obra é uma seleção de textos apresentados no Simpósio Internacional Figuras da Violência Moderna, promovido pelo Núcleo de Estudos Canadenses da Universidade do Estado da Bahia (NEC/UNEB), em parceria com o Núcleo de Estudos Canadenses da Universidade Estadual de Feira de Santana (NEC/UEFS), e realizado em 14 e 15 de dezembro de 2009. Conselho Científico: Ana Rosa Ramos (UFBA) Bertrand Gervais (UQAM/Canadá) Carlos Augusto Magalhães (UNEB) Cláudio Cledson Novaes (UEFS) Eurídice Figueiredo (UFF/CNPQ) Licia Soares de Souza (UNEB/CNPQ) Marcel Lavallée (UQAM/Canadá) Rita Olivieri-Godet (Universidade Rennes 2/França) Rui Dias Aguiar (UNEB) Zilá Bernd (UFRGS) Comissão Organizadora do Simpósio: Edson Miranda dos Santos Licia Soares de Souza Luiza Teles Santos Realização: Universidade do Estado da Bahia — UNEB Reitor: Lourisvaldo Valetim da Silva Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa Maraux Pró-Reitoria de Extensão — PROEX/UNEB Pró-Reitora: Adriana Marmori Pró-Reitoria de Pesquisa e Ensino de Pós-Graduação — UNEB Pró-Reitor: Wilson Roberto de Mattos Núcleo de Estudos Canadenses — NEC/UNEB Coordenador: Edson Miranda dos Santos Vice-Coordenadora: Maria Celeste Freitas Moreira Universidade Estadual de Feira de Santana — UEFS Reitor: José Carlos Barreto Santana Vice-Reitor: Washington Almeida Moura Pró-Reitoria de Extensão — PROEX/UEFS Pró-Reitora: Maria Helena Besnosik Núcleo de Estudos Canadenses — NEC/UEFS Coordenador: Nigel Hunter Vice-Coordenador: Washington de J. S. da F. Rocha Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado da Bahia — FAPESB Associação Brasileira de Estudos Canadenses — ABECAN Governo do Canadá, Embaixada do Canadá Rede BRACERB / CERB-UQAM Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem — PPGEL/UNEB Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade — PÓS-CULTURA/UFBA Centre de Recherche sur le Texte et l’Imaginaire — FIGURA/UQAM

FIGURAS DA VIOLÊNCIA MODERNA: Confluências Brasil/Canadá

Organização: Cláudio Cledson Novaes Licia Soares de Souza Roberto Henrique Seidel

© dos autores, 2010

Universidade Estadual de Feira de Santana — UEFS Reitor: José Carlos Barreto Santana Vice-Reitor: Washington Almeida Moura UEFS Editora Conselho Editorial: Eraldo Medeiros Costa Neto (Diretor) Eduardo Chagas Oliveira (Editor) Antônio Silva Magalhães Ribeiro Wilson Pereira de Jesus Jean Fernandes Barros Antônio Delson Conceição de Jesus Francisco Ferreira de Lima Maria Ângela Alves do Nascimento Ângelo Amâncio Duarte Coordenação editorial: Roberto Henrique Seidel Assistente editorial: Luiza Teles Santos Revisão: os autores Tradução (francês): Licia Soares de Souza, Sérgio Cerqueda, Melissa Mello Imagem da capa: Francisco Zorzo Artefinalização da capa: Eduardo Nunes da Silva

Ficha Catalográfica: Biblioteca Central Julieta Carteado (UEFS) F484

Figuras da violência moderna: confluências Brasil/Canadá / Organização: Cláudio Cledson Novaes, Licia Soares de Souza, Roberto Henrique Seidel. — Feira de Santana: NEC; UEFS Editora, 2010. 252 p. : il. ISBN 978-85-99799-12-3 1. Violência. 2. Cultura — Arte. 3. Cultura — Mídia. I. Novaes, Cláudio Cledson. II. Souza, Licia Soares de. III. Seidel, Roberto Henrique. CDU: 008:301.151.56

Núcleo de Estudos Canadenses — NEC/UEFS Avenida Transnordestina s/n Bairro Novo Horizonte Campus Universitário, Módulo 2, MT 23 CEP 44036-900 — Feira de Santana — BA Fone/Fax: 55 75 — 3224-8133

UEFS Editora Avenida Transnordestina s/n Bairro Novo Horizonte Campus Universitário, Prédio da Reitoria CEP 44036-900 — Feira de Santana — BA Fone/Fax: 55 75 — 3224-8380

SUMÁRIO Apresentação ......................................................................................................................

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Licia Soares de Souza Mídia, violência e cidadania ..........................................................................................

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Ana Rosa Neves Ramos Alba Regina Neves Ramos Frustrar o espetáculo da violência: Representar os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 ..............................

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Bertrand Gervais O desafio da violência .....................................................................................................

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Carlos Alberto da Costa Gomes Perspectivas da violência da obra de Olney São Paulo .......................................

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Claudio Cledson Novaes A violência no jornalismo sensacionalista baiano: a cultura do espetáculo

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Cláudio Gonçalves Gomes Violência carcerária e subjetivação a partir dos escritos de Luiz Alberto Mendes: ‚a pris~o é uma coisa demasiado estúpida‛ ..........................................

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Denise Carrascosa Violência em textos de autoria feminina ..................................................................

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Eurídice Figueiredo Força, poder e violência em discursos prisionais ..................................................

91

Heleusa Figueira Câmara Formas kafkianas em romances quebequenses e brasileiros contemporâneos ........................................................................................................................................

101

Licia Soares de Souza A violência da tecnologia em 2001, uma odisséia no espaço ............................

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Lucas Moreira de Souza Figuras da violência moderna | 5

A violência em foco: estudo comparado da recepção crítica de Rubem Fonseca e Ferréz ................................................................................................................

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Luiza Teles Santos O ano em que meus pais saíram de férias: futebol, violência e alteridade . Mírian Sumica Carneiro Reis

133

Figuras da violência urbana no romance brasileiro contemporâneo .............

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Rita Olivieri-Godet Violência simbólica ...........................................................................................................

159

Roberto Henrique Seidel Identidades coletivas e violência na globalização ..................................................

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Rocío Castro Kustner Renilton da Silva Sandes Violência na literatura afro-diaspórica das Américas ..........................................

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Roland Walter Cinzas e espectros: no cemitério da morte violenta ............................................

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Shawn Huffman Mortes violentas e tempos de luta por justiça ......................................................

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Tania Cordeiro Midiatização de uma execução .....................................................................................

237

Vincent Lavoie Informações sobre os lançamentos de obras ..........................................................

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APRESENTAÇÃO Como se apresentam as formas e as expressões da violência, no nosso imaginário contemporâneo? Inúmeros pesquisadores em Ciências Humanas criticam a abundância de imagens de violência às quais a mídia nos submete cotidianamente. Muitos afirmam que a representação de cenários de violência segue uma lógica de mercado, alimentada pela audiência. Em um plano mitológico, o semioticista e romancista canadense Bertrand Gervais analisa a problemática da violência relacionada com o mito de Teseu que mata o monstro Minotauro no labirinto. Vinculada assim à representação de cenas de violência, a figura da violência se estrutura em torno de um eixo semântico de deriva apto a autorizar a descrição de seres marginalizados que, além de terem perdido seus caminhos e suas memórias no labirinto, são levados a praticarem crimes e massacres. Tentando investir a figura mítica da deriva labiríntica de formações sócio-discursivas, que emergem na sociedade neo-liberal, altamente ligada aos apelos incessantes para o consumo (apelos que foram bastante discutidos no momento da crise econômica mundial de 2008), buscamos entender as diferentes representações desses seres marginalizados nas sociedades norteamericanas (Canadá e Estados Unidos) e brasileira, dando continuidade à rede de pesquisa desenvolvida há vários anos entre a Universidade do Quebec em Montreal (UQAM) e universidades brasileiras. Como romancista, Bertrand Gervais indica como os excessos do capitalismo norte-americano permitem o nascimento de personagens serial killers e suicidas, assim como outros apontam as engrenagens sócio-econômicas que autorizam a emergência das gangs de rua (compostas às vezes de jovens imigrantes), das guerras de motoqueiros, dos itinerantes drogados. No Brasil, além de existir uma arte hiperrealista (expressa principalmente no cinema e na literatura contemporâneos), abordando a violência cometida pelo estado militar em relação a jovens da classe média classificados como ‚subversivos‛, vai se desenvolvendo uma temática relativa às operações de passagem entre a marginalidade das guerrilhas e a marginalidade atual dos traficantes de drogas, organizados nas neo-favelas, que tomaram forma no momento em que foram encarcerados nos mesmos locais. Essa transmiss~o de ‚saberes‛ se exprime de forma emblemática no filme Quase dois irmãos (2004, produção Brasil/Chile/França), de Lúcia Murat, que conta com roteirização de Paulo Lins, autor de Cidade de Deus.

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Na mesma direção, foram discutidas, nesse Simpósio, as imagens verbais e visuais das guerras e genocídios atuais, que brotam da lógica política neoliberal, trabalhadas por semioticistas da UQAM. Empreendemos, finalmente, debates sobre os denominadores comuns das representações da violência, buscando-se entender se tais representações refletem os diálogos entre a arte e a sociedade, ou fazem simplesmente parte de uma agenda mundial de espetacularização que promove a otimização da comercialização de bens culturais. O Simpósio foi aberto com a conferência do filósofo Paulo Arantes, O sistema de violência numa era de expectativas descrescentes, o qual traçou uma história da violência no mundo, desde a Idade Média, para finalmente mostrar como um novo regime de crueldade, capaz de extinguir os oprimidos, se instalou em nosso país. Faces desse regime nos apresentam Ana Rosa Neves Ramos e Alba Regina Neves Ramos no texto Mídia, violência e cidadania, sublinhando como a mídia espetaculariza certos horrores, em tempo real, como se eles fizessem parte de nossas vidas. E as autoras refletem e re-pensam como a comunicação pode efetivamente interferir na sociedade para reverter a difusão de imagens puramente violentas, oferecendo mensagens de formação de cidadania. Bertrand Gervais, em Frustar o espetáculo da violência: representar os acontecimentos de 11 de setembro de 2011, perguntando-se como representamos atos violentos, analisa imagens dos atentados terroristas do 11 de setembro, transmitidos diretamente pela televisão, com imagens que souberam se impor pela força de sua repetição. Tais imagens tornaram uma grande maioria de telespectadores, no mundo todo, testemunhas dos acontecimentos, de tal forma que o indizível se transformou em uma forma de se desobrigar de um espetáculo com efeitos alienantes. Carlos Alberto da Costa Gomes, com o texto O desafio da violência, procura mostrar como a violência é representada na sociedade. Ressalta as condicionantes da criminalidade das metrópoles brasileiras, onde os índices de homicídios são trinta vezes maiores aos das cidades europeias e dez a vinte vezes aos dos Estados Unidos. E revela o desafio que a sociedade tem de enfrentar, o de retomar o processo civilizatório e de tentar, assim, reduzir os atos de delinqüência. Claudio Cledson Novaes assina o trabalho Perspectivas da violência na obra de Olney São Paulo, no qual analisa as relações do imaginário literário e cinematográfico sobre questões políticas dos anos 1960-1970, considerando essa obra como ambivalência crítica entre a ‚estética da fome‛ do discurso neorealista e os modelos clássicos de representação na narrativa nacional. 8 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

Cláudio Gonçalves Gomes, em A violência no jornalismo sensacionalista baiano: a cultura do espetáculo, tece uma reflexão crítica sobre os formatos televisivos sensacionalistas baianos (Se Liga Bocão e Balanço Geral) no que concerne à violência e sua relação com o espetáculo e com o sagrado. Ele levanta a hipótese de que tais formatos exercem, nos imaginários coletivos, o papel de ‚vingadores‛ e realizadores da justiça social. O texto de Denise Carrascosa, Violência carcerária e subjetivação nos escritos de Luiz Alberto Mendes, propõe uma reflexão acerca das formas contemporâneas de subjetivação, mediante a noção de narrativa, no ponto de injunção e embate entre narrativas de aniquilação do sujeito submetido a experiênciacárcere e narrativas de vida do sujeito escritor. Eurídice Figueiredo, em Violência em textos de autoria feminina, explora os conceitos de abjeção (Kristeva) e de profanação (Agamben) para analisar a obra autoficcional de Marie-Sissi Labrèche. A narradora/personagem, que escreve na primeira pessoa, tem o nome da autora ou suas variantes. O romance Borderline encena os conflitos existenciais de uma borderline: fruto de uma família disfuncional, ela é autodestrutiva e usa o sexo para se expor, sem respeitar fronteiras. No romance seguinte, La brèche, a autora continua a explorar suas crises psíquicas, sua violência e sua carência emocional. Heleusa Figueira Câmara, em Força, poder e violência em discursos prisionais, analisa textos autobiográficos de prisioneiros que tecem imagens representativas do poder, do castigo, da sujeição e da rejeição ao cotidiano prisional. Modalidades do exercício da força, do poder, somadas às ramificações estratégicas das relações de convivência e sobrevivência na prisão, ampliam para uns a sujeição legal a que se encontram submetidos, e para outros a descrença, a revolta e o ódio pela ineficácia da punição/ressocialização em face da impunidade assegurada por interesses diversos. Ieda Franco, no texto Violência contra mulher denunciada em Salvador: o que muda com a lei Maria da Penha, examina os efeitos da Lei Maria da Penha que traz aspectos conceituais e educativos, que a qualificam como uma legislação avançada, seguindo a linha de um direito moderno. A lei é capaz de abranger a complexidade da violência, estabelecendo a adoção de políticas públicas de prevenção, assistência e repressão à violência contra a mulher. No texto Formas kafkianas em romances quebequenses e brasileiros contemporâneos, Licia Soares de Souza aborda temáticas relativas à constituição de um poder arbitrário e busca identificar as formas da temática da dessusbstancialização da Lei em relação às expressões de instabilidade de narrativas brasileiras e quebequenses. No Brasil, são examinados romances inscritos no realismo brutal, como Cidade de Deus e Estação Carandiru. No Québec, os romances de Figuras da violência moderna | 9

Marie Gagnon questionam territorialidades argumentativas concernentes à Verdade e ao Poder, herança literária kafkiana. Lucas Moreira de Souza, em A violência da tecnologia em ‚2001, uma odisséia no espaço‛, expõe uma visão da temática da violência expressa não diretamente através de ações humanas, mas manifesta por intermédio de produtos tecnológicos que, por sua vez, são reflexos concretos do desenvolvimento da cognição humana. Para ilustrar a introjeção de impulsos primitivos em sistemas computadorizados, o autor analisa o filme 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick. Luiza Teles Santos, em A violência em foco: estudo comparado da recepção crítica de Rubem Fonseca e Ferréz, observa como a obra de Rubem Fonseca é consagrada pela crítica literária brasileira e best-seller, no mercado editorial. Por trazer em suas narrativas o tema da violência, foi censurado no período da ditadura militar no Brasil e acusado pelos censores de fazer apologia ao crime e aos criminosos. Um outro autor contemporâneo, Ferréz, traz em seus textos a periferia e os sujeitos que vivem na favela, e um dos temas que está mais presente em sua literatura é a violência. A autora busca verificar como os críticos vêm se articulando, em seus discursos, ao analisar as obras desses autores, já que um é mais consagrado pela academia — Fonseca — e ao outro — Ferréz — é reservado um lugar marginal. Mirian Sumica Carneiro Reis, em O ano em que meus pais saíram de férias: futebol, violência e alteridade, levando em conta que a violência não se restringe às manifestações físicas, mas que ecoa na construção e representação de subjetividades, examina, no filme O ano em que os meus pais saíram de férias, o olhar de um narrador-menino que observa a existência de uma série de cenas de tortura, truculência e perversidade. Figuras da violência urbana no romance brasileiro contemporâneo é o texto de Rita Olivieri-Godet, que tem o objetivo de precisar as formas simbólicas elaboradas pelo discurso literário brasileiro a partir dos anos 1990, através da análise de Um t|xi para Viena d’Austria (1991) de Antônio Torres, O sol se põe em São Paulo (2007) de Bernardo Carvalho, Capão Pecado (2000) e Manual prático do ódio (2003) de Ferréz. Ela interroga particularmente a encenação da topografia das formas urbanas, a relação do sujeito à cidade assim como os recursos estilísticos que inscrevem no texto as marcas da urbanidade. Roberto Seidel procura investigar, em Violência simbólica, acerca do quanto da violência é discurso simbólico e o quanto é prática social, a partir de estudo de obras de arte literárias oriundas do que comumente é denominado de literatura marginal. Surge, dessa discussão, todo um campo semântico que remonta a discussões anteriores sobre a própria definição da modernidade, em 10 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

termos como: ‚desencaixe‛, ‚ambivalência‛, ‚desengajamento‛, ‚barb|rie‛, ‚liquidez‛, ‚desenraizamento‛, ‚multiculturalismo‛, ‚indivíduo‛, ‚totalitarismo‛. Entrevista a Marcola e o efeito bumerangue da violência, de Roccio Castro Kustner e Renilton da Silva Sandes, tem como objetivo trazer uma reflexão sobre a violência na sociedade brasileira em particular, mas também na sociedade globalizada em geral, a partir das teorias que falam da construção das identidades como negação das diferenças que ameaçam a normalidade fictícia sobre a qual têm se assentado, ao longo da história, os diferentes sistemas de dominação (patriarcado, colonialismo e capitalismo) que conformam o imperialismo da globalização. Seguindo os conselhos que Jabor coloca na voz de Marcola, enfatiza a necessidade dos intelectuais para desistirem de defender a ‚normalidade‛ do cotidiano. Roland Walter, em Violência na literatura afro-diaspórica das Américas, pretende revelar e problematizar como e, com que fins, autores afrodescendentes das Américas traduzem uma violência centenária nos seus textos. A literatura da diáspora negra destaca que o (ab)uso do afrodescendente, pela/na economia racializada e racista da violação institucionalizada, continua sendo uma das razões pela errância neocolonial de muitos afro-descendentes. Este trabalho examina diversos tipos, formas e práticas de violência que ligam o navio negreiro com o sistema de plantação e a guetoização do presente. Finalmente, Tânia Cordeiro observa que a violência é a primeira causa de morte da população jovem de Salvador: afeta mais a pobres, negros e com escolaridade precária. Entretanto, os grupos vitimados têm sido representados como responsáveis pela insegurança na cidade; suas mortes dão lugar à vitimização secundária sofrida pelos familiares que lutam por acesso à justiça em cenários não familiares nos quais eles são estigmatizados e remetidos ao silêncio institucional e midiático. Em suma, pode-se observar que as formas e as expressões da violência relacionadas, ao longo desse trabalho coletivo, acentuam a necessidade de se debater as estreitas ligações entre regimes de crueldade e os excessos das políticas econômicas de exclusão. Nesse sentido, muitas dessas representações podem engendrar programas expressivos capazes de tecer estéticas ligadas às experiências de luta de escritores contra o mundo capitalista de consumo que impõe condições injustas de vida. O ciclo exclusão/violência/extermínio encontra-se presente na maioria das obras e dos discursos verbais e icônicos, testemunhando a preocupação da sociedade para com as guerras urbanas que vêm se desencadeando nas metrópoles modernas. Licia Soares de Souza (NEC/UNEB/CNPQ) Organizadora do Simpósio Figuras da violência moderna | 11

MÍDIA, VIOLÊNCIA E CIDADANIA Ana Rosa Neves Ramos1 Alba Regina Neves Ramos2 Um dos traços característicos da vida moderna é oferecer inúmeras possibilidades de vermos à distância horrores que acontecem no mundo inteiro3. São violências que, vistas em tempo real e mostradas de forma espetacularizada, parecem não fazer parte das nossas vidas. Mas não são apenas essas imagens distantes e ao mesmo tempo tão perto de nós que se colocam como algo externo, naturalizado. O mundo partido, não mais em dois blocos, como antes de 1990, mas fragmentado, dividido entre os que têm acesso ao consumo e os que não têm, entre ricos e pobres, entre os ‚iguais‛ e os ‚diferentes‛, é a marca de um século que não acabou bem. Como coloca Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 321), os modos profundamente arraigados de estruturação e de ação sociais, considerados por alguns como fontes de contradições, antinomias, incoerências, injustiças, se repercutem com intensidade variável nos mais diversos setores da vida social da sociedade moderna em transição para a pós-modernidade.

Nas sociedades modernas a utopia de uma outra sociedade e de um indivíduo protegido dos principais riscos parecia algo ao alcance das nossas mãos. Mas isso não se concretizou. Boaventura Sousa Santos, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Gilberto Velho e Marcus Alvito, Alba Zaluar, Susan Sontag, dentre outros autores, nos guiam nessa reflexão. Sontag (2003, p. 87-88), por exemplo, retoma algumas ideias, presentes na sua obra Sobre a fotografia, com o intuito de questioná-las trinta anos depois, a saber: a atenção pública é guiada pelas atenções da mídia — ou seja, de forma mais categórica, pelas imagens? Num mundo saturado, ou melhor, hipersaturado de imagens, aquelas que deveriam ser importantes para nós têm o seu efeito reduzido: tornando-nos insensíveis? Para a autora, em nossos dias, 1 2 3

Universidade Federal da Bahia (UFBA); Grupos de pesquisa: 1) Reconfigurações identitárias; 2) Contemporaneidade, fluxos culturais e turismo; endereço eletrônico: [email protected]. Universidade Salvador/UNIFACS; Grupos de Pesquisa: 1) Desenvolvimento de Tecnologias Sociais; 2) Turismo e Meio Ambiente; endereço eletrônico: [email protected]. Essa é a frase de abertura da contra-capa do livro Diante da dor dos outros, escrito por Susan Sontag, em 2003, no qual tece uma profunda reflex~o sobre a interseç~o entre ‚notícia‛, arte e compreens~o das representações contemporâneas da guerra.

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dizer que a realidade se transforma num espetáculo é um provincianismo assombroso. Universaliza o modo de ver habitual de uma pequena população instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias precisam ser transformadas em entretenimento [...]. Mas é absurdo identificar o mundo a essas regiões de países abastados onde as pessoas gozam o duplo privilégio de ser espectadores ou furtar-se a ser espectadores da dor de um outro povo, assim como é absurdo fazer generalizações acerca da capacidade de se mostrar sensível aos sofrimentos de outros com base na atitude desses consumidores de notícias, que não conhecem, na própria pele, nada a respeito da guerra, de injustiça em massa, do terror. Existem centenas de milhões de espectadores de tevê que estão longe de sentirem-se impassíveis ante o que vêem na televisão. Eles não se dão ao luxo de fazer pouco caso da realidade (SONTAG, 1993, p. 92).

Essas são questões que apontam para o que hoje parece fazer parte das inquietações de todos os que buscam formas de combate a esse ‚mundo em perigo‛, para usar uma expressão de Pierre Bourdieu. Estamos voltando a enfrentar velhas questões que pareciam resolvidas, ao lado de ‚novas questões sociais‛ que emergem e tornam-se cada vez mais difíceis de serem enfrentadas nos espaços que nos cercam. Foucault (apud MORAES, 2004, p. 52) se interroga sobre as qualidades de certos espaços que nos cercam. Isto porque, para além dos locais empíricos, bem como das utopias — que são posicionamentos fora da realidade — Foucault destaca o que chama de ‚heterotopias‛: lugares que, mesmo sendo localiz|veis, se configuram como um lugar à parte, constituindo uma espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço em que vivemos. Cada heterotopia teria uma função no tecido social, que variaria entre pólos extremos: ora abrigando o desvio — como acontece com as prisões ou com os bordéis — ora projetando os ideais de uma sociedade, como é o caso das bibliotecas ou dos museus. E a imagem mais bem acabada da heterotopia, em Foucault, seria dada pelo barco, diz Moraes. Para Foucault, o barco representa um espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, fechado em si e, ao mesmo tempo, lançado ao infinito do mar. Daí ele funcionar, desde o século 16 até os dias de hoje, não apenas como um importante instrumento do progresso econômico das sociedades, mas também ‚como a sua maior reserva de imaginaç~o‛. Nas civilizações sem barcos, conclui o autor, ‚os sonhos se esgotam, a espionagem substitui a aventura e a política os cors|rios‛. Moraes (2004, p. 52) finaliza o seu texto mostrando que talvez seja difícil não associar essa imagem àquela da ‚nau dos insensatos‛ que Foucault evoca diversas vezes em História da loucura: um barco

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carregado de loucos, navegando à deriva e excedendo os horizontes da compreensão.

O sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) que supõe aquilo a que Durkheim chama conformismo lógico vem, de certa forma, contribuindo para o esgarçamento dos laços de solidariedade e de despolitização. De acordo com Gilberto Velho (1996, p. 15-16), vivemos um individualismo agonístico, extremado, que é o individualismo desancorado de compromissos éticos, no qual a violência é o modo mais agudo de revelar o total desrespeito e desconsideração pelo outro. Ela faz parte de um individualismo amoral, feroz e descompromissado, que não é privilégio de um grupo e se manifesta em todos os níveis da vida social. Aparece no trânsito, em certos tipos de lazer e de sociabilidade. As imagens que mostraremos neste texto revelam formas de violência que estão na raiz das nossas instituições e das nossas práticas no mundo moderno.Vejamos algumas de suas manifestações: A ação de uma tropa de choque avançando em estudantes em Brasília suscitou várias manifestações de repúdio a tão vil atitude: repressão policial e censura, eis o que tais fatos revelam, e que julgávamos impossível no Brasil de 2009. A imprensa escrita não deu às agressões de Brasília o destaque que a gravidade da ação impunha, mas as imagens da TV foram alarmantes na sua dramaticidade. A conduta da polícia do Distrito Federal, subordinada ao governo Arruda, me fez lembrar o espancamento promovido em 68 pela Polícia militar na Candelária do Rio, reprimindo com cassetetes, com cavalaria e bombas de gás lacrimogênio, uma manifestação de padres, artistas, intelectuais e estudantes contra a ditadura [...] (GOMES, 2009, p. A 2).

São imagens que revelam a volta aos tempos de repúdio, às formas brutais do uso da força física legitimada por governos autoritários. Violência na TV. Tapa na pantera: a humilhação de Taís Araújo faz com que Viver a Vida finalmente dê o que falar. [...] a mocinha Helena suportou calada a acusação de que seria culpada pelo acidente automobilístico que deixou a filha da megera, Luciana, tetraplégica. Helena caiu de joelhos para suplicar perdão. Tereza não deixou barato. Aplicou-lhe uma sonora bofetada, mas sem perder a fleuma [...]. Para conjugar lágrimas com sangue, a cirurgia de reconstituição da sua coluna foi mostrada sem economia nos detalhes clínicos. Embora a audiência ainda esteja fraca, essas sequências ‚fortes‛, finalmente transformaram Viver a Vida em tema de discussão [...]. Espera-se que o sofrimento e a humilhação pelos quais está passando [Helena] — já previstos na sinopse — revertam a aura de antipatia [...]. A humilhação de

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Helena ainda não surtiu nenhum efeito visível no ibope (MARTHE, 2009, p. 188-89).

O autor da matéria discorre ainda sobre o argumento utilizado por Maria Júlia Nogueira, secretária da central sindical CUT, que assim escreve no site do sindicato: ‚A Globo humilha os negros no mês da consciência negra‛. E contra-argumenta: ‚a escalação de Taís para protagonista de uma novela das 8 e o fato de a sua personagem ser uma mulher de sucesso sem ter de levantar bandeiras — prova exatamente o contr|rio‛. Para Bia Abramo, ao contrário do cinema, onde o espectador escolhe o que vai ver e fica submetido à natureza das imagens por vontade própria, na TV não é bem isso que acontece: Ela está lá, no centro da casa, e as imagens podem, por assim dizer, atingir o espectador desavisado. Além disso, há um estranho paradoxo nas imagens impressionantes quando circulam na TV. Se a ambiência doméstica, a tela pequena, a pior definição da imagem amenizam o impacto, a proximidade dela na vida cotidiana do espectador naturaliza aquela experiência. Ou ainda, o fato de passar na TV, a janela para o mundo, banaliza, domestica, aquela imagem. Na sala de cinema, estamos fora do mundo e, portanto, num distanciamento que propõe algum tipo de reflexão; na experiência da TV é o mundo que entra dentro de nós, o que dificulta esse distanciamento necessário [...]. No caso da novela, há ainda um outro elemento a ser considerado o fato de ser ‚uma obra aberta‛, que responde à reação do público [...] (ABRAMO, 2009, p. E 8).

Esse tipo de imagem mostra igualmente o que Bourdieu (1989, p. 11) coloca sobre as relações de comunicação, que são sempre relações de poder e dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidas nessas relações. Enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento os ‚sistemas simbólicos‛ cumprem a sua funç~o política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (poder/violência simbólica4) dando o reforço 4

Mostrando-se como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; o poder simbólico é esse poder ‚quase m|gico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitr|rio‛ (BOURDIEU, 1989, p. 9). Isso significa que o poder simbólico n~o reside nos ‚sistemas simbólicos‛ em forma de uma ‚illocutionary force‛ mas que se define numa relaç~o determinada — e por meio desta — entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produze e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a cren-

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da sua própria força às relações de força que as fundamentam, contribuindo assim, segundo a express~o de Weber, para a ‚domesticaç~o‛ dos ‚dominados‛. Violência urbana. A vida por um fio. Prestadores de serviço convivem

com assaltos e até com agressões. O aviso foi claro: você tem até 16 horas para terminar seu serviço. Depois disso não garanto. O funcionário terceirizado da Oi Telecom instalava fiação na Baixa do Tubo, região de Cosme de Farias, e deu pouca atenção ao alerta [...]. Terminou sem carteira, sem celular e sem os equipamentos de trabalho. Indivíduos ‚armados ameaçaram me matar e quase fico sem o carro da empresa‛, conta (LYRIO; RIOS, 2009, p. 1819).

A imagem e o subtítulo que acompanham a matéria No enterro de técnico da Coelba, colegas afirmaram que agressões a prestadores de serviço são normais, são reveladores de uma triste e preocupante realidade: a existência de ‚[…] um sem número de localidades em que só se entra com a autorizaç~o dos bandidos ou pior, os funcionários das empresas são simplesmente proibidos de trabalhar‛. Vejamos agora um outro exemplo, na mesma linha, vindo de outro continente, de outra cultura:

Por que os franceses estão se matando? Onda de suicídios entre funcionários da France Telecom faz o país se perguntar o que pode estar errado com o seu modo de vida (CAVAÇANA, 2009, p. 99). A matéria trata do suicídio de um funcionário da France Telecom que, em bilhete deixado à esposa, culpou a empresa pelo tormento emocional em que vivia. O texto mostra que, nos últimos dezoito meses, 24 empregados da Telecom se mataram [...]. Com 100.000 funcionários, a France Telecom tem uma taxa de suicídios similar à média nacional, de 17,6 por 100.000 habitantes. Mas a sequência de mortes pôs o país em estado de choque. Não tanto pelas maldades que possam ocorrer dentro da Telecom — mas por ter feito os franceses se perguntarem o que há de errado com seu modo de vida [...]. No caso da France Telecom, a onda de suicídios acontece em um contexto de reestruturação da empresa. Privatizada em 1997, a companhia adotou um modelo de negócios mais agressivo e enxugou 40.000 nomes da folha de pagamento. Para seus 100.000 empregados, dos quais dois terços ainda são funcionários públicos, isto significou metas de produtividade, promoções por mérito e cobranças de maior eficiência. Para

ça na legitimidade das palavras e daquela que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras (Idem, p. 14).

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muitos franceses, trabalhar em um ambiente competitivo como esse é algo que fere a própria identidade nacional [...] (Idem, p. 99).

O que ocorreu com o funcionário francês revela o quanto a classe trabalhadora vem sofrendo com as profundas mutações no mundo do trabalho tanto nos países centrais quanto no Brasil. Como mostra Ricardo Antunes (2007, p. 13), mais de um bilhão de pessoas e mulheres padecem as vicissitudes do trabalho precarizado, instável, temporário, terceirizado, quase virtual, dos quais centenas de milhões têm seu cotidiano moldado pelo desemprego estrutural. Passemos a outro exemplo, sob outro ângulo. Nossos policiais estão so-

frendo. Tortura, assédio moral, corrupção: é o que mostra a maior pesquisa já feita nas polícias do país (FERNANDES, 2009, p. 78). ‚Nós levamos socos e chutes e fomos xingados pelos oficiais‛. ‚Vejamos o que pensam os profissionais de segurança pública no Brasil‛. É o que busca nos fazer conhecer o autor da matéria, que esclarece ser ela oriunda: de uma pesquisa inédita feita com 64 mil policiais em todo o país pelo Ministério da Justiça em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Com 115 páginas, o estudo mostra em números não só quanto o policial brasileiro é despreparado, mas também como ele é humilhado por seus superiores, torturado nas corporações e discriminado na sociedade (Idem, p. 78).

Fernandes discute no seu texto que, se o diagnóstico feito pelos próprios agentes é confiável, a situação que eles vivem é desalentadora: um em cada três policiais afirma que não entraria para a polícia caso pudesse voltar no tempo. Para muitos deles, a vida de policial traz mais lembranças ruins do que histórias de glória e heroísmo [...]. 20% dos agentes de segurança afirmam ter sido torturados durante treinamento. Trata-se de um índice altíssimo — um em cada cinco [...]. Além da tortura, os policiais são vítimas de assédio moral e humilhações [...] (Idem, p. 78).

A pesquisa ‚mostra que há um sofrimento psicológico muito intenso. Essa experiência de vida acaba deformando esses policiais, que tendem a despejar sobre o público essa violência‛, diz o sociólogo Marcos Rolim, professor de direitos humanos do Centro Universitário Metodista, e um dos autores do estudo, que argumenta: ‚Passamos os anos da ditadura encarando os policiais como repressores e defendemos os direitos humanos, mas nos esquecemos dos direitos humanos dos próprios policiais‛. O levantamento mostra também casos como o da morte do coordenador do AfroReggae Evandro João da Silva não são fatos isolados, como frequentemente os

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comandantes procuram fazer crer. Evandro levou um tiro de um assaltante e morreu sem socorro. Um capitão e um sargento abordaram os bandidos e, em vez de prendê-los ficaram com o tênis e a jaqueta de Evandro, roubados por eles [...].

A pesquisa, que mostra velhos vícios, também revela o desejo de mudança e derruba velhos mitos, como o que há uma resistência grande dos agentes à unificação das polícias. Apenas 20,2% dos policiais se declararam a favor da manutenção do modelo atual que mantém PM e Polícia Civil separadas, uma atuando no patrulhamento outra na investigação. Para 34,4% dos policiais ouvidos, ideal seria a unificação das duas forças, formando uma só polícia civil, dita ‚de ciclo completo‛ — ou seja, encarregada de patrulhar atuar em conflitos e também investigar em crimes. A baixa produtividade da polícia vem ainda da falta de treinamento. Pouco mais de 3% dos agentes tiveram mais de um ano de aprendizagem em cursos. A formação dos policiais tem muito mais ênfase no confronto do que na investigação: 92% deles têm aulas de condicionamento físico, 85,6% aprendem a atirar e apenas 33% fazem técnicas de investigação, enquanto só 39% estudam mediação em conflito. Não se sabe o que é mais espantoso: que 15% de nossos policiais estejam nas ruas armados sem ter feito curso de tiro ou se apenas um em cada três saiba investigar [...] (Idem).

De acordo com alguns autores, a exemplo de Varjão, há diferentes níveis, patamares e dimensões de violências, de enfrentamento de violências e de debate público sobre violências e formas de enfrentamento de violências. Para a autora, ‚a vigília sob as distintas formas de violência passa pelo estabelecimento de uma narrativa midiática que n~o naturalize as ‘execuções’‛ (VARJÃO, 2008, p. 20-21). Chamamos agora atenção para uma prática recorrente em nossa sociedade, a do trabalho infantil. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho realizado por crianças e adolescentes com menos de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, é proibido. A convenção 182 da OIT estabelece que este conceito abrange: a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívidas, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; b) utilização, recrutamento e a oferta de criança para fins de prostituição, produção ou atuação pornográficas;

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c) utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes, conforme definidos nos trabalhos internacionais pertinentes; d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança (OIT, 2008). O tema do trabalho infantil, portanto, revela uma imposição de uma sociedade excludente. Assim é que podemos encontrar crianças no mercado da prostituição, das drogas, nas carvoarias, nas pedreiras, nos canaviais, nos lixões, no trabalho doméstico, etc. (cf. UNICEF/OIT, 2001). Em suas várias modalidades, a violência constitui um dos problemas fundamentais das sociedades contemporâneas. É importante aqui retomar o pensamento de Boaventura de Sousa Santos (2005), quando este aponta as dificuldades fundamentais da modernidade que estão na base dos problemas com os quais nos defrontamos. A primeira deriva da hegemonia que a racionalidade científica veio assumir e consiste na transformação dos problemas éticos e políticos em problemas técnicos e jurídicos; a segunda decorre da legitimidade da propriedade privada independentemente da legitimidade do uso da propriedade; a terceira refere-se à soberania dos Estados e à obrigação política vertical dos cidadãos perante o Estado; a quarta remete à crença no progresso entendido como um desenvolvimento infinito alimentado pelo crescimento econômico, pela ampliação das relações e pelo desenvolvimento tecnológico. Isso tudo nos mostra que o tema da violência nos transformou muito rapidamente em atores em evidência, no palco iluminado da mídia, cujos representantes, muitas vezes, arriscam explicações sobre os nossos objetos de pesquisa e querem obter resultados a serem apresentados naquela forma às vezes pasteurizada, mutilada, quase irreconhecível para o grande público (ZALUAR, 1996, p. 51). Partilhamos o pensamento Zaluar (1999, p. 13), ao refletir que se torna importante considerar a relação entre o campo intelectual e o campo político para entendermos os debates e as afirmações reiteradas que ocuparam o pensamento dos que se dedicaram ao assunto. Tania Cordeiro (2008), por sua vez, argumenta que a hierarquia dos assuntos da mídia não seria motivo de grande preocupação, caso não houvesse uma dupla circunstância: o lugar privilegiado ocupado pela mídia na hierarquia da sociedade e a natureza do papel desempenhado pelos meios de comunicação na atualidade. Bourdieu já dissera que o que há de mais terrível na comunicação é o inconsciente da comunicação. Dedicando-se, na sua obra Sobre a televisão (1997), a uma análise do mundo jornalístico enquanto campo, e retomando-a 20 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

em Contrafogos (1998, p. 95), o sociólogo reafirma como esse campo produz e impõe uma visão inteiramente particular do campo político, que encontra seu princípio na estrutura do campo jornalístico e nos interesses específicos dos jornalistas que aí vão se engendrando. Isto porque, em um universo dominado pelo temor de ser entediante e pela preocupação (quase pânico) de divertir a qualquer preço a política está condenada a aparecer como um assunto ingrato que se exclui tanto quanto possível dos horários de grande audiência, um espetáculo pouco excitante, ou mesmo deprimente, e difícil de tratar, que é preciso tornar interessante a qualquer preço. Daí a tendência que se observa por toda parte a sacrificar cada vez mais o editorialista e o repórter-investigador em favor do animador-comediante, a informação, análise, entrevista aprofundada, discussão de conhecedores ou reportagem em favor do puro divertimento e, em particular, das tagarelices superficiais dos talk-shows entre interlocutores credenciados e intercambiáveis [...] (BOURDIEU, 1998, p. 95).

Na sua opinião, a ausência de interesse pelas mudanças insensíveis, isto é, por todos os processos que […] permanecem desapercebidos e imperceptíveis no instante [...] vem redobrar os efeitos da amnésia estrutural favorecida pela lógica do pensamento no dia-a-dia e pela concorrência que impõe a identificação do importante e do novo (o furo e as ‚revelações‛) para condenar os jornalistas a produzir uma representação instantaneísta e descontinuísta do mundo [...] (Idem, p. 100-101).

Partilhamos da ideia do autor quando afirma: esta visão des-historicizada e des-historicizante, atomizada e atomizante, encontra sua realização paradigmática na imagem que dão do mundo as atualidades televisivas, sucessão de histórias aparentemente absurdas que acabam todas por assemelhar-se, desfiles ininterruptos de povos miseráveis, sequências de acontecimentos que, surgidos sem explicação, desaparecerão sem solução [...] (Idem, 101)..

E acrescenta que: as pressões da concorrência se conjugam com as rotinas profissionais para levar a televisão a produzir a imagem de um mundo cheio de violências e de crimes, de guerras étnicas e de ódios racistas, e a propor à contemplação cotidiana um ambiente de ameaças incompreensível e inquietante, do qual é preciso se manter distante e se proteger [...], uma sucessão absurda de desastres sobre os quais não se compreende nada e nada se pode fazer [...]. Ao invés de mobilizar e de politizar, uma tal filosofia acaba contribuindo para avivar os temores xenófobos, assim como a ilusão de que o crime e a violência não param de crescer também

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favorecem as ansiedades e as fobias da visão obnubilada pela idéia de segurança [...] (Idem, p. 102).

É importante destacar que na passagem do século XX para o século XXI o terreno das relações entre Estado e sociedade civil ficou bastante congestionado. A despeito dos ininterruptos avanços tecnológicos, das descobertas da ciência e das conquistas produtivas, a desigualdade continua viva e operante, como mostra Marco Aurélio Nogueira (2005, p. 83): desníveis brutais de renda, de escolaridade, de saúde, de nutrição, de oportunidade continuam a separar os homens. Irrompem onde antes havia padrões invejáveis de equidade, penetrando pelas fendas da ordem social, encarapitados nos ombros de desempregados, estrangeiros, migrantes. Cristalizam-se e ganham inédito aprofundamento em países historicamente desnivelados e que há décadas vivem na expectativa de que estaria pra iniciar uma era de maior justiça social. A desigualdade alarga-se por conta da reprodução exaustiva do passado, por efeito da revolução tecnológica e como conseqüência da combinação de novos e antigos problemas sociais. Hoje, a rigor, todos os países estão expostos a ela [...].

Para Nogueira (2005, p. 84), houve um tempo, não muito distante, em que se acreditava que a pobreza e a desigualdade representavam uma espécie de ‚sacrifício‛ inevitável: era o preço que se pagava pela construção do progresso. Com a expansão econômica, paulatinamente, viria a solução para as mazelas sociais [...]. Aos poucos, foi aumentando a sensação de que a situação aproximou-se demais de seu limite. Foi-se reconhecendo que o crescimento econômico não traz, por si só, desenvolvimento social e que políticas de ajuste macroeconômicos recessivos são poderosas fontes geradoras de pobreza e de desigualdade.

Dando continuidade a sua reflexão, argumenta que a política econômica não pode continuar a ser concebida de costas para a sociedade, como atributo de técnicos e funcionários preocupados em racionalizar custos e em privilegiar a lógica dos mercados; ela precisa ter um forte e claro conteúdo social. A adoção de políticas sociais especificamente voltadas para a diminuição da desigualdade gera estímulos fantásticos nos vários níveis da sociedade (NOGUEIRA, 2005, p. 84-85). É nesse sentido que a relação Estado/sociedade tem como um dos seus pontos fortes a ressignificação da cidadania. O que significa pensá-la não apenas como um conjunto de direitos formais e sim como um modo de vida e de formas de garantia de direitos e deveres por instituições locais, nacionais e trans22 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

nacionais. Como coloca Listz Vieira (2001), assegurar justiça e equidade significa a institucionalização de múltiplas cidadanias. No que concerne à relação justiça e equidade, retomamos a reflexão de Agnes Heller (1998, p. 9), na obra Além da justiça, em que todas as reivindicações à Justiça são enraizadas em determinados valores que não a própria justiça — explicitamente, em ‚liberdade‛ e ‚vida‛ [...], enquanto justiça pode ser uma precondição de vida legal e normal, a vida constitui algo além da Justiça.

O que nos leva a apresentar agora algumas imagens que circulam hoje no mundo e mostram-nos a possibilidade de se reforçar o debate sobre a ressignificação da cidadania a partir da inclusão de crianças pobres em escolas e em atividades sócio-educativas, fora do ambiente do trabalho, e sobre as quais apresentamos um breve relato. Em apresentação à publicação da OIT (2001), dedicada ao tema do trabalho infantil no Brasil, Simon Schwartzman coloca que essa questão é tratada ora como consequência da pobreza, ora como solução para amenizar seus efeitos. Esse quadro começa a mudar a partir da década de 80. Contudo, ainda é persistente a visão de manutenção de privilégios e de reprodução das desigualdades. É importante enfatizar os avanços. A promulgação da Constituição Federal, em 1988; a adoção, em 1989, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; a aprovação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); o Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC), da Organização Internacional do Trabalho (OIT); os programas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) que, sobretudo a partir de 1992, acabaram por incluir definitivamente o tema do combate ao trabalho infantil na agenda nacional e internacional e das políticas sociais e econômicas. São movimentos como esses que mostram a busca de uma sociedade com uma ‚maior reserva de imaginaç~o‛, uma civilização com barcos na qual os sonhos não se esgotem. E que nos levaram a buscar imagens da não violência, imagens que descortinam a possibilidade de um outro mundo. São imagens de crianças em busca de ‚uma vida melhor‛. ‚Vida melhor‛ e n~o ‚vida boa‛, no sentido que lhe atribui Norberto Elias (2006, p. 22), qual seja, uma busca contínua de superar os ‚contraprocessos descivilizadores‛5. 5

Nesse sentido, é por demais expressiva a imagem da capa do Relatório do UNICEF, Situação Mundial da Infância, de 1999: uma criança, com um olhar forte, expressivo, com um caderno aberto, estudando. Outra imagem a ser destacada é a da capa do livro intitulado Resgatando a infância: a trajetória do PETI na Bahia, publicado em 2001, resultado de um projeto apoiado

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pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), coordenado por Naidison Quintella. O projeto gráfico de Milton Nóbrega mostra uma criança sorrindo atrás de uma porteira de fazenda. O seu olhar é suave e revelador da dimensão da infância sem medo, sem angústia e portador da esperança de um mundo melhor, um mundo no qual o trabalho infantil não seja visto como uma solução para a sobrevivência das famílias pobres.

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FRUSTRAR O ESPETÁCULO DA VIOLÊNCIA: REPRESENTAR OS ACONTECIMENTOS DE 11 DE SETEMBRO DE 20011 Bertrand Gervais2 Como os atos de violência se apresentam para nós? Como conseguimos tornar significantes situações de grande violência que suscitam estupor, silêncio e esquecimento? Uma coisa parece certa, é necessário tempo para pensar a violência. É preciso pensar a violência no tempo. Talvez porque somente o tempo permite à dor diminuir e ao espírito reencontrar-se nas suas percepções e lembranças. Em primeiro lugar, a violência experimentada embaralha a percepção do tempo, uma vez que ela o destrói e o deixa em frangalhos. A presença da violência assiste à irrupção de múltiplas perturbações, síncopes cognitivas onde o espírito se esvazia repentinamente de suas capacidades de compreensão e de interpretação do mundo ou então de efeitos de dessubjetivação que desestabilizam a percepção ao tornar a identidade opaca. Na realidade, a violência só é compreendida no seu após, quando saímos de seus primeiros círculos3 e podemos enfim examinar o seu alcance. Antes de sair dela, é o reino do ilegível e, por conseguinte, do indizível. A violência não significa em si, ela adquira uma significação por sua inserção numa estrutura explicativa, seja ela pessoal, social, filosófica, antropológica etc. Se, num primeiro tempo, ela neutraliza e cega, este bem-estar inicial logo aparece como um enigma que deve ser resolvido. A violência conduz à interpretação, única capaz de preencher o vazio deixado por sua passagem. interpretar a violência requer o trabalho a partir de signos e seus traços. Portanto, cada vez mais, num regime contemporâneo de historicidade4, estes traços são apagados. É um paradoxo atual, nos diz Marc Augé, que, no momento em que possuímos as maiores possibilidades de destruição e de aniquilamento, nós nos empenhamos em fazer desaparecer o mais rapidamente possível os traços desta destruição5. E é a violência que está no coração disso tudo que impõe sua ordem. Pensemos nas ruínas das torres do World Trade Center e no processo 1 2 3 4 5

Tradução do original em francês: Prof. Dr. Sérgio Cerqueda (UFBA). Centre de Recherche sur le Texte et l’Imaginaire (FIGURA), Université Quebéc à Montreal (UQAM); endereço eletrônico: [email protected]. CHESNAIS, Jean-Claude. Histoire de la violence en Occident de 1800 à nos jours. Paris: Laffont, 1981. HARTOG, François. Régimes d’historicité. Présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003. AUGÉ, Marc. Le temps en ruines. Paris: Galilée, 2003, p. 84-85.

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de limpeza do Ground Zero, que rapidamente substituiu o magma de cimento pulverizado e os restos humanos por um imenso buraco pronto para ser reinvestido. Não estamos numa lógica da adição, como nas camadas geológicas que constituem pouco a pouco uma geografia, com sua densidade e sua história, mas numa lógica da substituição, o novo tomando o lugar do antigo, segundo as normas da sociedade de consumo e da economia de mercado. Ao mesmo tempo, e de forma diametralmente oposta, se os traços reais são apagados, as imagens desses atentados não cessam de ser difundidas e de impor o seu espetáculo. Elas são a prova que nós estamos numa cultura do vídeo, onde a imagem suplanta o acontecimento. Porém qual valor atribuir às imagens, submetidas a inúmeros procedimentos que generalizam a sua presença? De que forma essa cultura do vídeo permite compreender esses acontecimentos e fazer deles uma síntese? A quais formas de testemunho elas devem dar lugar? Pois as testemunhas dos acontecimentos foram, primeiramente e antes de tudo, espectadores e não vítimas. AS FORMAS DO INDIZÍVEL Em sua reflexão sobre o indizível como sintoma de uma incapacidade de testemunhar acerca de uma violência extrema, Juba Jurgenson explica que: O naufrágio do sentido constatado por um número grande de testemunhas das catástrofes do século XX fez da categoria do indizível uma vertente incontornável da reflexão sobre a transmissão da experiência das violências de massa. É comumente admitido que algo dessa experiência escapa à testemunha vítima. Esse resíduo mudo paira não somente sobre os contornos narrativos da experiência como fracasso da fala — a impossibilidade de narrar — mas também sobre o modo de surgimento do acontecimento que, diferentemente de outros acontecimentos, aconteceria fora da linguagem6.

Jurgenson pensa nos campos de concentração nazistas e nos genocídios, que ela designa como sendo violências de massa, nos acontecimentos que frustram os testemunhos por sua violência extrema vivenciada em primeiro grau. Como ela o afirma, ‚algo dessa experiência escapa à testemunha vítima‛, algo que continua indizível. A palavra é um combate contra o esquecimento e o silêncio de uma experiência que escapa às categorias usuais da racionalidade. Para ela, é preciso pensar o indizível não somente como um objeto de pesquisa,

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JURGENSON, Juba. L’indicible: outil d’analyse ou objet esthétique? Protée, v. 37, n. 2, aut. 2009, p. 9.

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mais ainda como uma modalidade estética, como um revelador, oco, da violência e de sua experiência. Contudo, o que acontece quando os acontecimentos violentos e sua espetacularização ocorrem ao mesmo tempo? Com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, através de sua transmissão direta pela televisão, por imagens que souberam se impor pela força de sua repetição, todos nós fomos testemunhas dos acontecimentos. Fomos testemunhas mesmo não estando lá. A relação com a violência declina-se aí de outra forma, e o indizível não é mais um objeto, nem uma modalidade estética; ele se transforma, antes de mais nada, em uma procura, uma forma de se desobrigar de um espetáculo com efeitos alienantes. O que muda entre a violência de massa e a dos atentados de 11 de setembro? Em primeiro lugar, o estatuto do testemunho mudou. Os atentados abriram a possibilidade para uma dupla situação de testemunho. Ao lado das testemunhas-vítimas da violência terrorista, acrescenta-se o estatuto das testemunhas-espectadores. Essas testemunhas não estão no local, não são agentes da situação que se desenrola, não tomam parte como vítimas; mas elas assistem a situação de qualquer forma, a título de espectadores, e o fazem em tempo real. Elas puderam se identificar com as vítimas à medida em que os acontecimentos se apresentavam. Elas puderam ver as pessoas em queda livre, as pessoas tocadas pela rajada de poeira de concreto e a devastação causada pelo incêndio das torres. Elas puderam viver tudo isso como se lá estivessem. Os acontecimentos eram um espetáculo, com efeitos de espetacularidade, associados à imersão, às expectativas e aos processos de identificação que acontecem nessas situações. Qual é o valor da experiência dessas testemunhas-espectadores? Eles podem testemunhar daquilo que viram? As suas palavras têm algo valor? O que eles têm a dizer que os outros já não conhecem? Se a sua experiência foi particular, o saber que elas adquiriram estava desde então dividido. É uma experiência comum. Enunciar nada acrescenta de novo. Estamos na repetição, que conduz à lógica do espetáculo. Em segundo lugar, há uma importante mudança de escalas e de proporções. E isso em três níveis. As violências de massa se desenrolam num espaço de tempo. Os campos de concentração ou de refugiados, os genocídios se inscrevem em um intervalo de tempo suficientemente longo para que a experiência dessa violência surja como uma verdadeira prova. Essa violência se revela também longe dos olhares. E ela se desdobra em escala humana, são corpos que são visados e atingidos, a ação violenta age por segmentação, ela atinge uma peça por vez. Em comparação, a violência dos atentados de 11 de setembro desvelou-se em um tempo relativamente curto. Tudo estava terminado em apenas

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algumas horas, como na imagem da explosão das bombas de Hiroshima e Nagasaki. Os acontecimentos não se produziram longe dos olhares, mas, pelo contrário, à vista e no conhecimento de telespectadores do mundo inteiro. E, finalmente, a violência liberada não era em escala humana, mas em escala urbana. Foram torres que nós vimos ser atacadas, dentre as mais altas do mundo, monstros de aço e vidro. E os raros corpos que vimos, os das pessoas em queda livre, foram rapidamente evacuados das transmissões televisivas. O espetáculo ocorreu em grande ostentação, o que transformou significativamente a experiência. Essas diferenças de escala e de natureza dão conta da dificuldade existente em se pensar o tratamento e a ficcionalização dos acontecimentos de 11 de setembro. Contrariamente às violências de massa, que requerem a exploração de uma estética do indizível para a sua apreensão, como o sugere Jurgenson, é preciso antes de mais nada desmanchar os dispositivos do regime de superexposição ao qual foram expostos em primeiro plano os atentados de 11 de setembro para a sua compreensão. É preciso retroceder, procurando antes de mais nada apagar os acontecimentos, e o primeiro estrato de mediatização ao qual eles deram lugar, para retomar o processo de simbolização sobre novas bases. Annie Dulong, que muito trabalhou com os processos de ficcionalização do 11 de setembro, nos explica assim que ‚o 11 de setembro de 2001 coloca a questão da ficcionalização de outra forma: não se trata mais de completar as falhas da representação, ligadas à ausência de imagens ou ao tempo de seu decurso, mas de se saber lidar com a onipresença de uma representação martelada na televisão e na internet‛. Jean Baudrillard vê aí, aliás, um acontecimentoimagem, um acontecimento de grande caráter protogênico, que impõe a sua própria realidade, empurrando até o limite as diferenças entre o real e o imaginário, o provado e o ficcional. ‚A imagem consome o acontecimento, no sentido em que ele o absorve e o dá a consumir. Certamente ela lhe dá um impacto inédito até aqui, mas como acontecimento-imagem‛7. Torna-se evidente, à luz do tratamento midiático que lhe foi conferido, que os acontecimentos do 11 de setembro foram dados a ver durante o seu fazer, sob o olho atento da câmera8.

7 8

BAUDRILLARD, Jean. L'esprit du terrorisme. Le Monde, 2 nov. 2001. Disponible sur: http://www.egs.edu/faculty/baudrillard/baudrillard-the-spirit-of-terrorism-french.html. HARTOG, François. Régimes d’historicité. Présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003, p. 116.

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É PRECISO APAGAR AS TORRES Como então em um contexto assim representar esses acontecimentos sem alimentar o espetáculo que já os configurou? Como ir para além do espetacular e encontrar uma discursividade e uma imagética que permitam ultrapassar a simples repetição? Na realidade, é preciso desconstruir esse espetáculo, desfazer a representação e ir contra o fragmento da imagem. É necessário transformar as torres do World Trade Center em figuras do imaginário. No lugar de incitar uma exacerbação da representação, que respeita a lógica do espetacular, é preciso procurar apagar as torres, destituí-las dos dispositivos discursivos e icônicos que mantêm a sua presença ingênua no imaginário contemporâneo para reinvesti-las em outro modo, opaco mais do que transparente, a mil léguas dos habituais efeitos de real. É preciso apagar as torres. É o que bem compreendeu Art Spiegelman, desenhista nova-iorquino, autor do romance gráfico Maus. A edição de 24 de setembro de 2001 da revista The New Yorker, primeiro número após os acontecimentos de 11 de setembro, apresenta na capa uma obra de rara intensidade. De fato, a capa imaginada por Art Spiegelman, desenhista de Maus, é uma página monocromática onde as duas torres do World Trade Center figuram em cor preta sobre um fundo também em preto. O seu contorno e a sua forma figuram graças a uma leve depressão na superfície do papel. A obra, reproduzida na capa de In the Shadow of No Towers9, publicado em 2004, propõe uma versão minimalista dos atentados, tomando por base a eliminação da cor e uma representação que beira à figuração. Como observado por Paul Auster, para quem o desenho é uma das obras-primas de Spiegelman, ‚é preciso olhar a imagem com muita atenção antes de se perceber as torres. Elas ali estão e não o estão, apagadas, mas ainda presentes, sombras palpitantes no esquecimento, na lembrança, na emanação fantasmática de um além-túmulo atormentado‛10. Em vez das sombras brancas de um Ground Zero nuclear, emanando corpos literalmente pulverizados nas superfícies de concreto, respondem as marcas pretas em fundo preto do Ground Zero nova-iorquino de Spiegelman. As torres se tornaram figuras, signos icônicos complexos, ao mesmo tempo fascinantes e evanescentes. In the Shadow of No Towers é uma obra que trabalha explicitamente a partir do apagamento das torres. Nas dez páginas duplas em grande formato do 9 10

SPIEGELMAN, Art. In the Shadow of No Towers. New York/Toronto: Pantheon Books/Random House of Canada, 2004. AUSTER, Paul. Constat d’accident et autres textes. Arles: Actes Sud, 2003, p. 96-97.

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volume, encontramos inúmeros desenhos de torres que estão a ponto de desaparecer. Essas torres estão reduzidas ao estado de esqueletos incandescentes onde o amarelo e o vermelho predominam. São torres espectrais, figuras de torres que dizem mais que todo a queimadura causada por sua superexposição. Para Spiegelman, ‚a imagem central da manhã de 11 de setembro — uma imagem que não foi fotografada ou filmada a fim de se impor à memória pública, mas que nem por isso deixou de estar marcada em ferro vermelho nas minhas pálpebras muitos anos mais tarde — é a do esqueleto incandescente da torre norte que surgiu um pouco antes de sua evaporação‛ (tradução do autor). Confrontado à superexposição das torres, Spiegelman responde com uma estratégia, o apagamento, e um motivo, as torres em vias de supressão. Elas estão omnipresentes nas páginas da obra e elas terminam por constituir um leitmotiv. Elas não têm nenhuma realidade a não ser a imaginária. Em In the Shadow of No Towers, Spiegelman refugia-se numa forma datada, os quadrinhos cômicos dos suplementos dos jornais nova iorquinos do início do século XX. Como ele aponta, ‚as explosões que desintegraram as torres do Lower Manhattan desenterraram também os fantasmas dos cadernos de domingo, estrelas que haviam nascido nos bancos públicos vizinhos, há mais de um século; estrelas que retornaram para atormentar um morador do bairro desconcertado por tudo que aconteceu depois‛ (tradução do autor). O morador nada mais é que o próprio Spiegelman. O emprego de figuras e formas oriundas de um tempo de outrora, The Katzenjammer Kids (Os Sobrinhos do Capitão), Krazy Kat, Yellow Kid (O Garoto Amarelo), Little Nemo in Slumberland etc., assinalam a recusa dos códigos contemporâneos de representação. Não se trata de uma aposta, pelo contrário, é importante deslocar os acontecimentos do 11 de setembro e inseri-los em um novo quadro de referência. A forma escolhida emerge dos primórdios das história em quadrinhos impressa em grande escala nos jornais. Ela se alimenta de personagens e de situações com grossos traços e enormemente simplificadas, mais próximas da caricatura que do hiperrealismo. O lado sério dos atentados é tensionado com o humor e a paródia das comics, onde animais antropormofizados, crianças e personagens grotescas disputam a crueldade entre si. Trata-se de uma banalização dos acontecimentos? Antes de mais nada, tudo isso parece assinalar o reconhecimento por Spiegelman do caráter necessariamente redutor dos acontecimentos e de seu tratamento midiático, que conduzem a uma só imagem, marcante como se quer, de um conflito de extrema complexidade. In the Shadow of No Towers é uma fuga no imaginário, uma fuga abortada, porque nunca o apagamento das torres permitirá o seu esquecimento. Elas ainda lá estão como símbolos de um drama. 32 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

HOLLYWOOD LUCRANDO Estratégia complementar desse apagamento é proposta por Michael Kosakowski em seu filme Just Like the Movies (2006). Não é mais o imaginário das comics do início do século XX que é convocado, mas o imaginário mais recente da produção hollywoodiana. O filme de Kosakowski é um exemplo extraordinário de um ‚found footage‛11 que reúne em vinte e um minutos passagens de filmes de Hollywood pré-11 de setembro, mostrando sem nenhuma dúvida a prefiguração dos acontecimentos daquele dia. Em Just Like the Movies, assim como em In the Shadow of No Towers, as torres estão presentes, mas no modo da ausência, do desaparecimento e da negação. É um espetáculo vazio que nos é oferecido. Não vemos as torres que desmoronam, nem os aviões que as penetram, mas eles estão aí significados por um dispositivo fílmico surpreendente que transforma os acontecimentos daquele dia trágico em uma verdadeira figura, em signo complexo do qual nos apropriamos espontaneamente e cujas formas e contornos nós mesmos projetamos em função de nossos próprios saberes e lembranças. Seu filme apresenta os atentados terroristas como uma figura, ao mesmo tempo presente e ausente, uma figura que deixa a desejar e que nos força, como espectadores, a projetá-la de acordo com os nossos próprios interpretantes, as nossas lembranças e as nossas imagens. Just Like the Movies constitui-se somente de passagens de filmes catástrofes hollywoodianos, que vai de 2001: uma odisséia no espaço (1968) e Operação França (1971) aos Homens-Aranha, Gangues de Nova Iorque e Vanilla Sky (2001). Assim, as imagens de cinquenta e dois filmes divididos em trinta e três anos foram utilizadas, dentre as quais King Kong (1976), Taxi Driver, Os caçafantasmas, Duro de matar, O pescador de ilusões, Armageddon, o Godzilla de 1998, Clube da Luta, Matrix etc. O ‚found footage‛ é todo extraído de filmes que precedem o 11 de setembro, de forma a mostrar claramente que o cinema de Hollywood prefigurara os atentados, preparando-nos para advinhar espontaneamente as suas significações e consequências. Apesar do fato de que, no momento, em que os acontecimentos se produziram, eles pudessem parecer inimagináveis, até mesmo inacreditáveis, Just Like the Movies mostra de forma irônica que eles não tinham cessado de ser mostrados e repetidos sob a forma do espetáculo. O cinema catástrofe fez disso um de seus leitmotiv. 11

Nota da trad.: ‚Found Footage‛ é um gênero cinematográfico que cruza o terror com o ‚mockumentary‛ (documentário falso), e onde o que nos é apresentado são umas alegadas filmagens feitas por pessoas que desapareceram ou foram encontradas mortas. (v. ).

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A originalidade do filme de Kosakowski não surge tanto de sua hipótese inicial mas de sua realização, do simples fato de ter feito com Just like the Movies aquilo que outros tinham simplesmente sugerido. Kosakowski não seria o primeiro, na realidade, a ter associado os atentados de 11 de setembro aos filmes catástrofes hollywoodianos. A adequação fez-se rapidamente, tanto como rapidamente ocorreu a associação entre uma explosão nuclear e o Ground Zero. Desta forma, um crítico como Slavoj Zizek nos explica que: Para a grande maioria das pessoas, as explosões do World Trade Center são acontecimentos que ocorreram na televisão: um desfile, mil vezes repetido, de seres aterrorizados correndo diante da câmera em uma nuvem de poeira gigante das torres desmoronando, uma forma de enquadrar a imagem que não pode deixar de evocar as cenas espetaculares dos filmes catástrofes. [...] Basta lembrar toda uma série de filmes de Fuga de Nova Iorque a Independence Day, para compreender a comparação recorrente entre os ataques terroristas e os filmes catástrofes hollywoodianos: o impensável, que aconteceu, era um lugar de fantasmas, e a maior surpresa foi ter acontecido com a América o que ela fantasiara12.

Kosakowski não se limita a retomar a comparação. Ele a trabalha do interior e se serve disso para transformar as imagens-excessos do cinema hollywoodiano em signos deficitários e essencialmente opacos, que remetem a acontecimentos que não podem ser mostrados porque eles ainda não foram filmados. Tais imagens foram desviadas de seu contexto inicial e reinvestidas para participar do estabelecimento de uma narrativa, na realidade de uma meta-narrativa, já que essa narrativa vem subordinar as imagens e que ela aparece como a verdadeira atualização daquilo que fora antecipado, como se os filmes catástrofes fossem os signos de uma revelação, o anúncio confirmado a posteriori de acontecimentos apocalípticos. Através do deslocamento e da reapropriação, por um procedimento global de desfamiliarização, a montagem acaba por intervir na significação das imagens. Elas são apresentadas não tanto por aquilo que elas mostram ou denotam, isto é, os acontecimentos representados nos filmes fagocitados, mas por aquilo que elas significam e sugerem, os acontecimentos do 11 de setembro. Just Like the Movies é uma narrativa de narrativas, uma colagem de cenas que apontam todas para a mesma direção. E é também uma meta-narrativa porque o seu conteúdo se vê tratado não como um acontecimento particular, representado em sua própria singularidade, mas generalizável e reprodutível. O que é 12

ZIZEK, Slavoj. Bienvenue dans le désert du réel. Paris: Flammarion, 2007 [2002], p. 33 e 37.

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colocado em cena pelo modo da alusão ou da conotação está carregado de significação porque os acontecimentos em questão nos são familiares e que nós somos capazes de reconhecê-los. Um aspecto que merece uma observação. Nós conhecemos as grandes linhas dos acontecimentos daquele dia e conseguimos sem muita dificuldade reconstruí-los. A esses acontecimentos sobremaneira midiatizados correspondem um conjunto de imagens e de elementos de descrição que garantem uma verossimilhança à sua representação e, por conseguinte, sua grande eficácia. Dentre as imagens presentes no filme, notam-se: contraplanos sobre as duas torres no céu de Nova Iorque; as pessoas em queda livre; chuvas de detritos; os aviões penetrando nas estruturas; o fogo em cada arranha-céu; as torres que caem; os olhares voltados para o alto; a presença da televisão como dispositivo de transmissão das imagens; as ruínas e as outras manifestações da destruição; o olhar hipnotizado dos observadores, fossem eles simples pessoas ou soldados, controladores aéreos, policiais, políticos; as ruas cheias de papel e folhas ao vento, ou de um cinza muito pálido, resultado do concreto pulverizado. Esses elementos asseguram à figura das torres em chamas do World Trade Center e ao imaginário do 11 de setembro uma grande estabilidade. Just Like the Movies retoma um a um esses traços e explora a fundo a lógica da narração para propor uma representação que, colocando no vazio os próprios acontecimentos e seu repertório de fotografias, se reconhece facilmente apesar da imitação empregada. O filme constrói uma figura, e cabe a nós investi-la, mobiliá-la com as nossas próprias imagens, nossa própria enciclopédia. A figura do desmoronamento das torres em chamas, somos nós que a completamos, é o resultado de nossa projeção, de nossa interpretação. O filme se apresenta como uma caixa e somos nós quem a enchemos. ACERCA DA EXARCERBAÇÃO ‚Da era do vazio‛, nos dizem Lipovetsky e Serroy, ‚passamos à era da saturação, do demasiado, do superlativo em todas as coisas‛13. E eles continuam ao explicar que uma ‚estética e uma cultura da violência pura desvelou-se [...] a violência n~o é mais t~o somente um tema quanto um tipo de estilo e de ‘estética’ pura do filme. Ela opera de maneira crescente como um espetáculo existindo para si mesmo‛. Os filmes de catástrofe hollywoodianos lidam plenamente com essa lógica do espetáculo da violência. Ele é até mesmo exagerado. Os 13

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. L'écran global: Culture-médias et cinéma à l'âge hypermoderne. Paris: Seuil, 2007, p. 77.

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filmes participam de um imaginário do fim, que se compraz muito frequentemente nas imagens disfóricas de um mundo em extinção. São filmes com suas leis, seus motivos e suas regularidades narrativas. E a sua vocação é de entreter o sentimento de catástrofe, de oferecer a violência em espetáculo como uma diversão. A sua popularidade atesta, aliás, a nossa fascinação reiterada por seus artifícios. Constituído de segmentos desconstruídos desses filmes, Just Like the Movies frustra sua lógica espetacular, substituindo as catástrofes imaginárias por uma catástrofe real, mesmo se ela é mantida na sua opacidade. O espetáculo da violência é aqui desconstruído porque ele é encenado na sua própria encenação e que esta ‚mise en abîme‛ o integra a um dispositivo totalizante que trabalha com as imagens com fins críticos. Destacadas de sua cadeia narrativa inicial, as imagens são integradas a um encadeamento essencialmente simbólico onde sua prefiguração dos atentados é explorada de modo maior. Órfãs e desarticuladas, as imagens são também essencialmente mudas. O espetáculo da violência é gritante, e extremamente barulhento, quando difundido em dolby estéreo, mas a sua representação se torna muda, silenciosa, a partir do momento em que a violência deixa o espetacular para se tornar fundadora. A distinção surge claramente em Just Like the Movies. O processo de redistribuição das imagens passa por uma eliminação das tramas sonoras e musicais. As imagens utilizadas por Kosakowski são pura e simplesmente mudas. Ninguém fala, não há som, nenhum barulho ambiente. A única trama presente é a de um piano que acompanha, como na época dos filmes mudos, o séquito das imagens. Just Like the Movies nos conduz, por sua construção, ao cinema mudo, isto é, a um estado anterior do cinema, a um tempo mítico da origem do veículo fílmico, quando as imagens não falavam. O efeito desse procedimento é grande. Não estamos mais numa representação do cotidiano, feita de palavras e de desejos, do barulho da cidade e dos sons da vida contemporânea, nós não nos situamos mais no nível da verossimilhança psicológica dos romances familiares e dos dramas humanos, retornamos a um estado anterior, mítico, onde os mundos se fazem e se desfazem, no lugar das origens e dos fins, lugar onde a palavra não possui mais direito de estar, porque a violência que está em campo impõe o silêncio do pensamento racional, subjugado pelo medo e pelo instinto de sobrevivência. O processo simbólico que se encontra no centro da montagem de Just Like the Movies transforma um acontecimento real, prefigurado em excesso, em uma narrativa mítica. Conduzir as imagens ao silêncio, torná-las mudas, é retornar ao passado das imagens, voltar ao passado, é visar o Grande Tempo, o 36 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

dos mitos da origem e do fim do mundo, o dos deuses mudos que moldam e desconstroem o mundo, no silêncio de seu pensamento. Trata-se um pouco da mesma estratégia empregada por Art Spiegelman em seu In the Shadow of No Towers. Ao recuperar a estética dos comics do início do século XX, ele retorna à infância de uma arte, procurando talvez reencontrar uma certa ingenuidade. Para afrontar o espetáculo hipermediatizado dos acontecimentos, é conveniente provavelmente lanças mão de dispositivos mediáticos em desuso ou ultrapassados, comics e cinema mudo. Pois esses dispositivos não podem nos ludibriar, eles não favorecem mais o estabelecimento de efeitos de presença que asseguram uma percepção ingênua dos acontecimentos. Eles permitem acima de tudo que nós passemos a uma postura crítica, capaz de discernir as coisas e de desconstruir o espetáculo oferecido. Os acontecimentos de 11 de setembro nos transformaram em testemunhas-espectadores de um drama que assistimos sem ter sofrermos os efeitos imediatos. Estávamos voltados para as telas de nossas televisões, olhando ao vivo um acontecimento cujo impacto midiático era imenso. Porém o nosso conhecimento sobre esses acontecimentos não era em nada pessoal. Não conhecemos essa violência de perto e nunca fomos ameaçados. Pudemos nos sentir vítimas, mas éramos somente espectadores. E nosso conhecimento estava desde então partilhado, desde então sob o controle da mídia, cuja versão simplificadora nos serve atualmente de fundo em comum. Obras In the Shadow of No Towers e Just like the Movies conseguem desconstruir esse conhecimento, mostrando de que forma ele é, sendo espetáculo, uma verdadeira manipulação que não procura esconder a violência de seus elementos espetaculares, mas mantêlos. É preciso, como nos dizem Spiegelman e Kosakowski, apagar as torres para permitir que elas se inscrevam em um imaginário onde elas se imporão como figura, única forma de escapar à reiteração de um espetáculo promovido à fileira do real. REFERÊNCIAS AUGÉ, Marc. Le temps en ruines. Paris: Galilée, 2003. AUSTER, Paul. Constat d’accident et autres textes. Arles: Actes Sud, 2003. BAUDRILLARD, Jean. L'esprit du terrorisme. Le Monde, 2 nov. 2001. Disponible sur: http://www.egs.edu/faculty/baudrillard/baudrillard-the-spirit-of-terrorism-french.html. CHESNAIS, Jean-Claude. Histoire de la violence en Occident de 1800 à nos jours . Paris: Laffont, 1981. HARTOG, François. Régimes d’historicité. Présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003.

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JURGENSON, Juba. L’indicible: outil d’analyse ou objet esthétique? Protée, v. 37, n. 2, aut. 2009. LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. L'écran global: Culture-médias et cinéma à l'âge hypermoderne. Paris: Seuil, 2007. SPIEGELMAN, Art. In the Shadow of No Towers. New York/Toronto: Pantheon Books/Random House of Canada, 2004. ZIZEK, Slavoj. Bienvenue dans le désert du réel. Paris: Flammarion, 2007 [2002].

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O DESAFIO DA VIOLÊNCIA Carlos Alberto da Costa Gomes1 INTRODUÇÃO O estudo da violência tem sido o objeto de inúmeros pesquisadores e é instigante, pois ela é percebida conforme a cultura e posição que o indivíduo ocupa na sociedade. Genericamente a violência é definida como aquilo que é contrário ao direito e à justiça. A definição sintética que não traduz o real problema: Arendt (1994), assim como Freud (l974), Habermas (l980), Sartre (l980), entre outros abordam as diferentes concepções da violência, da que se origina do poder, do Estado, da sociedade, do indivíduo. Portanto, quando falamos das Imagens da violência, de que violência falamos? Violência física, material, psicológica, doméstica, sexual, verbal, moral, econômica, estrutural, política, religiosa, cultural? Em 2006, o Professor Gey Espinheira desenvolveu um projeto de prevenção do risco e do dano social na Região da Mata Escura; muitos já devem ter lido o livro que resultou deste trabalho: A sociedade do medo (2008). Pois bem, até o início daquele projeto eu carregava comigo a convicção que as crianças que perambulavam pelas ruas pedindo alguma coisa deviam estar nas suas casas ou nas escolas. No decorrer do projeto, após termos reunido uma turma de jovens pelo critério da história de vida, privilegiando aqueles que viviam em situação de risco, descobrimos através da escuta flutuante e dos grupos focais uma verdade terrível: os dois lugares que mais temiam eram: a própria casa onde sofriam ou sofreram diferentes tipos de abusos ou violências; e a escola, onde eram vítimas de grupos rivais, tudo isso ocorrendo em público sem que houvesse qualquer ação verdadeira de qualquer órgão ou instituição para evitar a vitimização. Citei este fato para mostrar as diferentes e inimagináveis formas de violência que uma sociedade complexa e cristalizada em uma verdadeira dicotomia de poder apresenta. Aqui cabe lembrar um dos grandes pensadores de nossa sociedade, cujas ideias influenciaram Buarque, Darcy Ribeiro e outros: José Honório Rodrigues. Ele concluiu sua obra Conciliação e reforma no Brasil em 1965, declarando:

1

Coordenador do Observatório de Segurança Pública da Bahia — sítio de internet: www.observatorioseguranca.org e www.ospba.org; Grupo de Pesquisa em Segurança Pública Violência e Cidades registrado junto ao CNPQ; Professor Doutor chefe da Cadeira de Metodologia das Ciências Sociais Aplicadas II do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Regional, da Universidade Salvador; endereço eletrônico: [email protected].

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Poder e sociedade: o dissídio político brasileiro — a divisão entre o poder e a sociedade manifesta-se especialmente pela estabilidade da estrutura e a instabilidade governamental, pelo desequilíbrio da população representada no poder e a mantida na periferia, pela não integração à sociedade de vastas camadas da população (RODRIGUES, 1965, p. 237).

Esta introdução nos leva ao entendimento de que somos um Estado e uma sociedade baseados em uma violência continuada, silenciosa, surda, institucional e legal de criação e recriação do modelo benéfico para alguns e excludente da maioria que nos obriga à reflexão sobre a violência implícita, latente, que existe permeando as nossas relações sociais, para isso é necessário entender o conceito. VIOLÊNCIAS Recorrendo a Maria Cecília de S. Minayo, sabemos, hoje, que a violência não faz parte da natureza humana. Trata-se de um resultado do complexo e dinâmico processo de criação e desenvolvimento que é a vida em sociedade. Portanto, para entendê-la, há que se apelar para a evolução histórica onde se cruzam problemas da política, da economia, da moral, do Direito, da Psicologia, das relações humanas e institucionais, e do plano individual. Na sua dialética de interioridade/exterioridade a violência integra não só a racionalidade da história, mas a origem da própria consciência, por isso mesmo não pode ser tratada de forma fatalista: é sempre um caminho possível em contraposição à tolerância, ao diálogo, ao reconhecimento e à civilização, como o mostram Hegel (l980), Freud (l974), Habermas (l980), Sartre (l980), entre outros (MINAYO, 1994, p. 7).

Podemos então visualizar claramente a existência de uma dialética da violência, identificada por Domenach (1981, p. 40): Suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras situações menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por ideologias ou instituições de aparência respeitável. A violência dos indivíduos e grupos tem que ser relacionada com a do Estado. A dos conflitos com a da ordem.

Através deste texto de Domenach podemos compreender o conceito de violência estrutural e da resistência que por muitas vezes permeou nossa sociedade e que continua acontecendo nos inúmeros escândalos políticos acompanhados pelo imobilismo da justiça: Violência Estrutural Entende-se como aquela que oferece um marco à violência do comportamento e se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que con-

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duzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte. Essas estruturas influenciam profundamente as práticas de socialização, levando os indivíduos a aceitar ou a infligir sofrimentos, segundo o papel que lhes corresponda, de forma ‚naturalizada‛ (BOULDING, l981, p. 268). Violência de Resistência Constitui-se das diferentes formas de resposta dos grupos, classes, nações e indivíduos oprimidos à violência estrutural. Esta categoria de pensamento e aç~o geralmente n~o é ‚naturalizada‛; pelo contr|rio, é objeto de contestação e repressão por parte dos detentores do poder político, econômico e/ou cultural. É também objeto de controvérsia entre filósofos, sociólogos, políticos e, na opinião do homem comum, justificaria responder à violência com mais violência? Seria melhor a prática da nãoviolência? Haveria uma forma de mudar a opressão estrutural, profundamente enraizada na economia, na política e na cultura (e perenemente reatualizada nas instituições), através do diálogo, do entendimento e do reconhecimento? Tais dificuldades advêm do fato de a fonte da ideologia da justiça, da mesma forma que qualquer outra ideologia, estar em relação dinâmica com as relações sociais e com as condições materiais. Na realidade social, a violência e a justiça se encontram numa complexa unidade dialética e, segundo as circunstâncias, pode-se falar de uma violência que pisoteia a justiça ou de uma violência que restabelece e defende a justiça (DENISOV apud MINAYO, 1994, p. 8).

Estas formas genéricas e definidoras de uma parcela considerável das violências não é capaz de nos fazer compreender o fenômeno atual, da violência que nos lega o medo, esta é outra, já que é despossuída de finalidade. Tanto a violência estrutural, como a violência da resistência possuem um certo sentido, uma crença que as envolve. A violência que hoje se estabeleceu em nossas cidades possui características da violência estrutural, não existe dúvida, somos uma sociedade socialmente injusta, porém os atos que caracterizam a violência de hoje não buscam estabelecer condições para uma luta pelo poder, não possuem ideologia, sejam os praticados pelo estado como por quadrilhas armadas que dominam territórios de nossas cidades. A violência de hoje tem sua base na delinquência, não na ideologia. Violência da Delinqüência É aquela que se revela nas ações fora da lei socialmente reconhecida. A análise deste tipo de ação necessita passar pela compreensão da violência estrutural, que não só confronta os indivíduos uns com os outros, mas também os corrompe e impulsiona ao delito. A desigualdade, a alienação do trabalho e nas relações, o menosprezo de valores e normas em função do lucro, o consumismo, o culto à força e o machismo são alguns

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dos fatores que contribuem para a expansão da delinqüência. Portanto, sadismos, seqüestros, guerras entre quadrilhas, delitos sob a ação do álcool e de drogas, roubos e furtos devem ser compreendidos dentro do marco referencial da violência estrutural, dentro de especificidades históricas (MINAYO, 1994, p. 8).

Vejamos que existe a compreensão de que a violência da delinquência está plenamente ligada à violência estrutural, mas dela se diferencia pela opção pelo ato — livre arbítrio — desprovido de consciência ou de ideologia. O ato é cometido para satisfazer necessidades pessoais, ou melhor, dizendo desejos pessoais (o roubo para consumo de drogas, compra de roupas de grife etc.), diferenciando-se bem do crime famélico. É o buscar a satisfação sem se sujeitar às dificuldades da vida, proporcionada pela violência estrutural, como educação sem qualidade, falta de trabalho, de saúde etc. É um processo de retrocesso civilizatório, é o retorno ao império do mais forte (armado e disposto a ferir) sobre outros; a violência da delinquência que gera o crime e assusta, pois não tem base em qualquer princípio moral. FORMAS DA VIOLÊNCIA DA DELINQUÊNCIA Para uma primeira aproximação da materialização da violência da delinquência, podemos grupá-la em dois grandes grupos: contra a pessoa e contra o patrimônio. A violência contra o patrimônio é difícil de ser estudada devido ao fenômeno da subnotificação. A pessoa que sofre a perda patrimonial calcula se vale a pena participar o furto ou o roubo que sofreu em face do valor do que perdeu e do tempo que perderá para, provavelmente, muito pouca esperança de recuperação. Ela varia de Estado para Estado. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) trabalha com 70% e o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) trabalha com 83%, traduzindo de cada 100, apenas 17 são registrados (CANO, 2000) . Por essa lógica, considerando a SENASP, para todos os dados de violência contra o patrimônio, teremos de corrigir dividindo o valor por 0,7. Assim, sabendo que no último ano que foram publicadas as estatísticas completas sobre as ocorrências das polícias civis no Brasil foi em 2005 e lá teremos 49431 roubos na Bahia, podemos aproximar para algo como 70615 roubos de fato ou de 521 por grupo de cem mil. Desta forma, a incidência da violência material é de tal ordem que muito poucas pessoas podem passar a vida sem um episódio destes. A primeira, a violência contra a pessoa, é muito mais importante e conduz a diversos crimes. Passaremos a examinar a região metropolitana de Salvador, por ser a mais próxima e a mais populosa região do Estado. 42 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

O homicídio doloso (aquele executado com intenção) — 1733 em 2008 ou 67,1 por cem mil, uma das mais altas taxas do país e seguramente entre as 30 maiores do mundo. Somando-se as tentativas de homicídios — 1033 (só não ocorreu a morte por algum fator diferente da vontade do autor), representa 39,99 por cem mil; somando-se estupro — 283 ou 11 por cem mil; e roubo seguido de morte — 22, teremos 3071 ou algo como uma vitimização de 119 por cem mil, segundo a Polícia Civil. Ao examinarmos os dados da Saúde, verificando as mortes por causas externas (não inclui doença de nenhuma espécie, só atos externos à pessoa e, portanto, violência) teremos: 1787 mortes CID X 85 a Y 09; por agressão (assassinados) — outras 555, cuja intenção é indeterminada (CID Y 10 até o Y 34). Curiosamente já possuímos o CID Y 35 e 36 — operações de guerra com um total de 31 mortes só na Bahia e destas 4 em Salvador. Notemos que os dados diferem: a saúde, que não investiga, aponta 1787 mortes por agressão e a polícia indica 1733 homicídios. A diferença poderia ser a estatística de homicídios culposos (aquele sem a intenção de matar); porém, se assim fosse e os outros 555 que a saúde informa que a intenção não foi determinada, estes sim são os homicídios ditos culposos, sem intenção. Vejamos o que ocorre com Salvador, região metropolitana, em uma série de dados de 2003 até 2009. Se acrescentarmos a função da curva (R2), veremos que ela se ajusta mais a um polinômio e a leve estabilização ocorrida neste ano pode não ser um limite, mas apenas um patamar alcançado que pode vir a ser superado, como ocorreu no período 2003/2004 e anteriormente em várias ocasiões como se pode observar no gráfico em anexo. Entre 1991 e 1993, ocorreu uma queda, assim como entre 1997 e 1998 e entre 1999 e 2000, mas a tendência geral (polinomial de segunda ordem) continuou sendo de crescimento, representando em duas décadas 395% e posteriormente nestes nove anos acelerou o crescimento, passando a 246% neste período pós 2000. Saímos de 178 em 1980 para 1733 em 2008. CONCLUSÃO O QUE ACONTECEU? Contraditoriamente neste mesmo período tivemos a abertura democrática, passamos ao estágio de uma sociedade onde todos os pressupostos de liberdade e democracia estão em prática e, portanto, seria de se esperar uma redução geral da violência, uma vez que findou a violência política e criamos as condições para redução da violência estrutural.

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O que podemos elencar como fatos históricos podem explicar isso em parte, me tornando repetitivo. A migração do campo com destino às cidades e o índice elevado de natalidade caracterizaram as quatro últimas décadas do século passado. As benesses das cidades, como a água, o transporte, a escola, a possibilidade de serviço médico, atraiam e a injusta divisão da terra no campo, somada a ausência de tudo, incluindo-se a esperança, expulsou. A corrente migratória não se deu pelo poder econômico das cidades em absorver as populações que se dirigiam a elas e sim pela busca de condições mínimas de sobrevivência dos que fugiam de situações subumanas, verdadeiros refugiados de uma miséria mais profunda que a existente nas cidades. As cidades não cresceram, mas incharam ao ritmo alucinante de milhares de habitantes por ano, a infra-estrutura urbana entrou em colapso, cresceu vertiginosamente o número de habitações irregulares em espaços irregulares, sem arruamento, sem serviços básicos, sem endereços — invasões ou favelas (GOMES, 2005). Nas Favelas o Estado falhou de várias formas. Iniciou com a aplicação de políticas públicas confusas de ordenamento urbano, cujo leque foi da remoção ao abandono de extensas áreas das cidades e mesmo, em determinados momentos, de aquiescência com as invasões, criando territórios à parte dentro da cidade. Some-se o vácuo do Poder Público nestes espaços, abandonados à sua própria sorte, preenchido por novas formas de relações sociais capazes de promover a segurança das pessoas onde deixaram de ser mediadas pelo ordenamento jurídico. Passaram a viver entre dois mundos, o real onde a ausência de normas e leis era a norma e o outro, na cidade formal, onde existiam normas que não compreendiam. Inexistiam endereços, códigos de endereçamento postal, nomes de logradouros, praças, jardins, ruas, escolas. A propriedade e a família passaram à esfera da informalidade. Ao mesmo tempo, no mundo formal, eclodiu uma verdadeira revolução dos costumes. O consumismo passou a caracterizar nossa sociedade recém industrializada. A mudança nos modos de produção cortou ou extinguiu inúmeras profissões braçais, restringindo a possibilidade de emprego dos analfabetos a poucos nichos de trabalho onde uma formação específica não era fator condicionante: vigias, serventes, faxineiros e empregados da construção civil. Aumentou-se, desta forma, o desnível entre os excluídos do processo sócio-econômico do desenvolvimento e os que estavam inseridos nesse processo, ao mesmo tempo em que todos passaram a ser expostos a uma incitação ao consumo. O fosso entre os incluídos e excluídos cresceu exponencialmente a cada nova geração criada nessas condições totalmente diferenciadas, o que, aliado às crises econômicas verdadeiramente imobilizantes do Estado, agravou ainda mais os desníveis sócio-econômicos históricos que já existiam e os transportados do campo 44 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

para a cidade: falta de esgoto, de ruas, de assistência médica e social, de escolas e de segurança. No mesmo período em que ocorreram estas transformações na maioria das cidades brasileiras, ocorria um embate entre duas correntes ideológicas ou sistemas políticos no mundo: o capitalismo e o socialismo. Foi o período que conhecemos como da ‚Guerra Fria‛ que sucedeu a última guerra mundial. De um lado os Estados Unidos da América (EUA) e do outro a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) capitaneavam dois grandes blocos que, impossibilitados de se enfrentarem diretamente pelo poder destruidor de suas armas nucleares, o faziam através de seus aliados. Cada corrente financiava os movimentos revolucionários que fizessem frente à outra em diversos locais do mundo, em uma clara quebra dos paradigmas de autodeterminação dos povos. Neste lado do mundo prevalecia o poder dos EUA que ajudaram a eliminar qualquer iniciativa que pudesse ser influenciada por seu oponente, permitindo modo a supremacia da corrente política considerada de ‚direita‛ (alinhada aos EUA). A ideologia capitalista liberal encontrou na ideologia conservadora das elites brasileiras, que há menos de um século defendiam a escravidão, o aliado ideal. As reivindicações sociais passaram a ser rotuladas de ‚socialistas‛ e toda a estrutura do Estado foi mobilizada para ‚impedir‛ o crescimento da ‚esquerda‛. Como uma arma nesta guerra psicológica, utilizou-se o mesmo rótulo infligido no passado aos ‚negros da terra‛, a quem tudo era negado; passaram a fazer parte do conteúdo simbólico do termo ‚favelados‛ os adjetivos desocupados, vagabundos, vadios — artigo 295 do Código Penal do Império e hoje artigo 59 da Lei das Contravenções Penais do Brasil: ‚vadiagem‛. O sistema judiciário brasileiro, por sua vez, é inerte. É resultado da depuração do sistema jurídico colonial português que garantia inúmeras possibilidades e artifícios aos ‚homens de bem‛ e uma aç~o draconiana para com os ‚desajustados‛, muito mais uma estrutura de manutenç~o do poder que de justiça. Permaneceu assim. Não existe fim no processo capaz de acatar recursos até para sentença transitada em julgado (SOBRINHO, 2008). A linguagem é elitista, própria e de difícil, quando não impossível, entendimento para a população em geral. Assim como acontece com o serviço de policiamento, não existe sistema de controle externo, o que gera situações no mínimo passíveis de crítica. Ferreira (2008) apresenta em sua dissertação de mestrado uma extensa lista de criminosos pertencentes à elite econômica e política do país que nunca foram condenados, comprovando a existência de uma regra: nunca ocorre condenação quando se trata de um membro das classes abastadas da nossa sociedade e, ao mesmo tempo, demonstra a elevada capacidade de condenação quando o recorte é feito sobre os crimes cometidos por pessoas pertencentes às camadas

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populares, até mesmo quando essa condenação é flagrante de verdadeira injustiça. Ao longo da história, o emprego das forças policiais com finalidades repressivas, para a manutenção do poder em mãos de determinadas correntes políticas, no âmbito nacional e estadual, prejudicou a evolução do aparato de gestão da segurança pública. Impediu o surgimento de instrumentos de fiscalização e de controle social que o serviço de policiamento necessita e, principalmente, dificultou o estabelecimento de uma relação cooperativa entre a população e órgãos de polícia (GOMES, 2005). É normal ao policial acreditar que está em uma posição de mando e não de oficial de justiça e nesta situação não lhe cabe ‚fazer amizade‛ com ‚civis‛. Esta ótica estranha, mas real, termina por facilitar os extremos da violência policial, principalmente em relaç~o aos ‚vadios‛. A principal herança da sociedade escravocrata do século XIX foi o analfabetismo endêmico e a fraqueza moral da elite que se servia do sistema e que continuou a ocupar o poder. Largas parcelas da população, notadamente as de descendência africana e os mestiços, não tiveram acesso à educação básica formal, situação que no interior do estado ainda era mais grave. Esta situação foi transplantada para as cidades. As favelas e invasões são os locais de maior incidência de pessoas que não completaram o ciclo básico da educação. Os governos que se sucederam neste período enfrentavam com medidas emergenciais o caos urbano que se instalou. Escolas foram criadas nos espaços ocupados por favelas sem uma estrutura mínima para o desenvolvimento de uma educação formal de qualidade, apenas salas de aula sem os recursos mínimos e básicos, como laboratórios, quadras, ginásios, meios auxiliares, mapas, etc. O aumento do número de professores necessários para enfrentar o crescimento constante do número de alunos impediu a melhoria da formação e da remuneração do docente. Ao mesmo tempo, o crescimento desordenado impediu edificação de quadras desportivas, de praças e áreas de lazer, reduzindo os espaços de convivência e prática de esportes que já inexistiam nas escolas. Na guerra do Afeganistão de 1979-1989, os Estados Unidos apoiaram os Talibãs, grupo fundamentalista muçulmano que, ao vencer o conflito, no poder, com o recurso da pena de morte, proibiu o uso e a produção de drogas. Gerouse assim um ‚desabastecimento‛ mundial de heroína derivada da papoula, tradicional cultura daquele país. O crime organizado transnacional viu aí uma oportunidade: suprir a demanda com cocaína, droga produzida a partir da folha de coca, farta e parcialmente legalizada nos países andinos, onde faz parte da dieta indígena. Organizou-se então um assalto aos Estados produtores. Colômbia, Bolívia e Peru passaram por atentados, aumento da guerrilha, aumento da cor46 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

rupç~o, criaç~o de |reas liberadas etc. para ‚incrementar‛ a produç~o e atender a demanda dos ‚consumidores‛, privados da heroína barata. A estratégia foi um sucesso: nunca se produziu tanta cocaína na América Latina e o Brasil era considerado nesta fase como um ‚local de passagem‛. Os atentados de 11 de setembro de 2000 provocaram uma nova guerra no Afeganistão, agora contra o terrorismo; Estados Unidos e a Inglaterra derrubaram o regime Talibã na tentativa de prender ou matar seu líder, Osama Bin Laden, e restabelecer os limites das zonas de guerra (sempre fora de seus territórios). Esta reviravolta levou a uma mudança no fundamentalismo islâmico dos Talibãs. Seus líderes passaram a ver na produção da droga, assim como ocorreu com as guerrilhas marxistas da América Latina após o fim do apoio soviético, uma forma de financiamento e ‚estratégia‛ para enfraquecer os ‚infiéis‛ da América do Norte e Europa. Agora a Al Qaeda não só deixa plantar como protege a produção de heroína que atingiu quantidades nunca antes imaginadas, com preços baixíssimos, o que permitiu a retomada do mercado perdido para a cocaína. Restou aos ‚produtores‛ da América Latina desenvolver o ‚mercado interno‛, barateando o custo da droga para vendê-la aos consumidores de baixa renda. O preço da cocaína caiu e, através do crack, antes subproduto do refino e hoje elaborado a partir da cocaína pura, atinge-se viciados pobres e jovens com suas pequenas ‚mesadas‛. O Brasil passou a ser o ‚mercado consumidor‛ da droga. As características continentais e fronteiras terrestres com a maioria dos países da América do Sul facilitou a invasão pela droga. Os locais para venda e comercialização recaem sobre os espaços de difícil presença do policiamento: as favelas. Some-se às condicionantes descritas o elevado número de famílias desestruturadas, em que os pais que deveriam proteger são agentes dos abusos e o convívio com criminosos nos territórios de descoesão social 2, juntos criam as condições de risco social. Junte-se a falta de perspectiva dentro de uma sociedade de consumo que enfatiza a posse, o ‚ter‛ ao invés do ‚ser‛, e teremos a situação dos jovens de periferia que, ao contrário do que o senso comum pode aceitar, é a maioria de nossa população (PNUD Brasil, 2009).

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Fragmentação social ou descoesão social resultante dos efeitos da disjunção entre nação, economia e sociedade inerentes à nossa condição histórica de periferia da expansão capitalista, acelerados pela subordinação à globalização hegemonizada pelo capital financeiro.

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O DESAFIO Estas são as condicionantes da criminalidade das metrópoles brasileiras: desorganização espacial, inexistência de serviços públicos ou ineficiência, quando existem, que, somados à falta de empregos e frente à dicotomia entre a população e os órgãos de polícia, criaram as condições para a explosão de criminalidade que assistimos em nosso dia a dia. Os índices de homicídios nas aglomerações urbanas brasileiras são trinta vezes aos das cidades europeias, dez a vinte vezes aos dos Estados Unidos (GBAV Report, 2009; GOMES, 2008). A principal vítima é o jovem. A opção pela carreira criminosa é uma opção real, próxima, factível, muito mais factível que ser um empregado do setor de serviços ou operário, além de se ver a cada dia, nos nossos noticiários, que aqueles que dirigem a nação praticam grandes crimes, porque não cometer um pequeno crime? É este o desafio. Retomar o processo civilizatório, restabelecer o império do certo, do legal, do moralmente correto e acabar com as roubadinhas ou grandes roubos. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. BOULDING, Elise. Las mujeres y la violencia social. In: JOXE, Alain. (Org.). La violencia y sus causas. Paris: Unesco, 1981, p. 265-279. Disponível em: http://www.scielo.br. CANO, Ignacio (ISER). Registros criminais da Polícia no Rio de Janeiro: problemas de confiabilidade e validade. In: Fórum de debates. Criminalidade, violência e segurança pública no Brasil: uma discussão sobre as bases de dados e questões metodológicas . 7. 2000. Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: UCM/Cesec, 2000. Disponível em: http://ucamcesec.com.br/pb_txt_dwn.php. DOMENACH, J. M. La violencia. In: UNESCO. (Ed.). La violencia y sus causas. Paris: Unesco, 1981, p. 33-45. ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea. (Org.). Sociedade do medo: teoria e método de análise em bairros populares de Salvador: juventude, pobreza e violência . Salvador: UFBA, 2008. FERREIRA, Nilton Costa. Anomia: a contribuição da ingerência política à (in)segurança pública. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social. Salvador: Universidade Católica do Salvador, 2008. FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 311-339. GBAV Report [Global Burden of Armed Violence]. 2008. Geneva, 2008. Disponível em: http://www.genevadeclaration.org/measurability/global-burden-of-armed-violence.html. Acesso em: 12 nov. 2009.

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ANEXOS

NÚMERO DE MORTOS

HOMICÍDIO DOLOSO POR 100.000 80 70 60 50 40

Série1

30 20 10 0 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 ANOS

Fonte: SSP/BA, Elaborado pelo autor Homicídio 900 800 700 600 500 400 300 200 100 0

19 80 19 82 19 84 19 86 19 88 19 90 19 92 19 94 19 96 19 98 20 00

Homicídio

Fonte: SSP/BA, Elaborado pelo autor

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PERSPECTIVAS DA VIOLÊNCIA DA OBRA DE OLNEY SÃO PAULO Claudio Cledson Novaes1 Olney São Paulo é baiano de Riachão do Jacuípe e teve a sua formação na cidade de Feira de Santana. Começou a se interessar pela crítica e pela realização de arte atuando em grupos teatrais e literários escolares, antes de travar conhecimento com a literatura modernista e o cinema. O cinema surge na vida de Olney logo cedo, e, após passagem pela crítica amadora de filmes em jornais locais, realiza a primeira experiência cinematográfica, reunindo amigos e parceiros da cidade, para fazer um filme idealizado por ele. De cunho documental com vieses de ficção, o primeiro filme é ambientado na grande feira livre da cidade. Um dos mais importantes entroncamentos comerciais do Nordeste, tanto pela dimensão geográfica, quanto pela articulação cultural dos entrepostos comerciais da região, Feira de Santana é o cenário privilegiado no primeiro e em muitos outros filmes do cineasta. Neste filme prematuro, perdido na história do cinema brasileiro e na pré-história do cinema feito na Bahia, a violência é um elemento simbólico importante no enredo. Segundo registros sobre o roteiro, trata-se de um crime ocorrido no ambiente comercial do espaço da feira. A ação é descrita com técnicas documentais, o que será a marca de Olney em sua obra madura, como realizador de documentários importantes na cinematografia brasileira. Após o crime, o filme desencadeia uma orientação ficcional, com base na ação de personagens que se movimentam em perseguições e lutas, bem ao clima dos filmes de gêneros do cinema clássico americano, principalmente da estética da violência do Western. Esta será uma das fontes do menino cinéfilo, ao construir o imaginário da juventude, na época influenciado pelos mocinhos e bandidos e pela luta entre o bem e o mal presente nos filmes de John Ford. Logo em seguida, Olney passa a participar de filmes nacionais no início dos anos 1960, aproveitando a passagem pela Bahia de cineastas dos momentos iniciais do movimento moderno do cinema brasileiro, que se dirigiam ao Nordeste para filmar produções como o Caipora (1962) e Vidas secas (1963). Esses filmes encenam a violência das condições sociais e econômicas locais, que serão transferidas para as narrativas literárias do autor e será a base temática regional 1

Doutor em Teorias da Comunicação — ECA/USP; Professor Titular do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa na Bahia (FAPESB); Coordenador do Núcleo de Estudos em Literatura e Cinema (NELCI) e do Grupo de pesquisa: Imagens em Movimento: aspectos da literatura no cinema; endereço eletrônico: [email protected].

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da sua filmografia. No caso de Vidas secas, a primeira tentativa frustrada de filmá-lo fez Nelson Pereira dos Santos improvisar o roteiro de Mandacaru vermelho (1962), para aproveitar as locações do Nordeste, o que possibilitou a participação do cineasta feirense como ator no filme, criando-se o vínculo permanente entre ele e Nelson Pereira. Esse foi um dos motivos que o levaram a trocar a Bahia pelo Rio de Janeiro, após a realização de seu primeiro longametragem, em 1964, Grito da terra, que aborda o tema da violência rural, adaptado do romance de Ciro de Carvalho. As perspectivas da violência representadas na obra de Olney São Paulo ganham vários outros matizes no decorrer da sua obra madura e possibilitam discutir os momentos coercitivos, tanto da auto-censura individual numa sociedade de tradições patriarcais, quanto da censura política oficial implantada no Brasil pelo regime militar na década de 1960. Também suas obras permitem problematizar outros agenciamentos violentos implícitos da memória social, apresentando os recalques da identidade nacional construída a partir de modelos de dominação representados em sua obra, com foco no embate entre classes; no entanto, sem as tradicionais estruturas maniqueístas. Sua obra literária e cinematográfica trata da violência da subalternidade, com uma temática que expõe conflitos entre classes, e a ideologia da forma representa uma expectativa de redenção; contudo, sem a ruptura com aspectos da cultura popular que são vistos numa linguagem da utopia de superação política sem a destruição dos emblemas culturais identitários. O duplo movimento entre ruptura e tradição pode ser analisado em sua obra sob variadas formas da violência na construção da subjetividade representada no jogo ético/estético da arte brasileira, possibilitando a leitura do texto literário e do cinema como imagens de informações e de reconstruções da realidade nacional. A paradoxal relação entre vanguarda e tradição na obra de Olney leva a algumas violências interpretativas que não perfazem a mediação exata pelo jogo do contraponto, considerando as contradições como elementos negativos da narrativa. A ‚estética da fome‛ em sua narrativa só aparentemente parece contemplativa da miséria, pois o movimento é mais visceral em sua visão da cultura popular, ao contrapor a uma visão ideológica racionalista de revolução, uma subjetivação ideológica da cultura que suplemente a racionalidade com imagens de um imaginário irracionalista produto de imagens populares. Para se investigar alguns sentidos da violência engendrados na trajetória do cineasta e escritor Olney São Paulo é necessário sublinhar alguns aspectos fundamentais dos conceitos de violência e da sua especularidade nos textos e imagens produzidos nas narrativas ficcionais da literatura e do cinema nacional. Além dos aspectos da violência material e concreta, narradas na própria textua52 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

lidade verbal ou imagética das obras, outras violências subjacentes percorrem o imaginário simbólico dos textos literários e enunciados fílmicos. Algumas fissuras do imaginário da violência podem ser flagradas criticamente nas condições contraditórias da produção cultural brasileira e na performance ética e estética da linguagem dos textos, que, muitas vezes, não são perceptíveis às leituras mais preocupadas como a violência enquanto tema. A primeira questão que se apresenta, do ponto de vista material e também simbólico da violência na obra de Olney São Paulo, é o caso inédito do primeiro filme efetivamente censurado no Brasil; mais do que isto, o primeiro proibido de circular no cenário cinematográfico nacional durante o regime político da ditadura militar, tornando-se mais um ‚desaparecido‛ político que apenas recentemente foi resgatado e recuperado para exibição. Apesar da censura à época, Olney criou estratégias para que a parte finalizada do filme circulasse, o que ocorreu em algumas exibições privadas e com as cópias enviadas para fora do país. Uma delas, de forma ainda não esclarecida totalmente, foi assistida por jovens combatentes da ditadura quando partiam para exílio em Cuba trocado por embaixador sequestrado. Este foi o elemento histórico fundamental para a perseguição ao filme. A violência da censura agia sobre outras obras, mutilando-as e impelindo os autores à censura de consciência. Alguns artistas articulavam várias estratégias para se desviarem suas obras da censura: às vezes, transformando-as em narrativa de confronto direto ao sistema, correndo-se o risco da interdição; outras vezes, com a estratégia das críticas ao poder pelo caminho disfarçado da alegoria, como é o caso da literatura fantástica e do cinema alegórico póscinemanovista, do final de anos 1960 até 1970. Diferente das duas estratégias, ou articulando as duas ao mesmo tempo, o filme Manhã cinzenta (1969), de Olney São Paulo, engendra uma revisão histórica intencionalmente direta, mas alegoricamente articulada como se fosse uma crítica ao Nazismo. Ao mesmo tempo em que constrói a história ficcional, tanto na narrativa literária do conto homônimo, quanto no filme, pelo cunho fantástico e profundamente simbólico, também a narrativa reflete a história social imediata em cenas documentais. No entanto, os acontecimentos históricos e sociais subliminares não estão necessariamente mostrados na representação direta dos textos do conto e do filme Manhã cinzenta, mas emergem das fissuras da memória nacional que se sente provocada naquele instante de instauração de um regime autoritário. Este movimento reflete o que Walter Benjamin (1994) chama de filme como criação da coletividade. É no movimento cadenciado pelo cineasta de ocultar pela alegoria e mostrar como cena documental que o cinema moderno alcança o estatuto político.

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Não é a fala direta sobre a violência política que torna o filme mais contundente em sua crítica à violência instituída, mas a aproximação ao sentido em que Walter Benjamin convoca a arte da técnica para o campo da batalha, liberando o culto ao tecnológico do discurso fascista pela crítica implícita na técnica. Assim, cabe ao o crítico da modernidade o papel político engajado de todo artista transformando a percepção de qualquer sistema ditatorial. Para Benjamin (1994, p. 183), O sentido desta transformação é o mesmo no ator de cinema e no político, qualquer que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar ‚mostr|veis‛, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem o campeão, o astro e o ditador.

A censura e o regime ditatorial, como sistemas e regimes de força, têm a intencionalidade do poder absoluto e são representadas de formas alegóricas, para serem ‚mostradas‛ como discursos de ditadores. O texto literário e o filme espelham a ameaça deste discurso a partir de nuances sociais e políticas articuladas nos contra-discursos dos personagens, inclusive aqueles do imaginário ficcional, que são sujeitos enigmáticos em sua alteridade e diferença, seja ela da perspectiva material ou simbólica. Isto implica na potência da interdição, que perverte a lógica libertária da criação naquele momento histórico-social brasileiro de tensão entre diferentes perspectivas de poder. Além da problemática instaurada pelo fato de Manhã cinzenta ter sido o primeiro filme proibido pela violência da censura militar, e talvez também por isso, Olney é identificado por Glauber Rocha como ‚um m|rtir‛ num contexto em que o martírio involuntário contracena com os diversos martírios engendrados pelos militantes da luta armada no país. A arma de Olney foi um filme que causou algumas confusões. Não deixa de ser irônico o sentido de martírio atribuído por Glauber, sendo que esta categoria social-política assume o viés bastante inusitado na época, quando a presença de Olney São Paulo na esfera da política da arte nacional é percebida como um dos menos relacionados ao campo nacionalista radical de esquerda, nem mesmo engajado no Realismo Socialista. Apesar dos temas da sua obra, tanto literária quanto cinematográfica, estarem ligados às violências sociais do campo e da cidade, a sua visão estética é sempre relacionada ao espaço lacunar entre os movimentos literários e cinematográficos radicalmente modernos e os aspectos mais tradicionais na dicção da sua ruptura na narrativa. 54 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

Deste ponto de vista, Olney São Paulo ocupa outro lugar de mártir na violência não institucionalizada: violência simbólica relacionada aos valores do cânone. Portanto, a definição de mártir atribuída ligeiramente por Glauber Rocha em sua visão crítica sobre a arte do cinema brasileiro nos alerta para dois planos: a violência sofrida por Olney quando foi violado o seu direito de fazer o filme Manhã cinzenta, mas também por outra violência — de que talvez o próprio Glauber seja algoz inconsciente, aquela simbólica do assassinato cultural que vitima vários artistas que não se engajam em linguagens hegemônicas. Este foi o caso de Olney com Grito da terra (1964) em relação ao cinema novo, outro tema que podemos abordar sobre as violentas críticas ao filme a partir do espírito cinemanovista da época, que determinava a vertente literária e fílmica considerada engajada ou aquém do cânone moderno protagonizado pelos jovens intelectuais em grupos da política cultural contra-hegemônica (às vezes hegemônica) na época, a depender do ângulo do observador sobre a violência do discurso nacionalista. Outra questão pode ser suscitada sobre a violência em torno da obra de Olney São Paulo, quanto ao caráter institucional, às vezes alimentado por eventos e comemorações folclóricas e familiares que se encerram nas homenagens ao símbolo martirizado e aos aspectos localistas da sua produção, como se fosse uma obra fechada, ou como se esta se voltasse apenas para a sua origem baiana rural. Com esse enfoque, perde-se de vista a orientação de leitura crítica para a abertura de outros horizontes da obra de Olney São Paulo no contexto da arte brasileira, que abarca a problemática da indústria cultural, bem como as disputas de poder cultural ambientadas no contexto da produção da sua narrativa literária e cinematográfica. Isso remete o aparente localismo da sua obra e a materialidade do seu discurso ficcional para outras interpretações da violência cometida com ele e sua obra, bem como para o significado de ‚m|rtir‛ atribuído por Glauber, buscando-se outros sentidos das suas representações sobre culturas populares e movimentos, a partir de estética literária e cinematográfica, no ‚entre-lugar‛ de epígono de uma tradiç~o e também de vanguardista. Um movimento novo de leitura abre outras possibilidades de interpretação da sua obra e do seu lugar na cultura brasileira, contribuindo com matrizes problematizadoras das violências dos extremismos conceituais aos quais as culturas populares e de massa são, às vezes, associadas. Associar a obra de Olney a uma estrutura de conservação do popular também é uma forma de violência consciente ou inconsciente da crítica, como, por exemplo, em algumas resenhas sobre o filme Grito da terra. Algo a ser revisto pelo olhar contemporâneo da produção ficcional que deve ser articulada ao extremo vanguardismo de Manhã cinzenta, o que possibilita a percepção visceral da violência na/da

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cultura para além de qualquer esquematização crítica da sua obra como eixo de reflexão rural — tema da violência ao qual ele retorna nos anos 1970; e outro eixo, da obra de preocupação urbana — que teria sido abandonada pelas condições adversas depois do processo sofrido por Manhã cinzenta, ou por se considerar que ele tomasse as culturas urbanas como inseridas no processo violento de massificação negativa, o que o teria levado a voltar-se para o tema das culturas tradicionais. Para nós, a obra de Olney opera um discurso que contraria a estrutura de leitura da violência de forma desarticulada entre o rural e o urbano. Ela simboliza os elos entre a tradição rural popular e intelectual burguesa. Algo ainda por se estudar na unidade da diversidade de sua obra. Como diz Jesús Martin-Barbero (2003) é preciso desmistificar as categorias tradicionais de análise. Para ele, A denominação de popular fica assim atribuída à cultura de massa, operando com um dispositivo de mistificação histórica, mas também propondo pela primeira vez a possibilidade de pensar em positivo o que se passa culturalmente com as massas. E isto constitui um desafio lançado aos ‚críticos‛ em duas direções: a necessidade de incluir no estudo do popular não só aquilo que culturalmente produzem as massas, mas também o que consomem, aquilo de que se alimentam; e a de pensar o popular na cultura não como algo limitado ao que se relaciona com seu passado — e um passado rural —, mas também e principalmente o popular ligado à modernidade, à mestiçagem e à complexidade do urbano (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 73-4).

O filme Manhã cinzenta transita nas condições de fusão entre a cultura tradicional violenta e a modernidade também violenta, que se investe de poder; por isto ele denuncia um imaginário próximo, apesar das alegorias do nazismo e do diálogo com a ficção científica. O episódio da realização de uma obra de arte se transformou no episódio político que atribulou a vida do seu diretor. O filme começa sendo a adaptação cinematográfica de um conto do autor escrito em 1966; portanto, antes da restrição autoral por via do AI-5. Mas, na obra cinematográfica, à narrativa do conto são incorporadas imagens de caráter alegórico associadas às imagens de cenas reais captadas nas passeatas dos estudantes e intelectuais na resistência ao regime militar, que culminaram com a passeata dos 100 mil, logo após a lei da censura prévia a qualquer obra de arte adotada pelo regime militar, a partir de 1968. O conto e o filme se apóiam em um núcleo central da história de perseguição aos personagens por motivo de raça e cor, criando um ambiente simbólico que se torna alegórico da censura na época. O sentimento anti-nazista da ficção é ampliado na narrativa para o sentido real e político mais restrito, que 56 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

aparece representado no personagem do inquiridor e repressor das diferenças ligadas à raça, mas também à cor e à ordem social dos personagens prisioneiros: Sangue Judeu?! Quem exigiria tão hedionda particularidade? Não! Não era preciso. Bastava somente uma coisa e isto existia em todos: a cor! Aquilo seria um julgamento de cores. O requerimento do verde, o processo do amarelo, a apelação do lilás, a prorrogação do azul e sobretudo, acima de tudo, a condenação perpétua e incorrigível do vermelho: — o matiz da guerra! — No entanto que diz a lei? — A lei?! Que é a lei?! — Estúpidos! Somente as Excelências têm o direito excelso de perguntar (SÃO PAULO, 1969, p. 16).

A narrativa concorre alegoricamente e diretamente com a geopolítica do pós-guerra, atualizada simbolicamente na situação local, assumindo tom de mistério e de ficção científica, ao apresentar os discursos de estudantes que preparam apoio a uma greve de trabalhadores, mas são presos e interrogados por um robô. O julgamento culmina com o fuzilamento da protagonista, Alda, que tem anunciada sua sentença na performance de ambiência surrealista: E, enfim, um cano metálico, comprido, negro, sem tique-taque, infindo, fazia explodir, em sincronismo com a música alucinante, as ordens superiores das excelências. Um minuto de silêncio pela moça. Atrasa-se o relógio e inexiste a lei. A música não tocará mais (Idem, p. 21).

Pelo sentido emblemático do conto e do filme adaptado, alguns leitores costumam associar a vida e a obra de Olney São Paulo ao Processo, de Kafka. Olney é acusado de, com o filme Manhã cinzenta, fazer propaganda direta contra o regime. Com a acusação, ele sofre um processo criminal suspeito e inquietante, que muitos consideram ser o processo desestabilizador de sua saúde e da vida pessoal e profissional. Alguns atribuem os efeitos do processo à doença que o levou à morte, associando a prisão e o interrogatório militar à debilitação física, bem como ao aniquilamento do seu destino autoral de inventor de cenários de vanguarda, com o esfacelamento do seu entusiasmo por obra tão diferente como Manhã cinzenta. Depois de absolvido, após responder a dois processos militares, Olney passou a atuar cinematograficamente em produções institucionais apoiadas por órgãos estatais de cultura, para realizar projetos documentais da memória cultural e adaptações penosas, como O forte (1974), adaptação cheia de problemas,

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do romance de Adonias Filho. Além disto, amargou a falta de apoio a outros projetos de longas metragens no Nordeste. No entanto, apesar da violência do processo poder ser associada às mudanças de perspectivas de seu projeto autoral inusitado em Manhã cinzenta, Olney deixa a marca de seu olhar perenizado no conjunto de documentários e adaptações literárias, que se articulam de maneira meio sombria como discurso da violência no Brasil, como um simulacro de resistência às consequências da violenta forma de condução do processo contra sua obra pelo regime militar. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2009. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas — magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958/1962). Salvador: EDUFBA, 2003. GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. JOSÉ, Ângela. Olney São Paulo — a peleja do cinema sertanejo. Rio de Janeiro: Quartet, 1999. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações — comunicação, cultura e hegemonia. 2. ed. Trad. Ronaldo Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. SÃO PAULO, Olney. A antevéspera e o canto do sol — contos e novelas. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1969. VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1993. XAVIER, Ismail. Cinema moderno brasileiro. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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A VIOLÊNCIA NO JORNALISMO SENSACIONALISTA BAIANO: A CULTURA DO ESPETÁCULO Cláudio Gonçalves Gomes1 INTRODUÇÃO O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem (Guy Debord).

Neste artigo, a nossa proposta visa tecer uma breve reflexão sobre a violência na mídia audiovisual, tendo como parâmetro para tal reflexão os programas sensacionalistas Se Liga Bocão e Balanço Geral. Com efeito, em primeiro lugar, trataremos dos aspectos concernentes à cultura do espetáculo na mídia, recorrendo a Wolton (1996), Chauí (2006), Debord (1997) Charaudeau (2006), entre outros. Em segundo lugar, recorrendo a René Girard (1998), valer-nosemos de alguns conceitos (violência purificadora, violência impura, o rito sacrificial) de sua obra para a compreensão desse fenômeno social. Por fim, munidos desses pressupostos teóricos, buscaremos estabelecer uma relação entre os programas sensacionalistas e a representação da violência em tais formatos televisivos. 1 MÍDIA E ESPETÁCULO A mídia televisiva tem ocupado um grande espaço na dinâmica social no século XX e XXI, destacando-se, nesta sociedade midiática, ou melhor, midiatizada, como um dos meios de comunicação mais influentes, em decorrência de sua abrangência, já que reúne indivíduos e públicos distantes, oferecendo a possibilidade de estabelecer laços entre as classes sociais (WOLTON, 1996). Esse dispositivo midiático afigura um meio de comunicação do visível por excelência. No entanto, esse meio é perpassado por outros sistemas semióticos (sons, discursos, música, gestos), compondo a organização dos sentidos desse dispositivo. Ressalta Charaudeau (2006) que a imagem televisionada apresenta uma origem enunciativa múltipla, na qual o discurso referencial e o ficcional se imbricam. Com efeito, postula esse autor que a mídia audiovisual pode proporcionar dois tipos de olhar: o olhar da transparência e o olhar da opacidade. Na verdade, a mídia opera com a ilusão de transparência e opacidade. Nesta, os mass media visa à dramatização como um elemento da sua composi1

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade do Estado da Bahia (PPGEL/UNEB); endereço eletrônico: [email protected].

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ção; naquela, os meios visam desvelar o real, descobrir o outro, subjacente aos fatos (CHARAUDEAU, 2006, p. 112). Wolton (1996), por sua vez, destaca que a televisão apresenta duas dimensões indissociáveis, complementares e simétricas: a primeira delas diz respeito à dimensão técnica, relacionada com a imagem; a segunda, diz respeito à dimensão social. Essa dimensão social é de suma importância para entender a televisão e seus propósitos discursivos e espetaculares, sobretudo no que concerne ao discurso jornalístico. Sendo assim, a espetacularização constitui uma das dimensões dos mass media. O espetáculo afigura um forte componente de entretenimento. Entreter é distrair, provocar prazer. O entretenimento apresenta traços biológicos e culturais importantes. O corpo necessita de espaços nos quais o lúdico, o relaxamento, o repouso se fazem necessários. Culturalmente, o entretenimento é apropriado pela sociedade que inventa seus modos de divertir (CHAUÍ, 2006). Por conseguinte, como o entretenimento constitui uma importante prática cultural e social, os mass media se apropriam desse componente, tornando-o mercadoria e espetacularizando-o. Assim, o espetáculo torna-se o simulacro midiático. Tragédias, guerras, ataques terroristas, festas, por exemplo, transformam-se em entretenimento, como oferta de catarse para o telespectador. Assim, para Debord (1997), o espetáculo é gerador de alienação, porquanto uma expansão dessa produção industrial traz, no seu bojo, a expansão econômica. Nesse sentido, o pensamento de Debord aproxima-se do que defende Chauí (2006) para a qual a cultura de massa, no processo de devoração, de negação, apropria-se dos objetos culturais, esvaziando seus sentidos primeiros, tornando-os objetos de consumo. Com efeito, pressupõe-se no pensamento de Debord (1997) que os sujeitos seriam passivos, alheios ao processo que engendra esse componente, apropriado pelas mídias como uma de suas estratégias. No entanto, vale lembrar que a instância da recepção é cada vez mais fragmentada, menos homogênea e instável (CHARAUDEAU, 2006). Por conseguinte, a cultura do espetáculo constitui um mecanismo que consegue seduzir a atenção do público, mantendo-o ‚fidelizado‛, atuando na produção de efeitos de sentidos. Segundo Debord (1997), a espetacularização relaciona-se muito diretamente com a imagem. A imagem cria uma relação com o real, gera um regime de visibilidade e cria um efeito de verdade. No entanto, é notório que esse real, mediado pelos meios de comunicação, é reconfigurado, editado, permeado pelo discurso, instância em que os sentidos são polissêmicos, são deslizados, o que implica em perceber que a relação entre o real e a mídia não está destituída de construções socioideológicas. 60 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

Com efeito, a cultura do espetáculo vem se expandindo em várias instâncias, ganhando corpo em várias práticas sociais. A economia do espetáculo, no qual a diversão e os negócios estão intrinsecamente atrelados, constitui um dos motores que geram grandes negócios. Assim, por meio do entretenimento, empresas fazem circular suas marcas, suas imagens, mediante os diversos veículos de comunicação (internet, televisão, cinema, jornal) em que negócios e publicidade se multiplicam na forma de espetáculo (PATIAS, 2006). Em decorrência disso, o entretenimento se torna um dos paradigmas da atualidade. Ressalta Glaber (2000) que, com a televisão e o cinema, os limites entre a ficção e realidade se tornam cada vez mais tênues. O entretenimento se transforma, assim, em vida. Ou seja: somos atores e expectadores do próprio espetáculo, do show que se naturaliza ante nossos olhos, constitutivo da realidade, na qual estamos mergulhados. 2 MÍDIA E VIOLÊNCIA: UM RITO SACRIFICIAL As perspectivas para o estudo da violência são as mais diversas possíveis, dentre as quais se incluem os estudos sociológicos, antropológicos, míticos, jurídicos e psicológicos. O nosso prisma está atrelado à violência no âmbito dos processos comunicativos contemporâneos. Desta forma, a violência, um dos fenômenos sociais, constitui uma das marcas das sociedades contemporâneas. Esse fenômeno humano, que remonta às comunidades primitivas, vem ganhando contornos impensáveis na estrutura social. Esse fenômeno foi apropriado pela mídia (sobretudo pela imprensa popular) que o transformou em consumo comunicacional, oferecido ao telespectador. Nesse sentido, a violência é um fenômeno multifacetado e de dimensões atemporais que apresenta seu fundamento nas raízes da cultura, conforme ressalta Girard (1998). Esse autor relaciona a violência ao sagrado, considerando esse duplo aspecto eminentemente humano. Para Girard (1998), a regulação social da violência passa pela prática do sacrifício. Para ele, o sacrifício funciona como operação de transferência coletiva das tensões sociais. Nesse contexto, tal prática exige a escolha de uma vítima que não possa vingar-se, já que o sacrifício funciona como um mecanismo preventivo, visando coibir a violência, resultante da vingança. Em geral, essa vítima apresenta-se como alguém que vive à margem da sociedade e cujo vínculo com ela afigura-se muito frágil ou nulo, conforme argumenta Girard (1998): [...] os prisioneiros de guerra, os escravos, as crianças e adolescentes solteiros, os indivíduos defeituosos, ou ainda a escória da sociedade [...]. [...] Esta lista pressupõe um denominador comum, é possível dela extrair um

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critério único? Encontramos em primeiro lugar os indivíduos que apresentam um vínculo muito frágil ou nulo com a sociedade (GIRARD, 1998, p. 25).

Nesse processo, o sacrifício tem uma função catártica importante, visto que este visa o apaziguamento das violências intestinais e o impedimento da explosão dos conflitos. Assim, nos procedimentos ritualísticos, a violência do sacrifício assume um papel sacralizador, funcionando como a violência purificadora ou violência legítima. Esse processo, nas sociedades arcaicas, ocorria, mediante o sangue da vítima sacrificial por meio do qual a purificação se dava, pois o sangue puro, derramado ritualisticamente, visava purificar a violência, considerada impura (GIRARD, 1998). No que concerne às sociedades contemporâneas, Girard defende a relação entre o rito sacrificial e o sistema judiciário. Segundo esse autor, o sacrifício apresenta a mesma funcionalidade, ressaltando, contudo, a eficácia deste último. Sendo assim, o sistema judiciário cumpre o papel de legitimador de fazer justiça, exercendo uma espécie de violência purificadora. [...] é o sistema judiciário que afasta a ameaça de vingança. Ele não a suprime, mas limita-a efetivamente a uma represália única, cujo exercício é confiado a uma autoridade soberana e especializada em seu domínio. As decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre como a última palavra de vingança (GIRARD, 1998, p. 28).

Nesse aspecto, o sistema judiciário apresenta em sua estrutura alguns elementos desse ritual do sacrifício. Com efeito, nota-se, em seu âmago, a inibição do círculo vicioso da violência, a não permissão da vingança, o afastamento da rivalidade generalizada, a condenação do bode expiatório (PATIAS, 2006). Segundo Girard (1998, p. 35-36), essa passagem do ritual sacrificial das comunidades primitivas para o sistema jurídico dá-se mediante um mecanismo de racionalização2. Todavia, ressalta que esse processo só ocorre se estiver associado a um poder político forte. Esse poder apresenta-se de forma ambígua, já que pode servir tanto à opressão quanto à libertação. Trazendo essa ambiguidade para o campo da comunicação social, essa violência fundadora da qual nos fala Girard (1998) constitui um sintoma social incômodo e ao mesmo tempo inerente a sua ‚natureza‛.

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Preferimos, por se tratar do processo midiático, o termo simbolização, adotado por Contrera (2002).

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Concordando com o que propõe Contrera, parece-nos que o tratamento dado pela mídia à violência visa tão somente à redundância, à repetição. Em outras palavras, pela incapacidade de reatualizarmos a violência, abrimos mão da linguagem integradora dos rituais primitivos (CONTRERA, 2002, p. 101). Na televisão brasileira, é mínima ou nenhuma a preocupação em aprofundar os temas que se propõe. Atrelada a uma lógica mercadológica, que impõe uma preocupação com os índices de audiência, a televisão parece voltar-se muito mais para seus ícones de identificação e consumo, do que para promover um aprofundamento da sua agenda temática. 3 JORNALISMO SENSACIONALISTA: A VIOLÊNCIA COMO ESPETÁCULO Conforme abordamos na seção anterior, o sistema jurídico passou a exercer a função do sistema sacrificial das sociedades primitivas. Com efeito, o poder judiciário e a polícia são legitimados para exercer a força em nome da proteção social. Nesse sentido, tais instituições passam a funcionar modernamente como uma violência purificadora. Contudo, esses sistemas não têm conseguido a contento minorar o crescimento da violência, já que essas instituições têm se caracterizado pela morosidade, pela ineficiência quanto à insegurança e à criminalidade. Nesse contexto, a mídia age em relação à opinião pública, representando um poder que a autoriza a dar a última palavra de vingança, seja para contê-la, seja para desencadeá-la (CONTRERA, 2002). Nesse sentido, os programas sensacionalistas baianos têm ocupado frequentemente o papel de administrador da violência purificadora. Analogamente ao sistema judiciário, que expressa a última palavra, os apresentadores desses programas revelam, frequentemente, em seu discurso um tom de vingadores, de justiceiros. Nos discursos dos apresentadores e repórteres, ‚os culpados‛ têm pouca ou nenhuma oportunidade de defesa. O veredicto é dado antes mesmo de o réu ser julgado. Os culpados são as vítimas sacrificiais. Assim, apresenta-se o discurso do jornalista José Eduardo, no programa Se Liga Bocão3: Eu sou do povo, vou falar o que o povo entende. Você que escreve contra mim, que escreve contra o Varela, que bate em mim, que bate no Varela é porque você não tem em casa um avô que estuprou a própria neta. O que se passa na cabeça desse monstro. Me diz onde está esse 3

Esse trecho foi retirado do nosso corpus da dissertação de mestrado a ser defendida em março de 2010 sobre a orientação da Profa. Dra. Licia Soares de Sousa, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade do Estado da Bahia (PPGEL/UNEB).

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cara. Por favor, diz onde está esse monstro. Liga pra a rádio sociedade e deixa comigo esse infeliz por dois minutos... com a polícia três... e com a população cinco. Pode fazer o que quiser comigo. Só respeito, nesta terra, a Justiça, a Polícia e o Ministério Público. Esses três que têm que dar conta desse monstro. Esse monstro, se é na época do cangaço, ele não ficaria dois dias vivo. O cangaço pega, lapeia e o fumo entrando.

É preciso fazer justiça, uma justiça simbólica, para que o sistema não entre em crise, ameaçando a ordem. Parece-nos, assim, que os programas sensacionalistas funcionam como um mecanismo de catarse, visando diminuir as tensões sociais. Por meio da redundância da imagem, do corpo violado, da exposição das misérias humanas, a violência explode na tela, espirrando o sangue que precisa ser purificado. O telespectador voyeur, massacrado pelo sistema social, vinga-se simbolicamente por meio da máquina de narciso. Os programas transformaram-se em instrumentos de reivindicações e acerto de contas. Dessa forma, estes passam a assumir o papel de interventores dos cidadãos. Agregam, ao valor da informação, o valor da justiça. Em outros termos, há uma inversão de papéis, em virtude das lacunas deixadas pelo estado e pelas instituições responsáveis pela justiça social. Nas palavras de Patias (2006, p. 11), ‚[...] os sistemas de comunicação tornaram-se realizadores da justiça e da pressão. Desaparecem as instituições intermediárias, nos [sic] quais a sociedade poderia organizar-se a fim de fazer valer os seus direitos‛. Por outro lado, retomando a relação entre violência e sagrado, defendida por Girard (1998), não se pode esquecer que os programas sensacionalistas4 guardam uma estreita relação com o sagrado. Desta maneira, concordamos com Contrera (2002, p. 102) para quem a mídia, ao exercer a violência, aproxima-se do sagrado, j| que ‚com esse recurso (e com outros), a mídia passa a exercer um poder simbólico religioso que se constrói na direção de um poder centralizador, catalisador, de um totem pós-moderno virtual‛. Nesse sentido, os apresentadores José Eduardo (Se Liga Bocão) e Raimundo Varela (Balanço Geral) se posicionam como mediadores religiosos. São porta-vozes de Deus na Terra ou não seria na mídia? A missão deles é contribuir para a justiça social e ajudar a polícia no combate à violência impura da sociedade com a violência purificadora. A mídia constitui o seu altar sacrificial. Com um corpo hiperbolizado, os apresentadores encenam um ethos de justiceiro, de anjo, de salvador. Raimundo Varela afigura-se o mediador com seus signos gestuais e icônicos a instaurar a ordem ante o vazio deixado pela justiça. 4

O Balanço Geral e Se Liga Bocão são emissões afiliadas da Rede Record e da Igreja Universal do Reino de Deus cujo proprietário é Edir Macedo.

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José Eduardo, juiz e ‚sacerdote‛, avalia, julga, condena e sentencia. Ambos saem fortalecidos, simbolicamente, mediados pela deusa virtual. Apresentam-se como pessoas do povo, seus representantes, recorrem a jargões e expressões coloquiais: A realidade é outra. A realidade é esta aí. É por isso que sou enviado. O Varela também tem uma missão. Muita gente não gosta, mas eu vou ter que fazer isso pelo povo até quando Deus quiser. Quando Deus não quiser mais, vou pra casa, vou pra roça.

Os programas se propõem a fazer justiça aos necessitados. No entanto, nota-se uma série de situações nas quais os direitos humanos são violados: invasão de privacidade, exposição da violência, preconceito, entre outros. Dessa forma, os programas apenas reproduzem e perpetuam os problemas sociais, apresentando-se ineficazes na solução destes. Em decorrência disso, é possível aventar que os programas sensacionalistas, mediante um processo de sublimação, recorrem a esse mecanismo para a canalização da agressividade inerente às relações sociais e para a interdição e o controle da violência sistêmica (PATIAS, 2006). No fim dos programas, os apresentadores voltam a sua função sacralizadora, divinizados pela sua postura de instrumentos do bem contra o mal. Exemplificando: muitas pessoas a eles recorrem como se estes fossem entidades realizadoras da justiça e da pressão. CONSIDERAÇÕES FINAIS A espetacularização das notícias, dos dramas humanos, da violência constitui uma das tônicas dos programas sensacionalistas das emissoras baianas, destacando-se, neste cenário, o Se Liga Bocão e o Balanço Geral. A violência é diariamente explicitada, em ambos os programas, sobretudo no Se Liga Bocão, como uma das grandes pautas dessas emissões televisivas. Partimos da constatação de que as instituições (responsáveis em lidar com a violência, em combatê-la, em purificá-la) não têm exercido seu papel com proficiência. Assim, a mídia televisiva passa a exercer, hipoteticamente, mediante o processo simbólico, essas funções. Nesse sentido, pode-se inferir que o sucesso desses programas ocorre em decorrência de um sistema judiciário que não tem cumprido seu papel de modo eficaz, contribuindo para uma imagem de descrédito que circula no imaginário social. Quando criticados pelo teor grotesco, teratológico, escatológico dos seus conteúdos, o argumento apresentado pelos apresentadores consiste na utiliza-

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ç~o de um dos seus bordões: mostrar ‚a verdade nua e crua‛, sem adornos, sem enfeites. Outro argumento apresentado pelos profissionais da mídia, de acordo com Contrera (2002), é que o público gosta de assistir à violência. Afinal, com a permissão poética, violência rima com audiência. Talvez resida um significado complementar e compensatório para o tratamento dado à violência pelos meios, conforme ressalta Patias (2006): mostrar a morte, o feio, a tragédia, o crime, as cenas chocantes serviria para contrabalancear o outro lado da existência, ou seja, o belo, a vida, a alegria, a paz, entre outros. Por fim, a questão é que tais emissões continuam cada vez mais presentes no contexto baiano, oferecendo a punição como consumo ao espectador sob a forma de audiência e de espetáculo. Ao retratar a violência, ao exibi-la cotidianamente na tela, os meios a banalizam, ao mesmo tempo em que a alimentam, expõem as nossas mazelas, anestesiando, muitas vezes, a nossa indignação diante dos horrores da vida real. REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, Patrick. O discurso das mídias. Trad. Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006. CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perceu Abramo, 2006. CONTRERA, Malena Segura. Mídia e pânico: saturação da informação, violência e crise cultural na mídia. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de janeiro: Contraponto, 1997. GLABER, Neal. Vida, o filme — como o entretenimento conquistou a realidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. GIRARD, René. A violência e o sagrado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. PATIAS, Jaime Carlos. O espetáculo no telejornal sensacionalista. In: COELHO, Cláudio Novaes Pinto; CASTRO, Valdir José de. (Org.). Comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo: Paulus, 2006. WOLTON, Dominique. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão . São Paulo: Ática, 1996.

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VIOLÊNCIA CARCERÁRIA E SUBJETIVAÇÃO A PARTIR DOS ESCRITOS DE LUIZ ALBERTO MENDES: ‚A PRISÃO É UMA COISA DEMASIADO ESTÚPIDA‛ Denise Carrascosa1 No dia em que Luiz Alberto Mendes foi encarcerado na Casa de Detenção do Complexo do Carandiru como ‚prim|rio‛ (e portanto, mandado para o seu pavilhão 9), seu corpo já havia sido reincidentemente marcado por uma duríssima tecnologia disciplinar-prisional posta em prática nos juizados de menores, delegacias, RPMs, DEICs e DOI-CODIs da vida subterrânea do Estado de São Paulo entre as décadas de sessenta e sessenta. Era o ano de 1973 (estado ditatorial no Brasil) e, aos 21 anos, Mendes já fora interno do juizado de menores aos 11 ou 12 (1963 ou 1964), relatando ter ouvido de um delegado o seguinte: ‚Devíamos exterminar esses animaizinhos antes que se tornem um problema insolúvel para o futuro. Vai para o juizado e é provável que amanhã mesmo já esteja aí nas ruas atacando algum trabalhador‛ (MENDES, 2001, p. 83). No alojamento do juizado, depois de uma tentativa frustrada de fuga, ‚os funcionários pegaram pedaços de pau e bateram com vontade‛ (MENDES, 2001, p. 84). Esta cena de castigo corporal, tendo em vista as tantas outras dos seus escritos, é narrada sem muitos detalhes: Havia prazer neles em bater, parecia que nunca mais iriam parar. Quando decidiram que eu apanhara o suficiente, jogaram-me nu, dentro de um quartinho escuro. Estava todo quebrado, dolorido demais, querendo minha mãe. Ainda gritava por minha mãe quando me batiam, como uma criança. Adormeci, cansado, para acordar em seguida, sufocado pela água que um funcionário jogou em mim com um balde (MENDES, 2001, p. 84-85).

No outro dia, de manhã cedo, um funcionário perguntou-lhe como estava, alegando não ter ajudado na surra. Luiz nos diz que fez que não o viu batendo. Pede suas roupas, porque morria de frio. O funcionário chama um colega que, assustado com o estado do menino, leva-o à enfermaria. Lá, ele finge estar pior do que realmente estava. Depois de três dias de enfermaria, volta ao alojamento, no qual: Os funcionários olhavam caçadores. A vigilância redobrava em cima de mim. Ficaram me seguindo o tempo todo, não me perdiam de vista. 1

Doutora em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Professora Titular do Instituto Federal de Educação Tecnológica da Bahia; endereço eletrônico: [email protected].

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Nem pensei mais em fugir, fiquei com o maior medo da surra que me prometiam, caso tentasse. Decidi esperar meu destino (MENDES, 2001, p. 85).

Por uma perspectiva, os escritos de Luiz Alberto Mendes constituem reativações narrativas de algumas das constantes de sua vida que podemos ler no episódio resenhado acima: aprisionamento, fuga, castigo corporal, repetida sensação de vigilância e medo. Tais elementos nos chegam mediados por uma decisão: a escrita da própria vida, tomada aos trinta e seis anos (1988) numa cela individual da Penitenciária do Estado de São Paulo, na qual Mendes fora novamente preso quatro anos depois de ter fugido. Tendo em vista dois de seus livros e um conto, resultantes desse esforço de escrita de si mesmo (respectivamente Memórias de um sobrevivente, Às cegas e Cela forte), interessa-me, neste capítulo, analisar as marcas deixadas pela dura tecnologia disciplinar-prisional vivida/narrada, sobre a voz de Luiz Alberto Mendes e, mais ainda, pensar seus investimentos discursivos, estratégicos e, portanto, políticos no sentido de um retrabalho ativo sobre tais marcas, o que passo a chamar mais adiante, respectivamente: técnicas e políticas de si. A PRISÃO É UMA COISA DEMASIADO ESTÚPIDA2 Depois de muito tempo — mas o que era ‚muito tempo‛? — comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia — nunca houvera — outros lugares (VELOSO, 2004, p. 359, grifo meu).

A forma-prisão como mecanismo disciplinar, opera, entre outros efeitos, uma espécie de ruptura física e simbólica entre o sujeito aprisionado e suas unidades de atribuição de significado a si mesmo como sujeito sócio-histórico: o lugar onde mora, sua família, seu circuito de relações pessoais, suas ocupações, a organização temporal da rotina, as possibilidades de deslocamento espacial, o seu corpo.

2

Da carta de Antônio Gramsci endereçada a ‚Querida Mam~e‛, do ‚C|rcere de Mil~o‛, em 12 de março de 1928: ‚A pris~o é uma coisa demasiado estúpida; mas para mim seria ainda pior a desonra por fraqueza moral e por velhacaria. Por isso, a senhora não deve se alarmar e magoar muito, nem pensar nunca que eu esteja abatido e desesperado. Deve ter paciência e, em quaisquer circunstâncias, não acreditar nas lorotas que possam publicar a meu respeito. Espero que já tenha recebido todas as minhas cartas precedentes. Renovo os votos mais afetuosos pelo seu aniversário e abraço-a ternamente. Nino‛ (GRAMSCI, 1978, p. 108).

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Não é sem propósito que os relatos de indivíduos presos mencionam correspondências, encomendas (roupas, comidas, cigarros) ‚bondes‛3, visitas de amigos, familiares e visitas íntimas sob uma atmosfera mista de ansiedade e alívio da tensão do encarceramento, a funcionar como válvulas de escape e reconexão com um mundo real. Paradoxalmente, entretanto, dispositivos prisionais como o isolamento em uma cela individual por vários dias consecutivos têm a potência de reinscrever, em uma zona de tensão, a relação do indivíduo para consigo próprio, para com um espaço a si atribuível de ‚interioridade‛, ‚consciência‛, ‚essência‛ ou ‚alma‛ — noções socialmente recorrentes quando se pensa uma unidade estável, imutável, eterna e bem guardada dentro de cada corpo individual, que o anima e torna transcendentalmente diverso dos demais. Se lermos Aristóteles nesse sentido, alguns fragmentos de sua Metafísica podem tornar-se bem atuais: Parece, além disso, impossível que existam separadamente a substância e aquilo de que ela é substância: neste caso, as idéias, que são as substâncias das coisas, como existiriam separadas delas? No Fédon, porém, afirma-se que as idéias são causas do ser e do devir. Todavia, ainda que as idéias existam, os seres que delas participam não são gerados se não houver um primeiro motor (ARISTÓTELES, 1979, p. 32).

O ‚si‛ do olhar do sujeito encarcerado para si mesmo passa a constituir uma unidade complexa formada por aquilo que resta de ‚mim‛ quando absolutamente despido de tudo que me fazia significar como sujeito e, ao mesmo tempo, por aquilo que sempre esteve em ‚mim‛ e que, entretanto, eu n~o conheço, a minha ‚subst}ncia‛. O isolamento carcer|rio pode, assim, instaurar um movimento de aproximação do sujeito com esse espaço de imaginária interioridade chamado, entre outros epítetos, de ‚alma‛. No conto Cela forte, Luiz Alberto Mendes narra que, em maio de 1973, aguardava a hora da contagem dos presos, deitado em sua cela, lendo Luzia homem ‚como todo preso, pronto para ser contado. Almas concretas, densas até os ossos‛ (MENDES, 2005b, p. 109), quando cerca de dez guardas armados de cano de ferro invadiram sua cela, revistaram-na e mandaram que ele abaixasse o calç~o, levantasse ‚o saco‛ e agachasse três vezes:

3

O ‚bonde‛ é a chegada de novos detentos a uma instituiç~o prisional, que sempre anuncia notícias do mundo exterior e é aguardado com ansiedade pelos que lá se encontram presos. (A questão recorrente dos celulares nos presídios brasileiros, tratada midiaticamente apenas do ponto de vista da instrumentalização do crime, pode ser pensada como sintomática da ruptura físico-simbólica de que trato aqui).

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Eu parecia uma mola para baixo e para cima. Provavelmente pensavam que escondesse uma metralhadora, ou sei lá o que, no cu. Era extremamente humilhante. Me encolhi, com meu exército de palavras desmantelado e minha alma menos minha (MENDES, 2005b, p. 109).

Parece haver aí enunciado um espaço híbrido de relações de força entre aquilo que lhe resta de próprio em uma cena de intervenção quase absoluta em seu espaço individual (cela/corpo) — ‚minha alma‛ — e um lugar de sequestro (potencial cativeiro desta alma): ‚alma menos minha‛. Em sua pesquisa sobre a história das prisões, Michel Foucault afirma que a punição penal se metamorfoseia modernamente (século XVIII) a partir de uma penalidade supliciante do corpo em direç~o a uma ‚penalidade do incorporal‛: Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? [...] Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições (FOUCAULT, 2005, p. 18).

No entanto, se por um instante pudermos pensar em articulação o investimento simultâneo do sistema prisional moderno sobre o corpo do preso e sobre sua ‚alma‛ de modo supliciante (referido pelo mesmo texto foucaultiano), este seria o instante do ‚isolamento‛ como técnica de castigo físico e simbólico (nas ‚Isoladas‛, ‚Celas Fortes‛ e ‚Masmorras‛ do sistema). E cela-forte, ali, era forte mesmo. Ficava-se isolado em uma cela, só de calção, sem contato com ninguém. E ainda havia a cafua. Um quarto escuro e todo trancado, isolado da prisão. Esse era o lugar que todos mais temiam. A escuridão apavorava (MENDES, 2001, p. 159). O pânico se apossou de mim. A cela estava nua como eu. Não havia nada ali. As paredes vertiam água. O chão era de caquinhos de cerâmica, geladíssimo. O tempo estava gelado, eu já tremia de medo e frio desde os primeiros instantes ali (Idem, p. 429). Apenas quando me deitei, esgotado de cansaço, no chão gelado, é que fui estar plenamente consciente de mim. Senti o corpo e o espírito quebrados (Idem, p. 419). Fiquei apenas eu ali. Foi difícil a solidão, cheguei a chorar várias vezes e ainda querer minha mãe. Os anos haviam se passado, e eu ainda era um menino querendo sua mãe (Idem, p. 420).

Um dos efeitos gerados por essa técnica de despojamento de tudo que faça o indivíduo significar socialmente, inclusive de sua relação simbólica com o 70 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

próprio corpo, constitui a potencialização do sentimento de solidão. O sujeito, fora de um tempo e de um espaço que lhe geram um olhar de reconhecimento de si mediado pela vida social, procura um ‚si‛ outro, um ‚si‛ em silêncio absoluto de outras vozes que não sejam a sua própria. Atravessada por uma série de experiências de isolamento físico, a voz narrativa de Mendes, na construção de um personagem para si, é reiteradamente marcada por esta referência: a solidão, retraçada ao período de sua infância: Uma das lembranças mais doloridas era a solidão em que eu vivia em casa e na creche. Tive muito poucos amigos [...] Muitas vezes minha mãe se atrasava, era longe de casa a creche, eu me desesperava. Ficava ali no portão chorando, sentindo-me miseravelmente abandonado (MENDES, 2001, p. 20).

Esta sensação de solidão intensa, como marca de uma voz que busca uma espécie de ‚si‛ em uma história de vida pessoal, articula-se narrativamente a certos medos que posicionam o personagem-criança em um cenário de insegurança existencial: ‚Esse era o maior medo de minha m~e: o despejo. N~o ter onde morar. Vivia apavorada com tal possibilidade, que, diga-se de passagem, era bem concreta. Uma ameaça constante, mensal‛ (MENDES, 2001, p. 20). A figura paterna, responsável social pela manutenção econômica da família — o menino Luiz, a mãe que cuidava da casa e o pai que oscilava entre o emprego e o desemprego — é repetidamente mostrado em cenas como a que segue: Ele chegava, minha mãe esquentava a comida. Mal começava a comer e já desmaiava de cara no prato, de tão bêbado que estava. Eu, pequeno, dona Eida, pequena também, tínhamos que arrastá-lo da cozinha até o quarto. Depois, com toda dificuldade do mundo, colocá-lo na cama, despi-lo e cobri-lo. Era muito pesado e ficava dando tapas no ar, semiconsciente. Quando um deles pegava em um de nós, voávamos longe (MENDES, 2001, p. 21).

À força, muitas vezes truculenta do pai, opõe-se o corpo frágil da mãe, fonte da tênue zona de confiança e segurança afetiva que é delineada pela narrativa: Eu e dona Eida éramos muito apegados. Sentíamos que, na verdade, só tínhamos um ao outro no mundo. Ele não participava desse círculo fechado. Jamais fez por merecer. Minha mãe escondia muitas de minhas traquinagens. Sabia que, se ele soubesse, eu seria massacrado. Aquela mulher era muito delicada, extremamente feminina, eu a amava a ponto de chorar às vezes, só de pensar nela. Fisicamente era muito pequena: tivera meningite aos doze anos e não crescera mais (MENDES, 2001, p. 20).

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Esta figura materna funciona sempre como um débil vínculo entre o sujeito Luiz Alberto Mendes e o fora do mundo do ‚crime‛. Nas margens da ideia de delinquência como geradora da identidade do narrador que se escreve, dona Eida aparece sempre para lhe visitar quando está preso, levar roupas, dinheiro, notícias do mundo exterior, carinho e vontades de entrega a uma vida social estável, com emprego, esposa e filhos. Algumas das muitas mulheres que são postas em cenas diversas ao longo da vida de Mendes reativam essa frágil zona de segurança afetiva, que parece ser sempre intensa em termos de atividades sísmicas, sempre desenhada como se fosse chão de gelo fino sob seus pés, prestes a rachar. A última dessas mulheres que nos é apresentada por seus escritos é Magda: Chegava a hora de pensar em ser honesto. Não importava que todos roubassem. Eu não queria mais isso pra mim. Queria um pacto de paz com o mundo. Precisava de paz para amar e ser feliz. Queria ter algo além de palavra e coração para oferecer à namorada. Magda me levava a pensar na honestidade como princípio. Ela queria um companheiro que procedesse dentro de seus padrões. Eu queria ter orgulho de vencer, superar e ultrapassar (MENDES, 2005a, p. 253).

Esse espaço intervalar em uma vida marcada pelo signo da delinquência, também funciona em três ou quatro cenas de encontro com seu pai. Ao completar dezoito anos preso em um Instituto de internamento para menores infratores em Mogi-Mirim, Mendes afirma odiar o pai, que seria o responsável por sua manutenção ali, cogitando, inclusive a possibilidade de matá-lo: ‚Só matando-o, ent~o, me livraria?‛ (MENDES, 2001, p. 187). Dois par|grafos depois, a voz narrativa nos fala da visita desse pai como um fato inédito e surpreendente até aquele ponto de sua vida: Pedi a benção de meu pai, beijei sua mão forte e grossa. Naquele momento eu o amei, senti nele um pai, pela primeira vez em minha vida. Havia segurança, força e autoridade nele, e aquilo me emocionava demais. Eu jamais soubera o que era um pai mesmo (MENDES, 2001, p. 187).

A essas radicais oscilações de atitudes e desejos do sujeito em espaços curtíssimos de tempo, sejam os do narrado ou da própria narrativa, podemos conectar os escritos de epílogo de Memórias de um sobrevivente e Às cegas, na medida em que funcionam como um olhar retroativo sobre e, de certa forma, reativador da articulação entre viva vivida e vida escrita: Passaram-se mais de vinte anos do final do relato que fiz de minha vida. Muita água rolou por baixo da ponte, nesse tempo. Daria para fazer um novo livro. Talvez até venha a fazê-lo, não se sabe do futuro. A intenção

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é escrever sempre e para sempre. Mas não sei... a vida me ensinou a nunca esperar fluidez contínua, e sim descontinuidade, tanto na vida de cada um, como na de todos em geral (MENDES, 2001, p. 471) Por exemplo, Magda não permaneceu. Me abandonou, mais uma vez. Motivos? Os mesmos de sempre. Queria presença, e eu não podia. Queria uma segurança que nunca tive nem pra mim (MENDES, 2005a, p. 355).

A relação (narrativa) desse sujeito com os fatos de sua própria vida (elementos selecionados, formas de organização e auto-análise), parece marcada, desse modo, por uma constante sensação de insegurança em frequência com a solidão como efeito do isolamento, a se projetar tanto sobre a subjetividade descontínua que resulta da narrativa, quanto sobre a dinâmica narrativa que a engendra como técnica de subjetivação. Isto é: parece atuante sobre os escritos de Luiz Alberto Mendes um certo dispositivo de atenuação das conexões entre o que ele procura construir como um lugar para ‚si‛ e outras unidades sociais de atribuição de sentido ao sujeito, o que resulta em uma instabilidade constante desse mesmo ‚lugar para si‛ e de seu processo de construç~o: subjetivação via narrativa da própria vida. Se pensado esse processo de subjetivação sob o enfoque que dá Anthony Giddens { ‚construç~o do eu‛ como uma potencial ‚conseqüência da modernidade‛ ou ao que chama de ‚modernidade radicalizada‛ como possibilitadora de ‚processos ativos de auto-identidade‛, através das relações de confiança em seus ‚sistemas abstratos‛ e ‚mutualidade‛ e ‚intimidade‛ das ‚relações de confiança pessoal‛ (GIDDENS, 1991, p. 116-117), talvez possamos hipotetizar que a técnica punitiva do isolamento do preso engendra uma espécie de curto-circuito nos processos modernos de construç~o de um sentido est|vel para o ‚eu‛, na medida em que instaura a procura de um ‚si mesmo‛ mediada pela solid~o, pela violenta ruptura com elementos sócio-referenciais mais estáveis de produção de sentido. Operando sob esta ótica, os escritos de Luiz Alberto Mendes podem ser lidos como a escolha de uma forma, ou melhor, uma técnica, talvez ainda uma política para lidar com uma dupla e violenta, porque abrupta, pressão da tecnologia disciplinar-prisional sobre o sujeito à margem social: o isolamento como sequestro das possibilidades sociais de atribuição de um sentido mais estável a si mesmo, bem como intensificação de uma relação com um lugar a ser construído para esse ‚si‛, mediada por uma solid~o e instabilidade profundas. Na dinâmica oscilante entre a técnica de despersonalização que implica a superlotação das celas e a de individuação do isolamento, ambas as experiências

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narradas por Luiz Alberto Mendes, o medo e a intensificação do pensamento são constantemente referidos: Na cela individual, com tempo para refletir, aos poucos minha mente começou a entrar em parafuso [...] No tambor das lembranças, as palavras disparavam irreversíveis. Eu sentia muito medo de ser incontrolável, irracional. Medo de que me dominar estivesse além de minhas possibilidades (MENDES, 2005a, p. 236).

O ano era o de 1988 e Luiz Alberto Mendes estava em uma cela individual da Penitenciária do Estado de São Paulo, frustrado por não ter aproveitado a oportunidade de formar-se pela PUC-SP em direito ou história, de não estar fora da pris~o, ‚[...] vivendo em sociedade. Casado talvez, com filhos, num lar. Minha m~e feliz comigo‛ (MENDES, 2005a, p. 236). A cena que segue parece um ponto fundamental o suficiente para justificar a longa citação: Comecei a ver minha vida como uma série de conseqüências. As causas, eu não percebia. Quando dava por mim, já estava nas conseqüências. A verdade que devia ser assumida: eu não tinha controle sobre a minha existência. Vivia uma roda-viva, cujas conseqüências desencadeavam causas que geravam outras conseqüências. E eu, no meio, em espaços reduzidos, travado. Lutando, lutando para boiar na tábua escorregadia do meu presente. Passado movediço, futuro ignorado. Eu queria tornar compreensível à razão esse processo. Refletia, vasculhava e me perdia em pensamentos capilares. Busquei, com unhas e dentes, um método. Durante o tempo em que estudei, o melhor método para aprender fora a escrita. Eu escrevia tudo o que entendia e assim assimilava definitivamente. A idéia de escrever minha vida foi automática. Escrever para mim mesmo, para ninguém mais. Sem receio de ser punido ou censurado. Precisava entender o que havia acontecido. Era isso. Iria escrever minha história para me conhecer (MENDES, 2005a, p. 237).

Neste ponto de Às cegas, Luiz Alberto Mendes coloca em narrativa uma cena de gênese de Memórias de um sobrevivente, que teria sido escrito durante cinco meses de sofrido ‚mergulho em seu passado‛, a partir, inclusive de notas que tomara a sua mãe sobre a história de seus pais e sua inf}ncia. ‚Descobre‛, assim, que fora criado ‚na base do chicote‛, uma criança ‚melancólica, solit|ria e muito infeliz‛: ‚via-me na figura daquele menino e me desconhecia. Às vezes ele era eu mesmo, e chorava me descrevendo, com profunda piedade daquele garoto‛ (MENDES, 2005a, p. 238). Na adolescência, passara ‚fome, frio, solid~o, terror, aventura, sexo, vaidades e loucuras inexplicáveis. Revivi um tumulto interior impossível de ser controlado ou contido nas quatro paredes da minha cela‛ (Idem, p. 238). 74 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

A partir da referência { fase em que começara a ‚ser preso seriamente‛, menciona ‚Torturas e sevícias. Espancamentos, estiletadas, borrachadas, nas prisões para menores infratores‛ (Idem, p. 239). [ ‚fase‛ das armas, assaltos e drogas, seguem-se a tortura sistemática, a chegada à Casa de Detenção, à Penitenciária do Estado e a experiência da cela-forte. Na sequência, aparecem ‚o maior dos amigos‛ — Henrique Moreno, que lhe leva à paixão pela literatura — e ‚o primeiro amor verdadeiro‛ — Eneida, que lhe faz estudar com ‚seriedade, responsabilidade‛ (Idem, p. 239). A retomada em flashes dos cinco meses de escrita de uma parcela de sua vida — ‚minha história até os vinte e sete anos‛ (Idem, p. 241) — opera pela narrativização das reações e motivações de um sujeito encarcerado na trajetória de aproximaç~o { uma certa ‚verdade de si‛ que só passa a lhe ser acessível pelo ‚método‛ da escrita. Em Às cegas, o Luiz Alberto Mendes-ladrão-detento torna-se o Luiz Alberto Mendes-escritor-senhor-de-sua-existência, no espaço desse trecho narrativo e em suas extrapolações: ‚Cada linha foi extraída como que com as unhas, de grossas paredes. Parei muitas vezes. Ficava dias sem escrever. Em recuperação. Quando me sentia forte, retomava‛ (Idem, p. 239). Contracenam, ali, um sujeito oprimido/produzido por uma trajetóriatecnologia de produção social de marginalização e um sujeito que toma consciência dela via escrita de si. Contra o pano de fundo de uma cela individual na Penitenciária do Estado, dois personagens se projetam: o personagem-resultado caótico de uma vida desregrada e o personagem-atividade que decide impor-se um método de domínio de si, que levasse a uma aprendizagem sobre si mesmo, a partir do controle dos tempos vividos/a viver — passado, presente, futuro, de suas relações entre causas e consequências, ou seja, um método narrativo de escrita/aprendizagem de si. Quanto à escrita como técnica de produção de uma identidade para si, em uma série de estudos sobre textos regulamentadores de práticas da cultura greco-romana circulantes nos dois primeiros séculos da chamada ‚era crist~‛, Michel Foucault examina aquilo que chama de ‚cultura de si‛ como motivada, entre outros fatores, por uma necessidade de aprendizagem de exercício de domínio sobre si diante dos acontecimentos. De uma passagem extraída de Sêneca, que cita Demétrius, sublinha: [...] devemos nos exercitar como faz um atleta; este não aprende todos os movimentos possíveis, não tenta fazer proezas inúteis; prepara-se para alguns movimentos necessários à luta para triunfar sobre seus adversários [...] Como um bom lutador, devemos aprender exclusivamente aquilo que nos permitirá resistir aos acontecimentos que se podem produzir; devemos aprender a não nos deixar perturbar por eles, a não nos

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deixar levar pelas emoções que eles poderiam suscitar em nós (FOUCAULT, 1997, p. 126-127).

Para fazer face à potencialidade futura dos acontecimentos, seria preciso dispor de um equipamento de ‚discursos verdadeiros‛ sobre o mundo que estivesse sempre { m~o, fixados ao ‚espírito‛, constituindo métodos dessa apropriação: exercícios de memorização do que fora aprendido, a boa escuta como direcionamento da atenç~o e a escrita pessoal em ‚notas das leituras, conversas, reflexões que se ouvem ou que se fazem a si mesmo‛ (FOUCAULT, 1997, p. 127129). A escrita como exercício constituiria um ‚treino de si por si mesmo‛, uma forma de manutenção dos pensamentos noite e dia à disposição, postos como objeto de conversações consigo mesmo e com os outros, um trabalho do pensamento sobre ele mesmo a reativar aquilo que sabe a fim de enfrentar o real, mediante uma ‚elaboraç~o dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de aç~o‛, funç~o, enfim, na expressão extraída de Plutarco, etopoiética (FOUCAULT, 2004c, p. 146-147). Se posto entre parêntesis o hiato temporal que nos separa historicamente dos dois primeiros séculos do império romano, poderíamos afirmar que, em Às cegas, Luiz Alberto Mendes apresenta-se como um personagem que pratica esse exercício de si como técnica de produção ativa de uma identidade: Na época da escravidão, os africanos, depois de um tempo nas fazendas e engenhos, construíam uma identidade, além da de escravos. Então eram ferreiros, mestres de engenho, domadores... O mesmo se dá com alguns de nós. Criamos uma identidade além da de presos. Então somos escriturários, professores, marceneiros, pedreiros, encanadores... Essa a minha diferença. Eu era alguém na multidão. Fazia exercícios de escrita elaborando textos (MENDES, 2005a, p. 276).

A ‚verdade narrativa‛ do ‚eu‛ que resulta do processo de escrita de si é convertida em um ethos de ação potencialmente geradora de uma identidade a si para confronto com o seu real: o real da solidão como dispositivo de dissolução subjetiva do preso e, ao mesmo tempo, como técnica de suscetibilização à assunç~o da posiç~o discursiva de ‚preso‛. O ‚sujeito descentrado‛ da pós-modernidade, como conceito (HALL, 2003, p. 46), opera pela ideia de uma precariedade constante das narrativas que o atravessam. No entanto, para os sujeitos produzidos pela tecnologia discursiva que gera a posiç~o de sujeito ‚criminoso‛ potente para interpelar o indivíduo através de suas próprias práticas de si e pela tecnologia disciplinarprisional, que atravessa o detento com isolamento, tortura do corpo e vigilância, para esse sujeito que é interpelado a produzir-se a si na injunção criminoso76 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

detento, construir, ter uma casa feita de narrativas do eu é um gesto no mínimo, político. Constitui uma política de si, uma política de vida. Como já proposto anteriormente, a potência de interpelação da ideia de ‚criminoso‛ que, olhada de perto, também é narrativamente formulada, constrói uma posição discursiva que pode servir como lugar a ser ocupado pelo indivíduo que vive nas margens da ordem social, tanto do ponto de vista econômico, quanto histórico-cultural. Esta ideia de ‚sujeito criminoso‛ como condiç~o estável a se encaixar sobre estes indivíduos pode ser pensada como um certo tipo de tecnologia de si potencialmente produtora de sujeitos socialmente ‚marginais‛ que se identificam com esta ‚condiç~o‛, executando performances sociais em acordo com seus jogos discursivos. J| as ‚técnicas de si‛ investidas contra a articulaç~o corpo/alma do indivíduo preso remetem seus processos de subjetivaç~o para uma zona ‚marginal‛, aqui usada no sentido derridiano de ‚margens‛ como ‚tecido de diferenças de forças sem nenhum centro de referência presente‛, mas também como ‚uma inesgot|vel reserva‛ (DERRIDA, 1991, p. 25-26). Nesse sentido, o isolamento e a tortura do corpo, por exemplo, parecem funcionar como uma instauração de uma possibilidade de relaç~o com si mesmo nessa zona de ‚margens‛, posto que desmembrada dos elementos que fazem o sujeito significar socialmente e a si mesmo. Visto o problema a partir dessas perspectivas, a apropriação dessas técnicas diferencialmente ‚marginalizantes‛ da relaç~o de um indivíduo com o movimento de produção de uma condição de sujeito para si e seu uso como uma ‚política de si‛, de forma ativa, pode significar uma press~o pontual sobre a produç~o de sujeitos ‚abjetos‛ do ponto de vista social e simbólico, a forçar, para usar o pensamento de Judith Butler, ‚uma rearticulaç~o radical daquilo que pode ser legitimamente considerado como corpos que pesam, como formas de viver que contam como ‚vida‛, como vidas que vale a pena proteger, como vidas que vale a pena salvar, como vidas que vale a pena prantear‛ (BUTLER, 2001, p. 171). Para citar Canclini quando fala de um outro quadro de ‚marginalizaç~o‛, a dos imigrantes e sua condiç~o intercultural e transnacional: ‚Para eles, ser sujeito tem a ver com a busca de novas formas de pertencer, ter direitos e enfrentar violências‛ (CANCLINI, 2005, p. 205). A partir da encenação de um eu esfacelado, produzido nas margens pelas técnicas que promovem uma relação dele consigo mesmo, parece que Luiz Alberto Mendes constrói para si uma casa feita de narrativas que lhe emprestam, para além de uma identidade provisória, uma aprendizagem de si potente para que possa ter { m~o a sua própria ‚alma‛ — ‚alma como algo de móvel

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[...] algo que pode ser agitado, atingível pelo exterior‛ (FOUCAULT, 2004a, p. 59). Se assistirmos, por este viés, a entrevista de Mendes, já em liberdade, no programa Provocações, exibido pela TVE em 2007, nos chamará atenção o fato de que, à investida de Antônio Abujamra sobre uma possível auto-definição, Luiz Alberto Mendes dispara sem pausas: Eu sou o produto dos meus fracassos. Eu fracassei a minha vida toda. Esses fracassos foram me construindo. Nós somos a somatória do que fizemos de nós. Eu fui me construindo através daquilo que eu tentei e não consegui. E chega um ponto que eu tenho e consigo. A vontade é imperiosa. Tudo a que eu me dediquei com vontade, eu cheguei. Eu acreditei em mim. Quando eu comecei a acreditar em mim, eu resolvi minha vida (MENDES, 2007).

A escrita de si vista como técnica de produzir-se, de ter-se a si mesmo, no âmbito operacional da subjetivação, passa por uma relação de aprendizado útil de si que potencialize o uso estratégico de uma identidade, ainda que provisória, desterritorializada narrativamente. Ambos os epílogos dos livros que aqui foram lidos Memórias de um sobrevivente e Às cegas, tratam desse aprendizado: ‚Aprendi algumas coisas sobre mim‛ (MENDES, 2001, p. 474); ‚Aprendemos sozinhos a nos virar diante da dor, cada um a seu modo‛ (Idem, p. 475); ‚Claro que h| mazelas, h|bitos e nervos em frangalhos, ninguém vive o que vivi impunemente‛ (Idem, p. 477); ‚H| uma tristeza profunda. Constato que o Brasil evoluiu muito da minha infância e adolescência até agora. Mas, em termos sociais, parece que as coisas continuam as mesmas‛ (Idem, p. 477); ‚[...] mas também n~o vou mais seguir caminhos que já se provaram — exaustivamente — de dor. Mas também não vou dar mole, quero mais que simplesmente estar vivo (Idem, p. 478) e, finalmente: Vivi, e num mundo de homens estilhaçados. O medo permeava, e tinha cheiro de flores molhadas, surdamente pisadas à porta de cemitérios. Mas mesmo assim existi, e com intensidade. A cada momento signifiquei de alguma maneira (MENDES, 2005a, p. 356).

O aprendizado mediado pelo processo de escrita de si, a partir dos fragmentos selecionados acima, não constitui apenas um aprender com a memória narrativa do passado para agir no presente, consiste ainda um significar diferencial, uma possibilidade de produzir-se a si mesmo como sujeito que existe diferencialmente. Nesse sentido, a escrita de si funciona como ‚método‛ (a palavra é do próprio Mendes) de subjetivação ativa, de produção de uma 78 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

‚alma‛ escrita que pode ser lida, apesar de suas desterritorializações e por conta delas. Pois, o fictício que comporta a ideia de ‚sujeito‛ segundo Nietzsche — ‚N~o h| nem espírito, nem raz~o, nem pensamento, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade: estas s~o simplesmente ficções inutiliz|veis‛ (NIETZSCHE, 2005, p. 238) — pode vir a ser utilizável politicamente pela autoprodução de um indivíduo que, ainda que pontual e estrategicamente, possa tornar-se senhor de si, o ‚homem bravo‛ que aparece, por exemplo, na Ética aristotélica. [...] Porque, exatamente como os membros paralisados se voltam para a esquerda quando procuramos movê-los para a direita, a mesma coisa sucede na alma: os impulsos dos incontinentes movem-se em direções contrárias. Com uma diferença, porém: enquanto, no corpo, vemos aquilo que se desvia na direção certa, na alma não podemos vê-lo. Apesar disso, devemos admitir que também na alma existe qualquer coisa contrária ao princípio racional, qualquer coisa que lhe resiste e se opõe a ele. Em que sentido esse elemento se distingue dos outros, é uma questão que não nos interessa. Nem sequer parece ele participar de um princípio racional, como dissemos. Seja como for, no homem continente ele obedece ao referido princípio; e é de presumir que no temperante e no bravo seja mais obediente ainda, pois em tais homens ele fala, a respeito de todas as coisas, com a mesma voz que o princípio racional (ARISTÓTELES, 1979, p. 64).

‚Com uma diferença, porém‛: o homem ‚bravo‛ que se faz ler como resultante dos escritos de Luiz Alberto Mendes, diversamente daquele que exerce um domínio central e absoluto sobre as linhas de fuga de sua ‚alma-subst}ncia‛, passa a ‚ser‛ em narrativa, em processo, em deslocamento contínuo. A contrapelo da operaç~o de invenç~o da ‚alma‛ do sujeito ‚criminosohediondo‛, resultado de um ‚ser‛ irremediavelmente preso nas malhas discursivas e tecnológicas do poder de ‚marginalizaç~o‛, a ‚escrita de si‛, a partir dos escritos de Luiz Alberto Mendes, pode ser pensada contemporaneamente como ‚política de si‛, na medida de sua din}mica como conjunto de dispositivos a engendrar a produç~o ativa do ‚sujeito‛, dentre os quais: a) a aprendizagem estratégica das técnicas de sujeição das relações de poder; b) a instauração de relações dinâmicas nas porosidades que separam e conectam narrativamente ‚presente‛ e ‚passado‛, no sentido de uma potencializaç~o do presente que se projete sobre o processo de subjetivação; c) a gestualidade de encenação de um ‚sujeito‛ que se expressa no conjunto de posicionamentos discursivos potente para elidir o efeito de dissoluç~o das operações ‚marginalizantes‛.

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Neste ponto, portanto, podemos pensar a ‚escrita de si‛, enquanto ‚política de si‛, como uma das técnicas de subjetivaç~o possíveis no âmbito dos vetores de força que atravessam os indivíduos, na medida em que operacionaliza a sua relação com uma série de pontos a serem ocupados nos espaços sociais de gestos, ideias, atitudes, pensamentos, em uma palavra: performances que os tornam plausíveis como sujeito. Disso resulta conseguirmos pensar a ideia de ‚sujeito‛, enquanto resultante do processo de ‚escrita de si‛ como uma zona de intensidades legível, conjunto de gestualidades e embates visíveis, contornável pelo gesto narrativo e pela nomeação autoral: ‚Aqui, apenas conto o que vivenciei. Não é testemunho ou tentativa de justificar. O fato é que sou o que vivi‛ (MENDES, 2005a, p. 356, grifos meus). A injunç~o entre ‚contar‛ e ‚ser‛ engendra, assim, nos processos técnicopolíticos da produç~o de ‚si‛, uma alma-superfície que se deixa ver, que se deixa tocar, como espaço difuso, estratégico, fugidio, entretanto existente, de um indivíduo que se produz ativamente nas ‚margens‛ e para além delas. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Metafísica: livro I e livro II; Ética a Nicômaco; Poética. Trad. Vicenzo Cocco et al. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Col. Os pensadores. BUTLER, Judith. Bodies that Matter: on the Discursive Limits of ‚Sex‛. New York, London: Routledge, 1993. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‚sexo‛. In: LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Trad. Maurício Santana Dias et al. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999. CANCLINI, Nestor García. Diferentes, desiguais e desconectados. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005. DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa e Antônio M. Magalhães. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca et al. São Paulo: Martins Fontes, 2004a. FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Trad. Elisa Monteiro et al. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b. FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Trad. Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

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GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1991. GRAMSCI, Antônio. Cartas do cárcere. Trad. Noênio Spínola. 2. ed. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1978. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva et al. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevivente. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. MENDES, Luiz Alberto. Às cegas. São Paulo: Cia. das Letras, 2005a. MENDES, Luiz Alberto. Cela forte. In: FERRÉZ (Org.). Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 109-116. NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Parte 2. Trad. Mário D. Ferreira Santos. São Paulo: Escala, 2005. Col. Mestres pensadores. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. FILMOGRAFIA MENDES, Luiz Alberto. Entrevista a Antônio Abujamra. Provocações. TVE. Programas 345 e 346, exibidos em 7 e 14 nov. 2007. Programa de TV.

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VIOLÊNCIA EM TEXTOS DE AUTORIA FEMININA Eurídice Figueiredo1 Je suis borderline. J’ai un problème de limite. Je ne fais pas de différence entre l’extérieur et l’intérieur. C’est { cause de ma peau qui est { l’envers. C’est { cause de mes nerfs qui sont à fleur de peau. Tout le monde peut voir à l’intérieur de moi, j’ai l’impression. Je suis transparente (LABRÈCHE, 2003, p. 77).

Há muitas tendências no romance contemporâneo dentre as quais se destacam a proliferação de narrativas de cunho autobiográfico e a presença da violência de vários tipos. Além da violência urbana, sem dúvida preponderante, há uma outra, mais intimista, em que famílias disfuncionais apresentam neuroses e psicoses, alcoolismo e uso de drogas. Os romances de autoria feminina tendem a tematizar a violência voltando-a contra o corpo da mulher, enquanto nos livros escritos por homens a agressão volta-se mais frequentemente contra o outro, que pode ser outro homem ou uma mulher. Os dois romances da romancista do Quebec Marie-Sissi Labrèche, Borderline (2003) e La brèche (2008), congregam estas duas tendências: são autorreferenciais e encenam a violência e a doença mental. A narradora-personagem — Sissi no primeiro, Emilie-Kiki no segundo, cujo título joga com o seu sobrenome, Labrèche — escreve na primeira pessoa e expõe sua vida sexual e amorosa. Não se trata propriamente de autobiografia mas de auto-ficção, ou seja, de ficcionalizações de si que dão a ilusão ao leitor de que ele está diante de textos autobiográficos. A auto-ficção é assim definida por Philippe Gasparini: Texto autobiográfico e literário que apresenta numerosos traços de oralidade, de inovação formal, de complexidade narrativa, de fragmentação, de alteridade, de disparatado e de auto-comentário que tendem a problematizar a relação entre a escrita e a experiência (GASPARINI, 2008, p. 311).

Borderline alterna os capítulos que se passam no presente da enunciação e os diferentes passados: da idade de 11 anos à idade de 5 anos, remontando sempre para trás quando se trata do passado, e avançando nos capítulos que tratam do presente, de 23 a 26 anos. Como o título indica, trata-se de uma jovem borderline, ou seja, alguém que não conhece as fronteiras, o que é facil1

Docente da Universidade Federal Fluminense (UFF); Pesquisadora do CNPq; Grupo de pesquisa: Relações literárias interamericanas; endereço eletrônico: [email protected].

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mente comprensível já que a mãe era louca e se suicidou quando a menina tinha 11 anos e que a avó, que a criou, não era muito normal tampouco. No prólogo, a avó a ameaça não com persongens da mitologia infantil como o Bicho Papão, por exemplo, mas com serial killer, estuprador, traficante de escravas brancas, em suma, elementos de uma mitologia urbana e moderna veiculada pela televisão. D’aussi loin que je me rappelle, ma grand-mère m’a toujours raconté des niaiseries. Toutes sortes de niaiseries. Par exemple, quand j’étais tannante, elle avait coutume de me dire : Si t’es pas gentille, un fifi va entrer par la fênetre et te violer ou Je vais te vendre à un vilain qui fera la traite des Blanches avec toi ou encore Un assassin va venir te

découper en petits morceaux avec un scalpel, c’est ça que tu veux ? Hein ? [ quatre ans, je n’avais pas droit au croque-mitaine ou au Bonhomme Sept-Heures, mais au serial killer (LABRECHE, 2003, p. 11. Grifos da autora).

Esta família disfuncional só pode engendrar uma borderline. No capítulo 1, intitulado ‚Cendrillon‛, a cena se passa em um hotel. O ato sexual descrito é degradante pois a protagonista coloca-se numa situação de auto-punição, ao aceitar fazer algo que lhe provoca repulsa. Profanar, como lembra Giorgio Agamben, é entregar ao uso comum aquilo que era reservado aos deuses, ou seja, o sagrado. Pode-se pensar que um corpo violentado foi profanado quando a relação sexual não é fruto do desejo da mulher de juntar-se ao corpo do homem desejado e/ou amado. Embora na cena de abertura do romance Sissi não tenha sido estuprada, já que ela aceitou ir ao hotel com o gordo Eric, ela se sente morta porque aceitou desempenhar o papel tradicional de objeto do desejo de outrem. ‚Na medida de sua atração, uma mulher serve de alvo ao desejo dos homens‛ (BATAILLE, 1987, p. 123). O fato de considerar que foi usada como uma prostituta dilacera-a, o que a leva a se descrever deitada na cama como se fosse uma morta em seu caixão, com as duas pernas bem abertas, emblema de sua abjeção: de mulher penetrada sem desejo e portanto sem prazer. Julia Kristeva afirma que as vítimas do abjeto são dóceis e consentem, fascinadas, em mergulhar na abjeção (KRISTEVA, 1980, p. 17). Je suis couchée sur un lit dans une chambre de l’hôtel Ch}teau de l’Argoat. Je suis couchée sur le dos, bien droite. Mes deux mains se tiennent en dessous de mes seins comme les morts dans un cercueil. D’ailleurs, j’aurais l’air d’une morte dans son cercueil, si ce n’était mes jambes. J’ai les jambes grandes ouvertes, j’ai les jambes presque de chaque côté de mes oreilles tellement elles sont ouvertes. Je viens de me faire baiser (LABRÈCHE, 2003, p. 13).

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Ela poderia fechar as pernas mas não o faz porque se compraz nesta pose de auto-flagelação e de auto-comiseração. Há em sua atitude impudente uma certa provocação, comparável à das mulheres analisadas por Giorgio Agamben, as quais exageram a indecência das fotos pornográficas pelo olhar direto para a câmera, exibindo sua consciência de estarem expostas à câmera (AGAMBEN, 2007, p. 78). A exposição de seu corpo é reiterada pela exploração impudica de seu sobrenome, Labrèche, que expõe a abertura de seu corpo de maneira obscena. ‚On rit aussi de mon nom de famille dysfonctionnelle ; mon nom de famille laissé, oublié par mon grand-père Labrèche [...]. En fait, mon nom, c’est le trou, c’est la brèche, c’est la fente de mon petit corps‛ (LABRECHE, 2003, p. 63). Já que ela serve de objeto sexual a um homem que ela não deseja, que, ao contrário, a enoja, ela se assume como puta, ela tem vergonha mas parece ter de se rebaixar sempre. Usar palavras grosseiras é uma forma de rebaixamento porque são interditos; nomear os órgãos ou atos sexuais, se chamar de puta, segundo Bataille, faz passar da transgressão à indiferença, o que põe num mesmo plano o profano e o mais sagrado (BATAILLE, 1987, p. 127) ou seja, cria um ato de profanação. Oui ! Je suis une pute ! Mais je ne suis pas une pute comme tu penses. Je ne suis pas une pute comme dans les émissions de télé ou sur le coin de la rue Champlain ! Je ne fais pas ça pour l’argent, c}lice ! Je fais ça pour me calmer les nerfs, câlice ! (LABRÈCHE, 2003, p. 14. Grifos da autora).

Bataille distingue a prostituição sagrada da moderna prostituição: na primeira a vergonha pôde se tornar ritual enquanto, na moderna, a vergonha sentida pela prostituta se articula com o desprezo manifestado pelos outros, no ato de cometer a transgress~o do interdito. ‚É pela vergonha, representada ou não, que uma mulher se harmoniza com o interdito que cria nela a humanidade. O momento é ultrapassado, mas trata-se de marcar então, pela vergonha, que o interdito não é esquecido, que a ultrapassagem acontece apesar do interdito, na consciência do interdito‛ (BATAILLE, 1987, p. 125). A protagonista de Marie-Sissi Labrèche sofre da ausência de pai — ele é apenas mencionado —, vivendo entre duas mulheres bastante desequilibradas e patéticas, a mãe e a avó. Construída pelo desejo incestuoso pela mãe e pela separação brutal dela, o borderline, segundo Kristeva, sofre de uma carência da função paterna, o que provoca o sentimento ao mesmo tempo de clausura e vazio. ‚O eu lança-se então numa corrida às identificações reparadoras do narcisismo, identificações que o sujeito sentirá como in-significantes, ‘vazias’, ‘nulas’, ‘desvitalizadas’, ‘marionetes’. Um castelo vazio habitado por fantasmas nada engraçados.... ‘impotente’ por fora, ‘impossível’ por dentro‛ (KRISTEVA, 1980, p.

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60). O alcoolismo faz parte deste comportamento borderline: ultrapassando todos os limites, ela se exibe de modo espetacular, torna-se inconveniente. Em suas festas de aniversário, ela se embriaga a fim de poder esquecer seu comportamento desestruturado, sua angústia, seu sentimento de culpabilidade. Durant quelques minutes, le vide de mes vingt-trois années d’existence s’est évanoui, s’est effacé. Plus de vide rempli de cochonneries. Plus de maman folle, plus de peurs, plus de grand-mère qui chiale, plus de tracas (LABRECHE, 2003, p. 14-15).

Ela se expõe, tira a roupa, faz besteira, acaba na cama com qualquer um, torna-se abjeta, goza talvez neste/deste pathos. Ela representa o papel de mulher-objeto-do-desejo dos homens. Agamben retoma o conceito de ‚valor de exposiç~o‛, criado por Walter Benjamin, um terceiro termo além dos dois criados por Marx: ‚valor de uso‛ e ‚valor de troca‛. ‚Nada poderia caracterizar melhor a nova condição dos objetos e até mesmo do corpo humano na idade do capitalismo realizado do que esse conceito‛ (AGAMBEN, 2007, p. 77). A protagonista, ao se exibir, não oferece seu corpo para uso nem, muito menos, tem valor de troca pois o trabalho n~o est| em jogo. Este ‚valor de exposiç~o‛ do corpo na sociedade (pós)contemporânea faz parte do jogo espetacularização/voyeurismo que a caracteriza. Assim, a imagem da jovem, loira e bela seduz e causa repulsa ao mesmo tempo, os homens têm medo de seu excesso e suas transgressões. Ela busca desenfreadamente preencher o seu vazio. Apesar de se ver como Cendrillon (Gata Borralheira), personagem de contos de fadas, ela não tem uma vida de contos de fadas com final feliz, ao contrário, ela se sacrifica para transformar o mundo do gordo Eric em magia. Em algum momento ela afirma que Cendrillon era sua história predileta quando era criança. Então por que profanar a imagem de pureza de Cendrillon tornando-se puta, como ela diz? No romance seguinte, La brèche, ela se apaixona por seu professor de criação literária, homem casado que não tem nenhuma intenção de abandonar a mulher para ficar com ela, e seu sonho infantil não se realiza. Nos dois livros se assiste a crises psíquicas graves que acarretam acidentes, tentativas de suicídio, em suma, novos desejos de auto-punição. Um dos aspectos mais visíveis destas crises é o desdobramento de personalidade, traço esquizoide que começou muito cedo, quando ela teve de chamar a emergência do hospital após o suicídio da sua mãe. Je ne sais pas comment j’ai fait. Je ne me rappelle rien. En fait, je pense que c’est une autre petite fille qui l’a fait pour moi. Une autre petite fille blonde comme moi qui m’a souri et qui a pris ma main pour composer le numéro (LABRECHE, 2003, p. 31).

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Este acontecimento traumático provoca pesadelos de noite, e ao despertar, angústia. Como ela tem dificuldades em suportar a realidade, ela se desliga e se vê vivendo do exterior. ‚Je dis ça parce que j’ai l’impression de vivre dans un film‛ (LABRECHE, 2003, p. 37). Se ver em um filme, se ver no espelho ou ver um duplo, são as formas do desdobramento da personalidade que aparecem no livro. Para escrever uma autobiografia, segundo Mikhaïl Bakhtine, o escritor deve tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar-se com os olhos de um outro (BAKHTINE, 2003, p. 13) pois o ‚acontecimento estético, para se realizar, necessita de dois participantes, pressupõe duas consciências que não coincidem‛ (BAKHTINE, 2003, p. 20). Pelo tratamento do tema do duplo, a autora tematiza a duplicidade do escritor contemporâneo que se expõe como se a ficção fosse parte de sua vida. Como observa Régine Robin, na ‚busca de uma identidade pluralizada pelos fantasmas de auto-engendramento, existe uma zona limite, uma margem em que a passagem ao ato tende a apagar as fronteiras entre o mundo fantasmático do autor e o real sociobiográfico‛ (ROBIN, 1997, p. 16). Estas passagens entre as fronteiras ameaçam o equilíbrio instável do autor, que se desdobra infinitamente como um Proteu e, no caso de Labrèche, ela encena este desdobramento do eu na própria tessitura narrativa. Son corps est comme le mien. Je n’en reviens pas. Même taille, mêmes seins, mêmes cheveux, mêmes yeux rieurs. Est-ce moi que je touche ? Suis-je en pleine crise narcissique ou quoi ? Suis-je couchée sur un miroir ? Le miroir va-t-il se casser et vais-je me noyer ? C’est dingue, mais tout { coup j’ai peur (LABRECHE, 2003, p. 81).

A moça que se parece com ela como uma irmã gêmea ou como um clone torna-se, em outra cena, companheira de jogos sexuais, numa expressão de lesbianismo. Na tradição romântica, e sobretudo no romance gótico, o aparecimento do duplo é sinal de morte, como a protagonista assinala na passagem: ‚Tu me fais peur parce que j’ai l’impression d’avoir rencontré mon double et que tu vas me tuer pour prendre ma place. Certaines tribus croient que si on voit son double, c’est parce qu’on va bientôt mourir‛ (LABRECHE, 2003, p. 103). O espelho, como foi demonstrado pela psicanálise, é uma fase fundadora do processo de individuação. No caso em questão, o espelho que se estilhaça no fim do romance significa o esfacelamento do eu, a perda e a desintegração. ‚Je me lance à toute vitesse dans mon miroir [...]. Je brise le miroir en mille morceaux. Mon image disparaît, mais je ne suis toujours pas quelqu’un d’autre. Je suis malheureusement encore moi. Rejetée‛ (LABRÈCHE, 2003, p. 110). E à medida que ela faz uma anamnese, voltando cada vez mais longe no passado, o leitor se dá conta que a doença mental começara muito cedo: o suicídio da mãe,

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as ameaças da avó de colocá-la numa família adotiva que iria maltratá-la, em suma, sua vida é uma coleção de desventuras. Ela faz confidências a uma amiga, ela compartilha suas angústias, provoca sofrimento em outrem, sua amiga chora, se preocupa com ela. ‚Je me réjouis. Je me sens moins seule dans ma merde‛ (LABRECHE, 2003, p. 40). Mas mesmo antes, aos 8 anos, ela faz um desenho que choca a professora: ela desenha dois olhos azuis tristes, os olhos de sua mãe louca, toda a classe fica traumatizada. ‚C’est juste que je dois être suicidaire malgré mes huits ans. Je dois être suicidaire comme ma mère dans trois ans‛ (LABRECHE, 2003, p. 61). Aos 7 anos, sua mãe está no hospital e ela é uma criança hiperativa, agitada, muito criativa apesar de todos os problemas familiares; aos 5 anos, ela passa horas diante da televisão. E aí se chega talvez à causa fundadora de sua culpabilidade: a avó forçou-a a afirmar que seu padrasto abusara dela a fim de poder provocar a separação do casal. Diante do fato consumado, a menina se sente culpada, um verdadeiro Judas. A última frase do capítulo é: ‚Dorénavant, mes jeux n’auront plus de frontières et je serai en guerre contre l’humanité, mais surtout contre moi-même‛ (LABRECHE, 2003, p. 135). O primeiro romance termina com uma crise na qual ela quebra o espelho. ‚Paf ! Coup de poing dans le miroir ! Le miroir est fracassé, en mille morceaux qui ne tombent pas‛ (LABRECHE, 2003, p. 151). Ela tem cicatrizes, os espelhos são retirados, ela passa a a ter acompanhamento de uma psicóloga. No romance seguinte, La brèche, ela segue um tratamento psicológico ou psicanalítico, o que não é esclarecido, mas sobretudo, é a escrita que vai lhe servir de remédio para sua doença. Ela mantém um diário, que vai tornar-se o livro, ela trabalha como jornalista. Sua psy considera que ela tem o espírito resiliente, ou seja, apesar de todos os problemas emocionais, ela resiste e enfrenta a realidade. Sua capacidade de resiliência não chega a resolver e ultrapassar completamente sua ‚boule d’angoisse‛ (LABRÈCHE, 2008, p. 49), seus conflitos internos impedem-na de viver uma vida a dois de maneira harmoniosa. ‚Ma psy dit que c’est parce que j’ai de la hargne contre l’autre en moi qui je suis incapable d’être en couple‛ (LABRECHE, 2008, p. 55). Segundo Sara Ahmed, ter vergonha é se sentir mal em relação a si mesmo diante dos outros, o que acarreta a auto-negação. Este sentimento de negação de si é considerado pelo sujeito como um signo de sua derrota diante dos outros (AHMED, 2007, p. 17). Assim a vergonha se assemelha à exposição — o outro viu o que eu fiz de mau e vergonhoso — mas ela implica também o desejo de esconder, o que requer que o sujeito se afaste dos outros. Ser visto em sua derrota é ser exposto à vergonha; ter testemunhas de sua vergonha é ainda mais vergonhoso (AHMED, 2007, p. 18). A individuação da vergonha que volta o eu contra e para si pode se ligar à intercorporalidade e à sociabilidade 88 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

das experiências da vergonha. A marginalização (apartness) do sujeito, que se intensifica pelo retorno do olhar, é sentida no momento de exposição diante dos outros, uma exposição que é ferida (AHMED, 2007, p. 19). A vergonha torna a personagem ao mesmo tempo indigna e incapaz de formar um casal por causa de seu caráter suicida; isto resulta sempre em frustração, em exposição a novas experiências de profanação de seu corpo, de vergonha e de abjeção. Os dois romances acabam de maneira trágica. No primeiro, ela se joga no rio ou no espelho (que se quebra), no segundo ela e seu amante, o professor de criação literária, têm um acidente de carro; ele morre e ela fica em cadeira de rodas (epílogo). A personagem não parece ter ultrapassado a vergonha, a angústia, o mal estar existencial, o que prenuncia talvez novos romances sobre o mesmo assunto. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Elogio da profanação. In: Idem. Profanações. Trad. e apres. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 65-80. AHMED, Sara. The Politics of Bad Feeling. In: KAPLAN, Ann; SCHECKEL, Susan. (Ed.). Boundaries of Affect. Ethnicity and Emotion. The Occasional Papers of the Humanities Institute at Stony Brook, n. 3, State University of Stony Brook, 2007. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. GASPARINI, Philippe. Autofiction. Paris: Seuil, 2008. KRISTEVA, Julia. Les pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection. Paris: Seuil, 1980. LABRECHE, Marie-Sissi. Borderline. Montréal: Boréal, 2003. LABRECHE, Marie-Sissi. La brèche. Montréal: Boréal, 2008. ROBIN, Régine. Le Golem de l’écriture. De l’autofiction au Cybersoi. Montréal: XYZ, 1997.

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FORÇA, PODER E VIOLÊNCIA EM DISCURSOS PRISIONAIS Heleusa Figueira Câmara1 Força, poder, violência são palavras densas que remetem a estados diferenciados de dominação e sujeição na existência terrena. Superpondo-se na ostensiva coexistência das manifestações dos elementos da natureza, com as extraordinárias percepções dos animais e da enigmática condição humana distinções são lucubradas, estabelecendo-se sutilezas que as caracterizam com maior precisão. As relações concebidas entre o ser humano e as divindades, visualizadas em diferentes culturas, quase sempre estampam o exercício do poder e da força que se deseja estampar entre as pessoas que, no espaço de vivência, ocupam posições de mando, detêm saberes e agem às ocultas. Do olhar divino e poderoso que julga e separa, do olhar sapiente que identifica e classifica não há como se esconder. Dentre muitas outras coisas, é com naturalidade que as pessoas buscam, entre si, reconhecer o culpado no outro. Há sempre um inimigo no horizonte. Vive-se, portanto, num estado de suspeição e de prevenção para tornar visível tudo que assusta e incomoda, para o estabelecimento de separações. Pessoas identificadas como transgressoras, classificadas como periculosas e apartadas pela lei do convívio social, para ressocialização nos espaços carcerários carregam o anátema da marca indelével de malfeitor. Prisioneiros não mais podem dissimular, ou portar máscaras que escondam os seus propósitos nefastos. A sociedade representada em seus diversos matizes culturais, ideológicos, religiosos, políticos discute em contínuos e dispendiosos encontros, outras mais complexas possibilidades de prevenção e controle à violência que assombra o mundo. Conjecturas premonitórias, mergulhadas na arqueologia da transgressão ratificam modelos adotados e devidamente registrados em outros países, dando margem a política do encarceramento, como alternativa para construção de mais e mais prisões. Modalidades do exercício da força, do poder, somadas às ramificações estratégicas das relações de convivência e sobrevivência na prisão, ampliam para uns a sujeição legal a que se encontram submetidos, e para outros a revolta e o ódio pela ineficácia da prisão, pelo castigo diário estampado na construção das 1

Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP; Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), no Curso de Administração, junto ao Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA); integrante do Grupo de pesquisa: Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), da Pós-Graduação em Ciências Sociais/PUC/SP; endereço eletrônico: [email protected].

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jaulas que amontoam os seres da arena. Estabelecendo analogias decorrentes do livro de Elias Canetti, Massa e poder, a prisão pode ser pensada como uma instituição dupla e fechada, cuja fronteira é delimitada por uma durabilidade pretendida num objetivo que parece santificar seu estado. Construída como uma ‚arena‛, espaço de massa duplamente fechada, encontra-se bem delimitada e todos conhecem o seu local. É formada por maltas, unidades mais antigas das massas, exercendo, entre si, funções semelhantes, cujos atores sociais se mantêm alertas na representação de papéis definidos de disposição para embates, ordem, moralidades, prevenção, vigilância e punição. Maltas de espreita constituídas pelo corpo administrativo e pelos prisioneiros buscam faltas e indícios de atos descuidados, possibilidades de corrupção que possam quebrar as tensões de ver em si o reflexo do outro. Maltas de acossamento sustentam a esperança de uns de que nada seja alterado e de outros que aguardam o momento de troca de comandos alternando as posições de caça e caçador. Os prisioneiros, por força das circunstâncias de serem continuamente observados, mantém-se em estado de alerta, pretendendo identificar num olhar classificatório, amigos e inimigos, respaldando-se na força e na revolta. Escreve-se muito nos presídios, pois o prisioneiro sente necessidade de manter contato com o mundo além das grades. Escreve-se para parentes, amigos, namorados, juízes, promotores, políticos, pessoas de renome por variadas razões, dentre as quais o desejo de interferência no andamento, ou no rumo do processo. Os espaços carcerários são povoados de histórias e quem costuma visitá-los ouve os internos se referirem à própria vida, como um romance. Provavelmente, esta é a melhor forma de responder à pergunta mais repetida e irritante que lhes é feita: ‚Por quê você foi preso, por quê você está aqui?‛ A maior parte necessita historiar a vida anterior à prisão, como forma de apresentação pessoal, para depois abordar os motivos do encarceramento. De vez em quando, para perplexidade e previsível censura do inquiridor, ouve-se: ‚Pra passar férias, é que não foi‛. A chegada de alguém numa prisão, como sujeito cuja periculosidade implica encarceramento, reveste-se de procedimentos que procuram apagar a história do tempo de vida do transgressor, por não fazer parte do seu processo, por ser vista, quase sempre, como irrelevante. Os prisioneiros costumam dizer: Minha vida não cabe num laudo. Em 1990, buscando minimizar a angústia dos prisioneiros à espera da sentença, ou do processo em grau de recurso, sem outras pretensões, comecei a ouvir histórias de queixumes, a emprestar livros, a datilografar cartas-poemas que os presos escreviam para os juízes. Procurando atender aos interesses dos prisioneiros levei livros e revistas bem diversificadas: best sellers, literatura brasileira, livros de mistério, memórias, autobiografias, textos religiosos e de 92 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

auto ajuda. Em fins de 1992, os internos Hélio Alves Teixeira2 e Rosieles Ramos Sales3 começaram a escrever na Casa de Detenção de V. da Conquista, Bahia. Estavam confinados em celas de doze metros quadrados, ao lado de seis a dez prisioneiros, que passavam o dia inteiro entre jogos de dominó, baralho, confecção de trabalhos artesanais, rádio ligado, e ás vezes uma televisão. A água faltava constantemente, o esgoto estava sempre entupido, surgiam percevejos e as tensões e sonhos de liberdade se misturavam em inúmeras tentativas de fuga com o escavamento de túneis. Poemas em cordel me foram entregues para que tirasse cópias e quando os devolvi datilografados e bem arrumadinhos, não poderia imaginar a satisfação que estava proporcionando com esta pequena gentileza, e que estava começando um trabalho educativo e cultural, surgindo, assim, o projeto Proler/Carcerário, mais tarde renomeado para ‚Letras de Vida: escritas de si‛. Devolver o texto datilografado, representou um ato respeitoso, uma reverência às ideias registradas, e tanto Alves Teixeira quanto Ramos Sales sentiram a força da palavra impressa4. Pensando nas histórias das vidas que são vistas como ínfimas, ‚existências-clar~o‛, Foucault (1993) determina regras simples para a sua escolha: que se tratasse de existências reais, que tivessem nome, data, lugar, mesmo que tais nomes fossem vistos como ‚danados, escandalosos ou dignos de lástima: e isto do simples fato de sabermos que existiram‛. Pessoas cuja existência parecia destinada a não deixar rastro. A escolha dos textos de Ramos Sales para este trabalho provém do prazer, que a escrita lhe causou. As práticas de letramento e de escritura propiciam novas relações de identidade e de poder. Para Sêneca quem escreve, lê o que escreve e faz, portanto, uma releitura. O jogo das leituras e da escrita assimiladora dos desejos, da experiência de vida viabiliza percursos através dos quais se lê uma genealogia das diferenças. Um cara capaz de sorrir para a prisão, a morte, e chorar ao lembrar-se dos pais distantes. A vida, as pancadas da prisão, os motins dentro da 2

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Rosieles Ramos Sales nasceu em Santa Inês, Bahia, em 1971 e faleceu em setembro de 1994, ao ser recapturado após uma fuga ocorrida no Presídio Regional de Vitória da Conquista. Pedreiro, eletricista, agente de serviços gerais, surfista, escritor. Autor de Aldeia Gongo: minha tribo, a ser publicado. Hélio Alves Teixeira nasceu no dia 29 de setembro de 1950, em Macarani, Bahia. Lavrador, pedreiro, mecânico, poeta, cordelista, compositor e escritor. Autor de Ventaneira: uma história sem fim, publicado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia, em 1996. Todos os textos apresentados neste trabalho foram autorizados pelos autores para publicação sem restrições quanto à identificação, desde que preservadas as fontes.

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cadeia, as greves, os revolveres apontados para a cabeça de Rosielis, as bombas de gás dentro das celas, as brigas entre presos, querendo matar uns aos outros, as doenças, as mortes de colegas que saiam da cadeia, como queima de arquivo, as tentativas de fuga sem sucessos, os paus que levamos da policia, a fuga realizada, a captura de volta, as promessas e mais promessas, mentiras, palavras e etc. Estas coisas, estes acontecimentos transformaram Rosieles, fizeram dele um observador nato, um homem que tornou-se um violento pacificador, amigo de todos e revoltado com todos (Ramos Sales, 1994).

Escreve-se para afastar o medo, despistar a morte e destruir os fantasmas que afligem por dentro, e é sempre útil, pois tende a coincidir, de alguma maneira, com a necessidade coletiva de conquista da identidade. A ‚escrita de si‛ e a autobiografia são atos de criação, partidos das experiências vividas e portanto, passíveis de escolhas pessoais, como modos possíveis de reconstrução de vida. Revivendo posturas de uma sociedade punitiva e vivendo sob o estado de suspeição os prisioneiros constroem metáforas, tecendo imagens representativas do poder, do castigo, da sujeição e da rejeição ao cotidiano prisional. Na poética de Ramos Sales que, continuamente, usa os animais, dentro da simbologia das fábulas, o poema Urubu; numa leitura animista, pode ser visto como a metamorfose do transgressor, que nesta terra se confunde com as sombras, a morte, o perigo, mas que tem, também, a beleza do que é estranho. Ué, urubu?! É isto mesmo! Afinal, é o único pássaro que está ao alcance dos meus olhos, entre as nuvens que eu vivo admirando os formatos, seus desenhos em formas de animais, de casas, de pessoas, de muitas outras coisas. [...] Voam em grupos ou solitários, mas estão sempre voando de alto a baixo. Ora se existem homens que fizeram frases e poemas para moscas e insetos, por que eu não posso falar sobre urubus? [...] Um urubu, um solitário urubu corta com suas asas o lindo e infinito céu azul. Voa tão alto, que mal consigo ver, sei apenas do negro ponto, que no céu, eu vejo cortando nuvens, como se corta um queijo (Ramos Sales).

O texto construído pelo preso costuma apresentar conteúdos genéricos sobre a natureza, a família, Deus e o destino, como se pautado por uma preo94 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

cupação em mostrar que, apesar do delito cometido, os valores morais e éticos da sociedade são reconhecidos. O discurso do preso está sujeito a constituir-se objeto de análise para o conhecimento e formação do seu caráter e, portanto, outro princípio de exclusão pode ser detectado: a oposição do verdadeiro e do falso. Por pressupor um estado de suspeição e consequente necessidade de acareação de fatos, o prisioneiro precisa estar atento àquilo que fala, para não estar sujeito a vacilações. Os interrogatórios, os depoimentos e as audiências são momentos de possíveis descobrimentos de ‚verdades‛ e Foucault (1979) chama a atenção para os deslocamentos que podem constituir verdades visíveis e invisíveis de um para o outro, respectivamente. As pessoas os momentos são sempre diferentes para mim e as pessoas deveriam parar um pouco, observar um pouco, as pessoas deveriam, ao menos, conhecer e conversar com um homem preso, dialogar sobre qualquer coisa e então a mágica acontece — Eu pensava que preso era como nos filmes, selvagem, mas é bem diferente (Ramos Sales, 1994).

As analogias do poder estabelecidas com as forças da natureza e com os animais referendam o imprevisível, assumem o caráter da revelação e do desmascaramento. Para Canetti (1995), os raios cumprem o papel dos mais velozes, visíveis e repentinos castigos, e a velocidade e a captura estampam a identificação dos segredos. onde pode residir o perigo. É preciso estar atento para que o inimigo seja identificado, desmascarado e no discurso de Ramos Sales percebese a constatação das dissimulações assumidas nos papéis dos justiceiros. Dizem que eu sou frio, monstruoso, dizem que sou um assassino sem sentimentos, uma escória para o mundo. Droga, ninguém fala isto do policial covarde, que bate na gente algemado, muito menos do Juiz, que não tá nem aí se eu tenho ou não família e uma profissão. Os desgraçados só querem saber do que falou o delegado. É, eles podem falar o que quiserem de mim, eu não tô nem me fodendo para estes burgueses idiotas. Estou de castigo por ter fugido da cadeia, mas não me preocupo com isto, como diz o ditado: seis meses de inverno e seis de verão (Ramos Sales, 1994).

Alguns pontos devem ser pensados nas comparações sobre homem/animal/natureza. Esta face múltipla das pessoas é um componente indispensável às relações de poder. Maquiavel (1996) conta que a alegoria sobre o Centauro Quíron, preceptor de Aquiles e muitos outros príncipes antigos, é um preceito de que o príncipe deve usar o animal e o homem, pois uma natureza sem a outra, não dura muito tempo. Considerando, neste trabalho, como príncipe todo aquele que exerce o poder e a força sobre o outro, a depender das circunstâncias, percebe-se os liames entre a astúcia e a força, entre a razão e a

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vontade na ‚escrita de si‛ dos prisioneiros, permeando as relações entre estes e o corpo administrativo. É preciso escolher a face do leão para aterrorizar os lobos e mantê-los á distância e a da raposa para conhecer as armadilhas e às múltiplas necessidades. O exercício do mando e a prática da obediência pela sujeição e pela simulação pode ser encontrada em metamorfoses de raposa e leão, necessárias ao convívio com a ostentação da força. São constantes as comparações feitas pelos prisioneiros em suas ‚escritas de si‛ com os animais. A força animal representativa do ser livre em sua força física é associada a do leão, aquele que dificilmente é domado, ou submetido. Vejamos algumas vozes: Eu quero estar com meus amigos, irmãos, pessoas que têm algo a ver comigo, pessoas que tem sangue de leão correndo nas veias e não um monte de riquinhos metidos a besta, que não têm coragem de montar um cavalo sozinho. Para mim, esse tipo de gente tem sangue de barata; como diríamos, são os ‚parasitas‛, pleiboyzinhos cheirando perfume francês, que dá vontade de vomitar. Não, eu não sou dessa turma (Ramos Sales, 1994).

Para Canetti (1995), o poder, em seus estágios mais profundos e animais, é antes força. O poder do homem que se esconde, ao se revelar pela captura, evidencia as ações da força, que é quase sempre percebida como aproximação ao estado do animal. Seja mesmo como nós tamo: seguro pelos homens. Nós tamo aqui, ali, dizemos pelo juiz, pela autoridade. Dizer: ‚Ali t~o seguro‛. As vezes, tem um dia, pela aquela ignorância, loucura... ‚Ah! sabe de uma coisa? Hoje o juiz não manda minha liberdade. Eu vou dar um jeito, eu vou sair na tara, vou arrebentar aqui, vou sair‛. ‚Deixe o homem, ele tá seguro pela venta, deixa ele.’ Mas num dado momento, pode alguém se rebelar porque família lá for,a passando necessidade, ele não tem como fazer aqui prá mandar prá família (AVS, 1992)5.

Um boi argolado é aquele em que é preciso a dor para que seja domado. A sensibilidade das ventas faz com que, a mais leve pressão no aro, subjugue o animal. O transgressor aprisionado se submete face a lei não só pelas prováveis dores, como também pelo tempo de aprisionamento que lhe pode ser imputado. Ao poder estabelecido pela lei, só a força do homem-animal para enfrentálo. Que o homem prá perder a idéia diz que é cinco minutos. O sangue agitou, já perdeu, quando ele vai pensar já é tarde. Se ele puder, ele pega o policial de unha, de dente, na força, ele não tá vendo aquilo. Não é cora5

AVS, Interno da Casa de Detenção de V. da Conquista, 1992.

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gem, é o sangue que agitou, é estupidez, é igual que nem laçar um bicho pagão ai no pasto. Um criminoso tá aguardando, espera de chegar a policia, da voz de prisão ele, prender. Eu acho que um homem lá, entrincheirado, esperar quatro, cinco, sabendo que vai morrer. Ele fala: ‚Bom, eu já tô na perdedeira, mesmo, agora leva o que for. O que Deus dá, aqui nós come‛. Ai vai trocar tiro com a policia (AVS, 1992).

A escrita de si leva a escolher por si mesmo e voluntariamente entre coisas heterogêneas: o texto que se acredita e se considera como verdade, o que afirma, o conveniente no que prescreve, o que é útil nas circunstâncias em que se encontra. É um exercício possível, que colabora para que se tenha mais condição de perceber muita coisa que foi dita e que pela tradição se considera verdade, com o fazer diário que se modifica de acordo com os momentos e as possibilidades. Uns presos me chamaram e perguntaram porque eu não me torno o ‚xerife‛ do presídio. Para quem não sabe, xerife é o cara que comanda a cadeia e quem não obedece leva uns trancos. Falei que não seria e se alguém tentasse ser, iria se ver comigo. Todos nós somos presos e ninguém é melhor que ninguém, não gosto de xerifes, e aqui é um minipresídio. Existem alguns colegas que chegaram hoje, que são novos na cadeia, que ainda estão muitos nervosos, e não entraram no clima ainda, mas isto passa em poucas semanas e todos ficam mais calmos. Uns caras estão falando menos comigo, outros estão falando. O problema é que todos para mim são iguais, são presos como eu e alguns não aceitam o fato de eu, ‚SALES BRAWN‛, falar com qualquer um que se dirige a mim, mas logo eles entenderão que todos nós somos presos iguais e assim também com quem não é preso. As mudanças acontecem em todas as direções, com todos nós, e a todo o momento. É sempre bom mudar, e aprender com essas mudanças. Assim, estou aprendendo onde estou, ou seja, assim estou aprendendo na ‚CADEIA‛ e com a vida (Ramos Sales, 1994).

A escrita de si atenua os perigos da solidão, pois o fato de se obrigar a escrever desempenha o papel do companheiro. Escrever é ver e ouvir as figuras de uma história (ações) e uma geografia (espaço, local, tempo e local de ação) que é constantemente reinventada. Ir além das regras do jogo é poder exercer pequenos poderes sobre a exterioridade, onde se possa externar um querer próprio, num espaço onde fragmentos ou materiais linguísticos são tratados, usinados, segundo métodos explicáveis a produzir uma ordem num código da promoção sócio-econômica. ‚A escrita desdobra-se como um jogo que vai infalivelmente para além de suas regras, desse modo {s extravasando‛ (FOUCAULT, 1992, p. 35).

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Vivo só em minha cela olhando a grade de ferro a minha frente. Tenho que acordar, tomar café, banho, jantar, tudo com hora marcada pelas normas do presídio. Esta é a realidade, uma realidade dura, de ferro, e que vejo de frente, com a cabeça erguida, como homem que sou, consciente do que acontece comigo, apesar de preocupar-me o mínimo possível com esta real realidade, que pode ser dura o quanto for, não será superior a minha força de vontade, minha fé que não remove montanhas, mas está dentro de mim e quem sabe, poderá mover uma agulha, um dia. Já será alguma coisa, aqui. Existe na cadeia uma frase, que passaram para mim quando fui preso. E fiquei dezesseis meses preso, numa cela suja, com ratos e baratas em meu rosto. Dormia no chão, em volta de camas e com oito ou doze pessoas, em uma pequena cela. É, mas isto é outra realidade, ou melhor, foi uma realidade para mim que senti na pele, e como tudo passa, aquela realidade passou e agora estou em outra (Ramos Sales, 1994).

Foucault (1992) e Deleuze (1997) consideravam como atos revolucionários o fato das pessoas assumirem a autoria de suas caminhadas e falarem por si próprias, porque elas sabem perfeitamente e dizem muito bem o que desejam. O poder vem se modificando, adquirindo novas facetas, estabelecendo redes ora visíveis, ora invisíveis e Foucault (1992) enfoca os caminhos do poder que se espraia numa rede de artérias, veias e capilares, disperso em tiranias grandes e pequenas que se aproximam da tirania planetária. As paixões humanas por pessoas, objetos, crenças, costumes, propriedades, ideologias, podem estar, eivadas de convicções e fé inabaláveis. Aqueles que se entregam ao que lhes parece razão de vida tendem a tornarem-se cegos, surdos, mudos e inimigos dos que discordam de seus objetivos. São capazes dos atos mais insensatos contra si mesmos e contra todos que se interpuserem frente às escolhas feitas. É um poder interno e invisível que comanda a vontade, subjuga a razão e a emoção. A soma das vozes, dos prisioneiros, quer escritas, ou narradas, evidencia um discurso em que as palavras e o que elas significam atendem a procedimentos que visam à defesa, ao consolo, à agressão, ao convencimento, à inclusão. São estratégias, em práticas discursivas, cujas autorias ficam diluídas por todas as interdições que se apresentam aos discursos, principalmente, quando procedem dos que são vistos como inimigos. A escrita do prisioneiro faz parte do discurso que lhe é possível proferir na circunst}ncia vivida, mas ‚é aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar‛ (FOUCAULT, 1996a, p. 10). A prática da escrita assegura aos participantes do programa desenvoltura no processo redacional, ampliação do vocabulário, percepções do cotidiano mais aguçadas, e muita sensibilidade nas informações que expressam 98 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

em seus textos. Para desenvolver este trabalho é necessário visitar presídios aprender a escutar; incentivar o uso do discurso livre, criativo, dissociado das causas de sua situação carcerária, estimular a leitura e a produção de textos escritos; fornecer o material para a escrita; digitar o texto, ler e proceder à correção ortográfica; entregar ao prisioneiro o texto corrigido, para a revisão do autor; reproduzir o texto em máquinas de reprografia de boa qualidade; organizar o lançamento do livro; propiciar condições para que o os livros sejam divulgados; reconhecer que este é um trabalho contínuo. E assim é possível divulgar vozes que de maneiras variadas estão silenciadas na sociedade e os acontecimentos diversos são preservados e a memória social do povo tem o referendo dos sentimentos e emoções, de quem vive a vida, na dura luta do dia a dia. E assim, aprendo eu, aprende você, todos nós aprendemos a ver por dentro, a ler o outro, a reescrever a vida. Algumas imagens, lembranças e vivências foram se somando a outras e a preocupação que tenho está centrada nos pastores de rebanhos terrenos, as autoridades políticas, judiciárias, militares, religiosas, intelectuais, científicas e os comandantes do dinheiro que mandam e desmandam em quase todos, que ditam normas, e justificam propósitos pela posse provisória de palavraspoderes, que os qualificam. Nas prisões, não se encontram os que os combatem e, sim, muitos pobres em quem o exercício dos saberes todos se junta para a aplicação de medidas-castigo. Também se encontram os que desejam disputar o usufruto dos mesmos poderes que o dinheiro vem conferindo. As prisões evidenciam, a cada dia, que as leis não são iguais para todos. A PRISÃO Rosieles Ramos Salles A prisão! Que tem a prisão? Presos ou não? Não, pois uma cela, jamais será uma prisão. Então que são esses muros, paredes, grades e portas de ferro? Ué! são muros, paredes feitas de cimento, grades e portas de ferro, feitos de ferro. E isto é ou não uma prisão? Ora bolas! Já falei que são apenas uma construção e não uma prisão. Existem homens que estão na prisão, mas estão em todas as partes, dentro ou fora da construção. Estão na prisão do espírito, na prisão do coração. Esta é uma verdadeira prisão, sem muros nem grades

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e mais forte que qualquer construção, pois não é feita pelo homem, e sim pelo coração. A prisão de um espírito, a prisão da solidão, solidão de um grão de areia, em um deserto onde só existe areia. Mesmo fazendo parte do todo, não consegue livrar-se da prisão, da prisão que não é de grades, de muros e que tem a perfeição da prisão feita pelo espírito, junto ao coração. Pois os muros, as grades, como já falei são apenas simples construção (Sales, 1994).

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FORMAS KAFKIANAS EM ROMANCES QUEBEQUENSES E BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS Licia Soares de Souza1 O adjetivo kafkaniano se tornou conhecido, a partir das obras do escritor tcheco de expressão alemã, mas ele remete a situações de ordem geral relativas à presença arbitrária do poder e nas quais a ordem jurídica é tão absurda que se conduz tirânica e autoritariamente por meio da própria Lei. As obras de Kafka começaram a ser traduzidas, como projeto editorial, a partir do AI-5, nos anos 1960, quando se percebeu que essas obras poderiam refletir o embrutecimento progressivo das forças repressoras do governo militar (BRITO, 2007). Nos romances que analisamos, aparecem duas vezes referências explícitas a situações kafkanianas. Uma está no romance quebequense de Marie Gagnon, Les étoiles jumelles, cuja protagonista erra pelas ruas de uma Montreal ‚dura e sórdida‛, consumindo heroina, e, ao ser levada ao Centro de Terapia Nuit et Jour, fica assustada com os mecanismos disciplinares muito rígidos e insensíveis que, segundo ela, mais traumatizam do que curam uma dependência física e moral diante das drogas. A outra referência encontra-se no romance brasileiro Elite da Tropa, quando o oficial narrador da primeira parte Diário de guerra descreve as metamorfoses que ocorrem na aparência e comportamento de bandidos pegos pelo BOPE. Estes, tais quais Gregor Samsa, protagonista de A metamorfose, que vira barata, tornam-se um monstro de aparência repugnante — ‚narinas repletas de pólvora‛ (SOARES, BATISTA, PIMENTEL, p. 46), mas de comportamento infantil, ‚chamando pela m~e‛. Nesse }mbito, a matriz liter|ria de Kafka conduz à temática do absurdo de um mundo no qual o indivíduo pode ser um nada insignificante, cuja condição humana é rebaixada em sua transformação em animal, ao mesmo tempo repugnante e indefeso diante dos processos disciplinares. E é preciso notar que, em Elite de Tropa, o narrador da primeira parte, através da função metalinguística, tematiza as dificuldades de se narrar a problem|tica intervenç~o do BOPE, num ‚Rio de Janeiro em guerra‛, levando a reflexões sobre a fugaz coerência dos sujeitos, tanto dos militares como dos bandidos, que iniciam uma violenta peregrinação pelos becos labirínticos das favelas. A dizibilidade dos enfrentamentos no palco da violência exige necessariamente ‚palavras menos sóbrias e elegantes‛, mas o narrador se identi1

Docente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Pesquisadora do CNPq; Grupos de Pesquisa: Heroísmo e violência na literatura e no cinema contemporâneos (Coordenadora); Dicionário de personagens afro-brasileiros (Coordenadora); Literatura comparada Brasil/Québec; Traduções intersemióticas; endereço eletrônico: [email protected].

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fica como estudante da PUC, leitor de Foucault, Kafka, Shakespeare, e outros, como se pretendesse organizar as referências contextuais, segundo a perspectiva de um antagonismo de classes, cultas e incultas, ou mesmo da velha dialética euclidiana entre civilização e barbárie. A MICROFÍSICA DO PODER Antes de começarmos a justificar as coerências estruturais entre os romances quebequenses e brasileiros que escolhemos para análise, torna-se ainda fundamental observarmos certas analogias temáticas entre as narrativas do escritor tcheco e o pensamento do filósofo francês Michel Foucault. Na obra organizada por Edson Passetti (2004), Kafka/Foucault, sem medos, mostra-se que Kafka sempre parte de um acontecimento arbitrário e raro para percorrer outras séries de eventos que a ele parecem estar conectadas, na busca de sua compreensão, isto é, procurando compreender a engrenagem que determina a configuração dos eventos que permitem a emergência desse acontecimento arbitrário. Os livros de Kafka descrevem o processo de uma pesquisa; eles ilustram o que Foucault chamou de panoptismo da sociedade moderna, na qual o poder já não pressupõe um centro, um olhar de cima, mas se espraia por todo o corpo social onde uma pirâmide de olhares é organizada. Em Vigiar e punir (2007), os temas fundamentais são as diversas modalidades de aprisonamento, de assujeitamento e de normalização postos em prática pelos diversos poderes existentes na sociedade disciplinar. A analítica do poder ressalta seu aspecto produtivo, ou seja, o fato de que os saberes, produzidos nessa sociedade, geram subjetividades predispostas ao espírito de rebanho. A disciplina não é localizável em apenas uma instituição. Ela representa um tipo de poder ou uma modalidade para exercê-lo comportando todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos e de níveis de aplicação. Ela é uma física ou uma anatomia do poder, uma tecnologia. Assim sendo, ela é um conjunto de técnicas, de tal forma que o poder disciplinar se espraia na sociedade, assumindo formas diferentes nos mais diferentes locais onde possam conviver pessoas agrupadas: escolas, reformatórios, oficinas, fábricas, manicômios, escolas, família, etc. De uma modalidade periférica de punição, a prisão passa a ser o recurso principal para a execução dos castigos sem que exista uma clara prescrição por parte dos juristas reformadores. A prisão, diz Foucault, que devia ser um instrumento educativo como a escola, a caserna ou o hospital, se configurou como um fracasso em seus objetivos de modificar e recuperar os desviados. No entanto, tal constatação não motivou o abandono da prisão, tendo se tornado, ao 102 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

contrário, o motor inicial de um ciclo até hoje inconcluso de projetos de reforma e aperfeiçoamento. A prisão se perpetua como oficina de indivíduos cada vez mais desviados, confrontados a alteridades amedrontadoras, em uma estrutura social não afeita a qualquer projeto humanista. Vários estudiosos já constataram como o estilo kafkiano desconcerta a narrativa, provocando os choques temáticos entre poder e vida cotidiana que imprimem a marca a seu realismo pós-metafísico. É como se o tcheco, embora tendo vivido num tempo anterior, fizesse uma aplicação do pensamento foucaultiano, mostrando em detalhes realistas (A colônia penal) a transição da sociedade da soberania para a sociedade disciplinar, dos momentos fundamentais que marcaram a passagem do suplício público, vingança do rei, para o castigo enclausurado, como uma revanche da sociedade. Em O processo, o protagonista se vê diante de um modo de ser do poder, como relações de forças, não mais associadas ao poder de um soberano, mas como uma teia de relações de vigia e punição, de acordo com o modelo panóptico, não permitindo a identificação clara da natureza desse poder nem de suas estratégias. Dessa forma, a obra kafkaniana não oferece nenhuma coerência linear, desestabilizando o conforto de legitimar determinadas crenças com suas formações discursivas. E, aqui, mais uma vez, a aproximação com o filósofo francês pode ser visada: o discurso literário de Kafka vai constituindo seus sujeitos sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crença, e também a maneira como as relações de poder e a luta de poder moldam e transformam as práticas discursivas. Várias formações discursivas se entrecruzam espelhando uma gama diversa de aspectos de forma e significado nas articulações sempre dialógicas entre discurso literário e discurso jurídico. O KAFKANIANO EM ROMANCES QUEBEQUENSES Marie-Pierre Bouchard (2005), em uma dissertação de mestrado sobre

Le souffle de l’Harmattan de Sylvain Trudel, observa que, a partir dos anos 1980, os personagens infantis2 da literatura quebequense não têm a mesma natureza contestadora daqueles dos romances nacionais da Revolução Tranquila. As novas crianças, cada vez mais afastadas das coletividades homogêneas da sociedade quebequense da gema, enfrentam a sociedade da mestiçagem e da heterogeneidade. Na chamada cultura ‚post-réferendaire‛, esses personagens

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Inúmeros estudos abordam a questão da presença de personagens infantis na literatura e no cinema quebequenses, como signo de incapacidade do Québec em se tornar uma nação adulta, e emancipada, evidentemente.

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infantis evoluem em uma sociedade fragmentada, sem grandes referências, a não ser aquela do êxito social baseado nos valores do dinheiro e do lucro. Em Le Souffle de l’Harmattan, o menino quebequense Hughes se sente desenraizado quando descobre que é uma criança adotada e se afasta voluntariamente de seu meio de origem. Ele encontra então Habéké, uma criança africana, também desenraizado, com quem ele traça linhas de ação para formar um mundo próprio deles, onde acabarão por cometer alguns delitos, como roubos e o rapto de uma garota. Habéké, que assume sozinho a responsabilidade do rapto de Nathalie, é levado para um reformatório de onde escreve para Hughes a infelicidade de se encontrar ‚dans um monde sauvage où tous rêvaient de le tuer, de lui trancher sa tête de nègre et de lui arracher le coeur tout palpitant pour voir s’il pissait du sang noir‛ (TRUDEL, 2001, p. 228). Mas a delinquência e a violência juvenis não são restritas aos meios imigrantes e Bouchard assinala que o deslocamento, como forma de afastamento do centro, é praticada por vários jovens quebequenses desencantados com o mundo do consumo. Outros romances abordam essa temática, como Vamp de Christian Mistral, que fala de uma geração vamp, Les étoiles jumelles et Emma des rues de Marie Gagnon, discorrendo sobre o uso das drogas, e Squeegee, de Henri Lamoureux, mostrando a dura vida dos itinerantes, aqueles que são abandonados pela sociedade. Mas, essa ficção que Bertrand Gervais classifica como ‚da linha interrompida‛ no Québec, mostra bem mais o trágico da condição humana que se esfacela em violências, crimes e cadáveres no seu romance Les Failles de l’Amérique. O protagonista é um quebequense, Thomas, que vai fazer um doutorado na Universidade Santa Cruz da Califórnia que se encontra exatamente sobre a falha de San Andreas. Esta anomalia geológica parece refletir o desequilíbrio de uma sociedade da desmesura dominada pela técnica onde ‚[...] le désir pour la machine est tel qu’il nous fait oublier qu’ils nous violent‛ (GERVAIS, 2005, p. 279). Tom resolve fazer sua tese sobre O Modulor, um sistema de proporções elaborado e largamente utilizado pelo franco-suíço Le Corbusier, no fim dos anos 1940, que deve mostrar o papel que desempenha a arquitetura na vida das cidades modernas. Uma urbanização feita de blocos de cimento e de máquinas, preferida pelos engenheiros e empresários, como signo de poder, torna-se incapaz de produzir uma cidade humana e harmônica. Esta urbanização, segundo o autor, instaura uma espécie de labirinto vertical, ‚tours affreuses et sans }me‛, submisso aos lucros da lógica de mercado, estrutura na qual os humanos perdem o fio da sociabilidade. A ponta do fio da sociabilidade se 104 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

encontra na parte inferior das torres de concreto, nas alamedas e calçadas, que a urbanização inconsequente aniquila. A incoerência das cidades, um dédalo onde todos se perdem, é responsável pela bestialidade dos matadores loucos e em série, que se proliferam tanto na América do Norte. Estes representam anomalias monstruosas que desmembram corpos em série, em sua própria cadeia de montagem, tendo em vista que a sociedade de consumo não pode mais funcionar sem seus mecanismos de produção em série, mesmo se são cadeias de matança e esfoladura. Dessa forma, à desordem humana instalada, nas torres de concreto, corresponde a desordem das ruas e das estradas, onde se escondem os excluídos, capazes de inverter o esquema mítico, tornando-se Minotauros que despistam as enquetes policiais, instalando o caos, pelo medo que as pessoas passam a ter em frequentar os lugares públicos, que eles controlam de maneira própria a todo serial killer (GERVAIS, 2008). A obra de Marie Gagnon merece um destaque, à medida que apresenta uma sintagmática da mobilidade, animando um programa narrativo capaz de relacionar os movimentos de deriva das três vozes constitutivas de uma ficção da linha interrompida, particularmente vinculada às formações sociais do Québec contempor}neo. Marie Gagnon é classificada como autora de ‚livros autobiogr|ficos sobre a deriva‛3 pelo fato de ter vivido realmente a experiência da droga (heroína) e da itinerância nas ruas de Montreal. Tendo sobrevivido às violências inerentes à errância nas linhas tortuosas das ruas, Gagnon conseguiu terminar seus estudos em Letras, na UQAM, e concluiu um mestrado em criação literária. Dessa forma, suas reflexões sobre a vivência de deriva amplia-se significativamente para a temática da produção de uma escrita capaz de evidenciar os deslocamentos provocados pela palavra literária que segue percursos radicalmente opostos aos sistemas codificados sobre as relações de alteridade. O enfrentamento entre as três vozes fundamentais na elaboração de um programa narrativo de linhas interrompidas — a voz autoral, a narrativa, e a do personagem — manifesta-se tanto na dimensão espacial da deriva, como na dimensão íntima e ontológica que a ela se associa. O personagem Emma, em convergência com a autora Marie (única autora do Québec a conhecer a vida do cárcere), encena os deslocamentos dos viciados de droga, juntamente com seu companheiro Prince, tornando-se uma ladra de livrarias para manter o vício, até ser levada para um centro de terapia. Neste centro, reina uma diretora 3

Descrição no site Amazon: http://www.amazon.ca/%C3%A9toiles-jumelles-Marie-Gagnon/ dp/2890058433.

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diabólica, Diane, que se satisfaz em humilhar os residentes. Ema se sente assim mergulhada num clima kafkaniano, onde ‚les loups se dévorent entre eux alors que la louve salive‛, com sua parte err|tica de um eu n~o assimil|vel que entra em combate contra vários monstros, sua diretora e seus colegas de infortúnio. Por outro lado, Emma experimenta uma confusão interior crescente, refletindo sobre as condições que a levaram a mudar seu destino em função dessa lógica abrupta e inesperada da deriva. É assim que a convergência da voz do personagem com a voz do narrador,mesmo que ele esteja em focalização zero, conduz ao processo de definição de uma voz de síntese cuja construção narrativa se encontra intimamente ligada à experiência com o diverso, com os vários tipos de personagem que vivem diferentes formas de deriva, nos variados traçados do labirinto da clínica onde são internados, no qual opera uma espécie de poder disciplinar de tipo panóptico. Emma/Marie chegam, assim, com essa lógica do esquecimento labiríntico, apta a desconstruir núcleos discursivos estabelecidos sobre a vivência dos itinerantes drogados e os tratamentos de cura que lhe são impostos, a se interrogar, em razão da situação de deriva em que se encontram, sobre suas posições num espaço social dito normal e sobre suas relações com a produção da palavra com a qual podem exprimir suas perdas referenciais em um mundo de precariedade. Para roubar, Emma se repete uma frase de Jean Genette, de seu Journal du voleur: Le rouge de ma honte s’est coloré du pourpre de mon orgueil (GAGNON, 2005, p. 188). Emma experimenta assim uma espécie de angústia e de desgosto diante de sua existência, preferindo deambular pelas ruas, o que permite a emergência de blocos discursivos de reflexão, como núcleos ativos desse tipo de ficção kafkaniana que avalia os problemas inquietantes que a sociedade de consumo, com seus mecanismos de automaçao e a cultura de massa que o sustenta, provoca. A indissociabilidade entre os seres de deriva em um mundo precário e a sociedade estruturada na lógica neoliberal escreve a lei do mundo-labirinto, com suas técnicas disciplinares fracassadas, sobre a lei do tempo-lugar social articulado, e assiste ao surgimento de novas situações de perda de referências (l’oubli), relacionadas ao ritmo cada vez mais descompassado da sociedade de consumo. O KAFKIANO NOS ROMANCES BRASILEIROS No Brasil, para mostrar a arborescência do modelo político que fracassou, surge toda uma geração de escritores que põe em cena um realismo chamado de brutal (CÂNDIDO, 1989), capaz de focalizar os territórios da guerrilha de favela que descentra os discursos isntitucionais. A guerra urbana 106 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

reflete ainda o enfrentamento de milícias e guerrilheiros que, desta vez, não se apresentam imbuídos de ideologias políticas codificadas, mas representam frequentemente os líderes messiãnicos da comunidade. A formaç~o de tal ‚governo paralelo‛ que lidera a favela tem sido muitodebatida em artigos, simpósios, livros e mídia, mas a verdade é que as comunidades de favelas vivem, ou sob o jugo dos traficantes, ou sob o jugo das milícias, compostas por membros do estado e agentes da segurança pública que expulsam o tráfico das comunidades, mas depois passam a vender segurança e explorar serviços como TV a cabo e transporte alternativo. Em Cidade de Deus, por exemplo, a passagem de favela a neofavela pode ser considerada como um trecho literário emblemático da construção do corpo grotesco da maioria das cidades brasileiras, composto de vários indivíduos que desterritorializam para se reterritorializar em um novo local arranjado para eles, ou invadido por eles. Os novos moradores levaram lixos, latas, cães vira-latas, exus e pombagiras em guias intocáveis, dias para se ir à luta, soco antigo para ser descontado, resto de raivas de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios de enchentes, revólveres, frango de despacho, samba de enredo e sincopado, jogo do bicho, raiva, traição, mortes... (LINS, 1997, p. 16).

Eis que a reterritorialização da neofavela se efetua, a partir da errância dos moradores, que já vêm de um universo deslocado e móvel, dominado por lutas e mortes. Essa errância, que transporta os resquícios de uma sociedade precária, tem seu papel ao abrir o ciclo de vida que desenrolar-se-á no novo território, onde cada um viverá sua violenta peregrinação, passando do trabalho informal ao crime ligado ao tráfico de drogas, responsável pela destituição subjetiva que só termina na morte. Nesse âmbito, uma equação cultural complexa, atravessada por vários vetores da força relacionados à organização do aparelho técnico-disciplinar, é descrita quando da prisão do personagem Cabelo Calmo, membro da quadrilha de Sandro cenoura, pego em flagrante assaltando um casal. Tal equação revela que a prisão, instrumento de gestão educativa, está mais para produzir a carreira do crime do que para corrigir e educar os condenados. Nos dias atuais, os objetivos reais da prisão, com a re-organização da delinquência, derrotaram os objetivos ideológicos referentes à correção vinculada à produção de sujeitos dóceis e úteis. Cabelo Calmo foi preso no dia em que completara dezoito anos; depois de julgado e condenado, recebeu pena de cinco anos pelos crimes que cometeu e pelos que foi obrigado a assumir diante de torturas. A construção narrativa do sujeito detento, através do ‚por em cena‛ do feixe de relações desenvolvidas no cárcere, aponta para a série de dispositivos da tecnologia de produção do

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sujeito marginal. O personagem chegou ao complexo penitenciário Lemos de Brito ‚portando-se de maneira que fazia jus ao seu vulgo, sempre quieto, de poucas palavras‛ (LINS, 2002, p. 230), permanecendo em seu cubículo por uma semana. Foi acordado, no décimo dia, por um interno que o levou até outro detento, cognominado Xerife, que o batizou de Bernadete, deu-lhe surra e, com seu corpo ainda ensanguentado, o seviciou. Calmo entendeu, então, que não sobreviveria no c|rcere, sem se tornar ‚mulher de malandro‛, pois havia toda uma quadrilha na Galeria que fazia dos internos, seus parceiros sexuais. A vida de mulher de Xerife lhe proporcionava boa comida, lençol, cocaína, travesseiro, cobertores, bebidas, maconha e água gelada. Nos dias de visita, tinha o direito de vestir-se como homem para receber seus familiares. No entanto, na rotina do cárcere, andava de calcinha vermelha, a cor predileta do Xerife, era obrigado a passar batom e a colocar brinco (LINS, 2002, p. 232).

Essa encenação de um sujeito esfacelado, produzido no cárcere pelas técnicas de aprisionamento que promovem ralações diferenciadas dele para consigo mesmo e para com os outros, é apresentada pela focalização delegada em que o narrador lhe passa o ponto de vista para que observe e avalie o mundo em que está inserido. Calmo passa a ouvir as várias histórias de outros internos que enlouqueceram após terem sido surrados ao resistir aos estupros das quadrilhas e concluía que ‚a hora era estar vivo gozando de juízo perfeito‛ (LINS, 2002, p. 232). Mas era acometido do medo de ficar louco também, observando outros companheiros com os corpos tomados pela lepra, tuberculose e doenças venéreas. Sentia ódio dos guardas que traziam drogas para alguns presos traficarem, cobrando preços absurdos, além das comissões sobre as vendas. Quem não tinha dinheiro para pagar, poderia ser pego em flagrante, por esses mesmos guardas, e ver sua pena duplicada. O medo era tanto que ‚a morte matada e morrida montava guarda inclusive em seus sonhos‛ (LINS, 2002, p. 233). Finalmente, em liberdade, quando volta à favela, sua única preocupação é a de saber se correm rumores sobre o fato de que foi obrigado a assumir a identidade de Bernadete, e respira aliviado quando constata que ninguém ficou sabendo. Mas como Calmo se torna uma pessoa mais dura e revoltada com a vida, vira bandido de alta periculosidade e, numa volta à cadeia, é assassinado pelos inimigos que o reconhecem. De tudo isso resulta a construção narrativa de um sujeito, enquanto produto do encarceramento como técnica disciplinar. Um efeito de sobrevivência, sob a tecnologia prisional, expressa-se num certo regulamento que deve ser compreendido pelo detento, sob pena de consequências ligadas aos castigos corporais e até à morte. Para sobreviver, é preciso 108 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

aceitar ocupar uma certa posição na organização comunitária de determinadas galerias, relativas as suas condições econômicas (gente para trazer dinheiro), seu porte físico, à atitude servil ou de liderança, ou à quadrilha a qual pertencia antes de vir. É assim que Zé Miúdo, o traficante mais poderoso de Cidade de Deus, sobrevive ao presídio, pelo envio que faz seu irmão de cinquenta mil por semana para ser distribuído a outros detentos e aos guardas. Dessa forma, a prisão, como produtora de subjetividades, antes de modelar o sujeito para o convívio social, o redireciona para práticas criminosas cada vez mais complexas. A figura do carrasco cede espaço a uma tropa de especialistas: guardas, psicólogos, psiquiatras, capelães e educadores. No entanto, os cárceres contemporâneos imiscuem-se em um sistema geral de penalidades, por meio das fraudes e corrupções, e permitem a emergência de novas correlações de força da sociedade disciplinar. Como diz Foucault, a prisão é um fracasso glorioso. Os autores do novo realismo brutal expõem, nesse sentido, o jogo de influências que se desdobra na lógica da sobrevivência na prisão. Como instauradores de discursividades inerentes à sociedade disciplinar contemporânea, eles mostram as transformações do sujeito moderno, as impotências desse mesmo sujeito frente à lei e ao poder, o qual se desloca do centro do Estado de direito para se espraiar no interior mesmo da comunidade prisional. A dissolução do sujeito, nesse espaço, e suas possibilidades de ação nesse panorama de opressão é o que pode ser designado realmente, não sem propriedade, de kafkiano. Mais significativo ainda como posição de sujeito numa engrenagem de poder é o caso do oficial do BOPE que narra a primeira parte de Elite da tropa como já assinalamos. Esse sujeito descentrado, que lê inclusive Kafka, opera com a ideia de uma precariedade constante das narrativas que o atravessam. Com o ponto de vista de um policial, ele discorre sobre uma tecnologia disciplinar-prisional aplicada às presas da polícia de elite, que justifica toda forma de castigo corporal. O assunto é violência. Quer dizer, a violência que a gente comete. Alguns chamam de tortura. Eu não gosto da palavra, porque ela carrega uma conotação diabólica [...] O que eu quero dizer é que não me envergonho de não me envergonhar de ter dado muita porrada em vagabundo. [...] Primeiro, porque só bati em vagabundo, só matei vagabundo [...] Tenho minha alma limpa e tenho a consciência leve, porque só executei bandido. E, para mim, bandido é bandido, seja ele moleque ou homem feito [...] (SOARES, BATISTA, PIMENTEL, 2006, p. 35). O verbo é trabalhar. Quando o subordinado chama o comandante pelo rádio e pergunta, ‚chefe posso trabalhar o meliante?‛, est| pedindo autorização para fazê-lo cantar, para fazê-lo contar o que sabe. Da mesma

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forma que o governador autoriza o secretário de segurança a autorizar o policial quando lhe diz: ‚Faça o que for necess|rio para resolver o problema‛. O governador dorme o sono dos justos; o secret|rio dorme em berço esplêndido; e o soldado, lá na ponta. Suja as mãos de sangue (SOARES, BATISTA, PIMENTEL, 2006, p. 37).

Na explicação do sentido do assunto violência, ligado á tortura, o registro metalinguístico do oficial narrador caracteriza o poder disciplinar como um contradireito, secretado pela e dentro da lei. Sobretudo, a identidade narrativa expressa uma experiência de técnica disciplinar que implica na geração de posição de sujeito ‚bandido vagabundo‛, como indivíduo completamente fora da lei e, portanto, mais próxima da ideia de ‚monstro‛, sem alma, cujo corpo pode ser punido e executado. E, nesse sentido, torna-se significativo o relato do oficial revelando o funcionamento do chamado ‚arquipélago do c|rcere‛ com sua tecnologia de poder que vai sendo articulada pelas autoridades que descansam em suas casas. Nesse processo de autoescrita, atravessado do vetor metalinguístico, a ambiguidade se instala gerando a impressão de que o narrador constrói uma identidade abusiva, inscrita na moderna tecnologia de poder prisional, e se compraz em registrá-la, evocando as tarefas de que é capaz de executar. Assim, emergem as formações discursivas próprias aos sistemas punitivos modernos, indicando as variadas posições enunciativas daqueles que controlam a teia do poder. Torna-se interessante observar que a temática do tráfico e do uso das drogas, aliada aos excessos da sociedade de consumo, está presente nas duas séries literárias observadas. No Québec, surgem, cada vez mais, obras que abordam os ‚desviados‛, em busca de uma identidade individual ou social, perambulando pelas ruas, na parte inferior das torres de concreto que configuram o labirinto urbano. São seres que se metamorfoseiam em ‚desviados‛ animalescos, indo parar em entidades clínicas com estruturas aparentadas ao panóptico dos cárceres. Já no Brasil, as séries literárias contemplam a delinquência realmente gerada pelo comércio da droga, mostrando os males que afetam a formação de jovens que são levados aos reformatórios e cárceres. Haveria muito a dizer sobre essa temática complexa nas duas séries literárias. No momento, lembremos apenas que os escritores quebequenses e brasileiros são animados pela necessidade de desvendar as relações do literário com o mundo jurídico, afetado por uma espécie de poder arbitrário. Seus personagens fazem a experiência da delinquência, conduzidos pelo desenraizamento social, e fracassam quando inseridos em um ambiente punitivo que deveria ter a função de educar e renovar o individuo para a sociedade. Na maior parte dos 110 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

casos, eles desaparecem e os leitores acabam por ter a impressão de que não existe mais nenhuma solução de recuperação desses personagens marginalizados. REFERÊNCIAS BOUCHARD, Marie-Pierre. Le décentrement salutaire dans Le Souffle de L’Harmattan de Sylvain Trudel. Mémoire de maîtrise, UQAM, nov. 2005. BRITO, Eduardo Manuel de. Leituras políticas de obras de Franz Kafka na imprensa brasileira. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anterio res/edicao23/materia01/. Acesso: 23 abr. 2009. CÂNDIDO, Antônio. A nova narrativa. In: Idem. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2007 [1975]. GAGNON, Marie. Emma des rues. Montreal: VLB Éditeur, 2005. GERVAIS, Bertrand. Les Failles de l’Amérique. Montréal: XYZ, 2005. GERVAIS, Bertrand. Gazole. Montréal: XYZ, 2001. LAMOUREUX, Henri. Squeegee. Montreal: VLB Éditeur, 2003. LINS, Paulo. Cidade de Deus. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. PASSETTI, Edson. (Org.). Kafka/Foucault, sem medos. Cotia: Ateliê, 2004. RODRIGUES, Thiago. Uma mecânica da dor: Kafka-Foucault e o horror ao horror. In: PASSETTI, Edson. (Org.). Kafka/Foucault, sem medos. Cotia: Ateliê, 2004, p. 157-176. SOARES, Luis Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. SOUSA, Germana P. Représentation de la réalité dans le roman Cidade de Deus, de Paulo Lins. In: SOUZA, Licia Soares de; FISETTE, Jean. (Dir.). CD Échanges Québec/Brésil. Les savoirs en mouvement. Montreal, 2008. 1 CD-ROM. TRUDEL, Sylvain. Le souffle de L’Harmattan. Montréal: Éditions TYPO, 2001 [1986].

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A VIOLÊNCIA DA TECNOLOGIA EM 2001, UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO Lucas Moreira de Souza1 PRIMITIVISMO E TECNOLOGIA Analisando a relação e a semântica paradoxal dos fenômenos do primitivismo e da tecnologia, Carter Colwell (1991) identifica, na cultura norteamericana, uma ambivalência visível de significados envolvendo os termos. Ambos encontram-se dentro de uma dinâmica cultural que ora os liga ao sentimento de amor, ora os conecta aos sentimentos de ódio e de medo. Para examinar o jogo dual de significações do binômio primitivismo-tecnologia, o autor selecionou dois filmes emblemáticos do gênero da Ficção Científica. Segundo Colwell, Alien: o oitavo passageiro (1981) e Blade Runner: o caçador de andróides (1982), ambos dirigidos por Ridley Scott, tematizam essa conjunção de opostos a partir de personagens que reagem violentamente contra seus inimigos criando uma tensão ambígua entre primitivismo e tecnologia. De acordo com suas análises fílmicas, primitivismo estaria vinculado ao oprimido, ao socialmente baixo e ao selvagem, enquanto, em contraste, tecnologia seria um estímulo para manter a regra, a educação, superioridade social, o controle e o regulamento. Embora Colwell tenha apresentado um quadro de definições bastante rígido, o próprio pesquisador se contradiz no momento em que percebe que os dois fenômenos dividem, em ambos os filmes, adjetivos idênticos. Por isso, ele se questiona se o primitivismo é claramente maléfico ou se deve definir a tecnologia como um elemento benéfico para sociedades mais avançadas. Em Alien: o oitavo passageiro, essa ambivalência é representada por uma criatura alienígena, que demonstra uma espécie de ‚simpatia‛ para com a única tripulante do sexo feminino da tripulação espacial (interpretada pela atriz Sigourney Weaver), e em Blade Runner: o caçador de andróides, são os andróides da geração Nexus 6 que traduzem, em suas ações contraditórias, essa visão ambígua. Consoante Colwell, as atitudes violentas desses personagens tornam-se heroicamente ‚boas‛ na medida em que tanto o alienígena e o andróide matam pelo direito de viver rompendo com suas condições de escravos perseguidos. No duelo que ocorre dentro dessas narrativas fílmicas, é a tecnologia que assume, em determinado ponto, uma conotação negativa quando começa a ser utilizada como mecanismo de extermínio de uma outridade estranha e oprimida.

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Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia (UFBA); endereço eletrônico: [email protected].

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Apesar de Colwell não ter posto sob seu foco de análise o longa metragem 2001: uma odisséia no espaço, suas observações prévias a respeito do tema podem nos conduzir para o aprofundamento de tal discussão, uma vez que o filme dirigido por Stanley Kubrick reproduz a temática comum ao gênero da Ficção Científica: a inter-relação do alto e do baixo, do avançado e do primitivo, justificada por uma conduta científica ainda imperfeita e sujeita a erros. A narrativa fílmica da obra dirigida por Stanley Kubrick divide-se em dois tempos e espaços culturais distintos combinados pela intervenção de um corte elíptico que explicita a intenção do autor de criar uma sequência narrativa que cristaliza a coexistência de estruturas culturais diferentes (primitivo/avançado). Na primeira sequência, Kubrick monta um cenário de um passado ancestral aonde grupos diversos de hominídeos ou primatas convivem no meio de animais silvestres e se acolhem em cavidades rochosas. Com essa montagem da primeira sequência, o filme passa a comprovar a tese de culturalistas e antropólogos de que as relações de poder entre povos estão presentes em qualquer civilização, desde as mais antigas às mais evoluídas. Já neste estado inicial de civilização, observamos a disputa interna de poder entre integrantes do mesmo grupo e a disputa externa por espaço e por recursos naturais de sobrevivência entre grupos diferentes. Assim, a apropriação de recursos de um grupo de hominídeos para outro, cujos integrantes possuíam uma postura corporal mais ereta, foi mediada pela expressão da violência e suas técnicas de aperfeiçoamento. Já na segunda sequência do filme, a narrativa se desenrola em um universo extraterrestre com sondas espaciais e naves que têm o dever de abrigar cientistas e astronautas em suas tarefas de deslocamentos interplanetários. Harmonizado com a valsa de Strauss, os objetos de dentro e de fora das naves, que sofrem com a força da gravidade, se transformam em personagens de um ballet clássico. Essa segunda progressão narrativa trata de por em cena uma tripulação composta de cinco homens, sendo que apenas dois entram no dinamismo fictício. A nave espacial tem seu sistema de funcionamento confiado à inteligência artificial do computador Hall 9000, considerado como o ‚sexto membro‛ da tripulaç~o. Neste sentido, pode-se cogitar que o termo ‚sexto membro‛ indica uma maneira de humanizar a m|quina devido { inteligência avançada e sua servidão aos humanos. Como o próprio filme informa, Hall 9000 mimetiza uma série de atividades do cérebro humano com mais velocidade e confiabilidade. Desta forma, ele é visto como o ‚cérebro‛ e o ‚sistema nervoso da nave‛ com a funç~o de cooperar na tarefa denominada de Miss~o Júpiter. 114 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

Apesar de sua perfeição proveniente dessa geração de computadores, questiona-se se Hall 9000 poderia desenvolver emoções autênticas capazes de levá-lo a cometer erros ou dar informações falsas. Após ter detectado equivocadamente falhas na unidade, causas de uma futura e possível pane no sistema, seus operadores decidiram, em um diálogo de som forçosamente ocultado, realizar o desligamento de Hall 9000 a partir do corte de suas funções cerebrais. É durante a tarefa de resgate de um dos astronautas que o filme evoca uma temática central dos enredos do gênero FC, que é a revolta da criatura contra seu criador. Essa temática, inicialmente abordada por Mary Shelley em sua obra clássica Frankenstein (1818) onde a autora traça uma relação intertextual com o mito grego Prometeu, se reconfigura em um enredo apto a construir, no desenlace final, um embate discursivo entre forças opostas. Temendo o seu desligamento, o sistema computadorizado Hall 9000 extermina os outros três tripulantes que estavam em estado de hibernação e recusa a entrada de um outro tripulante às instalações da nave após ter retornado de uma operação de resgate. Neste caso, a revolta do computador contra seus operadores, que certa feita confiaram a segurança e o comando da tripulação à inteligência artificial, pode indicar a regressão imprevisível da máquina ao estado de animalidade encenado pelos primatas na primeira sequência narrativa do filme. Refletir desse modo significa que Kubrick não produziu imagens carregadas de efeitos especiais — o que concebeu ao filme um Oscar na categoria Melhores Efeitos Especiais — para enfeitiçar sensorialmente os espectadores, mas para retirá-los do nível sentimental e dirige-los para o nível intelectual e fazê-los refletir sobre o sentido, as sutilezas e as estranhezas das montagens. O SIGNIFICADO DAS ELIPSES É sabido que as imagens, quando não conjugadas com a expressão verbal, têm um forte poder de sugerir aos seus receptores uma gama de significados culturalmente vinculados a elas. Isso ocorre por que a própria cultura explora a infinita dimensão do espaço semiótico, através dos diversos meios de comunicação, para instituir significados a uma série de objetos específicos. Com o cinema não ocorreu diferente. Produzido sob a lógica do capitalismo tardio, movimento que tende a colonizar as linguagens artísticas com ideologias políticas, o cinema apresenta-se como uma máquina potente e eficaz de disseminação de ideologias e de impor comportamentos e condutas sociais ao seu público receptor a partir dos discursos que transitam entre os diálogos, fenômenos sonoros, metáforas, símbolos e, principalmente, das elipses. De acordo com Marcel Martin (1985), um dos objetivos fundamentais do cinema consiste na

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intensiva atividade de sugerir significados mediante operação denominada de decupagem, tendo a elipse como seu efeito principal. Na óptica de Martin, a decupagem é expressa por meio da supressão de todos os tempos fracos ou inúteis da ação com a intenção de estabilizar o espectador no nível virtual de compreensão em relação a sínteses de imagens. Segundo ainda esse estudioso, a elipse, arte de insinuar ideias e entendimentos através da omissão de informações e fatos e da ocultação de tempos e espaços, tem sua estrutura motivada por razões dramáticas e pode ser classificada como objetivas e subjetivas. Por questões de enredo, as montagens elípticas servem justamente para fazer com que o espectador descarte uma série de mensagens que poderiam antecipar uma resposta lógica para as ações finais. Esses tipos de elipses são comumente efetuadas nos filmes de intriga policial para dissimilar, a princípio, a identidade do assassino e suscitar no espectador um efeito de ansiedade e de espera que chamamos de suspense. As elipses de caráter objetivo deixam claro para o espectador que alguma coisa foi dissimilada, e as chamadas de subjetivas ocorrem quando o monólogo interior de uma personagem, por exemplo, é transferido para o primeiro plano sonoro, enquanto o som do ambiente externo torna-se um tanto abafado, em segundo plano. Existem ainda as elipses de conteúdo, motivadas por razões de censura social, que dissimulam ao espectador a morte, a dor violenta, os ferimentos horríveis, as cenas de tortura ou assassinato, substituindo-as de várias formas. Pensando em realizar a montagem a partir da elipse social, o diretor tende a intercambiar o conteúdo social eclipsado por um plano de detalhe semi-simbólico que evoca o que se passa fora da cena. Por isso, é importante atentar-se ao fato de que o filme 2001: uma odisséia no espaço foi lançado no ano de 1968, período em que os Estados Unidos assolavam o Vietnam com o câncer da guerra. Sabe-se que após o assassinato de John Kennedy, Lyndon Johnson, seu sucessor presidencial, seduz o povo norte-americano para conseguir apoio para sua política no Vietnam. De março do ano de 1965 a outubro de 1968, uma operação chamada de Rolling Thunder, que tinha o objetivo de descarregar uma tonelada de mísseis, foguetes e bombas sobre o norte do Vietnam, foi capitaneada pelo discurso proferido por Curtis Lemay, chefe do estado-maior da força aérea na época. No discurso, ele dizia: ‚Vamos bombarde|-los até fazê-los regredir à Idade da Pedra‛. Será que a imagem que esse discurso transmite influenciou Kubrick a transportar sua crítica à violência humana encarnada na tecnologia militar para um passado primitivo em que hominídeos se digladiam utilizando ossadas como arma de guerra em uma atmosfera desértica e rochosa? Será que, por questões de censura política, Kubrick evitou a denuncia direta aos horrores da guerra do 116 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

Vietnam efetuando uma elipse da história imediata no ínterim entre passado e futuro? Para o crítico marxista norte-americano Fredric Jameson, essas supressões de tempos e de espaços engajadas nas montagens filmicas, de que falou Marcel Martin, caracterizam também os filmes de ficção científica clássicos. As operações elípticas, na visão de Jameson, seriam então interpretadas como técnicas de bloqueio e de esmaecimento da historicidade do presente e, no caso da vinculação das elipses aos filmes de FC, de conduzir o público espectador a pensar que qualquer ameaça à ideologia de uma cultura tem suas origens em um mundo externo de um tempo futuro. O eclipse da historicidade consiste em anular a percepção do presente como história imediata reanimando signos de um passado mais fundo e recombinando-os com uma visão de futuro desterritorializada. É um efeito estético que, segundo Jameson, visa { formaç~o de ‚falsas consciências‛ passivamente entregues { ilus~o elíptica de fuga do pesadelo da guerra, uma estratégia de afastar a consciência coletiva da imersão da violência no ‚aqui‛ e no ‚agora‛, estiolando a força dialética que essa percepção pode vir a gerar. CONCLUSÃO Por tudo que foi exposto, o que se pretende postular nesse debate é que a subtração do tempo presente e do conteúdo da realidade social imediata, isto é, o contexto que circunda a produção fílmica de Kubrick, seja por questões de censura social ou mesmo por questões estéticas, não impede que o diretor opere uma crítica direcionada à sua historicidade. Observou-se nas duas sequências narrativas que a violência foi encenada e reencenada por dois tipos diferentes de actantes em tempos culturais distintos. Em um tempo passado, onde a cultura encontra-se em um dos seus estados primários, hominídeos manifestam violência após a descoberta do poder técnico, estendendo o tamanho e aumentando a força de seus membros superiores artificialmente com o fragmento ósseo usado na batalha pela demarcação de território e pela apropriação de recursos de sobrevivência. Já na simulação do início do século XXI fora da terra, a violência é reencenada pela máquina que adquire autonomia emocional quando se vê ameaçada pelos humanos. A regressão do computador ao estado de animalidade dos hominídeos incide numa interpretação de que a colagem de tempos culturais aparentemente sem contatos revela a intencionalidade de Kubrick de evidenciar a violência como uma expressão primitiva atuante na história do desenvolvimento tecnológico. Pode-se perceber, através dos estudos de Adriana Amaral, que a violência penetra como temática crucial na seara da Ficção científica no momento em

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que o primeiro romance do gênero Frankenstein (1818), de Mary Shelley, herda um dos conflitos humanos do romântico-gótico, que é traduzido na agressão de figuras não-humanas a outros organismos vivos, como vimos remontadas nas duas sequências narrativas do filme. A partir da multiplicidade de sugestões interpretativas que as elipses concedem ao seu espectador e a consideração dada ao contexto social que envolveu o processo de criação filmica de Kubrick, chega-se à conclusão de que nenhuma pressão política terá o poder total de censurar o índice de violência tendo a tecnologia de Estado como co-autora de práticas anti-éticas e desumanas. Não adianta ocultar esteticamente a brutalidade do tempo presente, pois, ao embarcar de modo fictício numa viagem para outros períodos históricos, o diretor desembarcará em um território hostil no qual a violência não deixará de ser personagem crucial impregnada de outra performance representativa. Essa premissa converge com a teoria da história e da cultura postulada por Walter Benjamin na medida em que o crítico da cultura afirma a existência da barbárie em todo documento que tentou registrar o progresso humano. Em última análise, pode-se pensar que Kubrick, através de sua montagem elíptica, mostrou que a violência não é algo vulgar estagnado em tempos remotos ou superado pela evolução biológica e cognitiva do homem. O seu próprio futuro fictício denunciou os artifícios técnicos tanto como ferramentas de auxílio para decidir as disputas de poder, tanto como aparelhos que podem herdar resíduos instintivos de agressividade originários de estágios primários que compõem a escala evolutiva do homem. Sendo assim, na perspectiva de Kubrick, entendemos a tecnologia como um signo da evolução científica que ilude a humanidade à proporção que protege e disfarça um lado animal ainda não superado pelas práticas de aperfeiçoamento nos novos contextos da vida. REFERÊNCIAS AMARAL, Adriana. Visões Perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk. Comunicação e cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2006. COLWELL, Carter. Primitivism in the Movies of Ridley Scott: Alien & Blade Runner. In: KERMAN, Judith (Org.). Retrofitting Blade Runner: Issues in Ridley Scott´s Blade Runner and Philip K. Dick´s Do Androids Dream of Eletric Sheep ? Bowling Green State University Popular Press, 1991, p. 124-131. JAMESON, Fredric. Cinema. A nostalgia pelo presente. In: Idem. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1991, p. 285-301. MARTIN, Marcel. As elipses. In: Idem. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 55-61.

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SANTOS, José Luiz dos Santos. Cultura e relações de poder. In: Idem. O que é cultura? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 80-86. LEONE, Eduardo; MOURÃO, Maria Dora. Cinema e montagem. São Paulo: Ática, 1987.

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A VIOLÊNCIA EM FOCO: ESTUDO COMPARADO DA RECEPÇÃO CRÍTICA DE RUBEM FONSECA E FERRÉZ Luiza Teles Santos1 A busca por elementos que representem a cidade, as pessoas que transitam por ela, a vida urbana, assim como as mazelas e problemas que são gerados pelas complexas relações estabelecidas nas grandes metrópoles, serve como pano de fundo para a literatura de muitos autores da contemporaneidade. A cidade tem sido o cen|rio, tanto na ficç~o quanto na vida ‚real‛, de atrocidades praticadas por ‚personagens‛ que se mostram sujeitos agressivos e violentos, participantes do mundo do crime ou é o palco daqueles que sofrem com as injustiças sociais. A narrativa contemporânea tem usado o espaço da cidade, onde conflitos de diversas naturezas são originados, muitas vezes pela ganância dos sujeitos ou pela disputa de poder, onde as injustiças são mais acentuadas e a desigualdade geralmente impera, para mostrar as diversas faces da violência que nelas impera. Captar o cotidiano desses espaços e desvelar os seus aspectos mais cruéis tem sido uma prática recorrente na literatura contemporânea muitas vezes com o objetivo de reverter esse quadro, como afirma Karl Erik Schollhammer: ‚[...] a representação da violência manifesta uma tentativa viva na cultura brasileira de interpretar a realidade contemporânea e de se apropriar dela, artisticamente, de maneira mais ‚real‛, com o intuito de intervir nos processos culturais‛2. Para pensar a representação da violência encontrada no cinema, teatro, televisão, artes plásticas e principalmente na literatura brasileira, Schollhammer propôs-se a fazer um mapeamento das relações entre violência e cultura no Brasil contemporâneo, da década de 1950 até os dias atuais, em que presenciamos o surgimento de narrativas vindas das periferias das cidades, através das ‚vozes‛ de sujeitos excluídos socialmente. Este autor afirmará que o medo da violência, bem como sua aparição nos discursos que trazem a realidade brasileira como tema, começam na década de 50 do século passado, mas só terá maior visibilidade na década de 1970. Enquanto no primeiro período a representação da violência era associada ao lado negativo do milagre econômico e ao consequente crescimento dos centros urbanos e da população das cidades, com os 1

2

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal da Bahia (PPGLL/UFBA); grupo de pesquisa: PRONEC — Projeto Núcleo de Estudos da Crítica; endereço eletrônico: [email protected]. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Breve mapeamento das relações entre violência e cultura no Brasil contemporâneo. In: DALCASTAGNÈ, Regina. (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 29.

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problemas decorrentes de uma urbanização não-planejada, no segundo, essa mesma violência passou a ser associada à ditadura militar. Na literatura, nas artes plásticas, no cinema ou na música, o que se viam eram manifestações contra o regime militar e ‚[...] uma interpretação da escalada da violência social como uma alegoria da oposição espontânea à situação antidemocrática do país [...]‛3. Nesse período, podem ser destacadas duas tendências da representação da violência, a primeira seria o ‚neo-realismo jornalístico‛ e a segunda o ‚brutalismo‛. O ‚neo-realismo jornalístico‛ pode ser visto como uma reação à censura do regime militar, uma vez que através da ficção, do romance-documentário, muitos profissionais da imprensa buscavam retratar os fatos reais da violência da sociedade brasileira. A outra vertente, o ‚brutalismo‛, inaugurada por Rubem Fonseca com a antologia de contos Os prisioneiros foi, segundo Schollhammer, o livro que deixou influência mais marcante na literatura urbana brasileira. É a partir deste livro que Fonseca promove uma prosa que será classificada por Alfredo Bosi de ‚brutalismo‛, j| que, segundo este crítico, o autor descreve e recria a violência social4. J| Antonio Candido, no ensaio ‚A nova narrativa‛, comentará o modo de narrar de Rubem Fonseca e também a violência exposta pelo autor em seus textos. Tais aspectos analisados levarão este teórico a classificar o momento literário em que Rubem Fonseca surgia e se afirmava enquanto contista, de ‚realismo feroz‛. Segundo Candido: Ele também agride o leitor pela violência, não apenas dos temas, mas dos recursos técnicos — fundindo ser e ato na eficácia de uma fala magistral em primeira pessoa, propondo soluções alternativas na seqüência da narração, avançando as fronteiras da literatura no rumo duma espécie de notícia crua da vida5.

E foi o submundo desmascarado nas páginas dos livros de Rubem Fonseca, a presença de personagens marginais, de bandidos e prostitutas, além da linguagem coloquial, que chamou a atenção dos censores do governo militar que, em 1976, colocaram o livro Feliz Ano Novo na lista dos livros censurados, com o argumento de que essa era uma obra que fazia apologia à violência, uma vez que as personagens que infringiam as leis e cometiam crimes não eram punidas. Sobre essa censura, afirma Deonísio da Silva:

3 4 5

Idem, p. 30. BOSI apud SCHOLLHAMMER, K. E. Op. cit., p. 34-35. CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: Idem. A educação pela noite e outros ensaios. 3. ed. 2. imp. São Paulo: Ática, 2003, p. 211.

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Na leitura da sentença, vê-se que a quest~o da ‚apologia do crime e do criminoso‛ ser| capital para a condenaç~o, pois, no entender do juiz, o que est| sob ‚crime‛ e ‚criminoso‛, no caso, é o fato de o Autor abrigar nas páginas que produz ‚personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática de vários delitos, sem qualquer referências a sanções, fazendo ainda o escritor largo emprego da linguagem pornogr|fica‛6.

Com tais alegações, não só Feliz Ano Novo, como muitos outros livros de Fonseca teriam que ser proibidos, já que a violência, o crime, encontram-se constantemente presentes na literatura deste autor. Flora Süssekind também irá refletir, em Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos, sobre a temática presente na literatura da década de 1970, no período em que o Brasil vivia uma ditadura. Esta autora aponta principalmente para o que ela chama de literatura-verdade, literatura políticomemorialista, literatura depoimento, uma literatura em que os relatos de pessoas que foram torturadas, presas, que se tornaram fugitivas da polícia por crime político ou que eram guerrilheiras aparecem com frequência. Nesses textos as ‚minúcias do horror‛ provocadas por um regime autoritário são reveladas como uma tentativa de se contar o que foi suprimido da história oficial. Essa literatura teve uma receptividade ampla e o número de publicações cresceu, no final da década de 1970 e início da década de 1980. O sucesso deste tipo de narrativa leva Sussekind a afirmar que: Esta ávida leitura da experiência carcerária ou da narrativa dos sofrimentos alheios parecendo apontar no sentido de um grande mea culpa da classe média que apoiou o golpe militar de 1964 e a subsequente militarização da sociedade brasileira. E que, desencantada, começaria a se penitenciar ficcionalmente pela repetida leitura de suas conseqüências 7.

A mesma autora ainda aponta para uma outra possibilidade, para tentar justificar a curiosidade do leitor para com este tipo de narrativa, acreditando que o sucesso da ‚literatura político-memorialista‛ pode ser uma tentativa de se reinterpretar a história recente, que não se mostra clara e é cheia de contradições. Nesses textos, são apresentadas cenas de tortura com detalhes, da violência do dia-a-dia das pessoas que lutavam contra a ditadura e viviam clandestinamente no Brasil e, num segundo momento, as histórias de ex-exilados. Com isso, segundo a autora, ‚a literatura opta por negar-se enquanto ficção e afir6 7

SILVA, Deonísio da. Nos bastidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. São Paulo: Estação Liberdade, 1989 p. 133-134. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária — polêmicas, diários e retratos. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p. 74.

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mar-se como verdade‛8 e prioriza as narrativas autobiográficas, assim como os romances-reportagem, promovendo uma imitação das técnicas jornalísticas e procurando, através dos livros, dizer tudo o que a censura proibia que saísse nos jornais. Coube a esta literatura [...] retratar um Brasil nem sempre visível a olho nu e inenarrável pela grande imprensa. E criar para o escritor uma imagem que parecia oscilar entre marginalidade semelhante à dos personagens que representava e o heroísmo de um ‚Robin Hood‛ de classe média que se imaginava sempre ao lado ‚dos fracos e oprimidos‛9.

A literatura, então, traz os sujeitos marginalizados para a cena: são os mendigos, as prostitutas, os criminosos, os sujeitos excluídos, as favelas, as drogas, etc. É um mundo ficcional em que a trajetória de vida de pessoas comuns, de seres anônimos e anti-heróis mistura-se a um mundo poluído pela corrupção do sistema político e religioso, pela violência e pelo erotismo exacerbado. Um submundo é revelado nessas narrativas, trazendo à tona a pobreza, as injustiças e as desigualdades. A literatura, dessa maneira, torna-se um lugar onde os ecos de uma sociedade baseada em uma injusta distribuição de renda repercutem. Para Ângela Maria Dias, A estreita relação que a literatura brasileira contemporânea tem mantido com a vida urbana vem configurando uma recorrente perplexidade diante da experiência histórica, ficcionalizada como absurda e inverossímil. Para além da crueldade da convivência nas metrópoles ocupadas pelo presente perpétuo das imagens e pelo cortejo dos males da desigualdade social, o real transparece como trauma10.

É esse ‚real‛ enquanto trauma que ressurge nas narrativas de autores contemporâneos como uma tentativa obsessiva de mostrar a violência nas suas diversas acepções. A tendência para este tipo de temática, na literatura contemporânea, cresceu durante as duas últimas décadas do século XX e os livros que falam de violência, injustiças sociais, crimes, sexo, etc. continuam ganhando espaço nas livrarias ainda hoje. Textos em que estão presentes aqueles que estão à margem da sociedade, pessoas que por muito tempo foram excluídas dos discursos oficiais, que sempre foram representadas (ou não) pelos que estavam (estão) no poder. Schollhammer afirmará que o papel da violência 8 9 10

Idem, p. 99. Idem. DIAS, Ângela Maria. Cenas da crueldade: ficção e experiência urbana. In: DALCASTAGNÈ, Regina (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p.30.

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presente nas produções artístico-culturais e literárias dos últimos anos, faz com que a violência representada nas produções culturais seja um agente importante nas din}micas sociais e culturais brasileiras, chegando { conclus~o de que: ‚Precisamos reconhecer os objetos estéticos da violência na sua relação com o processo geral de simbolização da realidade social, já que participam, de maneira vital e constitutiva, desta mesma realidade‛11. Porém, existem diferenças e semelhanças nas literaturas que tratam das temáticas referidas acima, principalmente porque houve mudanças significativas entre as ficções que circulavam até os anos 1980, para a literatura que passou a circular na década de 1990, chegando até os dias atuais. Uma das alterações significativas é com relação à autoria desses textos. Sujeitos que antes eram marginalizados e não exerciam o direito de falarem de si passam a produzir literatura e a reivindicar um lugar frente aos discursos canônicos. Diferentemente de muitos daqueles que lutavam contra a ditadura, muitas vezes pessoas de classe média que produziram literatura — os Hobin Woods de classe média — agora, quem passa a escrever sobre os sujeitos periféricos são os próprios sujeitos marginalizados das cidades. E foi devido à emergência dessas novas subjetividades e ao surgimento de novas teorias, que romperam com os discursos tradicionais no campo dos estudos literários, que muitos questionamentos e reflexões têm sido produzidos, em torno dos critérios de avaliação e valoração dos estudiosos da literatura. A emergência das ditas minorias e o reconhecimento da existência de um saber daqueles que até ent~o ‚n~o tinham voz‛, nos textos liter|rios e nos discursos científicos como um todo, fez com que muitos pesquisadores revissem conceitos tradicionais, considerados verdades inquestionáveis. Foi surgindo no que se pode chamar de pós-modernidade a necessidade de se rever preconceitos enraizados dos discursos acadêmicos e as ciências humanas sofreram grandes abalos, o que provocou o descentramento dos discursos hegemônicos. Em ‚A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas‛, Derrida refletirá sobre as mudanças que se processaram nos campos do saber, [...] no momento em que a cultura européia — e por conseqüência a história da Metafísica e dos seus conceitos — foi deslocada, expulsa do seu lugar, deixando então de ser considerada como a cultura de referência. Este momento não é apenas e principalmente um momento do dis-

11

SCHOLLHAMMER, K. E. Op. cit., p. 28.

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curso filosófico ou científico, é também um momento político, econômico, técnico, etc.12.

Diante dessas alterações, do descentramento do discurso europeu, masculino, branco, os estudos literários também não ficaram imunes às mudanças. Os Estudos Culturais e as discussões em torno da questão da diferença, assim como os estudos no campo da leitura permitiram que muitos estudiosos se voltassem para objetos antes esquecidos. A estética da recepção é uma das áreas que vem ganhando espaço no meio acadêmico, com um volume considerável de pesquisas que abordam tal questão. Segundo Eagleton, a teoria da recepção, que examina o papel do leitor no campo literário, é algo bastante novo13. O mesmo autor desenvolve tal ideia afirmando que a moderna teoria liter|ria pode ser dividida em três fases: ‚uma preocupaç~o com o autor (romantismo e século XIX); uma preocupação exclusiva com o texto (Nova Crítica) e uma acentuada transferência da atenç~o para o leitor, nos últimos anos‛14. O leitor começa a ser visto como um construtor de significados para as obras e não mais como um receptor passivo, que não interfere nos textos que decodifica. Dessa maneira, os estudos da recepção de obras literárias têm servido para que pudéssemos pensar neste leitor, em suas ações e interpretações diante do objeto texto, principalmente quando falamos de leitores especializados, como é o caso dos críticos literários. Refletir sobre o papel dos críticos e sobre a crítica literária que é produzida por estes, refletir sobre os critérios e teorias que eles utilizam para avaliar as obras e para classificá-las na história da literatura brasileira, tem levado muitos pesquisadores a questionarem os critérios tradicionais de avaliação dos textos literários. A crítica literária tem um papel significativo para a valoração das obras, para a constituição de um cânone universal, regional, local, e também para muitos leitores. Isso faz com que seja relevante pensar como os críticos avaliam determinadas obras, como estes classificam autores e obras no âmbito da literatura brasileira. A crítica literária tem sofrido algumas inquirições desde que surgiram teorias como os discursos pós-estruturalistas, que passaram a questionar os critérios utilizados para a avaliação de textos ficcionais. Isso permitiu que narra12

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DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: Idem. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz. M. Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 234. EAGLETON, Terry. Fenomenologia, hermenêutica, teoria da recepção. In: Idem. Teoria da literatura: uma introdução. 6. ed. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 113. Idem.

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tivas antes não consideradas como literatura, começassem a ser estudadas. O olhar de muitos teóricos voltou-se para as questões das minorias — negros, índios, homossexuais, mulheres, dentre outros — e em especial, para o que estas minorias produziam, o que levou alguns críticos a repensarem seus discursos. Cresceram pesquisas sobre os Estudos culturais, as questões étnicas, de gênero e outros temas até então descartados pelo mundo acadêmico. É nesse momento que a literatura marginal aparece e passa ser analisada. Uma literatura feita por pessoas que estão nas favelas, nos presídios, que estão à margem da sociedade, mas que passam a falar de si em um meio há muito relegado à elite intelectual e financeira, o campo literário. E, dessa maneira, a crítica literária se vê novamente frente a uma literatura que fala de uma sociedade violenta, injusta, desumana, corrupta, mas, diferentemente, os autores dessas narrativas são ao mesmo tempo autores, personagens e leitores dos romances, contos e poemas produzidos nas periferias. Assim, autores como Ferréz têm produzido literatura na favela e têm chamado a atenção das editoras, da mídia e do meio acadêmico. E é a literatura desse escritor que nos interessa estudar, comparando a forma como a crítica literária vem recebendo a sua produção, com as diversas leituras que foram feitas sobre a obra do grande nome do neo-realismo – Rubem Fonseca, especialmente no que se refere ao tema da violência. Como j| se afirmou a violência e presença dos ‚subalternos‛ encontra-se também no cerne dos livros de Rubem Fonseca: ‚Focalizada de diferentes ângulos e em suas nuances mais sutis, a violência, no universo ficcional do autor, é vista como uma constante histórica, disseminando-se pelas mais diversas dimensões do comportamento humano [...]‛15. Precursor do romance policial no Brasil, Fonseca é considerado bestseller no mercado editorial. Reconhecido como um dos grandes escritores brasileiros contemporâneos, suas obras trazem como principal temática a violência — seja ela real ou simbólica em seus mais de vinte livros publicados. O seu prestígio frente aos estudiosos da literatura revela-se com o grande número de dissertações e teses sobre suas obras, desde que ele se lançou como autor. Ao se pesquisar no Banco de Teses da CAPES, verificamos que de 1987 a 2007 foram feitas 88 dissertações e 23 teses relacionadas a Rubem Fonseca. Em sua grande maioria, as pesquisas foram desenvolvidas por profissionais de Letras, mas não ficaram restritas a este campo, já que profissionais de Sociologia, Saú15

FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto, Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 19.

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de Coletiva, História e Comunicação também estudaram esse autor e suas obras. Foram feitas pesquisas sobre seus romances, contos, estudos da recepção de seus livros, estudos dos processos de adaptação de suas obras para o cinema e a televisão, pesquisas sobre o romance policial e vários estudos comparados entre obras de Fonseca ou fazendo-se comparações com autores brasileiros, dentre os quais: João Antônio, Patrícia Melo, Machado de Assis, Caio Fernando Abreu, Sérgio Sant`ana, Nelson Rodrigues, Graciliano Ramos, etc.; e autores estrangeiros como o chileno José Donoso, o Marquês de Sade, Jorge Luiz Borges e Edgar Allan Poe. Esses trabalhos têm como temáticas principais, a violência, o erotismo, a estrutura narrativa do gênero policial, a linguagem utilizada por esse autor, o entrecruzamento entre ficção e história e a reflexão em torno da representação da realidade na literatura. Ainda podemos falar em diversos artigos publicados em jornais, revistas dos cursos de pós-graduação e anais de congressos. Já com relação a Ferréz e ao tema da literatura marginal (entenda-se literatura produzida por autores da periferia, a partir dos anos 1990), foram feitas 7 dissertações e 1 tese, de 2003 a 2007. Assim como Fonseca, os estudos sobre Ferréz e a literatura marginal não se restringiram a pesquisadores de Letras. A Sociologia e a Antropologia da mesma forma se utilizaram da narrativa dos escritores marginais. Dos oito trabalhos encontrados, 6 são sobre Ferréz e sua obra Capão Pecado. Foram feitos, principalmente, estudos comparados deste autor com escritores como Paulo Lins, Luiz Ruffato, Patrícia Melo e Albert Camus. A temática principal é a violência e as características da literatura marginal. Publicações sobre Ferréz também têm saído em revistas literárias de universidades brasileiras. Com a emergência da literatura marginal, já sendo estudada pela academia, como foi explicitado anteriormente (ainda que de forma tímida), muitas comparações têm sido feitas entre as obras de Rubem Fonseca e de autores marginais, em especial Ferréz, principalmente porque são autores que tratam de temáticas próximas. Porém, alguns críticos literários têm classificado as obras de Ferréz como de ‚tendência neodocumental‛16, memorialistas, ‚com tinturas tardo-naturalistas‛17, o que seriam traços de pouco ‚valor liter|rio‛. Os estudos pós-estruturalistas não têm sido, em geral, utilizados pelos críticos para se pensar a obras de Fonseca e de Ferréz, em particular deste último, como seria de se esperar. Ângela Maria Dias, por exemplo, afirmará que a narrativa de 16 17

DIAS, Ângela Maria. Cenas da crueldade: ficção e experiência urbana. In: DALCASTAGNÈ, Regina (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 30. Idem.

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Ferréz e de outros autores marginais tem um ‚[...] inegável valor documental e crítico diante dos contextos periféricos sobre que se debruçam [...]‛18, limitandose a assinalar em seu texto, algumas especificidades das obras desse autor, classificando-as somente na vertente de ficção testemunhal. Rubem Fonseca é sempre apontado como o precursor de um tipo de narrativa em que a violência e os sujeitos periféricos são protagonistas, mas como afirma Schollhammer, ele não abre mão do compromisso literário e não recorre ao extremo neonaturalismo, o que não aconteceria com Ferréz. Regina Dalcastagnè, por sua vez, em ‚Vozes nas sombras: representação e legitimidade na narrativa contempor}nea‛, analisar| o modo como escritores contemporâneos consagrados representam os marginalizados em seus textos e também irá refletir sobre as estratégias utilizadas pelos autores provenientes das margens do campo literário, para tentarem mostrar as suas perspectivas da vida na periferia e ao mesmo tempo se firmarem como autores. A partir de um viés diferenciado de Dias e Schollhamer, Dalcastagnè afirmará que Fonseca constrói a representaç~o do outro, dos sujeitos periféricos ‚[...] sob a perspectiva das classes dominantes‛19 e a violência contra a sociedade é uma marca definidora em sua literatura. A violência também aparece na representação das elites, porém com deslocamentos significativos. Para esta autora: ‚Na obra de Rubem Fonseca há uma diferença no estatuto atribuído à personagem violenta, de acordo com sua extraç~o social‛20. Ela cita como exemplo uma personagem, um alto executivo, que sai à noite com seu carro luxuoso para atropelar os pedestres e que, apesar da perversão, é um sujeito que mantém uma vida comum, com filhos, mulher, emprego (‚Passeio Noturno I‛ e ‚Passeio Noturno II‛, de Feliz Ano Novo)21. Já as personagens que representam os assaltantes, estupradores, são apenas ladrões, assaltantes, estupradores, assassinos. Os pobres são ainda desorganizados, criminosos, invejosos, e justificam suas ações pelo fato de não terem o mesmo status de suas vítimas, ‚[...] Rubem Fonseca apresenta a inveja como manifestaç~o central da autoconsciência dos marginalizados‛22. É neste ponto da inveja dos sujeitos periféricos, que se evidenciar|, para Dalcastagnè, o ‚cinismo‛ de Fonseca quando representa o outro. O que é normal para a classe média, a 18 19 20 21 22

Idem, p. 31. DALCASTAGNÈ, Regina. Vozes nas sombras: representação e legitimidade na narrativa contemporânea. In: Idem. (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 85. Idem. FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. In: Idem. 64 Contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 243-249. DALCASTAGNÈ, Regina. Vozes nas sombras: representação e legitimidade na narrativa contemporânea. In: Idem. (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 86.

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vontade de ter acesso aos bens de consumo, é considerado patológico no pobre. A crítica chega à conclusão de que Rubem Fonseca ao representar o outro, deixa bem marcada ‚[...] a distância entre o intelectual e a matéria-prima humana de que se serve. O ponto de referência para a construção dessas personagens, e também para a sua leitura, é a elite, econômica e cultural‛23. Já na narrativa de Ferréz, o que se encontra são moradores da favela, com seus desencontros amorosos, com a representação da vida de alguns criminosos, porém a ênfase que se dá a violência é menos crua. Ferréz traz em seus textos os trabalhadores, a maioria negros, que ‚[...] não aceitam o discurso fácil e fartamente veiculado de que o destino certo para um morador da favela é a bandidagem‛24. A favela é representada em seu cotidiano, no dia-a-dia de trabalhadores, de pessoas que vivem como subalternas e que são humilhadas, que sofrem injustiças sociais, racismo, etc: ‚É quando temos a impress~o de ver a favela pelo lado de dentro‛25, sem julgamentos estereotipados ou preconceituosos. Dessa maneira, a partir da comparação de textos de críticos literários que analisam as obras de Rubem Fonseca e Ferréz, autores que tratam do tema da violência, é que percebemos que a apreciação crítica da literatura marginal ainda requer ‚[...] uma reavaliação de nossos critérios de valoraç~o estética‛26. O que não significa que devamos examiná-la com condescendência; devemos, na verdade, reconhecer a necessidade de problematizar os conceitos tradicionais de avaliação de textos literários27. É a partir de uma pesquisa mais detalhada, que perceberemos até que ponto os adeptos da teoria da desconstrução, dos Estudos Culturais vêm reafirmando antigos preconceitos, pautando-se no estudo imanente do texto. A ideia de fonte e influência ainda é percebida na fortuna crítica de Rubem Fonseca e Ferréz e os críticos, de modo geral, não têm se utilizado de métodos pós-estruturalistas para pensar as obras desses autores, métodos que seriam mais adequados para se discutir principalmente as obras dos autores da literatura marginal.

23 24 25 26

27

Idem, p. 88. Idem, p. 101. Idem. RODRIGUEZ, Benito Martinez. O ódio dedicado: algumas notas sobre a produção de Ferréz. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 24, p. 53-67, jul.-dez. 2004, p. 55. Idem.

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REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: Idem. A educação pela noite e outros ensaios. 3. ed. 2. imp. São Paulo: Ática, 2003, p. 199-215. DALCASTAGNÈ, Regina. Vozes nas sombras: representação e legitimidade na narrativa contemporânea. In: Idem. (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 78-107. DERRIDA. Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: Idem. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz. M. Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 229-249. DIAS, Ângela Maria. Cenas da crueldade: ficção e experiência urbana. In: DALCASTAGNÈ, Regina (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 30-40. EAGLETON, Terry. Fenomenologia, hermenêutica, teoria da recepção. In: Idem. Teoria da literatura: uma introdução. 6. ed. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 83-136. FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes. In: Idem. Os crimes do texto, Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 19-51. FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. In: Idem. 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 243-249. RODRIGUEZ, Benito Martinez. O ódio dedicado: algumas notas sobre a produção de Ferréz. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 24, p. 53-67, jul.-dez. 2004. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Breve mapeamento das relações entre violência e cultura no Brasil contemporâneo. In: DALCASTAGNÈ, Regina. (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 57-77. SILVA, Deonísio da. Literatura e poder. In: Idem. Nos bastidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 131-159.. SÜSSEKIND, Flora. Retratos & egos. In: Idem. Literatura e vida literária — polêmicas, diários e retratos. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p. 71-147.

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O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS: FUTEBOL, VIOLÊNCIA E ALTERIDADE Mírian Sumica Carneiro Reis1 Segundo Beatriz Sarlo (2007, p. 21), ‚a narraç~o inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e do irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar‛. Acontecimentos políticos e suas consequências, mais do que fatos históricos, estabelecem com os sujeitos uma relação para além do âmbito social e coletivo, marcam subjetividades e suas formas de percepção do real. Narrar esses fatos, além de atualizá-los, serve de aviso e transmite a experiência do que não pode ser esquecido para que determinados momentos não se repitam. O grande desafio para as gerações que viveram os períodos de ditadura era vencer os obstáculos da censura e da truculência e transmitir uma memória do que ocorria. Nesse momento, as artes tiveram papel importante já que, com linguagem movente e múltipla, podiam dizer o óbvio sem usar necessariamente os meios óbvios de expressão. Em um ensaio intitulado ‚O campo de Terezin‛, publicado no livro O tempo vivo da memória (2003), Ecléa Bosi relata uma situação exemplar do poder de denúncia e de construção de memória que a arte possui, mesmo que o artista se encontre sob uma situação de violência tão radical como a dos campos de concentração. A autora analisa o cotidiano do campo de concentração de judeus proeminentes, como cientistas de renome, heróis de guerra e artistas famosos internacionalmente, instalado em Theresienstadt, antiga fortaleza militar situada na região da Boêmia-Morávia. A organizaç~o do gueto era ‚exemplar‛, na medida em que os seus integrantes tentavam tornar a vida ali menos sofrível através da música, do teatro, da construção e difusão (precárias) de revistas e de uma ordem social que assemelhavam o campo a qualquer ‚cidadezinha de província‛. No entanto, toda essa estrutura era uma criação artificial, uma encenação na qual os atores não tinham outra opção a não ser colaborar, denunciada através de uma série de pinturas, desenhos, revistas e cartas produzidos clandestinamente e enterrados ou cimentados nas paredes das construções impecáveis construídas para servir 1

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (UFRJ); Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana (PPGLDC/UEFS); endereço eletrônico: [email protected].

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de propaganda positiva do Reich para todo o Ocidente. As produções de Leo Haas e Bedrich Fritta, ambos assassinados pelo Reich, são exemplares dessa ‚arte do holocausto‛. Porém, as produções artísticas n~o exerceram apenas a função de legar à história a denúncia e a memória da barbárie, mas foram também utilizadas para o inverso, principalmente o cinema, como armas publicitárias das ações do Reich. Os filmes angariavam, além do apoio internacional, o consenso da população alemã através de obras como O Führer oferece uma cidade aos judeus (1944), um curta-metragem de 23 minutos sobre a vida organizada, culturalmente ativa e ‚feliz‛ que o fürher permitia aos habitantes de Theresienstadt. No caso brasileiro, as possibilidades da arte não são diferentes a despeito de épocas e contextos sociais aparentemente distintos, mas similares na violência dos processos que denunciam ou apóiam. O silêncio imposto pelo regime militar não conseguiu impedir que, através de inúmeros subterfúgios, da alegoria ao uso de pseudônimos, o contexto de barbárie dentro da civilização que qualquer ditadura assume fosse denunciado. As produções cinematográficas dos anos 60 e 70 são exemplares disso, em obras como as do Cinema Novo e outras que, apesar de não estarem diretamente ligadas a movimentos mais politizados, também trazem em seus enredos a crítica e a denúncia, mesmo que de forma velada, sob histórias aparentemente distantes do contexto político. Um exemplo é o filme Lição de amor (1975), adaptação do romance Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, feita por Eduardo Escorel. Seu enredo apresenta a história de um pai, o Sr. Felisberto Costa, que contrata Elza, uma ‚governanta‛ alemã, para iniciar sexualmente o filho Carlos, de modo a evitar que o rapaz se envolva com aventureiras e mulheres de outro nível social. A partir desse argumento, o filme revela uma crítica à educação burguesa e aos padrões hipócritas de uma parcela da sociedade que apoiava ideologicamente, silenciava diante dos vários tipos de violência cometidos contra os seus oponentes, como se o julgo e a opressão não lhe dissessem respeito, e até patrocinava as ações do governo militar. Outro exemplo é Feliz ano velho (1987), de Roberto Gervitz, que, inspirado no livro homônimo autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, retrata, para além da biografia de um jovem que fica tetraplégico e das dificuldades que ele enfrenta a partir daí, um tempo em que a truculência militar comete as maiores atrocidades contra os seus opositores, incluindo-se aí o pai do protagonista, o deputado Rubens Paiva, que fora arrancado brutalmente de casa e até hoje integra a lista dos desaparecidos políticos. Da sutileza à denúncia aberta, nos filmes produzidos entre o final dos anos 80 e início dos 90 (no chamado período da ‚retomada‛ do cinema brasilei134 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

ro) a violência, sobretudo física, do regime militar ganhou evidência nas narrativas, tanto literárias como cinematográficas. Como afirma Ismail Xavier (2003, p. 130), trata-se, nesse período, de uma tendência do filme político que, utilizando as fórmulas de gêneros tradicionais como estratégia de mercado, enquadra-se ao que o autor denomina como ‚naturalismo de abertura política‛. Desse grupo podemos mencionar obras como Pra frente, Brasil! (1983), de Roberto Farias; Lamarca (1994), de Sérgio Rezende; Que é isso, companheiro? (1997), de Bruno Barreto, inspirado no livro homônimo de Fernando Gabeira; e mais recentemente Cabra-cega (2005), de Toni Venturi; Zuzu Angel (2006), também de Sérgio Rezende, e os documentários Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho, e Hércules 56 (2007), de Sílvio Da-Rin. Em 2006 é lançada mais uma produção cinematográfica cujo enfoque é o período da ditadura militar brasileira: O ano em que meus pais saíram de férias. Dirigido por Cao Hamburger, o filme foi selecionado para o 57º Festival de Berlim e ganhou os prêmios de melhor filme segundo o júri popular tanto na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo quanto no Festival do Rio no mesmo ano de 2006, além do prêmio de melhor filme dado pela crítica especializada do 48º Festival de Cinema de Cartagena e da indicação para representar o Brasil na categoria ‚filme estrangeiro‛ do Oscar, ambos em 2008. Afastado do realismo clássico que explora as versões de heróis e mártires, torturados e/ou assassinados, e de maniqueísmos figurados pelo guerrilheiro idealista e redentor e o militar/agente político truculento e mau, O ano em que meus pais saíram de férias subverte o foco narrativo e, no olhar e na voz de um menino de 12 anos, coloca a crítica, a reflexão social e a denúncia, sem usar sequências de ação ou representação explícita do terror psicológico e das torturas de ordem física e moral que aparecem nos filmes que o antecedem. Essa é uma das características inovadoras da obra, já que são poucos os casos ao longo da cinematografia brasileira (com exceção dos filmes infantis) em que uma criança é apresentada como personagem psicologicamente complexo (o primeiro caso aparece em Rio 40 graus (1956), de Nelson Pereira dos Santos. Outros exemplos são Pixote, a lei do mais fraco (1981), de Hector Babenco, e mais recentemente Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles). No filme de Cao Hamburger, o protagonista é capaz, inclusive, de conduzir o relato a partir das suas memórias recentes e de fazer julgamentos amparados nas suas experiências e na sua visão de mundo, em transformação ao longo do enredo. Anti-naturalista, O ano em que os meus pais saíram de férias, ao eleger como foco narrativo o olhar da criança, parte de uma abordagem que vai do microcosmo de um indivíduo e do modo como ele é afetado pelo estado de exceção que a ditadura instaura, para um macrocosmo coletivo, o de um país

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regido pela truculência e pelo cerceamento dos direitos individuais com o consenso de muitos e a despeito da revolta de tantos outros. A memória de uma criança e suas nuances de percepção do real são propícias para uma apresentação mais distanciada de cenas importantes pelo seu teor de denúncia e de representação, mas que se tornaram clichês na medida em que exploradas exaustivamente pelas obras que se imbuíram da missão de não deixar que o terror e a crueldade fossem relegados ao esquecimento. O narrador, que protagoniza e conta a história em voz over, é Mauro (o garoto Michel Joelsas), um menino de doze anos apaixonado por futebol que, como todo brasileiro da época, acreditava que a seleção brasileira conquistaria o tricampeonato mundial de 70, ano em que se passa a história. Tal euforia, incentivada e patrocinada pelo governo militar, passa a segundo plano quando o garoto é obrigado a deixar sua cidade natal, Belo Horizonte, para passar uma temporada com o avô paterno em São Paulo, no bairro do Bom Retiro, reduto paulista de judeus e italianos. Deixado pelos pais em frente ao sóbrio — e sombrio, na perspectiva do menino — edifício onde mora o avô, carregando, além do abraço de despedida o aviso de que, para todos os efeitos, os pais tinham ‚saído de férias‛, o menino, chegando ao apartamento, defronta-se com a porta fechada e a posterior notícia de que o avô tinha acabado de falecer. A partir daí, ele se vê confrontado com diversas formas de violência: o abandono, a inserção forçada em uma nova cultura, o preconceito e, como presença dissimulada mas constante, persistente e sutil, por isso mesmo potencializada, o desaparecimento dos pais. Os sentimentos de abandono e perda se ampliam quando, diante da porta fechada do apartamento do avô, ninguém responde à campanhia. Depois de uma longa espera, sozinho, no corredor do prédio, é que Mauro fica sabendo que o avô tinha falecido poucos momentos antes de sua chegada, ou seja, ele está ainda mais só, sem referências familiares em uma cidade que lhe é completamente estranha, inserido em uma cultura que lhe parece mais estranha ainda, a judia. O enterro do avô, ao qual Mauro assiste, representa também o enterro de uma forma de vida baseada na superproteção da família, da infância despreocupada e da inocência sobre o que acontece socialmente a sua volta. Também como plano central, embora dissimulado pelo drama particular de Mauro, aparece o contexto da ditadura militar. Enquanto espera entre a casa vazia do avô, de quem se sente herdeiro, e a do vizinho judeu que não o compreende em sua diferença, Mauro vai, aos poucos, compreendendo a dimensão do que pode ter acontecido a seus pais. Primeiro, pelo telefone da casa em Belo Horizonte que nunca é atendido, depois, pela revelação lançada em seu rosto pelas outras crianças do bairro: ‚Você é o menino que os pais deixaram, n~o 136 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

é?‛, ‚Eles s~o fugitivos‛, ‚N~o! S~o comunistas‛. Nesse momento, a c}mera em close-up acentua a contradição estampada em seu rosto: sua boca diz que os pais estão de férias, mas toda a sua expressão revela que ele já não acredita totalmente nessa hipótese. Esse é um efeito que se repete ao longo do filme. Como o pai prometera voltar para a copa, cada partida de futebol é um misto de alegria, expectativa, ansiedade e decepção, pois os pais não chegam. Enquanto isso, ele vai se adaptando à comida judia, aos preceitos, aos novos amigos (que incluem o clichê do judeu usurário na amiguinha que cobra dinheiro para deixar os amigos verem as moças sem roupa na loja da mãe) e ao cotidiano do bairro, na mesma proporção em que sua presença impõe mudanças de comportamento na comunidade. A relaç~o que esse menino ‚gói‛, ou seja, n~o-judeu, estabelece com a vizinhança apresenta-se como um exercício de tolerância. A princípio, a comida judia lhe enoja, a tradição não significa nada para ele e o vizinho do avô com quem ele é obrigado a ficar apresenta-se intolerante e violento. A convivência é quem vai ensinar as possibilidades de compreensão da diferença, tanto do menino em relação aos judeus e seus hábitos, como o contrário também ocorre: ele deixa de ser chamado de ‚gói‛ (com toda a carga depreciativa empregada na pronúncia dessa palavra) e passa a ser chamado de Moishlah. Mauro vira, para aquela comunidade, uma espécie de Moisés, deixado na porta do velho e solitário Shlomo (Germano Haiut) não mais em uma cesta, mas de pé, com uma maleta na mão, uma bola embaixo do braço e um comportamento de garoto mimado que vai mudando aos poucos. A relação de amizade e companheirismo que os dois personagens conseguem desenvolver ao longo do enredo é um contraponto tão importante à solidão de ambos que a imagem dos dois caminhando juntos foi escolhida para compor a capa da edição francesa do filme. Por outro lado, Mauro trava contato também com o personagem Ítalo (Caio Blat), estudante universitário que conhece seu pai e que, junto com Shlomo, o senhor judeu que o abriga, procura pistas que indiquem o paradeiro dos seus pais. É este personagem que vai inserir Mauro definitivamente no contexto político, quando, ao escapar da prisão — na única sequência em que aparecem os militares em ação com os seus cavalos e viaturas — esconde-se temporariamente no apartamento do avô e afirma para o garoto: ‚Acho que eu também vou precisar tirar umas férias‛. O sentido das ‚férias‛, de que Mauro j| suspeitava, confirma-se não mais como um eufemismo para consolar uma criança, mas como conotação de uma realidade bruta, revelada nos ferimentos de Ítalo e nos hematomas estampados no rosto doente da mãe, quando ela reaparece, já no final do filme.

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A copa acaba e os pais de Mauro não retornam, o Brasil é campeão, e em meio ao frenesi que toma conta de todos, é possível perceber que o garoto passa por um processo de iniciação muito mais subjetivo e intenso que a cerimônia de Bar Mitziva pela qual passou seu amigo judeu. A transformação de criança em jovem se deu pelo caminho violento da lucidez precoce diante de um processo tão radical que estava além da sua compreensão de menino. A transformação inclui a capacidade adquirida de cuidar da própria alimentação e higiene, bem como de garantir sua segurança, aceitar e conviver com as diferenças, encarar o mundo como alguém que passa a saber o que sua condição em determinado contexto representa. Essa compreensão é potencializada no desfecho da narrativa, quando a mãe, depois de torturada, vai a seu encontro e ambos seguem para o exílio. No banco de trás do carro, olhando para o bairro do Bom Retiro como quem se despede (numa tomada cuja profundidade de campo vai do seu rosto em close ao fundo da rua deserta), Mauro fala: ‚Eu não sei bem o que quer dizer exilado, mas deve ser quando se tem um pai tão atrasado, mas tão atrasado, que não vai voltar nunca‛. Essa última cena, que poderia ser vista como um desfecho romantizado da história (afinal o retorno da mãe, se não representa ‚final feliz‛, pelo menos descaracteriza um final cruel), acaba acentuando o realismo não-tradicional presente na obra. Isso ocorre pois a verossimilhança que se apresenta é lastreada pelo recurso da memória que, diferente do método sistemático e linear próprio da historiografia e da burocracia do estado, não se utiliza de estatísticas e dossiês, mas parte da subjetividade para recontar os fatos. Voltando a Beatriz Sarlo, A memória e os relatos de memória seriam uma ‚cura‛ da alienaç~o e da coisificação. Se já não é possível sustentar um Verdade, florescem em contrapartida verdades subjetivas que afirmam saber aquilo que, até três décadas atrás, se considerava oculto pela ideologia ou submerso em processos pouco acessíveis à simples introspecção. Não há Verdade, mas os sujeitos, paradoxalmente, tornaram-se cognoscíveis (SARLO, 2007, p. 38).

Nessa perspectiva, o relato de primeira pessoa, mesmo que ficcional, que se apresenta sob tom memorialístico transfere para o sujeito a possibilidade de contar uma verdade que não se pretende única. Pelo contrário: na medida em que esse relato ocorre, o narrador, que se dá a conhecer inclusive pelas lacunas e acréscimos que faz a sua narrativa, permite que o seu interlocutor conheça mais uma possibilidade da história, sob nova perspectiva, mas também sem 138 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

isenções de cunho ideológico ou racional, e esse parece ser o maior projeto de O ano em que meus pais saíram de férias. O filme começa com uma referência futebolística: ‚um goleiro nunca deve sair da área. O goleiro é o único jogador do time que nunca pode falhar‛. Centrado em sua área de ação, O ano em que meus pais saíram de férias atua como o goleiro e não falha, pois conquista, no rol das grandes produções do ano de 2006 (incluindo Zuzu Angel, que trabalha com a mesma temática da ditadura), destaque de crítica, embora não tenha atingido um reconhecimento de público tão grande. Talvez isso tenha ocorrido porque, sem muitos custos ou grandes lances de ação, sem explorar cenas de teor realista em que torturas, tiroteios e desespero apareçam extrapolados para tentar representar uma brutalidade que pode ser compreendida em seu aspecto coletivo e social, mas jamais em seu caráter subjetivo, o filme consegue, justamente pela ausência, dar ainda mais visibilidade a uma situação de violência tão marcante quanto a proporcionada pela ditadura nos chamados anos de chumbo. A subjetividade da criança, com todas as nuances de inocência e delicadeza que partem do seu olhar, mas também com suas possibilidades de apreensão do real através de sentimentos e situações tão intensas como o abandono, o luto, o amadurecimento intelectual, a violência de compartilhar, primeiro pela força, depois pela adaptação, de uma nova cultura, refletem a memória de todo um longo e violento período vivido pela sociedade brasileira. REFERÊNCIAS AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra — cinema e literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória — ensaios de psicologia social. 2. ed. São Paulo: Ateliê, 2003. FRESQUET, Adriana. (Org.). Imagens do desaprender. Rio de Janeiro: Booklink/CINEADLISE-FE/UFRJ, 2007. SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. XAVIER, Ismail. O olhar e a cena — melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

FILMOGRAFIA O ano em que meus pais saíram de férias. Cao Hamburger, Brasil, 2005. O Führer oferece uma cidade aos judeus. Ilona Ziok, Alemanha/Tchecoslováquia, 1944. Lição de amor. Eduardo Escorel, Brasil, 1975.

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Pra frente, Brasil! Roberto Farias, Brasil, 1983. Cabra marcado para morrer. Eduardo Coutinho, Brasil, 1984. Feliz ano velho. Roberto Gervitz, Brasil, 1987. Lamarca. Sérgio Rezende, Brasil, 1994. Que é isso, companheiro? Bruno Barreto, Brasil, 1997. Cabra-cega. Toni Venturi, Brasil, 2005. Zuzu Angel. Sérgio Rezende, Brasil, 2006. Hércules 56. Sílvio Da-Rin, Brasil, 2007.

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FIGURAS DA VIOLÊNCIA URBANA NO ROMANCE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Rita Olivieri-Godet1 Assim, a supremacia do indivíduo termina no seu contrário, uma vez que o que predomina, ao fim do longo processo de individualização, é o controlo social sob formas diversas, que age quer pela imposição, pela repressão, quer, de uma maneira mais feltrada, pela orientação, pela planificação, numa palavra, pela assepsia da existência quotidiana. É esse mecanismo do individualismo e da sua reaquisição numa organização estatal totalitária que nos parece interessante descrever, porque nos parece explicativo do fenómeno de poder contemporâneo, do processo de atomização cada vez mais acentuado na civilização urbana, da exacerbação da violência sanguinária quotidiana e da indiferenciação generalizada que prevalece no nosso modo de vida (Michel Maffesoli, A violência totalitária).

As novas formas do urbano nas sociedades pós-modernas marcam profundamente a sensibilidade de escritores e contribuem para o adensamento de diferentes modalidades de percepção e de figuração do real. As megalópoles labirínticas, heterogêneas e fragmentadas geram práticas sociais diferentes, novos projetos de construção social de identidades, e, por conseguinte, novos focos de antagonismos. Nosso trabalho tem o objetivo de analisar algumas formas simbólicas elaboradas pelo discurso literário brasileiro a partir dos anos 90, através da leitura crítica de quatro romances que exploram fundamentalmente a representação da violência em duas metrópoles brasileiras: Capão Pecado (2000), Manual prático do ódio (2003), de Ferréz, e O sol se põe em São Paulo (2007), de Bernardo Carvalho, percorrem o espaço paulistano, enquanto que, em Um t|xi para Viena d’Austria (1991), Antônio Torres constrói sua cidadetexto tomando por referência a ‚Cidade Maravilhosa‛. Interrogaremos, particularmente, as encenações da topografia urbana, assim como as decorrentes da relação do sujeito com a cidade, levando em conta os recursos estilísticos que inscrevem no texto as marcas da urbanidade. Pretendemos assim esclarecer alguns aspectos que dizem respeito às relações entre a complexa dinâmica das metrópoles e a emergência de formações discursivas e simbólicas.

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Professora Titular de Literatura e Cultura Brasileiras da Universidade de Rennes 2 (França); Grupo de Pesquisa: Pôle de Recherches InterUniversitaires sur les Pays de Langue Portugaise (PRIPLAP), laboratório da Equipe de Recherches Interlangues ‚Mémoires, Identités, Territoires‛ (ERIMIT); endereço eletrônico: [email protected].

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A METRÓPOLE E SEUS VÁRIOS ESPAÇOS DE EXCLUSÃO Se fosse possível e desejável resumir em uma única fórmula o atual estado do mundo, eu não pensaria duas vezes: estado de sítio (Paulo Arantes, Extinção).

O filósofo brasileiro Paulo Arantes, no ensaio Extinção, desenha com precisão o perfil de nossas sociedades pós-modernas. Sua análise ajuda-nos a pensar o surgimento de formas narrativas que evoluem nesse contexto e com ele dialoga. À luz das reflexões de Arantes, podemos encontrar perspectivas que esclarecem certas configurações espaciais da cidade que a narrativa pósmoderna elabora. Paulo Arantes (2007) utiliza a express~o ‚Estado de sítio‛ para caracterizar nossas sociedades urbanas do século XXI, salientando que o exercício do poder na nova ordem cosmopolita fundamenta-se num estado de exceção permanente que substitui o político pela guerra. O poder passa a ser exercido como violência excepcional, tanto ao nível interno da nação quanto ao nível externo e mundial. Na periferia do capitalismo, lembra-nos Arantes, o estado de exceção sempre foi permanente. A violência econômica do neoliberalismo, aliada à ausência de políticas públicas efetivas, promove o gangsterismo à ação política. A sociedade torna-se, dessa maneira, refém do estado de exceção permanente que abandona o paradigma jurídico-político e suscita ‚o embotamento da percepç~o‛ (SANTOS, 2007, p. 7), afastando a reflexão inteligente sobre o estado do mundo atual, daí o título da obra: Extinção — desaparecimento, fracasso do pensamento. O tempo presente é o do ‚estado de sítio‛, o da guerra cosmopolita. Segundo Arantes, nas megalópoles brasileiras, a exceção é permanente, a sociedade é refém do gangsterismo que ocupa o vazio político e desperta o sentimento coletivo de insegurança e medo. É a lógica do terror que predomina. Nas grandes cidades, os territórios de exclusão social se multiplicam e acabam por se transformar em ‚espaços mortíferos‛ (HAREL, 2007). LITERATURA MARGINAL: A PERIFERIA NO CENTRO Nesse contexto de fraturas urbanas é que surgem as narrativas subalternas realçando diferentes formas de discursos narrativos e de práticas sociais, projetando novas figurações da cidade. O perfil social do escritor brasileiro amplia-se significativamente com a inclusão, no sistema literário, de escritores oriundos dos bairros periféricos cuja obra literária torna-se um instrumento de denúncia não só das situações e ações brutais vividas nas periferias, como também, da exclusão, da violência policial e do racismo que vitimam essas comunidades. Assim sendo, a criação artística é também, para esses escritores, um meio de investirem no campo cultural do qual encontravam-se até então afastados. De uma certa forma, a produção musical do rap abre as portas para a 142 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

produção literária produzida por esses escritores periféricos que se assumem como excluídos e porta-vozes de sua comunidade e adotam a express~o ‚marginal‛ para identificar sua produç~o. Tanto o rap quanto a literatura marginal procuram, muitas vezes de forma contraditória ou paradoxal, construir um pensamento crítico capaz de despertar um sentimento de auto-estima e de solidariedade no seio da comunidade de origem. Escritores e ‚rappers‛ s~o culturalmente ativos nas suas comunidades. A apelaç~o ‚literatura marginal‛ justifica-se tanto pelo fato dessa produção ser portadora da voz da periferia, colocando em cena os problemas do quotidiano nesses territórios de exclusão, como também pela adoção de uma linguagem própria que se afasta de aspectos mais convencionais da literatura. Poderíamos falar, no que se refere à linguagem, da emergência de um socioleto, no sentido que Pierre Zima atribui ao termo, definindo-o como ‚um repertório lexical codificado, isso é, estruturado segundo as leis de um pertencimento coletivo particular‛ (ZIMA, 2000, p. 134). Assim, a estratégia que consiste em pôr em prática um registro vulgar, marcado por expressões codificadas, gírias e ortografia próprias, remete à ideia de um pertencimento coletivo específico. Desejo de construção e de afirmação identitária que passa evidentemente pela elaboraç~o de uma linguagem própria, como se pode ler no texto ‚Terrorismo liter|rio‛ (FERRÉZ, 2005, p. 9-14), espécie de ‚pref|cio-manifesto‛2: Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve (FERRÉZ, 2005, p. 9). Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país mas não recebe sua parte (FERRÉZ, 2005, p. 9).

Do ponto de vista da representação da realidade, essa produção adota a perspectiva da imediatidade brutalista, com o objetivo de realizar uma espécie de crônica grotesca da exclusão social, utilizando um conjunto de procedimentos que o crítico literário Alfredo Bosi qualifica de hipermimetismo. Embora possamos, sob alguns aspectos, aproximá-la do realismo feroz característico das narrativas de Rubem Fonseca inspiradas na crônica policial, autor considerado um dos precursores da temática da violência urbana e da criminalidade, não podemos, no entanto, falar de filiação a uma tradição. Trata-se de um fenômeno novo no mercado editorial brasileiro que desloca o lugar de enunciação, fazendo 2

Sobre esse texto de Férrez, remeto ao artigo de Luciano Barbosa Justino, A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-manifesto de Ferréz, ‚Terrorismo liter|rio‛ (2007).

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emergir uma voz revoltada da periferia, fenômeno que o romance Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, contribuiu para desenvolver. Essas narrativas são atravessadas pela experiência de vida de escritores da periferia, o que, de uma certa maneira, os legitima a falar em nome de suas comunidades. Essa literatura marginal afirma-se enquanto projeto identitário, exibindo o seu objetivo político de combate à prevalência de valores culturais hegemônicos e elitistas em relação à comunidade que representa. A proposta literária de rasura e de negação da fala hegemônica visa à constituição da comunidade periférica enquanto sujeito. CAPÃO REDONDO, CAPÃO PECADO: A PERIFERIA EM ESTADO DE SÍTIO Os dois romances de Ferréz que comentaremos aqui fazem parte da denominada ‚literatura marginal‛3. Ferréz, cujo verdadeiro nome é Reginaldo Ferreira da Silva, nasceu em São Paulo, em 1975, tendo adotado o nome Ferréz em homenagem a dois heróis populares brasileiros, Virgulino Ferreira e Zumbi dos Palmares. É o mais conhecido e reconhecido autor da literatura marginal, tendo vários livros publicados em grande editora, sendo o primeiro deles Capão Pecado (2000). O título do romance faz referência a Capão Redondo, um dos bairros periféricos mais violentos de São Paulo, de onde o autor é originário. Ao comentar as entrevistas do escritor, Andrea Hossne destaca o fato de ele considerar a violência como uma dificuldade sob forma de um paradoxo: como criar uma ficção verossimilhante quando o absurdo da realidade é tão inverossímil?4 Como narrar a abjeção, as fronteiras do humano? A narrativa centrada na história de vida de Rael, um jovem que sonha em se tornar escritor e que se apaixona pela noiva do seu melhor amigo, descreve o quotidiano violento e sem esperança dessa comunidade. Encontramos a intriga tradicional do triângulo amoroso e do crime passional. No entanto, essa intriga evolui num universo romanesco onde não há mais lugar para o afeto. A noiva de Rael termina por traí-lo com o patrão dele. Rael o mata, vai preso e morre na prisão. O mundo do crime ao qual ele queria escapar termina por alcançá-lo. Ao mesmo tempo em que essa voz emerge da periferia expondo um ambiente marcado pela opressão e violência, ela procura paralelamente construir um projeto identitário de resistência para essa comunidade, do qual participariam a literatura marginal e o rap: ‚Literatura marginal lado a lado com os 3

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Para uma reflexão sobre a ‚literatura marginal‛ remeto ao texto de Andrea Hossne, L'exclusion en littérature, la littérature de l'exclusion, l'exclusion de la littérature: aspects du roman contemporain brésilien (2007, p. 23-34). Idem.

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guerreiros de verdade‛ (FERRÉZ, 2000, p. 42). Essa expressão exerce uma função emblemática em relação ao desejo de construção social de uma identidade comunitária, espécie de divisa que aparece nos diversos textos escritos por pessoas originárias de Capão Redondo ou por compositores de rap, incorporados à narrativa. Discurso de valorização do potencial de produção cultural e de denúncia do abandono no qual se encontra essa comunidade da periferia do capitalismo, vítima da violência que a exclusão produzida pela economia neoliberal fomenta, impulsionada pela omissão dos poderes públicos. Num outro romance publicado em 2003, Manual prático do ódio, a representação da violência e do banditismo se acentua em detrimento do discurso de valorização da comunidade. O núcleo narrativo organiza-se em torno do planejamento de um assalto por um grupo de amigos que se associam para dar um golpe que eles consideram perfeito e que os libertaria, de uma vez por todas, da sua condição de miséria social. O planejamento do assalto contrasta com a engrenagem trágica da realidade que se sobrepõe aos projetos dos indivíduos, reduzindo os atores a simples marionetes do submundo do crime, num território onde o estado só se faz presente para oprimir e corromper. A exclusão social funciona como um manual prático do ódio: quotidianamente confrontados a um espaço confinado e aterrorizante, marcado pela onipresença da morte, pelo conflito entre as gangs, pela violência e corrupção policial, os personagens, desprovidos de referências afetivas e morais, incapazes de refletir politicamente sobre sua condição de excluídos, encontram na ação criminosa, no princípio da vingança, sua única saída. No entanto, ao se deter em descrições minuciosas de atos de extrema brutalidade, sem nenhum distanciamento crítico, o romance corre o risco de promover uma naturalização da violência que ele busca denunciar. O problema complexo da exclusão é despolitizado e a narrativa cai na armadilha da promoção de uma lógica individual de enfrentamento pela violência, uma violência que, em princípio, poderia querer criticar. Para colocar em cena o imaginário da violência em suas formas excessivas, exibindo ‚o rosto b|rbaro da cultura contempor}nea‛, expressão utilizada por Beatriz Sarlo, no seu ensaio Tempo presente (2005), o texto de Manual prático do ódio recorre à hipérbole, ao exagero hiper-realista, limitando-se a um hipermimetismo da ‚crônica vermelha‛ que faz parte atualmente do quotidiano urbano. Esse tipo de relato, como assinala Sarlo, reforça o papel dos meios de comunicação de massa que inoculam a paixão pelo medo, pelo excesso. Debruçando-se sobre a maneira como a violência é representada nas diferentes expressões artísticas contemporâneas brasileiras, o jornalista e ensaísta João Cesar de Castro Rocha (ROCHA, 2004) constata que a ‚dialética do malandro‛ (referência ao célebre artigo de Antonio Candido) deu lugar à dialética da margina-

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lidade característica dos tempos atuais. Assim passamos de uma ordem relacional a uma ordem conflitual onde a imagem da sociedade é definida pela violência. O contexto subjacente a essas representações do país e da cidade na arte e na literatura contemporâneas brasileiras corresponde ao da periferia do capitalismo, onde, como assinala Paulo Arantes, o estado de exceção sempre vigorou. A encenação da topografia e das formas urbanas nesses dois romances de Férrez se limita aos elementos da periferia de São Paulo, espaço sitiado e mortífero, com suas ruas transformadas em armadilhas, seus casebres vulneráveis que a todo momento podem ser invadidos, seus bares onde a convivialidade cede lugar aos conflitos. A morte é onipresente, o homem é apenas um gadjet a mais, podendo desaparecer a qualquer momento. N~o existe um ‚lugar habitável‛ para o sujeito (HAREL, 2007). Na ausência desse espaço íntimo, seguro, protetor, o ser humano se encontra na impossibilidade de se constituir enquanto sujeito. Os personagens s~o prisioneiros desse espaço periférico onde ‚a única certeza é a arma‛ e ‚a morte é apenas um detalhe‛5. Além da periferia, as referências efêmeras aos bairros burgueses de São Paulo mostram que a única relação que a população da periferia pode ter com a cidade é a da exploração pelo trabalho — empregadas domésticas que trabalham em prédios de luxo — ou a da intrusão violenta no tecido urbano, atuando como ladrões e criminosos. Invertendo o lugar das margens do capitalismo que a periferia ocupa, a produção literária que dela emana coloca-a simbolicamente no centro da representação espacial, encenando uma topografia urbana restrita a essa zona de exclusão. O contexto desagregador das megalópoles brasileiras fez emergir formações discursivas e simbólicas que representam o processo de segregação urbana e racial, tomando por base a exclusão social e espacial que vitimam a população dos bairros periféricos, privadas de educação, trabalho e saúde. Os romances de Ferréz sublinham a ausência escandalosa do Estado nesse espaço, salvo quando se trata de assegurar o seu papel repressor através da presença da polícia. Evidenciam a política de extermínio imposta a ‚grandes segmentos da população brasileira [que] vivem hoje em dia sob um estado de sítio branco, por debaixo da cobertura de um suposto estado de direito‛ (PENNA, 2007, p. 180). Mesmo se um discurso crítico de resistência é esboçado, ao menos no primeiro romance do autor, a escolha estética do hipermimetismo simplifica a relaç~o entre a cidade e o imagin|rio. A ‚ambigüidade do olhar realista‛ contri-

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Título de capítulos do romance Manual prático do ódio (FERRÉZ, 2003).

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bui para a estetização da violência6. Ao pretender colar à realidade para expressá-la na sua brutalidade imediata, o lugar do simbólico torna-se reduzido, o impacto da denúncia enfraquece. Acreditamos que romances como Capão Pecado e Manual prático do ódio, prisioneiros do hipermimetismo, caem na armadilha do abandono do político ao qual se refere Paulo Arantes, contrariamente ao objetivo que perseguem. O segundo romance, ainda mais que o primeiro, abandona a perspectiva política para se refugiar numa espécie de genealogia do ódio que justificaria o recurso ao princípio da vingança como única forma de ação possível. Isso se dá em função de uma representação que não revela os mecanismos complexos de exclusão próprios da periferia de um país periférico e pela simplificação da trama social, reduzida a uma lógica binária do conflito entre centro e periferia. À MARGEM DA LITERATURA MARGINAL Não se trata aqui de hierarquizar práticas literárias diversas, mas simplesmente de examinar a diversidade de figurações da violência urbana na literatura brasileira contemporânea. Escritores contemporâneos como Luis Ruffato, Bernardo Carvalho, Antônio Torres, o brasileiro-canadense Sergio Kokis, entre outros, exploram o tema da violência urbana sem dissociá-lo de uma visão mais complexa e crítica do contexto político, econômico e social. É o que podemos observar através da representação da cidade em romances como O sol se põe em São Paulo (2007), de Bernardo Carvalho, e Um táxi para Viena d’Austria (1991), de Antônio Torres que ampliam o leque das figurações da violência urbana, sem se limitar exclusivamente à ficcionalização de situações limites ligadas ao crime, ao sexo e às drogas. Em ambas as narrativas, as múltiplas vozes do discurso vão explorar, por caminhos diversos, os efeitos de um contexto social globalizado, cada vez mais desumanizado e violento, no processo de subjetivação e de constituição de identidade do indivíduo. Paralelamente às marcas visíveis da miséria social, os romances expõem a precariedade do sujeito. Em O sol se põe em São Paulo, Bernardo Carvalho dedica-se, mais uma vez, a exemplo de romances anteriores como Mongólia (2003) e Nove noites (2002), a um tema que lhe é caro, o das relações de alteridade. Para discutir o deslocamento das referências identitárias e culturais em O sol se põe em São Paulo, o autor toma como ponto de partida a imigração japonesa no Brasil, localizando uma parte da ação na cidade de São Paulo e uma outra, em Tóquio. 6

Aproprio-me do comentário de Tânia Pellegrini sobre Cidade de Deus de Paulo Lins, no qual ela destaca a contradição entre a intenção de denúncia e de protesto dessa narrativa e a seduç~o da violência que ‚malgré elle‛ se manifesta (v. PELLEGRINI, 2005).

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O texto enfoca os aspectos violentos do processo de imigração, levando em consideração as questões sociais e os problemas de ordem ontológica que dele decorrem. Privilegia uma ambientação cosmopolita na qual deambula um sujeito com o objetivo de desenredar histórias, inclusive a de sua própria vida. O narrador-personagem, publicitário desempregado, é um descendente da terceira geração da imigração que não domina mais a língua nem as referências culturais japonesas. A trama, bastante complexa e cheia de suspense, organiza-se em torno de um encontro num restaurante no bairro da Liberdade entre o narrador yonsei, que se apresenta como escritor, e uma senhora japonesa, Setsuko, dona do restaurante, que lhe pede para escrever a história de sua vida. Atraído pelo enigma da história que evolui entre o Japão da Segunda Guerra Mundial e o Brasil atual, girando em torno de dramas amorosos, de viagens forçadas e de identidades falsas, o narrador terminará por fazer uma viagem a Tóquio, na expectativa de esclarecer os elementos obscuros do relato. Viagem de retorno ao país de origem dos seus antepassados, sob o signo do estranhamento e da errância. De forma semelhante a outros personagens de Bernardo Carvalho, o narrador deste romance é um ‚estranho estrangeiro‛7, quer ele esteja em Tóquio ou em São Paulo, o deslocamento exterior sendo apenas a face visível do conturbado itinerário de sua subjetividade. O ato de escutar, escrever e reconstruir histórias, interrogando o sentido de travessias que desafiam o limite do humano, leva-o a se defrontar com experiências trágicas de exílio e exploração que se entrelaçam com sua própria história. Narrativa vertiginosa construída pela junção de múltiplos relatos que vão compondo as máscaras identitárias, a do escritor inclusive, ‚o que só podia ser o que era n~o sendo‛ (CARVALHO, 2007, p. 24). O caráter autoreferencial do romance, traço característico da obra do autor, reflete sobre a relação entre realidade e ficção e o papel da escrita no processo de constituição do sujeito, sendo capaz de conduzi-lo à perdição ou de salvá-lo da existência medíocre, imprimindo um sentido à vida (o caso do narrador yonsei). Centrado num segmento minoritário, o dos imigrantes japoneses, o romance revisita um pouco da história dos que sonharam em ‚fazer a América‛. Abre-se para uma geografia imaginária da alteridade, discutindo questões relacionadas com a percepção do outro, embora a perspectiva adotada pela obra privilegie a dimensão ontológica à étnica. Por outro lado, a representação de São Paulo propõe uma visão mais global da cidade, inserindo-a no contexto das 7

Referência ao título de um artigo nosso que trabalha sobre romances brasileiros (entre os quais, Mongólia, de Bernardo Carvalho) que exploram a experiência da alteridade como ponto de partida do processo de criação (v. GODET, 2007).

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metrópoles do Terceiro Mundo. A encenação da topografia e das formas urbanas não se limita a um único bairro, como nas narrativas da literatura marginal. O narrador alarga o tratamento da questão da exclusão ao assumir uma atitude crítica em relação à denominaç~o ‚periferia‛: São Paulo não se enxerga — ou não chamaria periferia de periferia. Não é só eufemismo. Chamam-se excluídos aos oitenta por cento da população. Não é à toa que é uma cidade de publicitários. Em São Paulo, publicidade é literatura [...] (CARVALHO, 2007, p. 14).

Construções de discursos falsos para vender imagens que o romance vai desconstruindo. É interessante notar a convergência com a visão de periferia de Férrez que questiona o conceito de ‚minoria‛ e chama a atenç~o para ‚uma periferia que cerca toda a cidade‛ (FERRÉZ, 2005, p. 8). São Paulo é uma cidade onde se vive ‚cercado de assaltos, chacinas, e sequestros‛ (CARVALHO, 2007, p. 14). É a imagem de uma cidade em estado de sítio que surge com toda a força no romance. Uma cidade parida pelo poder econômico, cercada pela miséria e pelo crime que alimentam esse mesmo poder, sendo que o crime, como assinala o narrador-personagem, ‚é a única coisa comum aos ricos e aos pobres‛ (CARVALHO, 2007, p. 113). São Paulo é um sonho de um outro lugar, um ator que deseja se fazer passar por um outro com o intuito de mascarar a violência, apagar a tensão entre civilização e barbárie, elementos constituintes de sua identidade e de seu tempo. Um ‚Galicismo a berrar nos desertos da América‛, como escreveu Mário de Andrade (1993, p. 83) para evocar as tranformações de São Paulo, no início do processo de industrialização. Uma cidadesimulacro onde tudo est| ‚fora do lugar‛, ‚fora do tempo também‛ (CARVALHO, 2007, p. 14): A Liberdade é um desses bairros de São Paulo que, embora em menor escala do que nas regiões mais ricas, e por isso mesmo de um modo às vezes até simpático, ressalta no mau gosto de sua rala fantasia arquitetônica o que a cidade tem de mais pobre e de paradoxalmente mais autêntico: a vontade de passar pelo que não é. O pôr-do-sol em São Paulo é reputado como um dos mais espetaculares, por causa da poluição [...] (CARVALHO, 2007, p. 13).

Bernardo Carvalho escreve um romance em torno de identidades camufladas, inspirando-se no teatro japonês que explora as tensões entre máscara e revelação, luz e sombra. Esse é o prisma que norteará a elaboração da imagem da cidade, projetando a visão de uma São Paulo que se esconde por trás de uma identidade falsa, procurando disfarçar os aspectos violentos e o mal-estar do tempo presente, traços característicos de uma metrópole do Terceiro Mundo. Possibilita ao mesmo tempo a discussão entre construções identitárias e

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localidade, evidenciando o estranhamento do protagonista em relação a um espaço urbano desagregado e dissimulado que o impede de tecer laços estáveis de pertencimento, impossibilitando-o de construir para si um lugar habitável. ALTOS E BAIXOS DA ‚CIDADE MARAVILHOSA‛: UM TÁXI PARA VIENA

D’AUSTRIA Tenho dez livros na gaveta, que ninguém publicou e agora não adianta mais publicá-los, porque aqui somos o tempo todo atropelados pela realidade, não dá para planejar nada, estamos em guerra, há uma guerra nos morros, há uma guerra no campo, há uma guerra nas ruas, mesmo que ninguém queira perceber, estamos em guerra, mas ela não é pior do que isso (TORRES, 1991, p. 216).

Assim se expressa o personagem do escritor José Guilherme Cabral, em

Um t|xi para Viena d’Austria (1991), minutos antes de ser assassinado pelo seu amigo, Veltinho, protagonista do romance, cuja intriga se desenrola como uma espécie de crônica de uma morte anunciada. Como na célebre novela de Gabriel Garcia Márquez, desde o início já se sabe que Cabralzinho vai morrer. A cena no entanto permanece em suspense até as páginas finais do texto. Para além de uma história que flerta com o gênero policial, entre outros, o que a trajetória sinuosa da prosa romanesca encena é a generalização da violência no quotidiano do nosso tempo presente que condena o indivíduo à inação, à indiferença ou à curiosidade mórbida, quando não lhe impõe sua lógica brutal. Diante da degradação da vida contemporânea, sair da inação através do assassinato de um escritor desempregado, doente e desequilibrado pode ser um ato de compaixão num mundo que expulsa a sensibilidade e o afeto. No romance Um taxi para Viena d’Austria, Antônio Torres constrói uma narrativa expondo a cacofonia do tempo presente que oprime e subjuga o indivíduo. A possibilidade de refúgio num alhures (ailleurs) não existe mais, o presente é aqui e agora e está em toda a parte. A viagem não se realiza, mas o estranhamento se impõe: imobilizado num táxi preso num engarrafamento, o protagonista tenta juntar os cacos do vivido em meio às imagens desagregadoras do quotidiano presente. A superexposição da realidade através da hipertrofia dos seus dados visíveis torna-a cada vez mais opaca e incompreensível. Para escapar à ditadura do real, o indivíduo refugia-se num mundo de sonhos delirantes que se transformam em pesadelos. A Viena d’Austria de Mozart, evocação idealizada de um mundo sensível, pertence a um passado longínquo. O presente é o da degradação, da precariedade, da violência generalizada, num mundo embrutecido e ‚descerebralizado‛, guiado pela lógica do mercado.

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A harmonia da música de Mozart que toca no rádio de um táxi no Rio de Janeiro se perde entre os múltiplos sons dissonantes da cidade: O radio do táxi está tocando uma musica lindíssima, que mais parece uma oração para consolar defunto fresco. É a Missa em dó maior, de Wolfgang Amadeus Mozart, informa o locutor da FM (TORRES, 1991, p. 29).

Paradoxalmente, o homem que a escuta ou que persegue os sons do jazz pelas noites perigosas e solitárias da cidade é o mesmo que é capaz de matar um amigo. Precariedade do humano, atrofia da consciência individual submetida a um mecanismo que escapa ao seu controle. A trama romanesca é elaborada de maneira fragmentária através de imagens do cotidiano da cidade que se superpõem sem aparente relação entre elas. A escrita fundamenta-se na exploração paródica de gêneros e textos literários e musicais, assim como, dos mais diversos tipos de discursos sociais. Flertando com o gênero policial, o romance encena o crime cometido por um publicitário, desempregado, Watson Rosavelti Campos, nome que evoca comicamente um dos personagens de Conan Doyle. Veltinho, apelido pelo qual é conhecido, termina matando um amigo escritor, doente, o Cabralzinho, que não via há mais de 20 anos. Depois que comete o crime, tenta, em vão, fugir de táxi. O engarrafamento provocado pelo acidente com um caminhão da coca-cola impede o táxi de circular, enquanto o rádio toca uma sinfonia de Mozart e Veltinho delira no banco traseiro. O ato criminoso gratuito, assim como alguns elementos da narrativa, aproximam o personagem de Torres de grandes personagens literários, como o Raskolnikov de Crime e castigo e o Meursault de L’étranger. O contraste entre o discurso na primeira pessoa e a impressão de objetividade que exclui toda possibilidade de introspecção, explorado no célebre romance de Camus, ganha um outro significado na narrativa de Torres. A densidade metafísica dos romances de Dostoievski e de Camus é esvaziada, dando lugar à ironia que rebaixa o caráter trágico da cena. O discurso assumido pelo personagem apoia-se no ponto de vista externo para narrar a cena do crime, estancando na superfície da imagem sem interrogar a motivação do ato nem tampouco procurar aclarar sua compreensão. Dessa forma, o texto revela o vazio de uma consciência que termina sendo vítima da lógica da banalização da violência. A violência acaba se transformando para Veltinho no único caminho para sair da inação. A sensibilidade literária de Torres, em sintonia com o pensamento de estudiosos das sociedades pós-modernas, coloca em cena o mecanismo brutal dessas sociedades, expondo seu caráter totalitário, o esvaziamento do sujeito, o

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fracasso do pensamento, no dizer de Paulo Arantes (2007), ou o mundo ‚descerebrizado‛, para utilizar o termo de Michel Maffesoli (2001). Para o sociólogo francês, ‚a vida pós-moderna, que se esboça sob os nossos olhos, é feita de afectos, de sentimentos, de excessos que nos dirigem mais do que nós os dominamos. O cérebro deixa lugar ao ventre e aos seus múltiplos apetites‛ (MAFFESOLI, 2001, p. 15). A violência do Estado ao asseptizar o corpo social, ao descerebrizá-lo, corre o risco de provocar reações incontroláveis, como o ato brutal e absurdo cometido por Veltinho, motivo que constitui o núcleo narrativo principal do romance, em torno do qual são tecidas as variações do enredo: ‚Ai se eu soubesse antes que matar era tão fácil, tão bom. [...] E descobri mais: não existe movimento mais moderno. Só requer velocidade e cinismo, a receita universal da modernidade‛ (TORRES, 1991, p. 92-93). A liberação catártica de tudo o que o indivíduo foi obrigado a recalcar, devido à pressão de uma sociedade que exerce sobre ele um controle social sofisticado, termina por assumir formas radicais de violência, confundindo-se com a jubilação sádica. Devendo mover-se entre o ‚fantasma totalit|rio‛ que se manifesta por meio do ‚controle, da segurança da existência ou da felicidade planificada‛ (MAFFESOLI, 2001, p. 24) e a busca de autonomia baseada numa lógica individualista de produtividade e de competitividade que nega a solidariedade coletiva, o indivíduo introjeta a esquizofrenia do sistema, perdendo a capacidade de articular ação e pensamento. Para representar o mundo na sua imediatidade, o romance opta pelo uso do presente do indicativo, superpondo narração e ação. A percepção visual é privilegiada e muitas vezes mediada pela tela da tevê, expondo a presença avassaladora desse meio de comunicação e sua capacidade de impor novas modalidades simbólicas de relações com o real. As imagens e ruídos diversos constroem a atmosfera caótica e violenta da cidade. As sequências narrativas, predominantemente curtas, se sucedem sem obrigatoriamente apresentarem vínculos causais, como se o texto romanesco buscasse imitar a linguagem sincopada televisiva. A ilusão de simultaneidade é reforçada pelo recurso ao processo de acumulação de elementos heteróclitos. A atmosfera realista criada por Antônio Torres afasta-se, no entanto, do hipermimetismo dos romances da chamada literatura marginal. Não persegue tampouco o ideário realista da exatidão e da exaustividade, evitando as descrições detalhadas e a ordenação causal das cenas. Torres elabora a cidade-texto de seu romance recorrendo a um intenso processo intertextual, ao qual ele submete as referências culturais eruditas, populares e da cultura de massa. No processo de recriação da ordem desumana de uma sociedade marcada pela centralidade da imagem, modelada pelo consumo e pelos meios de telecomunicação, a escrita romanesca recorre à paródia de gêneros e textos 152 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

literários e musicais, assim como, aos mais diversos tipos de discursos sociais, sem se privar de imitar os efeitos da linguagem da mídia. Privilegia, desse modo, o rebaixamento da dicção veiculada pela voz incerta de um narrador que se confunde com as diversas vozes do corpo social. Assim, a voz do narrador não se afirma e nem assume uma posição hierárquica. Ela flutua entre a primeira pessoa (eu e nós) e a terceira, mistura-se às vozes anônimas da coletividade, integrando fórmulas feitas, slogans publicitários, letras de música popular, dissolvendo-se no meio da cacofonia de vozes que circulam na cidade. A objetividade aparente é reforçada pela utilização do ponto de vista externo, que impede o movimento de introspecção, mesmo em passagens em que a narração é claramente assumida pelo narrador-protagonista. A dramatização da enunciação tem muitas vezes a função de provocar o leitor, explorando a ambivalência que se estabelece em relação ao destinat|rio: ‚Você é feliz? Est| contente com o presente? O que você tem a dizer às novas gerações? Tem planos para o futuro?‛ (TORRES, 1991, p. 41). A proliferação de tons e de estilos filtrados pelo princípio da ironia embasa o sistema narrativo do romance de Antônio Torres e denuncia indiretamente as armadilhas dos discursos. Ao comentar a língua literária do escritor, Muniz Sodré (1991) afirma que ela ‚transmite uma experiência de plurilinguagem, por onde se expressa a modernidade caótica ou eclética demais [...] em que vivemos‛ Essa ‚tagarelice‛ do texto aponta para o movimento contínuo de ressignificação dos discursos, capturando, literariamente, através de uma sintaxe inovadora, a desarticulação do pensamento expressa no automatismo das fórmulas que se acumulam como sintoma do esvaziamento ideológico do sujeito: Não me chamo Raimundo. Foda-se o mundo. Vou à praia. Andar, andar, andar até ficar de pé redondo, como um bêbado (TORRES, 1991, p. 195).

Magnífico exemplo da originalidade do processo intertextual tal qual ele se manifesta na obra do autor, aludindo a textos diversos, como o de Drummond, o de Shakespeare e o dele próprio. Essa estratégia discursiva está assentada na consciência da impossibilidade de uma palavra primeira. O discurso de Torres funda sua novidade na reapropiação irônica de outros discursos, deslocando e recriando. As múltiplas vozes que atravessam o romance delineiam espaços cindidos que expõem as fraturas sociais. A configuração espacial privilegia o antagonismo entre ‚os l| de cima‛ (o espaço dos habitantes das favelas incrustadas nos morros) e os ‚l| de baixo‛ (habitantes da zona praieira

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burguesa carioca). No interior do tecido urbano carioca, a tensão entre a Zona Sul e os morros é uma constante: Os lá de cima não desceram em peso, como temíamos. [...] Numa contagem assim por alto calcula-se que os de lá de cima já somam mais de dois milhões. Tudo preto e pobre, mas mais armados do que os brancos cá de baixo. Quer dizer: munição pesada, sofisticadíssima. O nosso morro é bem moderno, cara, saca? (TORRES, 1991, p. 21). Copacabana is moving, vivid, exciting, explosive. Se não está explodindo, ainda vai explodir, como o avião do seu sonho de ontem à noite (TORRES, 1991, p. 191).

O romance recria a atmosfera ameaçadora que instaura o pânico no quotidiano da cidade e que dá lugar à ideologia da segurança. Um outro antagonismo pode ser observado, entre o espaço rural e urbano brasileiro, no confronto entre o passado da infância do protagonista, no interior do Nordeste — território e temporalidade que proporcionam ao indivíduo uma experiência mais íntima e harmoniosa com a natureza — e elementos materiais da urbanidade, verdadeiras mazelas das sociedades ocidentais moderno-contemporâneas: ‚Só vejo prédio alto. Cadê o cheiro das suas goiabas, no quintal? Meu cheiro é de álcool e de gasolina. E de pólvora‛ (TORRES, 1991, p. 172). Não há, no entanto, idealização do espaço rural que emerge com suas contradições e suas configurações específicas de violência. Essas vozes e espaços antagônicos interrogam as modalidades da contemporaneidade do humano e o modelo evolucionista do progresso ocidental. Uma das formas mais contundentes desse questionamento se dá através do personagem Zé do Eter, mendigo de aspecto repugnante, cujo corpo em decomposição expressa, metonimicamente, o alto grau de abjeção da vida contemporânea. — Uma tempestade está soprando do paraíso. Ela se prendeu nas asas de um anjo, com tanta violência, que ele não pode mais fechá-las. A tempestade o impulsionou irresistivelmente ao futuro, para o qual as suas costas estão voltadas, enquanto uma pilha de lixo diante dele cresce na direção do céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso (TORRES, 1991, p. 197).

O discurso de Zé do Eter, marcado por um registro intensamente poético para evocar os limites da ideologia do progresso, contrasta com sua aparência e transforma-o numa espécie de anjo decadente da pós-modernidade. Zé do Eter representa a recusa radical da lógica do trabalho e da produtividade. Por rejeitar as formas de regulação da vida social, transforma-se em dejeto ambu154 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

lante, lixo urbano, como tantos outros que perambulam pelas ruas da cidade. Este ‚produto da civilizaç~o e do desenvolvimento‛ (TORRES, 1991, p. 124) destoa da magnífica paisagem da ‚Cidade Maravilhosa‛ que assiste impassível { miséria social, indiferente ao drama humano: ‚O Rio é t~o bonito que chega a dar raiva‛ (TORRES, 1991, p. 222). Na fatura do romance, de composição fragmentária e polifônica, Torres parece perseguir os movimentos variados da sinfonia e dos acordes do jazz para compor uma obra de desencanto em sintonia com a frustração de todo um povo que sonhou com um Brasil do bem-estar social após a liberação das garras da ditadura. Publicado em plena era Collor, que acelerou a entrada do Brasil no capitalismo neo-liberal, o romance capta elementos próprios das sociedades pós-modernas, acolhe os diferentes discursos sociais expondo as tensões e as formas diversas e disfarçadas do controle social e da exclusão. Na obra de Torres é possível ler a um só tempo as vozes dos excluídos da sociedade e a dicção do poder; fórmulas eruditas e aforismos que expressam o senso comum; discurso mediático e citações da tradição literária. Recusando uma visão simplista da trama social, o romance denuncia a violência das imagens espetaculosas que alimentam quotidianamente a mídia, procurando expor os pontos nevrálgicos de uma nova era de ‚embotamento integral‛, { qual se refere Paulo Arantes, fundamentada na ideologia da segurança e no esvaziamento ideológico do sujeito. A ESCRITA SOB TENSÃO Adotando estratégias discursivas diversas, as figuras da violência urbana nos romances aqui evocados apontam para a precaridade desse espaço público que impede a construção de um espaço de subjetivação. No impacto da denúncia da exclusão social, como na exposição da subjetividade destroçada, os textos expõem as consequências perversas do neo-liberalismo globalizado. Não deixam, no entanto, de ser também uma reflexão sobre a necessidade de criação de um ‚lugar habit|vel‛, no sentido que Simon Harel atribui a esse conceito. Segundo este autor, a ‚habitabilidade‛ é uma forma vital de relaç~o com o mundo, ela nos engaja como sujeito no mundo que nos olha e que nós observamos8.

8

‚L’habitabilité est ainsi l’expression d’un univers psychique. Elle est la forme vitale d’une relation au monde. […] Elle nous engage comme sujet dans un monde qui nous regarde et que nous observons. Cette habitabilité est un site d’(inter)locutions où nous sommes { la fois entendeurs et énonciateurs‛ (HAREL, 2007, p. 101).

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No projeto de Férrez e da literatura marginal, a escrita é denúncia da violência da exclusão, mas quer também ser uma forma de ação sobre o mundo, ao inserir a voz da periferia na série literária da literatura brasileira: ‚Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país mas n~o recebe sua parte‛ (FERRÉZ, 2005, p. 9). O projeto literário inscreve-se numa perspectiva de confrontação que faz emergir uma voz única e autoritária como representante da comunidade com enfoque na sua condição de exclusão. Um dos paradoxos desse projeto diz respeito à expressão do desejo de inversão da relação hierárquica entre centro e periferia que encontra-se assentada em marcas linguísticas do discurso autoritário. Atribui à palavra uma força pragmática, projetando assim a possibilidade de transformar o mundo num ‚lugar habit|vel‛. Torna-se dessa forma, tributário de um realismo social que confere à literatura o poder político de interferir diretamente no real. Trilhando um outro caminho, os romances de Carvalho e de Torres exploram a fundo o caráter dialógico do discurso, para expor as facetas da violência. Ambos desconfiam do poder da palavra para apreender ‚a realidade do real‛, e, por conseguinte, interrogam incessantemente a tessitura de significados do discurso. As figuras da violência são trabalhadas no próprio tecido linguístico do texto, atravessado por múltiplas vozes e variados registros discursivos. Por outro lado, o contexto do neo-liberalismo globalizado imprime uma aura de desencanto que se manifesta em ambos os romances. Significativa é a coincidência que faz com que os narradores e protagonistas de Um táxi para Viena d’Austria e O sol se põe em São Paulo sejam ambos publicitários desempregados, uma forma desses textos fazerem alusão à lógica cruel da ditadura do mercado. A escrita encontra-se sob dupla tensão: a violência das cenas urbanas conjugada { violência da impossibilidade de projetar um ‚lugar habit|vel‛, embora tecer o significado dessa impossibilidade seja uma maneira de afirmar sua necessidade. Os romances de Carvalho e de Torres perseguem a construção de um ‚lugar habit|vel‛ pela fabulaç~o de sua falta. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Inspiração. Paulicéia desvairada. In: Idem. Poesias completas. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Vila Rica, 1993, p. 83. ARANTES, Paulo Arantes. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007. ARAÚJO, Jorge de Souza. Floração de imaginários. O romance baiano no século 20 . Itabuna/Ilhéus: Via Litterarum, 2008. CAMPION, Pierre. La réalité du réel. Essai sur les raisons de la littérature. Rennes: PUR, 2003.

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VIOLÊNCIA SIMBÓLICA Roberto H. Seidel1 Se isto é democracia, podemos imaginar quão longe dela nos encontramos, pois vivemos numa sociedade oligárquica, hierárquica, violenta e autoritária (Marilena Chauí, Cultura e democracia, p. 53). [...] o radical de ocasião se explica pelo colossal conservadorismo da sociedade brasileira, uma muralha de dominação praticamente sem brecha, salvo, justamente, essas traições de classe ocasionais (Paulo Arantes, Extinção, p. 237).

1 CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO É contumaz ouvir, no âmbito do senso comum, que o ser humano seja tão propenso à paz quanto à violência. Surge daí uma dicotomia, notadamente, bem-mal, aparentemente sem solução no mundo ocidental, apesar de todo um esforço de desconstrução de dicotomias de tal sorte no âmbito da teoria a partir da metade do século passado. Em tempos da propalada crescente insegurança, quando os sujeitos buscam se ‚aquartelar‛, simulando a reconstruç~o de elos que remontam { pretensa ‚comunidade‛, esta sempre no passado ou sempre no futuro, a pergunta pela segurança frente à violência torna de modo especialmente premente. Aqui, de saída, já é possível de se divisar um paradoxo que atravessa o campo sociossimbólico, erigindo uma ‚ficç~o simbólica‛, o ‚grande Outro‛ determinando ‚o que vale como verdade normal e aceit|vel‛, para dar conta daquilo que não foi possível de simbolizar, daquilo que não foi possível de justificar, de expressar em palavras; e que atravessa, em última instância, a divisão do espaço político em esquerda e direita: um sujeito de esquerda e um de direita não só ocupam lugares diferentes dentro do espectro político, como cada um deles percebe de modo diferente a própria disposição do espaço político — a esquerda como um campo inerentemente dividido por um antagonismo fundamental, e a direita como uma unidade orgânica da comunidade perturbada apenas por estrangeiros intrusos (ZIZEK, 2009, p. 161).

1

Professor Adjunto de Teoria da Literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); endereço eletrônico: [email protected]. — Agradeço ao psicanalista Prof. Dr. Carlos Mascarenhas a leitura dos originais do presente texto.

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Para além deste vislumbre de Zizek — da esquerda como eminentemente moderna, enquanto exercendo crítica e propondo reforma da sociedade, e da direita como defensora, ao menos retoricamente, de valores pré-modernos —, o que sobressai mesmo desse trecho é mais uma oposição, notadamente, entre sociedade e comunidade. O conceito de comunidade em oposição à sociedade remonta aos trabalhos de Ferdinand Tönnies, cuja obra Gemeinschaft und Gesellschaft (de 1887), conforme Bauman, ‚convidava a ‘comunidade’ (Gemeinschaft) a voltar do exílio a que tinha sido condenada durante a cruzada moderna contra les pouvoirs intermédiaires‛. Tönnies sugere ainda que ‚o que distinguia a comunidade antiga da (moderna) sociedade em ascensão (Gesellschaft) em cujo nome a cruzada fora feita, era um entendimento compartilhado por todos os seus membros‛ (BAUMAN, 2003, p. 15, grifos do original). Entendimento aqui não pode ser compreendido como consenso: este é um acordo alcançado por pessoas com opiniões diferentes, que chegam ao acordo por meio de negociações e compromissos; ao passo que aquele é o que dá a sensação perceptível dentro da comunidade, de que as pessoas se entendem sem precisarem expressar isso em palavras, sem precisarem estar perguntando o tempo todo: ‚o que você quer dizer?‛. Este ‚círculo aconchegante‛ que o ser humano percebia na comunidade, quase que um ‚círculo m|gico‛, em que o entendimento comum fluía de forma natural, passando despercebido quase como o ar que respiramos, essa comunidade que era um ‚tipo de imers~o ingênua na uni~o humana‛ é ‚hoje somente possível, e cada vez mais, em sonhos‛ (BAUMAN, 2003, p. 16). Bauman realça que, numa verdadeira comunidade, não há motivação para a reflexão, nem para a crítica ou para a experimentação, já que a comunidade é fiel à sua natureza, na medida em que é ‚distinta‛ de outras comunidades; é ‚pequena‛, estando visível a todos os seus membros; e é ‚auto-suficiente‛, atendendo a todas as necessidades de seus membros, do berço ao túmulo. Daqui assoma a distinção entre o ‚nós‛ e o ‚eles‛, ao mesmo tempo em que se vislumbra o estofo da unidade e do entendimento da comunidade: ela é feita de homogeneidade e de mesmidade. Essa mesmidade encontra dificuldades no momento em que suas condições começam a desabar: quando o equilíbrio entre a comunicaç~o ‚de dentro‛ e ‚de fora‛, antes inclinado para o interior, começa a mudar, embaçando a distinç~o entre ‚nós‛ e ‚eles‛. A mesmidade se evapora quando a comunicação entre os de dentro e o mundo exterior se intensifica e passa a ter mais peso que as trocas mútuas internas (BAUMAN, 2003, p. 18).

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Daí que essa fissura interna surge como um golpe mortal para a comunidade, que agora só mais será possível de ser instituída de forma arbitrária; portanto, de forma impossível, j| que a ‚naturalidade‛ (inocência) perdida jamais poderá ser erigida de novo (a não ser, talvez, de forma simulada). Além desse contexto em que o simbólico se coloca como inocência e como violência a um só tempo, surge, ainda, todo um campo semântico que remonta a discussões anteriores sobre a própria definição da modernidade, em termos mais propriamente sociológicos, tais como, ‚desencaixe‛, ‚ambivalência‛, ‚desengajamento‛, ‚barb|rie‛, ‚liquidez‛, ‚desenraizamento‛, ‚multiculturalismo‛, ‚indivíduo‛, ‚totalitarismo‛. Chega-se mesmo, já mais recentemente, a postulações de noções como ‚comunidade imaginada‛, ‚naç~o imaginada‛ — esta como uma construção de ordem simbólica ampliada daquela —, passando por ‚cidade imaginada‛, para chegar até a ‚globalizaç~o imaginada‛. O que perpassa a estas noções é que todas elas são estruturadas sociossimbolicamente, mediante o que o real surge como desde sempre já uma versão. Na atualidade, tais noções são mesmo indicativas (sintomas) do que não vai bem no real, de que não haveria mais aquilo que possibilitasse o vínculo intersubjetivo; que, em última instância, frente ao ‚estado de sítio global‛, caracterizado como ‚estado de guerra permanente sem previsão de fim‛ (cf. ARANTES, 2007a, 2007b), o próprio real se torna desertificado, por intermédio da ação das forças por Milton Santos (2000) t~o bem denominadas de ‚globaritarismo‛. Diante dessas questões, o presente texto é uma tentativa de aproximação ao tema da violência a partir de uma visada crítica que pretende compreender os aspectos que naturalizam a violência no contemporâneo, entendendo aí o exercício da crítica em sua justa dimensão de desnaturalização do senso comum, i. e., em sua dimensão simbólica, no âmbito da cultura, portanto2. Para tanto, faço primeiramente uma breve explanação do trabalho de Jacques Lacan, em sua volta a Sigmund Freud e elucidando o tributo que Lacan faz ao trabalho de Marx. Na sequência, o conceito de ‚poder simbólico‛, desenvolvido no início dos anos setenta do século passado por Pierre Bourdieu (2010, p. 7-16), é elucidado, para servir de paralelo ao registro do simbólico lacaniano. Apesar de que a violência imaginária, ensejada principalmente pelo próprio mercado da imagem contemporânea, seja tangenciada, o intuito principal é elucidar a violência simbólica, que remonta ao caráter obscuro e totalitário do próprio reino naturalizado da cultura.

2

Para uma explicitação do conceito de crítica cultural, veja: Seidel (2008).

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De certo, a partir desse enquadramento geral, de uma ou de outra forma, exsurge que todos somos vítimas de violência. O espanto maior, no entanto, é quando a violência nos atinge de uma forma inesperada, em uma situação que julgávamos pacífica. Num primeiro momento, enquanto vítimas, ficamos como que pasmos; depois, com o olhar mais distanciado, é possível perceber a violência sofrida como sintoma. Portanto, o presente texto, juntamente com outro produzido recentemente (SEIDEL, 2009), soem ser respostas à violência sofrida por este autor no âmbito institucional. Demais disso, a questão do simbólico enquanto espaço de embates onde são travadas as lutas por espaço discursivo e afirmativo por parte dos grupos subalternos e marginalizados já tinha sido apontada em trabalhos anteriores (SEIDEL, 2006, 2007), restando aqui o seu vínculo mais propriamente às proposições da psicanálise, esta encarada aqui em sua ‚vers~o propriamente analítica, que convoca a palavra a trabalhar, tentando escutar e acolher os efeitos que ela produz, inclusive no campo social‛, sendo papel do analista n~o a interferência ‚como explicador mas como perguntador, expondo a fragilidade que existe sob a aparência das certezas estabelecidas e convidando os agentes sociais a suportar a angústia de se indagar, mais e mais uma vez, sobre os fundamentos de seu saber e de sua pr|tica‛. N~o se trata, portanto, de uma vers~o psicanalítica do tipo ‚Freud explica‛, vers~o apaziguadora que procura elucidar na neurose e nos complexos inconscientes — portanto, no registro do simbólico — explicações satisfatórias ou justificadoras do mal e da infelicidade, avalizando ‚um pacto cínico‛, cujo resultado seria: ‚O ser humano é assim, n~o h| nada que se possa fazer‛; ou ainda, de uma ‚leitura calhorda‛ das descobertas psicanalíticas, que afirmaria que ‚se o inconsciente existe, tudo é permitido‛. É neste viés que vai a pertinência e a relevância do aparato psicanalítico, num sentido bem freudiano que, com seu trabalho em fins do séc. XIX e inícios do séc. XX, ‚pretendia abalar a prepotência da moral burguesa e a vaidade do ‘homem de bem’ do início do século XX, apontando o mal que se pratica, o sofrimento que se inflige ao outro e a si próprio em nome de um código que se acredita absoluto, inquestion|vel‛. Demais disso, quando Freud, do ponto de vista do inconsciente, admite que ‚o mal n~o existe e a moral n~o importa‛, isso n~o é raz~o suficiente para ‚autorizar que nos tornemos imorais, mas apenas um pouco mais tolerantes com as falhas alheias, um pouco mais humildes em relaç~o a nossas qualidades‛ (KEHL, 2009, p. 28-29). Destarte, procurar-se-á investigar, no presente trabalho, acerca do quanto da violência é discurso simbólico e o quanto é prática social, a partir de estudo de obras de arte literárias oriundas do que comumente é denominado de literatura marginal. 162 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

2 ‚RAZÕES DE MERCADO‛ E VIOLÊNCIA Jacques Lacan é o grande renovador da psicanálise freudiana em meados do séc. XX. No seminário ministrado entre 1974 e 19753, propõe uma nova compreensão da tríade freudiana do inconsciente, subconsciente e consciente, tríade esta posteriormente incorporada ao escopo teórico da teoria freudiana como id, superego e ego. No referido seminário, que passou a ser conhecido como R.S.I., Lacan apresenta a sistematização dos três registros, que já vinha propondo desde seminários anteriores, a saber, o real, o simbólico e o imaginário. O leitor desavisado talvez possa se surpreender, pois, além de promover no seio da psicanálise uma volta a Freud, o teórico que serviu sobremaneira a Lacan para a proposição dos três registros foi Marx, especificamente quando atribui a este a articulaç~o da noç~o de ‚sintoma‛ — bem antes de Freud, portanto. Esta atribuição, por assim dizer, da invenção do sintoma a Marx, é elucidativa da relação entre o âmbito do simbólico e do real. Conforme Lacan: Se o Real manifesta-se na análise, e não somente na análise, se a noção de sintoma foi introduzida por Marx, bem antes de Freud, de forma a torná-lo signo de alguma coisa que não vai bem no Real, se, em outros termos, somos capazes de operar sobre o sintoma, é enquanto o sintoma é efeito do Simbólico no Real (LACAN, R.S.I., p. 7 apud SILVEIRA, 2002, p. 125).

Lacan localiza, portanto, a questão do sintoma na relação dos sujeitos com o capital, com a mais-valia, na medida em que atribui a Marx a demonstração do que estava em jogo — conforme Lacan: simbólica e realmente — na mais-valia, desta que reveste a mercadoria com o brilho do fetiche e que representa ‚o tempo de vida expropriado aos homens que trabalham para produzi-la [a mercadoria]‛ (KEHL, 2008a, p. 130); portanto, se o sintoma é efeito do Simbólico no Real, a raiz da violência deve ser buscada no Simbólico. Aqui de fato se deve reconhecer a importância de Lacan, pois ele vai recolocar a questão da ideologia em um novo patamar. Ocorre que, a partir de certas leituras da Ideologia alemã, de Marx e Engels, houve uma mera inversão de certos pressupostos do idealismo alemão, que ensejou, na pretendida fundamentação, por parte destes dois autores, de uma ciência da história a partir do real, um atrelamento, por assim dizer, um ‚enredamento naquela dialética binária entre o real e o imaginário, que implicou um certo descaso pela dimensão do simbólico‛ (SILVEIRA, 2002, p. 124), tarefa que, se, por um lado e num primeiro momento, ensejou a fundamentação da noção de ideologia como impor3

Publicado sob o nome de: R.S.I. (Real, simbólico, imaginário). O Seminário 74/75.

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tante categoria de análise da violência da mais-valia, por outro e já em meados do séc. XX, proporcionou munição para as chamadas teorias do fim da ideologia. Será, pois, com a dimensão simbólica do social, que Lacan recolhe de Marx, que vai ser possível uma análise da relação entre o simbólico e o real. Mais recentemente, outro importante pensador empreende análises a partir do prisma da psicanálise lacaniana, aplicando-a em suas análises à cultura dita pós-moderna. Trata-se de Slavoj Zizek. Conforme Silveira (2002, p. 126-7), Zizek demonstra outras confluências entre as proposições de Marx e de Lacan, destacadamente, a ‚perfeita homologia entre a forma-mercadoria, tal como foi desenvolvida por Marx n’O capital, e a teoria lacaniana do significante‛. Explique-se isso um pouco. Em sua análise da forma-mercadoria, Marx a considera como forma historicamente desenvolvida, no momento em que um equivalente geral aparece no lugar de uma mercadoria. O equivalente geral da mercadoria foi primeiramente o ouro e mais tarde o dinheiro. Daí que ocorre que toda e qualquer mercadoria possa, destarte, expressar seu valor em uma única mercadoria, notadamente: no equivalente geral, representado pelo dinheiro. Desse modo, o valor de uso de uma mercadoria, que antes era determinado sempre de forma relacional com outras mercadorias, passa a tomar o lugar da mercadoria, cujo valor agora poderá servir de expressão do valor de todas as demais mercadorias, expressando, assim, a totalização de uma série — conforme Silveira, na esteira de Zizek, uma ‚totalizaç~o impossível‛; portanto, da mesma forma como ocorre com a cadeia de significantes, daí a homologia. Segundo a linguística saussureana, o significado precederia o significante. Lacan empreende uma inversão: o significante precede o significado, de forma que a dimensão simbólica arrecada para si o status de promotora da cadeia de significantes. Isso ocorre porque nenhum significante, considerado isoladamente, possui significado; o significante apenas produz significado quando em relação com outro significante, ou com outros, numa cadeia de significantes. Conforme a análise de Silveira (2002, p. 127), Sucede, portanto, com o significante, o mesmo que com uma mercadoria, que não pode expressar seu valor em si mesma. Assim, uma relação entre significantes, que, portanto, produz, significação, é exatamente homóloga à relação de valor entre as mercadorias.

Demais disso, em Lacan, o equivalente geral da forma-mercadoria, na cadeia de significantes, é denominado de ‚significante-mestre‛, na medida em que este ‚totaliza uma cadeia de significantes‛ e aquela, ‚totaliza uma série infinita

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de relações de valor‛ (SILVEIRA, 2002, p. 128) — ambas totalizações impossíveis, já que o dinheiro jamais vai expressar exatamente o valor da mercadoria. Esta questão ainda se torna mais problemática, caso se considere que, no mundo contempor}neo, ‚as razões de mercado‛ se expandem em um grau superlativo que abrangem o globo todo, tomando o lugar daquilo que antes era ocupado por escopos fundadores, tais como a tradição, as religiões ou ainda a mera transmissão familiar — ou seja, estruturas simbólicas ‚equilibradas‛ —, cujos fundamentos deixam de ‚fazer sentido‛, nomeadamente na fundamentaç~o da dimensão do que a vida deva ser, do que seja o bem — portanto, da dimensão ética. Conforme Kehl (2009, p. 10-11), As razões de mercado só nos oferecem a repetição de sua própria trivialidade, revestida das aparências de um ‚saber viver‛ que só funciona se conseguimos reduzir a vida à sua dimensão mais achatada: o circuito da satisfação de necessidades. Esse circuito parece o da agitação de um desejo insaciável, mas não é; pois os objetos oferecidos para nossa saciedade são tão banais e equivalentes quanto todas as mercadorias. Além disso, são objetos que existem no mundo, criando a permanente ilusão de que o desejo pode ser satisfeito — ao passo que o objeto do desejo é um objeto inexistente, perdido desde sempre, cuja busca lança o sujeito numa incansável repetição. [...] os discursos que organizam as razões de mercado consistem em cadeias metafóricas muito pobres [...].

Portanto, depreende-se, deste contexto esboçado até agora, que há mesmo um ‚desencaixe‛, para usar um termo da sociologia. Na sequência, verifiquemos a proposiç~o do ‚poder simbólico‛, para, em seguida, nos dedicarmos ao ‚registro do simbólico‛ lacaniano. 5 O ‚PODER SIMBÓLICO‛ Conforme a definição de Bourdieu (2010, p. 7-8), o ‚poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem‛. Dessa forma, na esteira do que Durkheim denominou de ‚conformismo lógico‛, o poder simbólico é um poder que constrói a realidade, tendendo a estabelecer uma ‚ordem gnoseológica‛; portanto, arrecadando o ‚sentido imediato do mundo‛, especial e particularmente, do mundo social. A partir daí, Bourdieu vai tratar das sínteses que ocorrem na configuração desse tipo de poder, que se assemelha a um círculo cujo centro está em toda parte. Atrela, assim, à tradição sociológica de um Max Weber, que falava da ‚domesticaç~o do dominados‛, sendo assinaladas, além disso, as funções políticas dos ‚sistemas simbólicos‛, na medida em que estes produzem um ‚efeito ideológico‛, cujo objetivo é a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, mediante a desmobilização

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produzida por uma cultura dominante que dissimula a divisão interna da sociedade. Dessa forma, legitima-se, impõe-se e assegura-se, por meio da função política dos sistemas simbólicos, a dominação de uma classe sobre a outra, o que Bourdieu (2010, p. 10-11) explicitamente nomeia de ‚violência simbólica‛. O autor ainda distingue os tipos de ‚especialistas da produç~o simbólica‛, entre os quais constata mesmo uma ‚luta‛, travada em torno do ‚monopólio da violência simbólica legítima‛ — aqui de novo ele atrela ao pensamento de Weber. E, novamente, surge a questão da luta simbólica entre as classes, sendo que a classe dominante, cujo poder assenta no poder econômico, é o lugar da luta pela hierarquia dos princípios de hierarquização. Deste modo, as facções dominantes impõem a sua dominação, de um lado, por meio de sua própria produç~o simbólica, de outro, por meio dos ‚ideólogos conservadores‛. Por seu turno, a facç~o dominada dos especialistas da produç~o simbólica ‚(letrados ou ‘intelectuais’ e ‘artistas’, segundo a época) tende sempre a colocar o capital específico a que ela deve a sua posição, no topo da hierarquia dos princípios de hierarquizaç~o‛ (BOURDIEU, 2010, p. 12); portanto, quando estes últimos não são co-optados pelos primeiros e pelos segundos, podem estar muito bem implicados de uma ou de outra forma neste processo. É neste viés que a questão da violência simbólica vem sendo tratada dentro do contexto educacional4. Caso consideremos o estado como o detentor 4

Veja-se, a cunho de exemplo de tratamento dessa questão: L’Apiccirella (2003) e Araújo (2004); além disso, para um panorama da violência simbólica do ponto de vista histórico, em contraste com análise de dados recentes sobre acesso democrático ao ensino superior, veja-se Vargas (2008, p. 736), de onde retiramos o seguinte trecho, de palestra proferida por Anísio Teixeira, em 1935: ‚Toda sociedade tem seus processos instintivos de defesa e de conservação. O Brasil, como país agrário e pobre, havia desenvolvido um sistema de educação muito engenhoso para a sobrevivência de suas classes altas. Com a decadência do latifúndio, a fronteira que se abria às famílias empobrecidas era a da educação para as funções do Estado, a política e as profissões liberais. Um sistema público, universal e gratuito de educação não conviria, pois abriria as portas a uma possível deslocação das camadas sociais. Uma escola pública primária gratuita, mas pouco accessível, com espírito marcadamente de classe média, poderia servir às classes populares, sem com isso excitá-las demasiado à conquista de outros graus de educação. Como válvula de segurança, escolas normais e técnico-profissionais se abririam à continuação dos estudos pelos mais capazes. No nível médio, pois, criar-se-iam dois tipos de escola: o secundário ou propedêutico aos estudos superiores, a ser ministrado em escolas particulares pagas e destinado às classes de recursos suficientes para custear, nesse nível, a educação dos filhos e a escola normal e a técnico-profissional, em número reduzido, públicas e gratuitas, para o povo. Criados tais óbices para o acesso ao ensino superior, poderia o mesmo ser público e gratuito. E foi o que se fez, ficando deste modo assegurada às classes dominantes mas em parte já empobrecidas do país a oportunidade de dar a seus filhos a educação necessária às carreiras burocráticas e liberais, com que as boas famílias brasileiras contavam superar as dificuldades da desagregação da classe agrária. Com esse sistema, assegurou-se a estabilidade social e começamos a marcha para a sociedade de ‘funcionários e doutores’ que sucedeu ao nosso patriarcado rural‛.

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clássico da violência5, a escola, por ter sido tradicionalmente um braço do estado no exercício de sua violência homogeneizadora — portanto, enquanto inst}ncia que assegurava aquele ‚conformismo lógico‛, i. e., que garantia ‚uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna[va] possível a concord}ncia entre as inteligências‛ (DURKHEIM apud BOURDIEU, 2010, p. 9) —, se colocava como o lócus por excelência da violência simbólica. Neste aparte, encara-se o professor como ‚intelectual‛ e, frente ao seu silêncio quase que generalizado nesta questão, bem que se poderia considerar esta uma faceta daquilo que, em outro contexto, nos últimos anos, foi denominado de ‚o silêncio dos intelectuais‛. E, conforme constatação de Arantes, acresce-se a questão do exercício do pensamento no Brasil, já que, ‚numa sociedade totalmente administrada, não há mais nada inofensivo, até mesmo o uso público da razão periga converter-se em colaboração, participação na injustiça, reafirmação da sociedade em seu confortável horror terminal‛ (ARANTES, 2007c, p. 230). 4 A ‚ORDEM DE EXISTÊNCIA‛ DO SIMBÓLICO Diferentemente da realidade, à qual somente temos acesso por meio do simbólico, representado pela linguagem, o real lacaniano é definido como aquilo que nos escapa; portanto, aquilo que escapa à simbolização, enquanto resto, enquanto inominável, assomando ora como sintoma na fala do analisante no processo da análise; ora como um discurso inconsciente só apreensível num corte, num intervalo; ora ainda apresentado como sendo sem fissura, sendo que ao simbólico cabe fazer um ‚furo‛ no real para levar o sujeito a fazer o corte, que então passa a ser um acontecimento denominado de real, mas que não é simbolizado por nada. Por seu turno, o registro do imaginário em Lacan corresponde ao âmbito do ego freudiano; o investimento libidinal (desejo) do eu do sujeito foi denominado por Freud de narcisismo. A partir da percepção de que não existe a princípio uma unidade estável do sujeito — colocada por Freud em Introdução ao narcisismo —, Lacan vai propor a metáfora do estágio do espelho. Será só mediante a visualização especular de seu si (seu eu, moi, em 5

Acerca disso, veja-se Arantes (2007a e 2007b); bem como, de uma visada mais estritamente jurídica, Mendonça (1996, p. 95 — grifos da autora): ‚Diversamente de Weber, para quem ‘o Estado é aquela comunidade humana que, no interior de um determinado território [...] reclama para si (com êxito) o monopólio da coerç~o física legítima’, assumimos aqui ser o Estado uma condensação de relações sociais cristalizada numa dada ossatura material, junto à qual se inscrevem grupos e/ou seus agentes, previamente organizados ao nível da sociedade civil, em busca do monopólio do uso legítimo não somente da violência física, mas também daquela de cunho simbólico sobre o conjunto da sociedade a ele correspondente‛.

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francês) refletido na imagem do espelho que a criança vai perceber que ela não mais é una com o corpo da mãe, passando a perceber-se a si mesmo como uma unidade, mas uma unidade fragmentada em relação a esta unidade anteriormente percebida em simbiose com a mãe. Desse modo, Esta situação é fundamentalmente mítica. É uma metáfora da condição humana, uma vez que estamos sempre ansiando por uma completude que não pode jamais ser encontrada, infinitamente capturada em miragens que ensaiam sentidos onde o sentido está sempre em falta (BRAGA, 1999. [online]).

Já o simbólico é o local do código, da linguagem; da lei que estrutura o âmbito da cultura. Refere-se à ordem anterior e já pré-estabelecida dentro da qual o ser humano nasce. Lacan deve a estruturação deste registro ao contato com a obra de Lévi-Strauss, amarrando, dessa forma, ao inconsciente freudiano. A partir do estudo das estruturas elementares de parentesco tratadas por LéviStrauss, foi possível a Lacan repensar o complexo de Édipo e a proibição do incesto enquanto função simbólica, enquanto uma lei inconsciente ordenadora da organizaç~o da cultura. ‚Todo sujeito determina-se por seu pertencimento a uma ordem simbólica. Na categoria do simbólico, o inconsciente freudiano é repensado como cadeia de significantes‛ (MATZ, 2010. [online]); portanto, naquele sentido acima já referido da inversão dos termos saussureanos, mantendo, contudo, a ideia de que o inconsciente é estruturado como linguagem. Aqui entra a proposição do conceito chave do Nome do Pai, baixo ao qual a função simbólica torna-se lei (como, p. ex., na proibição do incesto). O Nome do Pai, este pai simbólico, não coincide com o pai real ou com o pai imaginário, sendo tão somente a expressão de um pai abstrato enquanto representante coercitivo do reino da cultura. Daqui que remonta a grafia com iniciais maiúsculas do Outro, o grande Outro, representado pela linguagem, pela lei, pela cultura — portanto, enquanto radical alteridade. Conforme Braga, ‚O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro recíproco e simétrico ao eu imaginário‛ (BRAGA, 1999. [online]). Vale ainda remeter à citação de Miller trazida pela autora: O outro é o grande Outro da linguagem, que está sempre já aí. É o outro do discurso universal, de tudo o que foi dito, na medida em que é pensável. Diria também que é o Outro da biblioteca de Borges, da biblioteca total. É também o Outro da verdade, esse Outro que é um terceiro em relação a todo diálogo, porque no diálogo de um com outro sempre está o que funciona como referência tanto do acordo quanto do desacordo, o Outro do pacto quanto o Outro da controvérsia. Todo

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mundo sabe que se deve estar de acordo para poder realizar uma controvérsia, e isso é o que faz com que os diálogos sejam tão difíceis. Deve-se estar de acordo em alguns pontos fundamentais para poder-se escutar mutuamente. [...] É o Outro da palavra que é o alocutário fundamental, a direção do discurso mais além daquele a quem se dirige. A quem falo agora? Falo aos que estão aqui e falo também à coerência que tento manter (MILLER apud BRAGA, 1999. [online]).

Destarte, o simbólico é estruturante da realidade humana; como corolário, o ser humano só tem acesso ao mundo, na medida em que, além do imaginário, das significações, ele faz uso do significante. Vejamos agora de que forma estas três instâncias podem ser operativas no que concerne ao tratamento do tema da violência no contemporâneo. Voltemo-nos primeiramente para a questão da imagem. 5 IMAGEM E FASCISMO Como indicado anteriormente, apenas tangencio aqui celeremente a quest~o da violência ensejada pelo imagin|rio. No ensaio ‚Imagens da violência e violência das imagens‛, a psicanalista Maria Rita Kehl principia com uma afirmaç~o categórica, notadamente: ‚toda imagem tem um potencial de violência‛ (KEHL, 2008b, p. 126). Isso ocorre por conta do extraordinário poder de comunicação que a imagem enseja, o que se vislumbra a partir do seguinte raciocínio: conforme a definição semiótica de signo, que afirma que todo signo est| para algo ausente, a autora constata que ‚a imagem é o que mais se parece com a presença da coisa‛, de forma que o sujeito pode facilmente ser levado a interpretações falaciosas. Melhor dito: essa falácia da presentificação da coisa neste processo parece mesmo prescindir da mediação. Por isso o seu grande caráter de dominação. Se, de um lado, a imagem da violência ainda ancora no simbólico — e, portanto, ainda necessita de mediação —, no momento em que a própria violência se transforma em espetáculo, ou seja, quando o ‚espetáculo da violência‛ se torna parte inerente da ‚sociedade espetacular‛, ent~o ‚cria-se um fascio (feixe) de pessoas que, unidas, implantam um fascismo‛ (ARAÚJO, 2004, p. 102 — grifos do original). Daí que muitos pesquisadores apontam que o relativismo cultural, quando vai erigir o narcisismo da própria cultura, surge como um dos grandes empecilhos para o interculturalismo (cf. JOACHIM, 2008). Além disso, a própria possibilidade do ‚realismo‛, da própria representaç~o e da referencialidade em si, diante do excesso de imagens, crescentemente ‚tergiversam‛ o real, chegam ao seu limite, de forma ‚abjetal‛, sendo características do trauma, em si mesmo irrepresentável (cf. SCHOLLHAMMER, 2007).

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6 DA ‚ORFANDADE SIMBÓLICA‛ PARA A ‚FRATRIA FORTE‛ Frente às ficções simbólicas que nos são apresentadas como justificadoras da dominação, que, em última instância, conforme análises recentes de Zizek, s~o encobridoras da crescente ‚desertificaç~o do real‛; frente ainda { omnipresença sintomática do poder e da violência simbólica, poder-se-ia ficar tentado a concordar com o poeta pernambucano Valmir Jordão, em seu poema ‚Do descarte‛: Penso, logo desisto.

Isso, contudo, seria ceder àquela sorte de análise calhorda, fiadora do pacto cínico determinista e fatalista. Do contrário, nossa posição demarca a procura por espaços frutíferos, onde a construção da cidadania e da democracia encontrem um terreno propício. É neste aparte que a ‚identificaç~o estética facilita as coisas‛ (KEHL, 2008a, p. 73). ‚Que nossa criminalidade retrata mais uma reação social, inclusive organizada, a uma ordem injusta, cruel, violenta e, por que não, também criminosa‛ (PINTO, 2007?, p. 23 [online]), isso hoje parece largamente aceito como um dos traços marcantes de nossa sociedade dual, intrinsecamente dividida por um apartheid social. Se nos anos noventa o Movimento Mangue, liderado pelo cantor e compositor pernambucano Chico Science, soube tematizar a exclusão sociossimbólica dos jovens da periferia da capital pernambucana e, além disso, colocar em discussão na pauta pública questões estéticas, identitárias e políticas (veja-se o amplo debate surgido a partir das proposições do Movimento Mangue, desde o encarte com o Manifesto Caranguejos com Cérebro, assinado por Fred Zero Quatro e Chico Science, em 1993), na primeira década deste séc. XXI coube ao ‚movimento‛ da Literatura Marginal, encabeçado por Ferréz, dar munição para a discussão da segregação interna da sociedade brasileira (veja-se os três números especiais da revista Caros Amigos Especial: Literatura Marginal: a cultura da periferia: ato I, ato II e ato III, organizados por Ferréz, respectivamente em 2001, 2002 e 2004, bem como os respectivos manifestos nas revistas, assim como ainda o texto de abertura, assinado por Ferréz e intitulado ‚Terrorismo liter|rio‛, constante da obra Literatura marginal: talentos da escrita periférica, de 2005, também organizado por Ferréz). O Movimento Mangue foi considerado, pela crítica, importante para o conjunto da produção cultural nacional, tendo repercutido não só na música, mas também nas questões do contato entre as culturas populares e a tecnologia, nas artes plásticas e, sobretudo, na literatura e na poesia. A poesia mangue 170 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

ainda não foi devidamente estudada para apontar estes elos entre o movimento e a literatura, de forma que se desvelasse o quanto o próprio Movimento Mangue é tributário dessa poesia, em parte anterior, em parte já tributária do próprio movimento. Com respeito à Literatura Marginal da forma como proposto pelo grupo encabeçado por Ferréz, a relação imediata que se estabelece é com o rap (rhythm and poetry) e com o hip hop, dada a vivacidade deste estilo musical nas periferias das cidades brasileiras. Esta Literatura Marginal é apontada pela crítica como um dos mais importantes e renovadores movimentos dentro da estética literária nacional (cf. JUSTINO, 2008; NASCIMENTO, 2009) Na grande maioria, os textos afiliados à literatura marginal tratam da violência de toda a sorte a que o sujeito subalterno, suburbano e periférico está sujeito em seu cotidiano. Isto essa literatura tem em comum com boa parte das letras do hip hop. Do hip hop, segundo análise de Nascimento (2009) e de Kehl (2008a), também provém a noç~o de ‚fratria‛ — uma espécie de irmandade simbólica, representada pelos ‚manos‛ —, que acaba separando os sujeitos em um ‚nós‛ e um ‚eles‛: nós, os periféricos, os excluídos, pobre, etc.; e um eles, burguês, ‚gr~nfa‛, playboy, etc. — Este é um ponto complexo que aqui apenas pode ser tangenciado, novamente. Contudo, gostaria de vincular essa questão da formação coletiva com a forma como Freud a coloca (na obra Totem e tabu) quando a relaciona com o ‚assassinato do pai primitivo‛, o assim chamado ‚pai da horda‛. Ora, o Brasil é um país que pode ser considerado ‚órf~ de pai‛, por conta de o colonizador não ser especialmente prezado; de não se respeitar a elite que governa em desrespeito à lei e à própria sociedade; de não haver grandes heróis fundadores que forneçam subsídios simbólicos de lastro para a auto-estima ou para ideais identificatórios das massas. Conforme Kehl (2008a, p. 78), Na atualidade, os ‚heróis nacionais‛ n~o s~o figuras históricas ligadas a algum mito de fundação desta sociedade, mas personalidades emergentes do mundo dos esportes e da música popular — muito mais próximos, portanto, da posição de irmãos mais habilidosos e mais espertos, do que de um pai exemplar (totêmico) ligado a um mito das origens.

Se, segundo a autora, no país a passagem do ‚estado de natureza‛ ao ‚estado de cultura‛ n~o se deu mediante um projeto específico de fundaç~o, mas, do contrário, foi marcada por figuras antes de degredados e aventureiros de toda sorte, que antes vieram para usufruir e usurpar do que propriamente ‚civilizar‛, é inevit|vel que este processo tenha produzido uma, pela autora denominada, ‚orfandade simbólica‛, mediante a qual se estabeleceu ‚uma demanda social por pais reais, abusados, arbitr|rios e brutais como o ‘pai da horda primitiva’ do mito freudiano‛ (Idem, p. 78-79 — grifo do original). Daí que,

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continuando o seu raciocínio, a autora constata que, mediante a falta de uma mitologia socialmente compartilhada que dê sustentação ao exercício simbólico da função paterna, confunde-se muito frequentemente, na sociedade brasileira, [...] o autoritarismo e/ou arbítrio com o exercício legítimo da autoridade. Ocorre que o que falta à sociedade brasileira não é mais um painho mandão e pseudo protetor; falta à sociedade legitimar-se como participante ativa na construção permanente da democracia (Idem, p. 79 — grifo do original).

É neste viés que a autora propõe a substituiç~o da ‚met|fora do pai poderoso‛ por uma ‚fratria forte‛ — e também não por uma ‚m|tria‛, por uma ‚p|tria-m~e gentil‛, que tudo dê, tolere e autorize. Característico desta ‚fratria forte‛ seria a confiança em si mesma, de forma que lhe seja possível suplantar o poder do ‚pai da horda‛, erigindo assim um pai simbólico que se corporifique numa lei justa, que atenda as necessidades de todos e não meramente a voracidade de uns poucos. Neste sentido, a autora adenda: ‚O pai pode ser o símbolo da Lei, mas se esta n~o for sustentada pelos irm~os, n~o serve para nada‛ (Idem, p. 79). Nesta funç~o da constituiç~o da ‚fratria forte‛, o poeta possui um papel especial. Se, da análise de Freud da gênese da violência que remonta ao assassinato do pai primitivo, o poeta épico justamente é o herói que corporifica enquanto autor singular um ato que é coletivo, o poeta simultaneamente será aquele que vai manter a unidade da ‚fratria‛ sobre a memória de um ato (fictício, deve-se lembrar) das origens, bem como aquele que se sobressai psicologicamente do coletivo. A autora, em sua an|lise dos ‚poetas míticos‛ do rap dos Racionais, aponta para o que as falas das letras dos textos indicam: [...] eu diria que suas falas oscilam; passam do lugar comunitário dos manos ao lugar do herói/poeta exemplar, escorregando deste para o lugar da autoridade, em nome de um ‚pai‛ que sabe mais, que pode aconselhar, julgar, orientar (Idem, p. 79-80).

Esses aspectos sobressaem também dos textos que vêm abaixo. Igualmente se trata de letras de rap, encaradas agora já como literatura marginal e não mais como um mero parentesco ou influência. Explique-se isto, por conta de a própria obra em que os textos estão coligidos já trazer em seu título a proposição do rap como literatura — Letras de rap de Alagoinhas como literatura marginal (MOREIRA, OLIVEIRA, 2010) —, o que, de certo, já é uma retroalimentação das proposições do Movimento da Literatura Marginal desta primeira década do séc. XXI. Senão, vejamos:

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esse é meu brasil pátria mãe gentil puta que pariu esse povo varonil no céu de anil geração 2000 do curto pavio carrego o meu fuzil esse é meu brasil estamos passando mal mais é fevereiro vamos pular carnaval o resto do ano inteiro até mesmo no natal entra e sai janeiro continua tudo igual [...] situação precária no mundão 10$ a diária só deslealdade no país da impunidade os gravatas respondem em liberdade escondem a verdade trancada a 7 chaves quando deveriam esta atrás das grades mas na prepotência ñ existe penitência pra incompetência nunca haverá sentença ou você pensa que terá uma recompensa dos malas sujas uma pá de sanguessugas com dinheiro entocado em cuecas e sungas usa a cédula pra limpar a bunda com desvio de verbas e renda publica (Texto: ‚esse é meu brasil‛, de MANO ED + - [MOREIRA, OLIVEIRA, 2010, p. 39]).

Além deste texto nos colocar diretamente no meio da discussão que vimos de travar, a posicionalidade do sujeito da enunciação é feita já no primeiro texto da coletânea: sujeito do gueto não pode ter preconceito sujeito do gueto é com a humildade e respeito no gueto eu mim criei e tenho muito orgulho pode acreditar é o melhor lugar do mundo eu vivo nesse gueto com a paz sem preconceito e sempre procurei ser um rapaz direito a realidade das cidades e dos bairros não é tão bela principalmente dentro da favela as minas se perdendo os manos se acabando cada dia que passa é o perigo dominando a treita tá formada pra quem fala mal desse gueto pode acreditar eu sou preto do gueto (Texto: ‚sujeito do gueto‛, de autoria de MC MAMAH [MOREIRA, OLIVEIRA, 2010, p. 5]).

Dos textos reunidos na coletânea, o real surge como a matéria bruta do cotidiano da periferia, passando a ser ‚a matéria simbolizada‛ nas letras do rap. Essa é uma tarefa que, no dizer de Kehl (2008a, p. 97), [...] como todo trabalho de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser coletivo. É como se os poetas do rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar a morte e a miséria. Para se manter junto à fonte de sua poesia eles não deixam a favela, não negam a origem.

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É daí que a voz dos rappers continua se constituindo em um apelo aos irmãos, na medida em que, por intermédio de sua arte, sustenta a rede de solidariedade e amizade em que se amparam, rumo { ‚fratria forte‛, para além da mera pobreza simbólica. No início do presente trabalho falava acerca do fato de que todos somos, de alguma maneira, vítimas de violência. Após o percurso trilhado, poder-se-ia adendar agora que, no final das contas, a sentença também pode ser invertida: ‚somos todos violentos‛, conforme já foi inquirido pelo psicanalista Alfredo Jerusalinsky (1996). Era uma pergunta que este autor colocava, cuja resposta era: eis ‚o sintoma de nossa aldeia global: o que n~o se suporta, aniquila-se‛; ou ainda: ‚Quando um sujeito n~o tem como se representar no discurso social, a passagem ao ato é, de um modo ou outro, inevit|vel‛ (JERUSALINSKY apud RESZKA, 2005, p. 24). REFERÊNCIAS ARANTES, Paulo. Diante da guerra. In: Idem. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007a, p. 25-29. ARANTES, Paulo. Notícias de uma guerra cosmopolita. In: Idem. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007b, p. 30-97. ARANTES, Paulo. Um intelectual destrutivo. In: Idem. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007c, p. 229-234. ARAÚJO, Marcelo José. A violência simbólica: uma difícil percepção. In: Dossiê: as múltiplas faces da violência. Unimontes Científica, Montes Claros, v. 6, n. 2, p. 101-106, jul./dez. 2004. Disponível em: http://www.unimontes.br/unimontescientifica/revistas/ Anexos/artigos/revista_v6_n2/word%20e%20pdf/10rev_cientifica_v6_n2_decimo_artigo.pdf. Acesso em: 15 mar. 2010. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual . Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: Idem. O poder simbólico. 13. ed. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 7-16. BRAGA, Maria Lucia Santaella. As três categorias peircianas e os três registros lacanianos. Psicologia USP, v. 10, n. 2, 1999. [online]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65641999000200006&script=sci_arttext. Acesso em: 22 mar. 2010. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Salvador: Prefeitura de Salvador/Secretaria Municipal de Educação e Cultura; Governo da Bahia/Secretaria de Cultura, 2007. Disponível em: http://www.cultura.salvador.ba.gov.br/downloads.php.

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IDENTIDADES COLETIVAS E VIOLÊNCIA NA GLOBALIZAÇÃO Rocío Castro Kustner1 Renilton da Silva Sandes2 INTRODUÇÃO Desde que nascemos somos capturados por imagens que dizem de nós e olhares que nos fazem marca [...] transitamos no mundo sempre à procura de responder àquilo que se espera de nós (LANIUS, 2005, p. 143).

A identidade é resultado de um processo discursivo com o outro em constante transformação de tal forma que Hall (1992) nós diz que não podemos falar de identidade mas de identificação. O processo de identificação se inicia nos primeiros anos de vida no seio da família quando a criança sai da fase egocêntrica na qual ela é o centro do mundo e começa a diferenciar seu eu separadamente do de seus progenitores. É a fase do espelho de Lacan, na qual, segundo interpretação de Woodword (2000, p. 64), ‚o sentimento de identidade surge da internalização das visões exteriores que ela tem de si própria‛. Assim é como se forma a subjetividade, da objetivação do mundo exterior que, pela sua vez, constitui o outro, o outro que não sou eu, que é diferente a mim, o diferente. Nesse processo de subjetivação pela objetivação se inicia todo um ciclo dialético com a diferença no qual, como fala Rolnik (1999, p. 160), ‚o outro nos arranca permanentemente de nós mesmos e cada vez que encarnamos uma diferença nos tornamos outros‛. De tal forma que ‚nossa natureza é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de devir-outro‛. O outro, diferente, representa para o eu o desconhecido, o caos e, num mundo exterior, que apresenta a realidade como estável, imóvel, predecível e controlada por normas para a integração e a ordem social tal e como foi formulada pelo pensamento positivista ainda predominante na atualidade, o caos é uma ameaça porque desestabiliza, desequilibra. Assim é como Rolnik (1999) explica como é formada a visão negativa do diferente, porque representa o caos que desequilibra e nos aterroriza, e a identidade sofre o impacto do embate com o outro, como o diferente caótico que quer nos desequilibrar. Então o eu passa a desenvolver mecanismos de defesa que lhe proteja do caos desequili1

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Doutora em Antropologia Social, com ênfase em América Latina; Professora Adjunta e Coordenadora do Programa de Mestrado em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V, Santo Antônio de Jesus; endereço eletrônico: [email protected]. Programa de Mestrado em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V, Santo Antônio de Jesus;endereço eletrônico: [email protected].

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brador que para ele representa o outro, o diferente, fechando-se em seu próprio eu, transformando-se de sujeito produtor de diferenças por natureza, em sujeito marginalizador dessas diferenças. Nossa consciência torna-se totalitária e, segundo Rolnik (1999, p. 168), essa consciência está na base de nossa moral moderna que se nega a compreender que ‚o caos é só fatal exatamente quando nos recusamos a admiti-lo em sua positividade, obstruindo qualquer movimento de criação‛. Mas, da mesma forma que a física quântica demonstrou que o mundo está movido pelo caos permanente, a realidade social não é estável nem imutável, é um processo de constante mudança motivada pela interação social, que é sempre uma interação com a diferença. Se nossa moral e nossa consciência totalitária não permitem a criação porque obstruem qualquer movimento na sua direção, ela vai criar destruição — quantas guerras tem se declarado em nome da única verdade religiosa, em nome da ordem democrática, quanta violência tem se gerado em nome da ordem e o progresso? Impossibilitados pelo terror de construir nossa identidade no caos positivo e criativo do ser — porque o ser sempre está se criando e re-criando na dialética com a interação social, a mesma dialética pela qual o outro nos faz a nós — tentamos construí-la na base aparentemente sólida e estável do material, do ter. Assim também viramos de sujeitos criativos da diferença a sujeitos produtivos e consumidores do consumo standarizado num mundo em que os ricos, cada vez menos e mais ricos, vivem com medo da concorrência e os pobres, cada vez mais e mais pobres, vivem a violência de estar compelidos ao consumo sem recursos para consumir. Como nos fala Kurz (1998), não é mais um tempo de esperança, mas um tempo de medo. Os trabalhadores vivem com o terror de ser demitidos, os professores com o terror de ser ameaçados pelos estudantes, os pais com a incerteza de dar um futuro para seus filhos e os filhos com a repulsa do horror no qual têm crescido e o desejo ardente do ‚ser no ter‛ que tem mamado desde crianças. A análise que nos oferece Rolnik da construção da identidade na base da anulação da diferença — fato definido por Geertz (2001, p. 117) como a tragédia antropológica motivada pela ‚lastimável confusão que assalta os homens quando eles não compreendem a fala uns dos outros e julgam mais fácil transformá-los em monstros conhecidos do que reconhecê-los como diferentes‛ — no é nova na história do conhecimento e está na base da construção de uma cultura de dominação através da violência. Assim, na dialética hegeliana o senhor reconstrói o escravo como objeto; na teoria da legitimação de Weber (1972), existem dominantes porque existem dominados; para Sartre (1975), no seu Retrato do colonizador, a impossível desumanização do oprimido transforma-se em aliena178 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

ção do opressor; levando a raciocínio a nível psicológico, Simone de Beauvoir (1987) diz que nos afirmamos como sujeito constituindo ao outro como objeto; para Fanon (1983), o homem é humano na medida que se impõe a outro homem para ser reconhecido por ele; no Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade (1972), a identidade brasileira foi feita de tudo quanto o colonizador ‚devorou‛; o elo perdido de Oliveira (1987), quando se refere | carência para o negro de una identidade de classe em um sistema de classes, se deve à falta de identificação do um frente ao outro. Como observa Hall (1999, p. 63), a identidade nacional foi construída sobre a base de ‚culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta, isto é, pela supressão forçada da diferença cultural‛. Assim, as identidades coletivas culturalmente tem sempre se construído na base de normas e valores impostos pela força, pela violência exercida pelos diferentes sistemas de dominação que apresentam as diferenças como ameaçadoras da ordem por eles estabelecidos. Esse fato tem sido uma constante na história da humanidade, como analisaremos através dos três grandes sistemas de dominação — patriarcado, colonialismo e capitalismo — que têm estabelecido as diferenças socioculturais em torno as três grandes categorias de desigualdade: gênero, etnia e classe. Consequentemente ao até aqui exposto, o objetivo do presente trabalho é fazer uma reflexão sobre o desenvolvimento histórico destes sistemas de dominação que nos leve a considerar a necessidade de aprofundar nossa consciência, na hora de elaborar políticas públicas, sobre como a dominação está relacionada com a negação do direito à diferença biológica, cultural ou religiosa e à negação ao direito da igualdade social sob a criação de diferenças sociais que estimam as condições dos uns (homens, brancos e ricos) em base ao detrimento, inferiorização e subjugação dos outros (mulheres, minorias étnicas ou não- brancos e pobres). Partimos do fato de que, mesmo que os sistemas democráticos tenham evolucionado muito, as relações hierárquicas, tanto nos orgãos públicos, universidades como as instituições em geral, continuam sendo consideradas como formas naturais e necessárias de organização social — este pensamento é muito mais facilmente ‚racionalizado‛ quando existem diferencias biológicas, como as de sexo e raça, na medida em que se utilizam para justificar a naturalização das diferenças sociais (STOLKE, 1990).

1 FAMÍLIA PATRIARCAL E IDENTIDADE DE GÊNERO O processo pelo qual as ações padronizadas e os valores se assentam no tempo e se projetam no espaço faz a História. Mesmo que, com a globalização, o espaço e o tempo tenham tomado outra dimensão — cada vez mais acelerada e deslocada — o passado comum continua pesando em nossa cotidianidade, a

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maioria das vezes de forma inconsciente. Pelo que é preciso lembrar, mesmo que seja brevemente, que a cultura supõe uma história compartilhada, construída coletivamente através do tempo e transmitida de geração em geração (AKTOUF, 1991). Nesse sentido estudamos a cultura desde sua dimensão micro, lembrando a família como o primeiro âmbito social onde se desenvolve o ser humano como sujeito de seu próprio destino. No decorrer da história, a humanidade tem se agrupado em organizações — de organom = instrumento —, nas quais se dão os processos que produzem sistemas de significados comuns (MORGAN, 1996) que conformam a cultura. Sobre as hordas primitivas, e sobre a Préhistória em geral, sabemos muito pouco, mas com certeza foram das primeiras organizações. A lei do incesto, apresentada por Levi-Strauss (1997) como a primeira norma a partir da qual o ser humano decolou da natureza para entrar na viajem da cultura, foi estruturando as hordas primitivas em organizações de parentesco cada vez mais fechadas, que hoje conhecemos como famílias. Durante muito tempo, a parentesco e a descendência das famílias eram transmitidas por mulheres e machos e fêmeas pertenciam ao clã materno. Daí que Engels (1987) acreditasse numa sociedade primitiva matriarcal que não tem chegado a ser constatada pela antropologia feminista. Para Simone de Beauvoir (1987), o homem, como caçador na divisão de trabalho estabelecida nas hordas primitivas, se eleva sobre o animal e sobre a própria mulher arriscando sua vida, por isso a humanidade dai superioridade ao sexo que mata e não ao que gera vida. Segundo Engels (1987), a Pré-história passou por três estágios com três tipos de organizações familiares: ao estado selvagem corresponde o matrimonio por grupos, à barbárie, o matrimonio sindiásmico, e à civilização a monogamia com seus complementos: o adultério e a prostituição. Nas suas próprias palavras, a monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros (ENGELS, 1987, p. 71).

A família (de famulus = escravo doméstico) patriarcal (de pater = pai e archos = domínio), que segundo Engels marca o passo da barbárie à civilização — junto com o surgimento da História escrita — é considerada como a cédula de nossa organização social e encerra, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolvem, mais adiante, na sociedade e em seu Estado (ENGELS, 1987). Com a família patriarcal nossa cultura se torna fundamentalmente econômica, 180 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

de tal forma que, observa Engels (1987, p. 200), ‚desde que a civilização se baseia na exploração de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante contradição‛. Já um livre-pensador do século XVII, Poulain da Barre, um dos primeiros em escrever sobre a desigualdade de gênero, pensava que esta era gerada dentro da própria família, que propiciava uma guerra entre os sexos na medida em que eram as mulheres as que formavam parte do motim (COBO, 1995). Para Mitchell (1987), a família é ‚o lugar no qual a psicologia inferiorizada da feminidade é produzida‛. Chodorow (1979) apresenta o fato universal das mulheres serem as grandes responsáveis pelo cuidado dos filhos, e pela socialização feminina posterior, como experiência discriminativa decisiva no desenvolvimento masculino e femenino. Com estas interpretações da antropologia feminista pretendemos mostrar a cultura como um processo muito ligado à formação de nossa identidade tanto coletiva como individual, primeiramente no seio da família, fundamentalmente patriarcal. Como tal, nossa identidade vai ser moldada em função de padrões patriarcais que atribuem características diferenciadas aos sexos e valoriza a força física masculina que habilita ao homem para a caça, a guerra, a competitividade, e dai protagonismo ao militar que enfrenta a morte em detrimento do cuidado feminino para com o lar e a vida. A cultura patriarcal prega a violência e estabelece a primeira hierarquia entre os seres humanos baseada na construção de diferenças sociais em função das diferenças biológicas ou naturais. É o primeiro sistema em se servir da diferença para justificar a dominação e o uso da violência. Como tal ainda sobrevive em nossa sociedade de forma tão determinante que as mulheres inclusive feministas tem sérios problemas em desconstruir a identidade patriarcal em seus companheiros e propiciar um clima que facilite a construção de identidades alternativas para seus filhos. Isto porque o homem, mais do que em décadas anteriores, vê-se pressionado a vencer, custe o que custar, transformando a rua em lugar de produção, mas também de guerra e deriva [...] subsiste uma cultura machista onde ter medo é sinal de covardia, e não reagir é ser passivo e incapaz. Assim, é reforçado um certo etos masculino que tem na violência e na supremacia física provas de sua masculinidade e até mesmo enquanto luta contra o medo (OLIVEIRA, 2005, p. 15 e 19).

2 COLONIALISMO (PATRIARCAL) E IDENTIDADE ÉTNICA Com o desenvolvimento da família patriarcal, a domesticação de animais e a agricultura, como bem estudo Engels (1987), surge a propriedade privada e

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começa a separação espacial e temporal entre o mundo produtivo e público dos homens e reprodutivo e doméstico das mulheres. O surgimento da propriedade privada se sustentou da mão-de-obra escrava, e é assim como o berço da civilização ocidental, a polis grega — onde Engels viu a origem do Estado — e o Império Romano, basearam sua organização social. De fato a liberdade da polis grega democrática de Aristóteles se assentava no trabalho servil de escravos e mulheres, que eram realmente quens libertavam aos cidadãos da sujeção à satisfação das necessidades materiais, dispondo assim de tempo para cultivar o espírito de liberdade que exigía sua condiçao de cidadão. Esse foi o berço da democracia. Com o desenvolvimento do comércio, a acumulação de produção substitui a acumulação de mão-de-obra escrava e se faz necessário o trabalho livre, de produtores agrícolas e artesãos sob um novo sistema de dominação que, segundo Weber (1972), já apareceu na decadência do Império Romano. O feudalismo, baseado na apropriação de poder por parte da nobreza em virtude da promessa de fidelidade de seus vassalos, se estendeu por toda Europa e assentaria as bases para a posterior hegemonia da região com a constituição das grandes monarquias administrativas, autoritárias ou absolutas (FOUCAULT, 1992) que gerariam poder inclusive fora do reinado através da expansão conquistadora além dos mares. Era o colonialismo, sustentado por uma nova justificativa de dominação na base da anulação das diferenças: a crença que a cultura do europeu era superior e deveria ser imposta, já que os outros, os colonizados, estavam em estado de barbárie (CASTRO, 1996). Crença que se justificava de novo na base de diferenças biológicas com os colonizados, as eurocentricamente denominadas minorias étnicas: através do novo poder científico se intenta fundamentar biologicamente a tese racista sobre a superioridade do homem branco. O racismo colonial foi alimentado pelo darwinismo social que imperava no pensamento europeu do século XIX, segundo o qual a natureza física determinava a cultura. A formulação de raça como categoria física, e sua rápida difusão na consciência popular criou uma diferença nas atitudes dos europeus com respeito às minorias étnicas colonizadas (NITOBURG, 1991). Frantz Fanon (1983) tal vez seja um dos primeiros que, como negro da América colonial, bem estudou a conflituosa construção da identidade do negro colonizado frente ao branco colonizador. Como psiquiatra observou entre seus pacientes negros uma constante preocupação com a autovalorização e com o ideal do eu sempre em dependência com aparecimento do outro. Através da análise de seus casos clínicos, Fanon faz nos ver que a alteridade para o negro não é o negro, mas o branco, já que o negro se reconhece como negro com a chegada do branco: é o colonizador que cria o colonizado, é o racista que cria o 182 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

inferiorizado, ao igual que Sartre dizia que é o anti-semita que cria o judeu (CABAÇO, CHAVES, 2004). Considerava a relação branco-negro como patológica pois ‚o negro, escravo de sua inferioridade, o branco, escravo de sua superioridade, ambos têm um comportamento neurótico‛ (FANON, 1983, p. 51) e se perguntava porquê esse desejo de superioridade que criava sentimento de inferioridade no outro, ‚porque não, simplesmente tentar alcançar o outro, sentir o outro, revelar-me ao outro?‛ (FANON, 1983, p. 189). Para Fanon, o colonizado, oprimido e inferiorizado, só poderia revelar-se ao outro, o colonizador, na forma da violência. Só através da violência poderia se libertar da violência exercida pelo colonizador na construção da sua identidade superior. Só que a relação colonizador-colonizado parece estar inmersa no círculo vicioso de violência no qual o colonizado é a primeira vítima da violência exercida por ele próprio. Para reflexionar sobre este fato é preciso nos remeter de novo à estrutura familiar. A predominância, entre os afro-descendentes das Américas, de famílias sustentadas por mulheres e com a ausência da responsabilidade paterna, como estudou Bastide (1960), não é herança da matrifocalidade africana, mas consequência da desestruturação familiar que sofreram os afrodescendentes com a escravidão. Bastide (1960) analisa como o negro, que durante a escravidão cresceu numa família com a ausência da imagem paterna, mas sempre ligado à mãe, teve que interiorizar os valores da cultura do branco, que por sua vez cresceu na família patriarcal da colônia criado também pela mucama negra. Hoje em dia, muitas mulheres que criam seus filhos com o trabalho doméstico, reminiscência do trabalho escravo, enfrentão a mesma solidão na ciração de seus filhos, com o agravante que estes continuam carecendo de referêncial construtivo de identidade dentro da família e buscam seus referenciais identitáiros na televisão ou a rua: somos educadoras dos filhos dos patrões, e muitas vezes nossos filhos estão na rua, sem ninguém que os cuide, nem escola nem para onde ir. Enquanto estamos na casa do patrão cuidando de seus filhos, os nossos estão expostos a ser uns marginais, meninos de rua que estão sendo descriminados (Creuza Maria, presidente do sindicato das empregadas domésticas de Salvador, apud CASTRO, 1996).

As condições de instabilidade econômica e emocional destas mulheres, que sobrevivem de trabalhos mal remunerados como o trabalho doméstico, as coloca como especialmente vulneráveis à violência doméstica, uma das causas pelas que as crianças optam pela rua (CASTRO, 1998). Com frequência temos a imagem de um pai que se autodestrói com o álcool, uma mãe no limite da loucura para alimentar tantas bocas, e uns filhos que crescem alimentando a repulsão e revolta sem saber quem realmente as produz. Com resultado temos

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uma família fragmentada que se sonha unida. Os filhos da fragmentação vão fugir da violência doméstica e encontram seu lar nas ruas das grandes cidades, recheias de simbolos do consumo que os convida a sonhar em paraísos de luxo acessível a quem melhor exerce a lei do mais forte, o etos do guerreiro, desenvolvido pela interiorização da cultura da modernidade que a todo momento grita que ser é ter. 3 COM A MODERNIDADE (PATRIARCAL E RACISTA) A IDENTIDADE PASSA A SER PROPRIEDADE (SER É TER) O triunfo do Iluminismo da Europa do século XVIII legitimou o poder da ciência e dos universalismos da igualdade, fraternidade e liberdade para todos — para todos os iguais claro, já que ao mesmo tempo aumentaram os papeis diferenciados entre os sexos e as raças: a razão (cultura) seria qualidade exclusivamente ocidental e masculina, enquanto a mulher e as chamadas ‚minorias étnicas‛ — paradoxalmente, maioria da população- pertenceriam ao mundo da emoção e do instinto (natureza). Nem o mais crítico com a igualdade predicada pelo Iluminismo, Rousseau — que considerava a desigualdade como a causa de todos os males — conseguiu incorporar nos seus universalismos a metade da população, as mulheres (COBO, 1995). Enquanto que o liberalismo compactou tranquilamente a liberdade para todos com a prática da escravidão — Locke, teórico da propriedade privada vinculada ao trabalho, que fez parte de sua enorme fortuna graças ao comercio de escravos e estava muito interessado na ocupação de terras indígenas em Norte-America, justificava o escravo como o vencido de uma guerra ao qual se tinha perdoado a vida como servo, legítimo cativo de legítimo vencedor (RUIZ, 2003). O poder da razão e da ciência, junto com as riquezas usurpadas às colônias do ‚Novo Mundo‛, abriram novos caminhos para uma nova revoluç~o que significaria uma maior separação entre a esfera doméstica e a privada, entre o tempo produtivo e reprodutivo. A Revolução Industrial introduziu a mão de obra assalariada, fato que repercutiu na abolição da escravidão nas Américas e consolidou um novo sistema de dominação: o capitalismo, que constituia a classe em nova categoria de identidade ao mesmo tempo em que reforçava as divisões de gênero e raça desde que mulheres e não-brancos historicamente têm sido excluídos do controle dos meios de produção e, no mundo do trabalho assalariado, vão a se inserir como exercito de reserva. Segundo David Harvey (1993), Ford usava quase exclusivamente mão de obra emigrante e suas fábricas tinham grande capacidade para mobilizar exércitos de reserva da América rural, a maioria das vezes negra ou indígena: 184 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

A nova divisão do trabalho ia integrando a todos os insatisfeitos do Terceiro Mundo com um processo de modernização que prometia desenvolvimento, emancipação das necessidades e plena integração ao fordismo, mas que, na prática, promovia a destruição das culturas locais, muita opressão e numerosas formas de serviços públicos, a não ser para uma elite nacional solvente que decidiria colaborar com o capital internacional (HARVEY, 1992, p. 133).

Quadro que continua representando a realidade da maioria da população latinoamericana, atualmente excluída dos médios de produção mediante o desemprego. o subemprego e a economia informal. Tudo isto porque desde a abolição da escravidão e a implantação do trabalho assalariado, que fomentou a inserção de mão-de-obra europeia no novo mercado de trabalho da industrialização, o negro continua abandonado ao seu próprio destino, condenado a vegetar no estado definido por Fernandes (1978) de anomia. Excluído dos benefícios do progresso da sociedade moderna, sem identidade de classe, até hoje carrega sobre suas costas o estigma do trabalho escravo refletido na sua cor (OLIVEIRA, 1987). O trabalho, que durante o fordismo padronizou nossas vidas, como valor passa a ser substituído pelo consumo que surge assim como lugar privilegiado da cidadania (ORTIZ, 1994). O pior é que a cultura do consumo está hoje profundamente enraizada em grupos sociais que carecem de capacidade econômica para se envolverem nas práticas de consumo e empreendedurismo competitivo que demanda a modernidade (HARVEY, 1992; SANTOS, 2000), criando a necessidade de satisfazer desejos que vão a ser canalizados a qualquer preço. Nesse contexto, os jovens passam a ser os consumidores preferenciais e catalisadores do mercado ‚uma vez que sua potência de ser afetados e afetar os transforma em propagadores natos de signos e bens, passando também a ser as vítimas preferenciais de uma política organizada de abandono, que produz este genocídio juvenil autofágico e fratricida‛ (OLIVEIRA C., 2005, p. 22- 23). 4 A GLOBALIZAÇÃO IMPERIALISTA CRIA AO OUTRO, O EXCLUÍDO, COMO VIOLENTO O objetivo da cultura global é modelar o consumidor global, programálo promovendo, através dos filmes e comerciais, certos valores e atitudes. Segundo alguns estudos, quando chega aos 12 anos, uma criança terá visto uma média de cem mil anúncios de TV. Uma criança nos Estados Unidos está exposta a uma média de 41 mortes ou atos de violência para cada hora de desenho animado. Chegando ao sétimo ano do primeiro grau terá visto oito mil assassinatos e cem mil atos de violência. Assim, a mídia produz a reproduz a cultura de consumo, da violência e do sexo, a

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fim de assegurar para as corporações o mercado de que necessitam (ROUANET, 2000, p. 67). São hoje duas classes sociais, a dos que não comem, e a dos que não dormem de medo dos que não comem (RODRIGUES, 2003, p. 105).

Poderíamos dizer que os sistemas de poder que configuram as identidades coletivas foram se conectando e sustentando com base em mecanismos de negação: a negação ao direito à diferença e a negação à igualdade social e a criação de valores sociais que estimavam as condições de uns (homens, brancos e ricos) em base ao detrimento, inferiorizarão e subjugação de outros (mulheres, não brancos e pobres). Assim, o colonialismo e o capitalismo, sustentandose nas divisões de gênero, raça e classe, estabeleceram a hegemonia políticoeconômica de Ocidente sobre o resto do mundo, reduzindo o campo de batalha a duas trincheiras: Norte e Sul, sob um novo sistema de dominação, resultante da combinação de ambos: o Imperialismo, ou ordem de relações entre países produto da transnacionalização das atividades econômicas, originando os progressivos empobrecimento e dependência de uns países sobre outros (IZQUIERDO, 1991). Na nova organização internacional do trabalho imposta pela transnacionalização da economia e a globalização, a grande massa de trabalhadores que durante o fordismo tinha uma identidade como operária na sua condição de empregada, sofre uma deslocação e uma fragmentação da sua identidade ao passar a ser desempregada sem qualificação para um empreendedurismo cada vez mais competitivo. Suas vidas perdem significado e se somam ao contingente dos excluídos. Nesse contexto, as mulheres do Sul, por um lado, se constituem como mão de obra predileta, pelo seu baixo custo, em trabalhos de industrialização em série para a exportação das multinacionais — as denominadas maquiladoras. Por outro, o serviço doméstico, até dos países do Norte, constitui-se no lócus mais fácil de se inserir no mercado de trabalho, já que continua tendo um status de semi-escravidão, e servir têm sido sempre coisa de escravos (CASTRO, 1996). Assim, sob a dominação imperialista da globalização, as mulheres negras e indígenas ocupam o último nível na hierarquia, realidade que não só não tem mudado com a chegada da democracia para os países do Sul, mas que se tem agravado — o fenômeno da feminização da pobreza — com o desenvolvimento das novas estratégias político-económicas neoliberais. Segundo dados do IBGE de 2002, a mulher é a responsável por 25% dos domicílios brasileiros, particularmente na população urbana (91% dos casos). No caso de Salvador, o percentual de famílias com mulheres como referência chega a 42% (OLIVEIRA, 2005). 186 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

As mães das famílias maternas, desarmadas frente à competitividade do trabalho qualificado e desprotegidas frente â violência doméstica, encontram-se incapacitadas para poder oferecer a seus filhos as mínimas condições para a vida econômica e emocionalmente estável que precisam (CASTRO, 1998). A sociedade brasileira, na sua maioria cega frente a esta realidade, culpa-as por reproduzirem a pobreza e a miséria que tanto ‚denigre‛ e a delinquência que tanto ameaça as grandes cidades (CASTRO, 1996, 1998, 2001). Estas mulheres são as mães da nova geração que esta sendo criada cada vez mais na ausência de uma responsabilidade paterna, fragilizada frente ao poder econômico e impelida a uma violência como resposta à falta de modelos masculinos que guiem à construção positiva da identidade no caos do mundo existente dominado por padrões masculinos, racistas e consumistas. Esta nova geração, que cresce com a crise de desemprego consequente dos processos de globalização, forma parte do contingente dos excluídos: já não servem nem como mão de obra a ser explorada. Lembremos que são os filhos dos que, após a abolição da escravidão, nunca conseguiram se inserir no trabalho assalariado. Sempre vistos pela oligarquia como a massa preguiçosa incapaz de produzir (OLIVEIRA, 1987), passam a ser identificados como marginais e, potencialmente, protagonistas da delinquência e violência urbanas. A história da construção das identidades coletivas tem lhe conduzido aos momentos nos quais a nova geração, o futuro do planeta, sofre toda esta realidade globalizada que reforça a identidade do outro, o excluído, como violento. Campo privilegiado para semear condutas compulsivas como o consumo e a violência na procura desenfreada por uma identidade, ‚a juventude é o lugar onde se materializam os conflitos de uma sociedade, e [...] quando a criança e o adolescente se tornam uma ameaça, é sinal de que esta sociedade atravessa uma profunda decadência‛ (ROSA, 2005, p. 123). Na globalização, o poder se faz muito perigoso, devido à dificuldade para ser combatido, pois está em todos lados, mas não é visível. É o poder disciplinar de Foucault (1992), que aparentemente não usa a força física, mas a escravidão das mentes através do consumismo e da exclusão, sendo que hoje, apesar do crescimento econômico mundial e do progresso tecnológico, a fome mata mais que as guerras — como presenciamos no caso dramático da África. Mencionamos os conflitos não explícitos entre o amo e o escravo de Hegel, o branco e o negro de Fanon, o homem e a mulher, de Beauvoir. E agora, é o conflito explícito em forma de guerra não declarada do crime organizado no Brasil, que poderia ser interpretado como resposta ao poder disciplinar cujo instrumento de dominação tem sido sempre, usando a visão metafórica de Foucault (1992), uma guerra entre raças (ou tribos, como nas antigas hordas primitivas) — a

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super-raça branca e a sub-raça não branca — que o social-darwinismo a legitimou com argumentos biológicos e o marxismo a traduziu em termos de classe. Só falta lembrar a Foucault que a guerra historicamente tem sido instrumento de supremacia masculina e que os líderes da super-raça sempre tem sido homens. No mundo atual continua, pois, predominando os valores masculinos, a cultura da globalizaç~o continua sendo regida em ‚Nome do Pai‛, sob uma nova aparência: do grande patriarca progenitor da espécie e chefe de sua tribo, evoluiu ao executivo da cultura ocidental — homem branco e proprietário, com formação altamente especializada nas melhores universidades da Europa e Estados Unidos, que traspassa os estados como se foram tribos, avalado pelo sucesso econômico que lhe garante a sua eficácia competitiva para alimentar a fantasia da normalidade sob a ordem e progresso conforme prega a bandeira brasileira. Mas, esquecendo que a identidade se forma na relação com o outro, ao excluir ao outro está se excluíndo a sim mesmo. Assim, ‚o olhar do vitimado desestabiliza o mundo dos satisfeitos e aponta para a busca necessária de alternativas‛ (RUIZ, 2003, p. 260). As identidades precisam ser reajustadas e reconstruidas. 5 ALTERNATIVAS: IDENTIDADE CONSTRUÍDA NO SENSO DE ALTERIDADE E A TOLERÂNCIA À DIVERSIDADE Se é verdade que existe uma consciência coletiva, e que esta consiste na interação de uma multiplicidade desordenada de perspectivas nem sempre comensuráveis, a vitalidade dessa consciência coletiva dependerá, então, de que sejam criadas as condições para que essa interação possa ocorrer. O primeiro passo para a criação dessas condições é aceitar que existem deferências, e profundas, o segundo, compreender quais são, e o terceiro, construir algum tipo de vocabulário capaz de formuláas. O obstáculo maior à integração da vida cultural é a dificuldade em fazer com que pessoas que vivem em mundos diferentes possam influenciar-se reciprocamente de uma forma genuína (GEERTZ, 1997, p. 242).

Entendemos que as relações de parentesco, mesmo que para a maioria da população permanecem importantes, especialmente no interior da família nuclear, já não são os veículos de laços sociais intensamente organizados através do espaço e o tempo. Como observa Giddens (1991) cada vez mais são as organizações desencaixadas que ligam práticas locais com relações sociais globalizadas as que organizam nossa vida cotidiana. Com tudo, continua nos pesando o passado comum, os valores transmitidos de geração em geração, a história construída coletivamente. A família, qualquer que seja, continua sendo o primeiro âmbito social onde se desenvolve a identidade do eu, o qual, desde que nasce vê espelhada nela as regras e contradições da sociedade. Em função desta 188 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

interação sente suas potencialidades como possíveis realidades ou possíveis frustrações. Assim, concordamos com Szymanski (1990, p. 23) quando diz que a descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como o lócus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento.

Mas, como analisa Heller (1998), a maioria das famílias burguesas não fomentam o espirito de coletividade entre as crianças. E se paramos a pensar, é porque não há tempo — a sensação de urgência estudada pelos teóricos da contemporaneidade como Giddens e Foucault, entre outros. Nosso tempo está dominado pela produção para o consumo de uma forma compulsiva, e os valores de compartilha e vida comunitária que, de certa forma, umas vezes bem e outras mal, fornecia a família, ficam esquecidos, esquecendo também que é a família que educa à nova geração, ‚é a base de operações de toda nossa vida cotidiana, o lugar de partida e o ponto de retorno‛ (HELLER, 1998, p. 36). Daí que nossa análise começou pela família e termina por ela. Esta análise pretende contribuir para a reflexão autocrítica, desde que nós intelectuais, com medo ao caos criativo que se alimenta das diferenças, sustentamos a normalidade fictícia através de nossas práticas normalizantes tanto na família como nas instituições reproduzendo dentro delas o mundo hierárquico exterior, e alimentando os sistemas de dominação que sustentam a exclusão como consequência e a violência como resposta, ao mesmo tempo em que construímos teorias sobre a necessidade de mudar essa realidade. Alimentamos também, pois, a esquizofrenia entre o discurso e a prática, fenômeno que incorporamos como inerente a nossa identidade de intelectuais. Ressaltamos a importância de policiar estas atitudes e condutas na medida que, ao estarem tão inseridas em nosso cotidiano, invisivelmente perpetuam praticas de poder-dominação sobre nossos diferentes: nossos técnicos, estudantes, funcionários e empregados domésticos Precisamos nós, intelectuais, tomar consciência de que não estamos acima das teorias que construímos. Também nós, analistas críticos da dominação, somos escravos de nossa superioridade/inferioridade e desenvolvemos condutas neuróticas através das quais, para reafirmar nossa identidade, negamos ao outro — a violência é também nossa. Precisamos um maior conhecimento de nós mesmos, pois o conhecimento do homem pelo homem e da sociedade humana em suas várias formas de relacionamento interno e externo constitui a grande transformação e a grande esperança deste final de milênio. Transformação que através do conhecimento profundo dos outros e com a modesta

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ajuda da Antropologia social redescobrirá a tolerância, a humildade, a esperança e a generosidade de um viverem escala planetária mantendo o delicado e essencial equilibro entre o universal e o específico, o cósmico e o local, o sentido do planeta e a identidade comunitária [...] O próprio intelecto nos fará enxergar nossa humanidade no outro, e o outro dentro de nos (DAMATTA, 1987, p. 14).

E porque, em palavras de Sennett (2001, p. 176), Se ocorre mudança, ela se dá no chão, entre pessoas que falam por necessidades interiores, mais do que por levantes de massa. Que programas políticos resultam dessas necessidades interiores, eu simplesmente não sei. Mas sei que um regime que não oferece aos seres humanos motivos para ligarem uns para os outros não pode preservar sua legitimidade por muito tempo.

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VIOLÊNCIA NA LITERATURA AFRO-DIASPÓRICA DAS AMÉRICAS Roland Walter1 Para o escritor Wilson Harris, a humanidade é profunda e complexamente ligada com o espaço onde ela vive. Isto significa que a ‚brutalizaç~o do lugar e das pessoas pelo legado da conquista‛ se complementam. A declaraç~o de Harris é fundamental por duas razões: a violência exercida pelo ser humano é relacionada com a do lugar que ele habita e tem raízes no passado; um passado que não passou, mas que acumula de maneira esquizofrênica. Desde o sistema econômico de plantação, o corpo negro brutalizado tem sido um campo de luta onde a origem se quebra no silêncio gritante das histórias, paisagens, identidades e vontades violentadas. A literatura da diáspora negra destaca que o (ab)uso do afro-descendente, pela/na economia racializada e racista da violação institucionalizada, continua sendo uma das razões pela errância neocolonial de muitos afro-descendentes. As imagens da mente e do corpo negro fragmentado, alienado e mutilado têm suas raízes no trauma da escravidão — um trauma fundador que desencadeia uma busca circular e retrospectiva do passado; uma errância entre lugares e espaços, terras e mares em busca de lares. Esse ensaio examina diversos tipos, formas e práticas de violência que ligam o navio negreiro com o sistema de plantação e os efeitos no presente. Pretende-se revelar e problematizar como e com que fins autores afro-descendentes das Américas traduzem esta violência centenária nos seus textos. Édouard Glissant (1992, p. 144) observa que uma das características da literatura pan-americana é um ‚sentido de tempo torturado‛, uma ‚natureza assombrada do passado‛. Ao lutar na ‚confus~o do tempo [...] a poética do continente americano‛ busca ‚a duraç~o temporal‛. Para Glissant, as culturas compósitas das Américas procedem ‚de uma digenèse [...] cujos componentes s~o desmultiplicados‛ (GLISSANT, 1996, p. 167), em contraposiç~o {s culturas que buscam a ‚legitimidade do absoluto‛, de uma essência nos mitos da gênese. Uma história fragmentada por diversos tipos e práticas de violência e encontros interculturais constitui um chão movediço e cheio de incógnitas para se autoconhecer e estimar. A duração temporal, portanto, significa uma história não fragmentada que revela o que aconteceu e por que, constituindo desta forma um elemento fundamental para a reconstrução da consciência individual e coletiva. 1

Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Pesquisador do CNPq; Coordenador do Núcleo de Estudos Canadenses (NEC/UFPE); endereço eletrônico: [email protected].

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Em ‚América Negra‛, o poeta e capoeirista afro-brasileiro Élio Ferreira (2004, p. 51) declara que nas ‚Américas, / o que passou, n~o passou [...]‛, mas acumula em pobreza, miséria, crise identitária (branqueamento) e violência social. Sentindo-se exilado no seu próprio país — ‚estrangeiro em terras inimigas‛ — a voz poética do narrador exige ‚Brasil, / arranca essa máscara branca da sua cara‛ (FERREIRA, 2004, p. 52) e pergunta: ‚quando você me pagar| seus débitos?‛ (FERREIRA, 2004, p. 53). Pergunta-chave, a meu ver, porque o passado lança uma sombra gigantesca sobre o presente: o acúmulo de riquezas, por um lado, e o acúmulo de pobreza, por outro; acúmulo este que constitui uma das bases principais da violência e do baixo nível de educação que dilaceram o país. Um país que, depois de se enganar com o mito da ‚democracia racial‛, continua ‚emparedado‛, no sentido de Jo~o de Cruz e Souza (1986, p. 28), dentro de sonhos, muros e ‚brumas ensangüentadas de nossos pesadelos‛ (CUTI, 2004, p. 25). Ao endereçar os horrores do Atlântico Negro, Amada, no romance homônimo de Toni Morrison, enquanto inconsciente coletivo da diáspora negra, afirma que ‚Tudo é [...] sempre agora [...] nunca vai existir um tempo onde eu n~o esteja agachada e vendo outros agachados também‛ (MORRISON, 1994, p. 246). E preenche o vazio do silêncio pesado com a seguinte declaraç~o: ‚quero me unir [...] não estou morta (MORRISON, 1994, p. 249-250). Além de escrever contra o silêncio do esquecimento e da repressão, Morrison e Ferreira dão ao presente um significado circular e aberto: escrever o ‚agora‛ sob o signo do ‚sempre‛ libera o presente enquanto categoria fechada e limitada para uma duração temporal em fluxo contínuo. Este gesto de fazer o tempo se acumular e entrelaçar (em vez de passar) inscreve os diversos capítulos sangrentos (e quase sempre não ditos) no livro da modernidade e assim rompe com a linearidade do pensamento cronotópico moderno. A cura deste trabalho de resistência reside no uso criativo e transformativo da violência, ou, nas palavras da poetisa brasileira Graça Graúna (2006, p. 120): ‚dançamos a dor / tecemos o encanto / de índios e negros / da nossa gente‛. Ódio, rancor, amargura e vergonha pela humilhação do vivido: efeitos de um trauma que fazem necessário o trabalho da cura. Um dos mais importantes passos desta cura é falar, escrever, ou seja, trazer os eventos à superfície da consciência para poder lidar com suas consequências. Em Amada, Toni Morrison demonstra que esta cura significa um árduo processo de recompor os fragmentos da identidade violentada, de se amar para poder amar os outros, e que este trabalho se inicia mediante um processo de memorização especialmente daquelas coisas não amadas e, por isto, recalcadas. Neste mesmo sentido, em O quarto século de Édouard Glissant, Papai Longué sente o vento que traz as 194 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

lembranças do navio negreiro e da plantação e Luiza Gama em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, declara que ‚era como se todos esses cheiros virassem gente e ocupassem espaço‛ (GONÇALVES, 2007, p. 45) — cheiro do navio negreiro que ela associa com o ‚cheiro de sangue‛ (GONÇALVES, 2007, p. 46) do assassinato da sua mãe e do seu irmão: personagens que falam do cheiro da violência que desde o passado até o presente continua impregnando tudo e todos e tem que ser conscientemente reconhecido e compreendido. Em seguida, continuarei a travessia pela literatura da diáspora negra das Américas focalizando diversos aspectos desta violência. A violência enquanto maldição cujas raízes encontram-se no passado faz com que, segundo a narradora em L’espérance-macadam de Gisèle Pineau, ‚nada tem mudado desde que se tinha transbordado os primeiros africanos neste país que somente sabia dar luz a ciclones, esta terra violenta onde tantas maldições pesaram sobre os homens e as mulheres de todas as nações‛ (PINEAU, 1996, p. 241). Para ela, uma velhinha que observa e comenta sobre a violência num pequeno vilarejo em Guadalupe, nos anos 70 e 80 do século passado ― homens batendo, violentando e matando suas esposas e filhas; a comunidade ouvindo os gritos e fazendo ouvidos de mercador ―, os habitantes desta vila ainda n~o tinham ‚saído da espécie de animais subjugados { vontade do senhor‛ (PINEAU, 1996, p. 282). Os personagens no texto têm sua própria explicação para a violência, atribuindo-a { ‚maldiç~o dos Negros‛, um conceito que amaldiçoa todos os negros e demonstra a internalização dos valores do discurso e sistema dominantes que lhes incutiram auto-desprezo. O que surge no uso da violência mediado por criatividade na escrita afro-descendente é que a cultura e a identidade são profundamente ligadas com considerações éticas envolvendo escolhas morais e a responsabilidade para elas e que o legado colonial constantemente complica tais escolhas sufocando o agenciamento dos sujeitos. Na descrição da violência masculina contra a mulher negra — destacase, neste contexto, em Pineau, especialmente o abuso sexual, a ausência do pai na criação dos filhos e a falta de amor entre mãe e filha — Pineau ressalta o surgimento da memória traumática: Rosette, ao som da música No woman no cry, de Bob Marley, vê imagens ‚de negros africanos mortos nos porões dos navios negreiros, sob o chicote, devorados por cães, vomitados pelos chamados senhores do mundo. Ela ouvia os gemidos das mulheres e os gritos dos órf~os‛, e ‚os resmungos dos quilombolas fugidos nas colinas‛ (PINEAU, 1996, p. 166). Enquanto que, em L’espérance-macadam, a dança e a música abrem caminhos para uma possível cura — a entrega à música dos tambores que contam as histórias da resistência negra (PINEAU, 1996, p. 266-67) —, em Fleur de Barbárie, a trilha da cura é aberta pelo ato de escrever. A escrita, segundo a narra-

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dora, ao revelar o passado no presente, ameniza a dor e o sofrimento de quem escreve e de quem lê e abre possibilidades de ‚transformar o coraç~o‛ das pessoas (PINEAU, 2005, p. 175, 290). Nisto reside, a meu ver, uma das características pós-coloniais da ficção afro-descendente do continente americano: refletir, refratar e recriar formas e práticas da violência pela memória para fins de conscientização e transformação. Neste sentido, René Depestre (1971, p. 20) argumenta que a ‚história da colonizaç~o é o processo da zumbificaç~o geral do homem. Também é a busca de um sal revitalizador capaz de restituir ao homem o uso de sua imaginaç~o e cultura‛. Esta revelaç~o enquanto recriaç~o da violência num processo histórico e local específico pode efetuar uma transformação identitária e sociocultural, porque suplementa uma existência rizomática (entre lugares/epistemes) com (vestígios de) lugares mais fixos, esboçando alternativas aos relacionamentos e {s convivências onde os ‚humanos continuam se devorando entre si‛ (PINEAU, 2005, p. 237). Reconhecer suas raízes no local, na terra, portanto, é fundamental, como afirma Josette, em Fleur de Barbárie: pular de rocha em rocha, deixar a marca dos dedos dos meus pés na areia, olhar as ondas morrer sobre os meus pés nus. E andar nas trilhas que atravessam os canaviais. Seguir os traços que serpenteiam na montanha. Subir as ruínas da Plantação Murat e colocar os meus passos naqueles dos negros escravos do passado. Eu era o descendente deles. [...] Esta terra pequena me tinha reconhecido como parente (PINEAU, 2005, p. 203).

Se, segundo Glissant (1992, p. 65) no Caribe, ‚a noç~o do tempo foi fixada no vazio de uma não-história imposta‛ e a consciência histórica ‚n~o podia ser depositada como sedimento de maneira gradual e contínua‛, mas ‚se formou no contexto de choque, contradição, negociação dolorosa e forças explosivas‛ (GLISSANT, 1992, p. 61-62), então a identidade cultural, individual e coletiva, reflete e refrata esta fragmentação e alienação de diversas formas. Sendo a cultura um efeito mnemônico produzido por relações hierárquicas entre espaços e grupos/comunidades, a violência da perda da memória coletiva e as tentativas de sua reconstrução constituem o que Glissant (1992, p. 65) chama de ‚uma neurose que avança de maneira constante‛; uma neurose violenta que afeta todos os grupos envolvidos, como enfatiza Stamp Paid, em Amada: Os brancos acreditavam que, fossem quais fossem as maneiras do indivíduo, sob cada pele escura existia uma selva. [...] de certo modo, pensou, eles tinham razão. [...] Mas não era uma selva trazida de seu lugar de origem. Era a selva que os brancos tinham plantado neles. E ela crescia. Aumentava. Na vida, durante a vida, depois da vida, ela se espalhava até alcançar os brancos que a haviam plantado (MORRISON, 1994, p. 232-233).

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E essa neurose continua crescendo. Segundo Lissie, a protagonista afrodescendente em The Temple of My Familiar, de Alice Walker, cuja mente lembra ‚tudo que jamais foi conhecido‛ (WALKER, 1990, p. 80), o legado colonial se prolonga no presente. Dando uma aula sobre a Middle Passage, Lissie, enquanto professora de história, compara aqueles irmãos africanos que, numa outra vida, a venderam para a escravidão, com aqueles que nos anos 80 do século XX vendem droga nas cidades norte-americanas: ‚[s vezes pode se ver as mesmas caras nas ruas das nossas grandes cidades; são os homens jovens vendendo droga ou aterrorizando os jovens [...]. Estas caras, não nos deixaram; nunca é difícil encontrá-las‛ (WALKER, 1990, p. 81). O narrador do romance Homem Invisível de Ralph Ellison (1952, p. 9) diz que ‚um erro foi cometido em algum lugar‛ e que, por isto, ele confunde as coisas; que para ele tudo parece ambíguo. Enquanto legado da violência colonial, a ambiguidade refere-se a um entre-lugar geográfico e epistêmico: entre diversos lugares da África e das Américas, a ética do bem e do mal se mesclou esquizofrenicamente no inferno do holocausto escravocrata. Se sentimentos básicos como o amor e o ódio são misturados, então como se consegue conviver em paz e justiça? O tipo de erro cometido, quando, onde e como, é um dos temas principais que atravessa a criação literária afro-descendente das Américas. Em seguida, examinarei diversos matizes deste erro em obras selecionadas de escritores afro-descendentes das Américas. Em Mr. Potter, como em toda sua obra, Jamaica Kincaid problematiza os efeitos que a colonização continua exercendo na chamada pós-colonialidade antilhana. O protagonista, Mr. Potter, órfão de um pescador que morreu e uma mãe que se suicidou, passa a mesmice de sua vida de taxista sem jamais aprender a ler e escrever. A única exceção a esta rotina diária — simbolizada pelo sol que nunca falha em brilhar — é constituída por momentos passageiros nos braços de diferentes mulheres. Das muitas filhas, que ele não faz questão de conhecer, somente a narradora (Jamaica Kincaid) consegue uma educação. Contar a história de seu pai significa dar-lhe uma voz que ela própria nunca ouviu e que ele nunca teve: ‚Mr. Potter nunca diz nada, nada mesmo. Deve ser triste […] nunca ter tido uma voz‛ (KINCAID, 2002, p. 189). O livro problematiza esta voicelessness pós-colonial, ou seja, o paradoxo de ter e não ter uma voz enquanto legado principal da colonialidade. Mr. Potter tem uma voz e sabe falar, mas num inglês mascavado: ‚Me nome Potter, Potter me nome‛, ele diz ao se introduzir ao Dr. Weizenger, estrangeiro que conseguiu escapar do marasmo fascista europeu da Segunda Guerra Mundial. O problema, segundo a narradora, é que o som desta voz, que traduz a auto-estima do emissor, soa mal nos ouvidos do receptor; como se fosse ‚cheio de tudo que tinha andado mal no

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mundo durante os últimos quinhentos anos‛. Para o Dr. Weizenger, a história fez do nativo Mr. Potter um nada, ‚uma coisa sem valor espiritual‛ (KINCAID, 2002, p. 23). A comunicação entre o estrangeiro e o nativo é um diálogo incompreensível, ou melhor, baseado na antipatia mútua, caracterizado por uma não-vontade de compreender. Em outras palavras, Mr. Potter tem uma voz, mas por ela não ser ouvida, por ela não ter uma história escrita (e reconhecida), permanece muda. A subalternizaç~o dos iletrados pelos letrados, portanto, continua como ‚o palimpsesto da continuidade pré-colonial e pós-colonial fraturada pela imposição perfeita de uma episteme iluminista‛ (SPIVAK, 1999, p. 239). Em termos identitários, isto significa que o Sr. Potter, nas palavras da narradora, move-se de ‚darkness‛ para ‚blankness‛: da escurid~o colonial (do navio negreiro e da plantaç~o) para o vazio, a nulidade, a não-expressão pós-colonial; um movimento (estático na sua essência porque a posição subalterna do sujeito é aprisionada na sua inferioridade) que constitui o pano de fundo do primeiro (o encontro entre o Sr. Potter e o Dr. Weizenger acima-referido) e último capítulo do livro, quando o Sr. Potter passa pela casa do seu empregador, o Sr. Shoul, um estrangeiro libanês. Os olhares que se cruzam, aquele do Sr. Potter de baixo para cima e os da família Shoul de cima para baixo, recriam a colonialidade de poder inerente à estratificação social: os olhares se encontram em oposição e incompreensão. A violência desta contínua estratificação social e racial, portanto, consiste em tirar dos subalternos a sua história e a sua voz (ambas necessárias para articular seus sentimentos e pensamentos) e, desta forma, marginalizá-los enquanto ‚desprezados‛ (KINCAID, 2002, p. 69), ‚odiados‛ (KINCAID, 2002, p. 86) e, portanto, seres humanos danados à sombra do esquecimento. Neste sentido, o livro problematiza como a presença dos não-nativos diasporizados continua causando a ausência dos nativos, diasporizando-os para as margens de um nãoDasein no mundo. Sem receber reconhecimento, sendo ‚seres [...] impedidos de possibilidade‛ (BUTLER, 2004, p. 31), como é que o ser pode persistir no próprio self? Neste contexto, surge a questão-chave do livro (e uma das mais importantes na obra de Kincaid), a saber: como é possível existir ‚amor e justiça num ermo, num mundo tão vazio de sentimentos humanos‛ (KINCAID, 2002, p. 72)? Por meio de um estilo que faz lembrar aquele de Gertrude Stein — estilo impessoal e direto; blocos de episódios caracterizados por contextualização incremental e iteração, entre outros — Kincaid grafa a mente do Sr. Potter, numa tentativa de inscrevê-lo dentro de sua própria inteligibilidade nativa, no momento em que ela é desenraizada pelo outro, recém-chegado imigrante. Desta perspectiva, o Sr. Potter surge enquanto ser que vive dentro de suas (não-)pos198 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

sibilidades. Quando expressa sua emoç~o, ao abrir a janela e ver a luz do sol (‚E ah faz me treme no interior, ‘e ah faz me senti esquecito e engraçado‛ [KINCAID, 2002, p. 19]), a narradora tenta traduzir a maneira de ele ser feliz: vendo o mundo desta forma, banhado de luz, ele não pensa que isto é felicidade ou que ele se sente feliz por causa deste momento; pelo contrário, o Sr. Potter simplesmente é: ‚n~o pensava de jeito nenhum porque neste momento n~o estava separado dele mesmo; ele, este sentimento particular e este momento particular eram a mesma coisa‛ (KINCAID, 2002, p. 21). Por um lado, o Sr. Potter é uma pessoa cujo self é enraizado na sua terra; por outro lado, vendo a paisagem e o mundo, o Sr. Potter não sabe o porquê das coisas. Esta falta de conhecimento, sua indiferença perante si mesmo, os outros e o mundo, faz com que este self seja, ao mesmo tempo, desterritorializado, sem âncora, joguete num jogo cujas regras são feitas por outros. Ele sabe o que é fome e injustiça, já que sua própria mãe (sem entender e poder lidar com seu destino) o deixou para trás, mas não sabe porque caem sobre ele. Somente uma vez na sua vida vê seu pai que lhe nega reconhecimento, mas não sabe o que significa não ter um pai, nem o impacto desta negação: a falta de amor que lhe impede de amar e dar amor. Assim, igual à linha que cruza o lugar onde deveria aparecer o nome do pai no seu certificado de nascimento, o Sr. Potter é cruzado por uma linha que aniquila seu autoconhecimento — melhor dizendo, seu ethos e sua cosmovisão, que lhe facilitariam entender o mundo e sua posição nele. Sem ser inscrito numa episteme cultural feita por ele e os seus conterrâneos, ele fica na sombra da luz dos outros — aqueles outros que o desprezam nem tanto pela sua ‚miséria‛ e ‚ignor}ncia‛, mas principalmente por verem refletido e refratado nele a sua própria desgraça enquanto exilados; a aniquilação e frustração do seu ‚potencial de triunfo‛ (KINCAID, 2002, p. 86) — e constitui a sombra que assombra os seus descendentes: sombras que, ao longo dos anos, fazem acumular o passado que n~o passa. Segundo Kincaid, a vida do Sr. Potter foi ‚como o seu carro, fabricado em outro lugar, aparecendo do nada como por magia e sem revelar como veio a existir‛ (KINCAID, 2002, p. 171). Por um lado, portanto, o Sr. Potter, enquanto objeto, vive uma vida cujo destino ele não consegue determinar, mas igualmente a um carro que precisa de alguém que o conduza, ele como sujeito simplesmente vive sem (poder) se perguntar por que vive desta forma e não de outra. Esta (não-)vida do Sr. Potter é um bom exemplo de como Kincaid, em toda sua obra, desconstrói binarismos e relativiza qualquer verdade, negando a validade de respostas conclusivas. Como a vida do Sr. Potter que ao mesmo tempo é e não é, a sombra escurece a luz, o mesmo suplementa o outro, o aleatório nutre o planejado, o amor é carregado de ódio e vice-versa: um tema,

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um estilo e uma estrutura que traduzem a complementaridade contraditória (nada existe sem os seus prolongamentos e suplementações), enquanto filosofia de vida que rompe com os limites binários do paradigma ocidental de inteligibilidade cultural. É nesta interface transcultural onde a episteme nativa (ela mesma um conglomerado de diversos elementos culturais) é fissurada por forças e práticas neocoloniais advindas de outras culturas que se situa a problematização kincaidiana da neocolonialidade do pós-colonial. Desta maneira, Kincaid enfatiza a violência brutal da exclusão e rasura do ser nativo muitas vezes sem possibilidade/vontade (pelas escolhas negadas) de resistir. Aqui nem mímica resistente existe. O que existe é um continuum de outrização do self nativo desde os tempos coloniais. Com uma diferença: enquanto Caliban falou o idioma do colonizador para o amaldiçoar, o nativo Sr. Potter nem reage/resiste mais, levando uma existência caracterizada por invisibilidade e silêncio. Mas nisto reside um dos problemas-chave: invisível e silencioso de que perspectiva? Parece-me que Kincaid (cujo nome original foi Elaine Potter Richardson), mediante a narradora-protagonista, a única filha do Sr. Potter que sabe ler e escrever, conota que a escrita, o instrumento imperial da sabedoria ocidental, é incapaz de grafar e revelar a consciência interior do nativo de outras culturas. Em vez de dar voz a ele, a escrita o traduz para o silêncio. E é neste silêncio que a voz do Sr. Potter, cuja identidade é a diferença, fala, que sua mente pensa e sua alma sente. Em Les chemins de Loco-Miroir, de Lilas Desquiron, uma das narradoras, Cocotte, formula a seguinte pergunta: ‚Quem jamais falar| desta mordaça na nossa boca, destas conchas aparafusadas sobre nossas pálpebras, deste peso sobre as nossas costas, sempre? As palavras se esgotam na nossa língua estéril [...]. Quem falará deste silêncio pesado sufocando o nosso elã desde a noite selvagem dos porões de navios negreiros?‛ (DESQUIRON, 1999, p. 15). No romance este silêncio sufocante é uma história traumática ‚de crimes e abusos‛ (DESQUIRON, 1999, p. 147), cuja repressão cria um ambiente social caracterizado por diversos tipos de violência. Benitez-Rojo (1996, p. 27) descreve a literatura antilhana como ‚projetos que comunicam sua própria turbulência, seu próprio choque e seu próprio vazio‛ e interpreta este vazio como a violência social não-dita que é o âmago da história e sociedade caribenha. No texto de Desquiron, o vazio não admitido (ou não percebido), mas vivido (por muitos de maneira esquizofrênica) é o legado africano. A mãe de Violaine faz de tudo para impedir a relação de sua filha com um rapaz de descendência negra. Para ela tal relação minaria o status aristocrata da família, enegreceria a cor bronze de Violaine; enfim, ameaçaria a estratificação hierárquica que segrega a sociedade haitiana em castas fenotípicas. Segundo este legado colonial do sistema escravo200 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

crata de plantação, tudo o que tem a ver com a África, como também as formas e práticas africanas transculturadas da diáspora são consideradas diabólicas, perversas, não-humanas. Para a aristocracia mulata no cerne do qual Violaine cresce, voltar ‚{ origem primitiva, amaldiçoada‛ é equivalente a um ‚erro original‛ (DESQUIRON, 1999, p. 79). Ao mesmo tempo, porém, eles optam pela zumbificação de Violaine para castigá-la; prática esta que no Haiti tem raízes africanas. Como o país, onde o sonho e a realidade — ‚a \frica do sonho, o Ocidente da raz~o‛ (DESQUIRON, 1999, p. 141-142) — são inextricavelmente ligados e transculturados, ou seja, diferidos de sua origem para algo novo sempre em processo, dentro de relações de poder desiguais — a África evocando vergonha e remorso (‚a \frica, nossa ferida secreta‛ [DESQUIRON, 1999, p. 57]), o Ocidente desejo e inveja —, muitos haitianos não somente vivem num entre-lugar transcultural (‚um mundo entre dois mundos‛; DESQUIRON, 1999, p. 142), mas vivem-no enquanto caminhada esquizofrênica entre os componentes de sua identidade compósita. Cocotte articula esta violência epistêmica e física da seguinte maneira: ‚Sempre uma parte de mim sofre, est| em exílio‛ (DESQUIRON, 1999, p. 84): o pesadelo do passado com suas sombras no presente. Visto dessa perspectiva, a francophonie é este lugar sociocultural ambíguo entre, por um lado, os efeitos da estrutura de dominação colonial, póscolonial e neocolonial e, por outro, a busca de autonomia cultural e identitária. É a encruzilhada criativa onde línguas (e através delas, culturas/identidades) se mesclam, onde le Creole e le Français-Français se abraçam ao ritmo dos batuques, contando as histórias da História. Neste processo, ela torna-se o lugar onde a mémoire brisée encontra a mémoire vivante (GALEANO, 2005). A memória viva escreve o subalterno dentro da memória quebrada do discurso e da ideologia oficial, problematizando-os, interpretando-os e transformando-os. Como tal, ela gera energia semiótica (re)construtiva e torna-se um fator importante em atos de legitimação identitária, cultural e política. A oralização desta memória viva é uma força curativa de transformação, porque cria constantemente novas conexões rizomáticas entre diversos elementos, desafiando a relação arbitrária entre cultura, identidade, memória e território mediante sua essência serpenteante. Desta forma, a francophonie reúne o passado e o presente num complexo espaço (pós-/neo)colonial discursivo/mnemônico. Em seguida, mapearei a deslocalização espacial e identitária refratada na relação entre mãe e filha no romance The Polished Hoe do escritor afrocanadense Austin Clarke. É nessa relação que se cristaliza o efeito das diferentes fases da globalização em forma de violência e opressão sofridas, internalizadas e praticadas. Neste livro Mary narra a história de sua ascensão de trabalhadora da

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roça à concubina do Senhor Bellfeels, o administrador de uma fazenda de cana de açúcar na ilha antilhana de Barbados. Desde o momento em que sua mãe a apresenta ao administrador, o destino de Mary é predeterminado (e alienado) pelo desejo masculino. Com a sua mãe ao lado, olhando para o chão sem dizer nada, Mary, aos oito anos, é marcada pela chibata do administrador que a passa do seu pescoço até a cintura ‚como se desenhasse algo sobre o meu corpo‛ (CLARKE, 2005, p. 11). Esta cena de ‚batismo‛ a introduz como objeto vendido no sistema patriarcal da plantação. Neste sistema, sua posição subalterna lhe impede qualquer possibilidade de escolha. Voltando a esta cena num flashback décadas depois, Mary explica: ‚A partir deste domingo o significado de pobreza foi cravado na minha cabeça. O repugnante poder de pobreza‛ (CLARKE, 2005, p. 12); uma pobreza que resulta do poder colonial e da sua estratificação em termos de raça e gênero. O escravizado tinha basicamente duas escolhas para garantir sua sobrevivência: jogar o jogo o melhor possível ou fugir. A mãe de Mary, sendo concubina do administrador, lhe apresenta sua filha numa tentativa de evitar a venda dela e garantir-lhe um futuro seguro em termos financeiros em vez de uma vida na roça à mercê dos homens. Perante o fato de que, durante a escravidão, a função da mulher negra não era ser mãe e/ou esposa, mas criadora de escravos, aumentando o ‚estoque‛ do senhor — função esta que sujeita a mulher negra a um ‚padr~o de violaç~o institucionalizado‛ (DAVIS, 1981, p. 23) que ela, sem querer, constitui e reproduz ativamente —, a atitude da mãe de Mary é explicável. Até, poderia argumentar-se, dentro destas circunstâncias, ela age enquanto mãe que quer o melhor para sua filha: um erro foi cometido em algum lugar... Mary resume o erro desta violência racista-sexista, cometida em toda a diáspora negra durante mais que quatro séculos, de maneira seguinte: E assim as coisas aconteceram comigo. E com a minha mãe. E com a mãe de minha mãe, voltando até o passado dos barcos saindo da África, indo à vela no alto mar, cruzando o Atlântico, tentando chegar nas Américas antes que mais estupro e suicídio e engano e traição e desespero os acometessem. E decidiram saltar à água, enfrentando as ondas verdes e bravas do Profundo; e Deus; cometendo suicídios, que era melhor (CLARKE, 2005, p. 444-445).

Uma violência que foi internalizada, primeiro conscientemente por uma questão de sobrevivência e depois inconscientemente enquanto efeito traumático não trabalhado: melhor se esquecer do que lembrar. Que esquecer um trauma é impossível, a ciência provou; especialmente, como problematiza a literatura da diáspora negra, porque esta violência, em matizes diferentes, continua escrevendo novos capítulos no presente. Segundo Mary, um dos efeitos desta 202 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

violência é que ‚tudo que temos para legar é amor. E amargor. E sangue. E raiva. E todos os quatro junto, embrulhados numa narrativa‛ (CLARKE, 2005, p. 355). Um erro foi cometido em algum lugar. Fazendo lembrar a máxima de Jean-Paul Sartre que ‚révéler c’est changer‛, escritores afro-descendentes trabalham este erro, ou melhor, os diversos matizes deste erro, para criar, nas palavras de Conceição Evaristo (2003, p. 130), ‚um outro destino‛. Gostaria de afirmar que esta participação da violência e das suas consequências no ato da reflexão, conscientização e humanização das vítimas demonstra a capacidade da imaginação humana de construir liberdade a partir do espaço da não-liberdade. REFERÊNCIAS BENÍTEZ-ROJO, Antonio. The Repeating Island: The Caribbean and the Postmodern Perspective. Durham: Duke UP, 1996. BUTLER, Judith. Undoing Gender. London: Routledge, 2004. CLARKE, Austin. The Polished Hoe. Toronto: Thomas Allen Publ., 2005. DAVIS, Angela Y. Women, Race, and Class. London: The Women's Press, 1981. DEPESTRE, René. Change. Violence II, 9. Paris: Seuil, 1971, p. 20. DESQUIRON, Lilas. Les chemins de Loco-Miroir. Haiti: Bibliothèque Haitienne, 1999. ELLISON, Ralph. Invisible Man. New York: Random House, 1952. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Maza, 2003. FERREIRA, Élio. América Negra. In: Cadernos Negros 27. São Paulo: Quilombhoje, 2004, p. 50-58. GALEANO, Eduardo. Ce passé qui vit en nous. Manière de voir, v. 82, p. 91-93, aoûtseptembre 2005. GLISSANT, Édouard. Caribbean Discourse. Charlottesville: University Press of Virginia, 1992. GLISSANT, Édouard. O quarto século. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. GLISSANT, Édouard. Faulkner, Mississippi. Paris: Gallimard, 1996. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2007. GRAUNA, Graça. Resistência. In: Cadernos Negros 29. São Paulo: Quilombhoje, 2006, p. 120. HARRIS, Wilson. Epilogue: Theatre of the Arts. In: DELOUGHREY, Elizabeth M.; GOSSON, Renée K.; HANDLEY, George B. (Org.). Caribbean Literature and the Environment: Between Nature and Culture. Charlottesville/London: University of Virginia Press, 2005, p. 261-268.

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CINZAS E ESPECTROS: NO CEMITÉRIO DA MORTE VIOLENTA1 Shawn Huffman2 Et le poisson mange l’algue et l’homme mange le poisson, l’homme passe dans la terre et la terre dans la plante et dans l’insecte et l’oiseau. Cendres et cendres, sang et limons, sucs et fanges, alluvions, sèves et semences, cendres, ô cendres. E o peixe come a alga e o homem come o peixe, o homem passa na terra e a terra passa na planta e no inseto e no pássaro. Cinzas e cinzas, sangue e lodos, líquidos e lamas, aluviões, seivas e sementes, cinzas, oh cinzas (A morte de C., Gabrielle Wittkop).

A morte apaga. Só se pode percebê-la nos rastros que deixa atrás de si: dores, alívios, aparições e silêncio. Seu rastro é identificado à cinza por Derrida. Fantasma gris de um corpo consumido, a cinza marca o desaparecimento; ela manifesta uma ausência ao mesmo tempo em que faz com que os desaparecidos falem. O espectro, por sua vez, deixou a materialidade de seu corpo e suas marcas. Sua subjetividade adquire uma outra forma que, como as cinzas, serve como testemunha disso. No caso da morte violenta, esse testemunho está traumatizado. São as tensões ausência/presença e fala/silêncio que eu gostaria de examinar com vocês hoje. Na primeira seção desta comunicação, discutirei a representação da morte por meio da imagem da cinza em Cendres de cailloux (Cinzas de carvalho) do dramaturgo quebequense Daniel Danis, em Les cendres bleues (As cinzas azuis) do poeta quebequense Jean-Paul Daoust e em Lecture en vélocipède (Leitura em velocípede) da poeta Huguette Gaulin3. Nessas obras, a cinza exprime a violência do falecimento; ela contém ainda o fogo de um acontecimento vivenciado como traumatismo; ela é um ‚lugar de queimadura‛ (DERRIDA, 1987, p. 21). É Voltaire, em sua peça Édipo, quem estabelece uma ligação entre a cinza e o fantasma. Escutemos o personagem do sacerdote: Roi, peuple, écoutez-moi. Cette nuit, à ma vue, Du ciel sur nos autels la flamme est descendue; 1 2 3

Tradução do original em francês: Melissa Mello; endereço eletrônico: melissamouramello @gmail.com. Universidade do Québec em Montreal (UQAM); endereço eletrônico: huffman.shawn @uqam.ca. Para tornar o sistema de notas mais atenuado, ao longo do texto, todas as referências ulteriores às seguintes obras são feitas por meio das respectivas abreviações: Cendres de cailloux — CC, Les Cendres bleues — CB e Lecture en Vélocipède — LV.

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L’ombre du grand Laïus a paru parmi nous […] Les Thébains de Laïus n’ont point vengé la cendre; Le meurtrier du roi respire en ces États, Et son souffle impur infecte vos climats (Acte 1, scène 3). Rei, povo, escutai-me. Esta noite, ao meu ver, Do céu sobre nossos altares a chama desceu; A sombra do grande Laio apareceu entre nós [...] Os Tebanos de Laio não vingaram a cinza; O assassino no rei respira nesses Estados, E seu sopro impuro infecta vossos climas (Ato 1, cena 3).

Quando o rastro não basta, quando a marca da morte não é suficientemente forte, ou quando ela é forte demais, o fantasma aparece, seja para exigir a vingança como em Hamlet, seja porque não consegue fazer a passagem entre a vida e a morte. Na segunda seção que trata do espectro, examino a peça La nuit juste avant les forêts (A noite antes da floresta) do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès a fim de observar a emergência do fantasma e a ligação que ele mantém com o universo dos vivos. CINZAS Gaulin escreve: ‚Se desfazer ontem ao ponto de vasculhar entre os cascalhos oleosos/como um pé na barriga/ou uma relação qualquer/o que resta de nós/quando decidimos partir‛ (LV, p. 152). O que perdura quando se decide partir como Gaulin? Quais marcas subsistem na esteira da partida violenta, da ausência, da dor tão grande que consome tudo em seu caminho? Como se pode praticar uma arqueologia do traumatismo para dimensionar essa perda? Daniel Danis, Jean-Paul Daoust e Huguette Gaulin criam impossíveis sepulturas para mortos impossíveis. Em sua peça, Cendres de cailloux (Cinzas de cascalho), Danis relata a história de uma moça, Pascale, cujo pai, Clermont, coloca fogo em seu universo quando descobre que a morte de Shirley, a segunda mulher que amou, era, de fato, uma farsa cruel, ‚a vingança da minha mágoa‛ diz Shirley. Lembremos que sua primeira mulher, Leonore, havia sido violentada e assassinada em Montreal. A violência e a crueldade associadas a essa perda se repetem e se renovam nesse gesto de traição por parte de Shirley, uma traição que joga Clermont para além da sensibilidade: ‚Meu pai vai continuar perdido nele mesmo‛ diz Pascale, ‚Ele nunca superou‛ (CC, p. 122). Les cendres bleues (As cinzas azuis) do poeta quebequense Jean-Paul Daoust também conta uma história de desaparecimento pelo fogo. Esse longo poema relata o assassinato e a incineração parcial de um homem em seus vinte e poucos anos por seu amante — essa é a palavra empregada no texto — de seis anos e 206 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

meio. A violência e o desejo sopram sobre a brasa da memória para sempre assombrada do poeta-narrador, agora adulto, e que se lembra do episódio que marcou sua vida com ferro em brasa: ‚Nessa noite um escritor debruça-se‛, ele diz, ‚por cima do poço alucinante de sua inf}ncia‛ (CB, p. 42). Ele se debruça sobre uma memória que queima dentro de si e cuja lenta corrosão devastou sua vida. Uma última violência: no dia 4 de junho de 1972, a poeta Huguette Gaulin, relativamente desconhecida na época, derrama gasolina sobre si mesma e se imola em frente da prefeitura de Montreal. Ela morre em decorrência de seus ferimentos dois dias mais tarde, criando uma espécie de culto em torno de sua imagem de poeta em detrimento de um conhecimento de sua poesia, culto que Normand de Bellefeuille chama de ‚necrofilia mistificante‛. Esse tipo de mistificação fetichisa a morte, sem se debruçar sobre a violência e os rastros que permanecem, a saber essa poesia de cinzas que revela uma presença, que contem a memória de um corpo. Sua colet}nea de três ciclos de poemas ‚Nid d’oxygène‛ (‚Ninho de oxigênio‛), ‚Recensement‛ (‚Recenseamento‛) e ‚Lecture en velocípede‛ (‚Leitura em velocípede‛) constituem justamente o que Derrida chamaria de ‚a urna da linguagem‛, figura pela qual é ‚recusada […] a lente da decomposiç~o abrigada‛ (1987, p. 37-39). A cinza de cascalho, a cor da cinza e a urna que a contém — os três textos forçam uma consideração do rastro do acontecimento violento da mesma forma que a paisagem que ele deixa atrás de si, entremeada pelas marcas corporais na cinza de um fogo devastador. No começo da peça de Daniel Danis, a ação já aconteceu e a maioria dos personagens já está morta. O jovem homem no longo poema de Jean-Paul Daoust também está morto, mas é trazido à lembrança de certa forma por meio da rememoraç~o do acontecimento: ‚Você viu?‛, pergunta o poeta, ‚Aqui somente palavras para te obrigar a voltar‛ (CB, p. 46). Finalmente, a coletânea de poemas de Hugette Gaulin apareceu em torno de seis meses depois de sua autoimolação. Entretanto, sua morte está presente em todo o texto, já que ela utiliza muitas vezes um ‚eu‛ lírico que antecipa seu próprio óbito. Nos dois casos, no de Danis e no de Daoust, nós nos deparamos com uma escrita que relata as consequências da morte violenta enquanto que a de Gaulin corresponde, sobretudo, a uma voz premonitória, mas que também assombra o que fica depois de uma morte violenta. Em Danis e Daoust, as questões levantadas por esse tipo de escrita tratam das dificuldades das lutas da sobrevida. O que quer dizer para Pascale, a filha de Clermont na peça de Danis, e para o narrador-poeta no poema de Daoust, sobreviver a um acontecimento devastador, mas de se encontrar, paradoxalmente, mais perto dos personagens mortos naquilo que toca a experiência, as simpatias e o saber? Como se pode comunicar as marcas de uma dor que recu-

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sa se fazer ouvir? Como se pode dizer aos vivos sua relação com os mortos, principalmente considerando-se os fatos violentos, os estupros contados por cada um dos dois? A poesia de Gaulin quanto a si própria difere um pouco e levanta um certo número de questões que seriam específicas ao seu trabalho. Nela, a sobrevida é excluída já que é o próprio corpo que é devorado por sua poesia, por sua escrita de fogo. ‚Hoje { noite, minha cara est| queimando‛ grita Shirley, na cena que abre a peça Cendres de cailloux (CC, p. 12) (Cinzas de carvalho). O fogo é um agente de transformação nessa peça; ele significa uma força de destruição e de corrosão alimentados por uma insatisfação profunda ou por circunstâncias que, pouco a pouco, enterram o sujeito vivo: ‚Eu, eu trabalho no ver~o nos fornos de carv~o de madeira‛, explica o personagem Coco: Avec le bois, les écorces des arbres on bourre les fours. On les rentre dans la gueule noire on les fait brûler pendant deux jours. On les sort en faisant de la purée de charbon noir (CC, p. 21). Com a madeira, as cascas das árvores se enchem os fornos. Elas são colocadas na boca preta e queimadas durante dois dias. Se retira elas de lá fazendo uma mistura de carvão preto (CC, p. 21).

Nesse caso, trata-se de uma transformação sem promessa de renascimento; é uma metamorfose na qual a decolagem e a queda da marca poética de Ícaro estão ausentes. O processo descrito por Coco corresponde principalmente à queima, à transformação do corpo em cinzas. O corpo em é questão é o do pai de Pascal, apelidado de ‚pedregulho‛ por Coco e seus amigos. Ele havia se metamorfoseado em pedra depois da morte de sua primeira mulher para poder suportar a vida sem sentir. Mas com a traiç~o de Shirley, ‚Ele acabou de por fogo/em sua segunda pele‛ (CC, p. 120), diz Pascale. Com essa segunda perda, ele se transforma para além da insensibilidade (a pedra); torna-se simplesmente ausência: ‚Eu n~o quero ver mais nada. Não ver nada. […] N~o ver nada‛ (CC, p. 116). Gaulin descreve uma reescritura do corpo pelo fogo. Em ‚Tordue au milieu des ombelles‛ (‚Contorcida no meio das umbelas‛), escreve: bercées les musiques elle boit l’infection ses visages en disparition rêvent sa pêcherie en pleine chair

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aux abysses des tibias fendus la danse ignée de la naissance (LV, p. 26). ninadas as músicas ela bebe a infecção seus rostos em desaparecimento sonham sua pescaria em plena carne nos abismos das tíbias fendidas a dança ígnea do nascimento (LV, p. 26).

Gaulin descreve sua ‚dança ígnea‛, ou seja, sua dança de fogo, como um nascimento. O nascimento do qual fala, entretanto, não descreve o começo da vida, mas sim, antes disso, o deslocamento ou sua transformação. Assim como quando Clermont é projetado para o além, ela vive bem perto da ausência: ‚Enxerto na esposa petróleo‛, ela escreve em outro poema, ‚os tetos desmoronam/e grita o infônico4 /as vigílias reviram as cinzas‛ (LV, p. 32). Com esses versos que não podem deixar ninguém indiferente, a poeta anuncia a transformação de seu próprio corpo em cinzas por meio de sua própria escrita. Sua ausência futura é marcada pelo rodopio atento das cinzas. As imagens veiculadas por esses versos são surpreendentes; lembremos que ‚o velar‛ é essa vigília que se guarda junto aos moribundos e que as cinzas marcam um fogo que já queimou. Tudo isso aponta para uma modalidade terminativa, um ter sido. A escrita constitui seu urnário que contém cinzas, essa memória do corpo, essa marca que continua a falar através da poesia. Há uma marca do fogo em Les cendres bleues (As cinzas azuis) também, ‚Essa noite eu tenho o fogo límpido‛ (CB, p. 8) escreve o poeta-narrador nas primeiras páginas de sua obra. Como em Gaulin, o fogo opera as transformações: a criança serve-se dele para apagar o rosto, mas, sobretudo, os olhos, esses ‚diamantes azuis‛ (CB, p. 31), do amante: ‚A criança que n~o quis morrer matou/O amante azul‛, escreve ‚Matou o Minotauro/Eu que deixava seu rosto/Como a chama‛ (CB, p. 55). Eis o acontecimento violento no centro do poema de Daoust, um acontecimento atravessado pelo sexo, pela violência, pelo desejo, pela culpa e por um sentimento de impotência. O poeta-narrador relata anos de paralisia, de fuga pelo álcool — esse fogo líquido — antes de sentir queimar em si mesmo uma escritura do fogo: ‚Essa noite eu tenho o fogo límpido‛ (CB, p. 8). 4

‚Infônico‛ se trata de uma palavra inventada que expressa a impossibilidade de gritar, é a voz e os sons interiores.

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A ligação entre o fogo e a escrita torna-se ainda mais aparente na narração de um ritual entre ele e o amante, quando eles estavam sozinhos no galpão atrás de sua casa a Salaberry-de-Valleyfield: Il me faisait écrire sur les bûches qu’il découpait Nos deux noms Gravés dans le feu […] Ces bûches pour nos hiéroglyphes (CB, p. 22).

Ele me fazia escrever sobre toras que ele talhava nossos dois nomes Gravados no fogo […] Essas toras para nossos hieróglifos (CB, p. 22).

A imagem dessas letras em fogo torna-se um leitmotif no poema, imagem que volta a assombrar a vítima, não somente como uma permutação da violência que entorna a morte de seu amante, mas também como uma descoberta da maneira como esse trauma a assombra sempre: ‚Nossos nomes ainda queimam no fogo‛, escreve (CB, p. 33). ESPECTROS O teatro do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès também é assombrado pela morte. Em suas duas primeiras peças, por exemplo, Quai ouest (Plataforma oeste) ou ainda Combat de nègre et de chien (Combate de negro e de cachorro), a morte é representada pela figura da sombra. Entretanto, em suas últimas peças, dentre as quais La nuit juste avant les forêts (A noite antes da floresta) e Robert Zucco, a sombra encarna-se mais, torna-se espectro. La nuit juste avant les forêts5 de Bernard-Marie Koltès constitui uma experiência teatral no meio do caminho entre o monólogo e o solilóquio. É um texto pronunciado de um só fôlego por um personagem em fuga a um ‚tu‛ que não se vê e que não lhe responderá jamais. O personagem aborda esse ‚tu‛ em busca de um quarto, ‚só por uma noite‛, pois por razões que se ignora, ele n~o pode retornar ao seu quarto que, de qualquer forma, é um quarto de hotel, um lugar de passagem. Em sua interaç~o com esse ‚tu‛ mudo, ele relata três acontecimentos que se resumem assim: — O encontro de uma mulher que se nomeia ‚mam~e‛ sobre uma ponte; ele passa a noite com ela, fazem amor, mas ela desaparece no dia seguinte e ele não a reencontra mais. 5

Em todas as referências ulteriores dessa peça é utilizada a abreviação NF.

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— A morte de uma prostituta que come terra do cemitério depois de ter jogado tudo para o ar; n~o se sabe muito o porquê… ela estava apaixonada pelo cliente? Ele recusou pagar? ‚a puta corre atr|s do cara como uma louca, ela mesma meio pelada, tu vê o cara que entra em seu carro, que liga o motor, e a puta que se agarra na porta do carro, que sobe no capô‛ (NF, p. 45-46). — O personagem principal que é espancado em uma estação de metrô por dois ‚bandidos‛ cujo aspecto, roupas e força ele admirava; eles roubam seu dinheiro e para encobrir o crime deles, inventa uma história de ‚bicha‛: ‚eles me empurraram para a porta: vamos fazer esse viado descer na próxima estação e quebrar a cara dele [...], ninguém reage, ninguém acredita na história da grana, todo mundo acredita na bicha e me fizeram descer na primeira estação sem que ninguém se mexesse‛ (NF, p. 59). Pode-se observar uma progressão nessa sequência de histórias. Com o episódio da moça encontrada perto d’|gua, essa moça narciso-eco ‚eu, meu nome é mam~e, n~o me diz o teu‛ (NF, p. 34), ele conta o fato de se apaixonar. A força desse amor ainda se faz sentir, sua marca ainda está presente para ele, ‚na pedra‛ (NF, p. 34). Entretanto, como sua mãe havia feito antes, essa moça de nome emprestado o abandona, e ele a procura por tudo: ‚eu procuro no fundo da |gua‛ (NF, p. 35). A repetiç~o do voc|bulo ‚mam~e‛ revela o desespero da perda e destaca o trauma do abandono: ‚volta um minuto pra que eu te veja, mamãe, mamãe, mamãe, mamãe, mamãe, mamãe, mas que merda, como um imbecil eu esperei‛ (NF, p. 36). Para ele, é uma história que a ‚desanima‛, pois ‚isso bagunça tudo quando vai longe demais‛ (NF, p. 37). A história da mulher encontrada sobre a ponte permite que ele encadeie com aquela da outra mulher, a prostituta ‚que morreu disso que foi t~o longe‛ ( NF, p. 37). Ela morreu justamente porque se apaixonou por um cliente que a abandona. Sua dor era grande demais, ela se suicida engolindo terra do cemitério, ‚a terra mais funda‛ (NF, p. 37), o que tem por efeito enterrar, mas o interior. A cena do metrô, contada por último, constitui o momento final nessa progressão afetiva e lógica. É no metrô que ele vê esses ‚bandidos, com essa cara que não me engana‛ (NF, p. 57). Ele os inveja e quer se parecer com eles: ‚me d| tuas roupas, teus sapatos, teus cabelos, teu jeito, tua cara, assim, sem mudar nada‛ ( NF, p. 58). Entretanto, um dos bandidos rouba sua carteira, história banal de roubo de carteira no metrô; o personagem principal se vira ‚ok, deixem de ser idiotas, eu convido vocês pra tomar uma cerveja‛ (NF, p. 58). Eles, somente pelo olhar, pouco a pouco, entram em acordo, começando a gritar para desviar a atenção: ‚a gente desce com esse viado na próxima estaç~o e quebra a cara dele‛ (p. 59).

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Eles fazem com que ele desça na próxima estaç~o e quebram a sua cara ‚como a última das bichas‛ (p. 59). É na sequência dessa agressão que o ritmo desenfreado do texto se transforma subitamente, torna-se lento, marca uma suspens~o. O personagem n~o se mexe, ‚eu olho, ouço, isso sempre vai bem‛ (NF, p. 60). Ele enxerga uma velha, ‚congelada‛ que ‚fazia sinais com sorrisos‛ (p. 60); ele escuta um árabe que canta baixinho e depois, diante dele, vê uma moça de camisola branca: ‚sua cara se contorce, ela começa a chorar, ela continua até a ponta da plataforma‛ (NF, p. 61-62). Subitamente, ele não suporta mais isso e tem vontade de bater, de quebrar tudo ao seu redor. Mas ele permanece sentado com essa vontade de bater até que ‚tudo para de verdade: os metrôs n~o passam mais, o árabe cala a boca, a mulher lá em cima para de respirar, não dá mais pra ouvir a moça de camisola fungar, tudo para de uma só vez‛ (p. 62). Essa suspens~o é cortada por um coro de vozes: ‚eles respondem um para o outro e vão juntos como se tivessem ensaiado (uma música horrível, alguma coisa como ópera ou uma porcaria dessas)‛ (NF, p. 62). Nesse momento preciso do texto, o personagem falece. E aí começa sua fuga: ‚eu saio correndo pelos corredores, eu pulo as escadas‛ (NF, p. 62), nesse ponto, começa a peça. Foram propostas várias interpretações para essa peça, mas nenhuma até agora conseguiu valorizar a importância da vida espectral na construção e na evolução do personagem principal. Nenhuma destaca a progressão em direção à morte nas histórias que ele conta a esse ‚tu‛ ausente. O personagem-espectro aborda esse ‚tu‛, esse ‚camarada‛, como ele diz, em busca um quarto. Afora isso, observemos que as palavras ‚camarada‛ e ‚quarto‛ têm a mesma etimologia grega kamara6. O que o espectro procura é mais um abrigo efetivo, pois a itinerância, o passageiro, constitui seu meio natural: ‚se me dessem uma dessas cabanas […] em pouco tempo eu a transformaria num quarto igual aos dos hotéis, onde eu me sinto em casa‛ (NF, p. 9-10). A itinerância do personagem indica que ele não tem vínculo espacial, econômico ou afetivo. O personagem se descreve também como sendo leve; finalmente, muito pouca coisa o prende { terra: ‚um bom sopro de vento e a gente sai voando‛ (NF, p. 14). A noção de leveza também é expressa por múltiplas referências a pássaros e à sensação de plainar, produzida seja pela droga, pelo |lcool ou pelas emoções. Koltès cria assim um paradigma de ‚leveza ontológica‛ no qual a ausência de peso significa um tipo de ausência do plano cor6

A tradução em francês de quarto é chambre, por isso o comentário sobre a raiz etimológica das palavras. Em português, ainda temos a palavra câmara, mas seu significado derivou da matriz latina de outra forma.

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poral: ‚eu que n~o como‛, diz o personagem principal, ‚eu que n~o como nada, que a cada dia fico mais leve‛ (NF, p. 32-33). Essa leveza no plano do corpo é reforçada por sua atitude para com os espelhos no texto. Mais exatamente, o personagem principal evita os espelhos, os coloca ‚nas costas‛ para n~o ser visto por eles. Na peça de Koltès, o personagem é o paciente do olhar especular, ou seja, ele é submetido ao olhar do espelho. Ora, o personagem principal, ao evitar os espelhos, não tem imagem, não é visto e, consequentemente, passa desapercebido, pois os espelhos somente podem refletir a presença material, só podem refletir o que ainda vive, como nos lembra Bram Stocker em Drácula. A noção de espelho está intimamente ligada ao ‚tu‛ ausente, esse ‚tu‛ ao qual o personagem dirige seu discurso. No início, ele evita olhar o ‚tu‛ assim como evita os espelhos: ‚eu dizia: eu te vi dobrando a esquina da rua [...], eu estava alto e pedia cinco minutos, com metade de cabeça cheia de besteira, a outra toda concentrada em ti pra quem eu não ousava mais olhar de tão confuso que estava‛ (NF, p. 30-31). Mais tarde, entretanto, uma virada se dá; o personagem-espectro conclui que o ‚tu‛ espelho não se parece com ele, apesar do fato de os dois estarem na chuva, que os dois s~o ‚bandidos meia boca‛: toi, ce n’est pas pareil […] la pluie ne t’a même pas mouillé, la pluie a passé { côté de toi, les heures passent { côté de toi, c’est l{ que j’ai eu raison de comprendre que, toi tu n’es qu’un enfant, tout te passe à côté, rien ne bouge, rien ne prend une sale gueule, moi j’évite les miroirs et je n’arrête pas de te regarder, toi qui ne changes pas ( NF, p. 56). tu, n~o é a mesma coisa […] a chuva nem te molhou, a chuva passou pelo teu lado, as horas passam pelo teu lado, aí é que eu entendi que tu, tu é só uma criança, tudo passa pelo teu lado, nada acontece, nada te afeta, já eu, eu tenho que evitar os espelhos e não paro de te olhar, tu que não muda (NF, p. 56).

A noite na qual o personagem se encontra, essa ‚noite antes da floresta‛ não permite o reflexo, a mesma linguagem, sendo este último um signo de solidez ontológica, um signo de vida. A luz nessa peça faz parte também do paradigma da morte. Como em outras obras de Koltès — pensemos em La fuite à cheval très loin dans la ville (A fuga a cavalo muito longe na cidade) — a noite é quase total, ela ‚cobre tudo‛ (NF, p. 21). Ela é pontuada por uma luz ‚suja‛ que faz com que as pessoas fiquem irreconhecíveis, que as esconde, que não serve no fim para ver, ao contrário, que impede de ver. Essa noite também é contada através de uma história relatada pelo personagem principal, a história de um velho general ‚que passa todos os seus dias e suas noites na beira de uma floresta […] e que atira

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em tudo que se mexe‛ (NF, p. 50): ‚eu gostaria de ser como qualquer coisa que n~o é uma |rvore‛ prossegue o personagem principal, ‚escondido em uma floresta na Nicarágua, como um passarinho que queria sair voando por cima das árvores, com todos aqueles soldados […] que o vigiam‛ (NF, p. 55). Essa história estranha constitui a síntese de todos os índices de morte expressos na peça: o assassinato, a noite e a leveza expressa pelo pássaro que, mais tarde, se transforma em pomba. O paradigma pássaro se torna mais rico com a integração do ‚tu‛: je cherche quelque chose qui soit comme de l’herbe au milieu de ce fouillis, les colombes s’envolent au-dessus de la forêt et les soldats les tirent, les raqués font la manche, les loubards sapés font la chasse aux ratons, je cours, je cours, je cours […] j’ai cherché quelqu’un qui soit comme un ange au milieu de ce bordel, et tu es là ( NF, p. 63). eu procuro alguma coisa que seja como a erva no meio dessa floresta, as pombas voam sobre a floresta e os soldados atiram nelas, o mendigos pedindo esmola, os bandidos Caçam os estrangeiros, eu corro, corro, corro […] eu procurei alguém que fosse como um anjo no meio dessa bagunça, e tu está aqui (NF, p. 63).

O ‚tu‛ do texto é justamente esse anjo que veio conduzir o morto para uma consciência da morte: ‚eu sonho com o canto secreto dos |rabes entre eles, camaradas, eu te encontro e te pego pelo braço‛ (NF, p. 63). *** ‚Saibamos curar‛, pede a poeta quebequense Suzanne Joly em Alchimie

de l’ombre (Alquimia da sombra): avant la mort de nos vastes blessures ou en accepter la béance comme un lieu où s’apaiseraient démons et angoisses saurons-nous délaisser chemin faisant amarres et attaches qui occultent le phare et nous privent de la mer (2002, p. 48) antes da morte de nossos vastos ferimentos ou aceitar a diferença como um lugar onde se aquietam demônios e angústias saibamos por de lado caminho fazendo amarras e apegos

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que ocultam a farol e nos privam do mar (2002, p. 48).

O poema de Joly fornece uma chave de leitura para a linguagem das cinzas e dos espectros, um teatro da sombra. A cinza, o espectro e o luto são sintomas de uma incapacidade de viver com o vazio, com a perda. A cinza constitui a transformação desses ferimentos em outra coisa. O espectro encarna a perda. Ele é um vazio ambulante. Normalmente, o luto é esse mecanismo que permite curar. A morte violenta, entretanto, frequentemente dá lugar uma forma de luto na qual nos perdermos. A cinza e o espectro são, ao mesmo tempo, os lugares e essas perdas — esses cemitérios — e a voz que demonstra isso. REFERÊNCIAS CHAURETTE, Normand. Le Petit Köchel. Montréal et Arles, Leméac — Actes Sud, 2000. DANIS, Daniel. Cendres de cailloux. Montréal et Arles, Leméac — Actes Sud, 1992. DAOUST, Jean-Paul. Les Cendres bleues. Trois-Rivières, Écrits des forges, 1998. DERRIDA, Jacques. Feu la cendre. Paris, Des femmes, 1987. GAULIN, Hugette. Lecture en vélocipède. Montréal, Les Herbes Rouges, 1983. JOLY, Suzanne. Alchimie de l’ombre. Montréal, Éditions du Noroît, 2002. KOLTES, Bernard-Marie. La Nuit juste avant les forêts. Paris, Minuit, 1988. MALENFANT, Paul Chanel. Des ombres portées. Montréal, Éditions du Noroît, 2000. VOLTAIRE. Œdipe, suivi d’Œdipe travesti. Montpellier, Editions Espaces, 2002. WITTKOP, Gabrielle. La mort de C. Paris, Seuil, 2001.

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MORTES VIOLENTAS E TEMPOS DE LUTA POR JUSTIÇA1 Tania Cordeiro2 1 NOTAS PRELIMINARES 1.1 VÍTIMAS E A DISPUTADA CONSTRUÇÃO DA CULPA A apreciação corrente da vítima habitual das mortes violentas consiste em um exercício no qual é, muito frequentemente, atribuída parte da culpa ao próprio indivíduo vitimado, como se houvesse alta conformidade entre o morto e a natureza de sua morte. Este julgamento emerge sob forma de conjectura posterior ao falecimento: se ele morreu deste jeito, alguma coisa nele o atraiu para este fim. Essa conformidade assume posição de sentença indubitável quanto mais o currículo da vítima ratifique as suposições construídas a seu respeito a partir de sua morte. É como se a vítima fosse destinada àquele fim e que, portanto, cumprisse com a morte, naturalmente, o seu destino. Nesse sentido, pode-se compará-la a uma pessoa que fora contaminada por uma doença incurável que a leva a óbito. No contexto atual a referida contaminação costuma ser evidenciada através do histórico policial da vítima que informa sobre o número de passagens em delegacias, informação que vem, normalmente, incluída nas matérias jornalísticas que noticiam as mortes por assassinato. Este é um dado balizador para a distinç~o entre vítimas consideradas ‚envolvidas‛ e aquelas que ‚n~o tinham nada a ver‛. Por sua vez, tal classificaç~o se desdobra em vítimas merecedoras de atenção e aquelas desprovidas de um tal merecimento. Entretanto, esta não é a única baliza utilizada no processo moral relativo à condenação ou absolvição do morto. Inclui-se nesta dimensão uma luta entre os parentes da vítima e os seus agressores no sentido de, por um lado, associá-la a condutas transgressoras e, por outro lado, vinculá-la a comportamentos positivamente apreciados pela ordem estabelecida. Esta disputa produz, necessariamente, um ideal de vítima para a acusação e outro para a defesa. Atualmente uma vítima ideal para a acusação é aquela cujo currículo não permite contemplar máculas criminosas, a exemplo de crianças muito pequenas, cuja inocência vem ratificada pela idade. Isto (mas não apenas isto) tem contribuído para colocar, por exemplo, o pedófilo em condição, social e moralmente, 1

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Esse artigo teve a sua primeira versão publicada In: TAPPARELLI, Gino; NORONHA, Ceci Vilar. (Org.). Vidas em risco: quando a violência e o crime ameaçam o mundo público e o privado. Salvador: Arcádia, 2008. Universidade do Estado da Bahia (UNEB); endereço eletrônico: [email protected].

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indefensável. Quanto à vítima ideal para a defesa, obviamente, é aquela que apresenta sinais de comportamentos irregulares, não concernentes com a defesa da ordem estabelecida. Não há necessidade de relação direta ou indireta entre o fato que resulta na morte e as ações que caracterizam irregularidade no currículo do morto. A questão não está relacionada com a necessidade de elucidação do acontecimento que enseja o resultado morte, e sim com identificação de ‚sinais vitais‛ inspiradores ou n~o daquela forma de morte. Em certo sentido, pode-se dizer que as duas partes procuram atrair a atenção comunitária, midiática e, especialmente, do tribunal do júri para o campo da compatibilidade ou incompatibilidade entre a vítima e a sua morte trágica. As duas posições contraditórias animam a luta que tem se dado em um prazo amplo, especialmente em Salvador, considerando-se o número irrisório de varas no Tribunal do Júri. Esse tempo tão dilatado, por sua vez, tem contribuído para a inclus~o de elementos presentes na ‚vida do processo‛ e n~o no fato criminoso a ser julgado. Como exemplo pode-se lembrar do emprego feito por um advogado de defesa de cenas relativas a reações de descontrole e de destempero de uma mãe ao ficar frente a frente com o responsável pela morte de seu filho adolescente. O defensor toma aquela exaltação para compor os seus argumentos e, anos depois, a utiliza em audiência para respaldar a informação de que o seu defendido e as ‚suas‛ testemunhas est~o sendo perseguidos. Com isto é trazido para o registro do processo um elemento que pode se configurar em fator relevante para a defesa diante do Tribunal do Júri e cuja verossimilhança está relacionada com a atuação da mãe da vítima em uma cena de descontrole emocional verificada na primeira audiência que tratou do caso. Com o passar dos anos, a tendência é a incorporação do processo à dimensão cotidiana e o seu desligamento da perspectiva de acontecimento e, portanto, de algo que se define pela ruptura com as regularidades. Esta inclusão e consolidação da violência enquanto evento típico da ordem diária podem ser sentidas pela ampliação da opacidade em torno do assunto bem como pela perda do caráter público do caso. Trata-se de um tempo de esquecimento que pode ser caracterizado por um ocaso favorecido pelas novas e semelhantes violências que preenchem as manhãs de cada dia. A esse propósito cabe lembrar a consideração que tende a perceber o cotidiano como uma duração menor sem maiores ‚novidades‛, um universo aproblem|tico e pouco digno de maiores apreciações. Uma temporalidade que quando referida por uma força legitimadora escapa do tempo contínuo e de bastidor para uma duração iluminada e de palco, perdendo a tipicidade do cotidiano: Obviamente de esta nata viviente surgen fenómenos, sujetos y procesos que rompen con esta especie de bucólica de las prácticas e subjetivida-

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des cotidianas. Pero, por lo mismo, al aforar dejan de pertenecer a este universo para identificarse con esferas asumidas que dan la oportunidad a las sociedades e historias humanas de no permanecer en ese tiempo detenido por el que se miran los haceres, sentires e pensamiento del sujeto ordinario (LEÓN, 1999, p. 117).

A grande maioria dos casos não consegue superar as prescrições cotidianas e tendem, com o tempo, a uma perda de importância semelhante ao que ocorre com os problemas de saúde crônicos e graves cuja fase de diagnóstico costuma ser acompanhada de uma consistente rede de solidariedade, mas, com o passar do tempo observa-se a crescente rarefação no que concerne aos apoios, deixando isolados (porque quase solitários) os contaminados pela violência. 1.2 PISTAS PARA A INCLUSÃO DA VIOLÊNCIA NA IMAGEM DA CIDADE Para além das ponderações indicadas na nota anterior tem-se um desafio relativo à dificuldade de se afirmar que Salvador é uma cidade violenta. O contraste com a imagem da capital da alegria, da magia, da terra da felicidade cria problemas quanto à legitimidade da incômoda e inoportuna proposição. Tornase necessária a utilização de recursos de persuasão, entre os quais aqueles que podem funcionar como relativizadores de tão positiva imagem da Cidade. Como forma de se abordar a questão pede-se que o interlocutor reflita sobre o clima de insegurança constante na capital baiana e materializado, cada vez mais, nas intervenções feitas na sua paisagem urbana. São inúmeras as evidências de que o medo está presente na vida dos habitantes que aderem, cada vez mais, às grades, aos cadeados, à vigilância dos condomínios, aos seguros. Pede-se, ainda, que observem a adoção de práticas ilegais como a interrupção de vias públicas por guaritas que funcionam à guisa de alfândegas ao barrarem o cidadão em seu percurso e dele exigir informações sobre as suas pretensões ambulatórias3. Em outro plano, sugere-se ao leitor recordações sobre a inclusão da temática da violência entre os seus assuntos corriqueiros. Os bate-papos sobre assaltos e outras manifestações de violência, as histórias vividas pelos seus próprios narradores funcionam como âncoras para suportar a ideia de que Salvador é uma cidade que contempla a violência, o medo e a insegurança. Este recurso ao reconhecimento do problema através da experiência do morador pode facultar a descoberta das mudanças de hábitos que sutilmente vão moldando formas de se habitar, de se divertir, de se transportar ou de se viver na 3

A esse propósito cabe consultar o site ; recomenda-se, também, a leitura de CALDEIRA (2003).

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Cidade. Também permite acessar os velhos tempos nos quais situações quase prosaicas, levando-se em consideração o quadro de insegurança atual, eram tomadas como alarmantes e até dignas de mobilização social e política. As duas notas aqui apresentadas foram concebidas como lentes em relação às quais é sugerido o uso para a continuação do texto que se segue. Esperase que funcionem como fatores de aclimatação. 2 LUTAS POR JUSTIÇA: ENTRE PALCOS E BASTIDORES Todo dia é dia de morte violenta. Os mais vulneráveis são meninos jovens, pobres, afrodescendentes, solteiros, moradores de bairros populares, com escolaridade e qualificação profissional precárias. Têm idades que são quase sinônimo de vida, tempo de vitalidade, de experiências novas, de mudanças entre os 15 e os 39 anos. Habitam em casas humildes, situadas em becos, baixadas, em endereços difíceis de serem localizados, resultados de intervenções autônomas de famílias e grupos excluídos das políticas de habitação. Mortos a tiros, preferencialmente nas noites, nos fins de semana, em locais mais degradados dos seus já degradados espaços sociais. Tantos são que viram números anunciados mais ou menos a partir de um mesmo mote: encontrado o corpo de um jovem morto a tiros na madrugada de ontem; foi encontrado morto um rapaz, com perfurações na cabeça; troca de tiros deixa jovem morto. Desde 1998, o Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV) vem observando a dinâmica das mortes violentas em Salvador, identificando o perfil social dos mortos, seus locais de moradia e os instrumentos causadores das mortes. Através desse acompanhamento foi possível descrever as características das vítimas preferenciais desses óbitos e atuar de modo a pressionar o estado no sentido da promoção de políticas públicas, e, ao mesmo tempo, realizar ações junto a grupos de indivíduos cujas características se encaixam no perfil dessas vítimas. Em 2006, o Fórum decidiu conhecer mais profundamente famílias que perderam seus filhos para a violência. A iniciativa veio respaldada por uma compreensão, a essa altura óbvia e sustentada por anos de escuta assistemática de familiares que buscam o FCCV para apoiá-los na ‚luta‛ que se segue { morte de seus filhos. É clara a situação de dificuldades vividas por essas pessoas ao encararem os desafios resultantes da perda do ente querido. Tal como os filhos mortos, são pessoas pobres e desprovidas de capital simbólico (BOURDIEU, 1994) capaz de superar as precárias condições financeiras e fazer valer a Lei, que é prevista como válida para os cidadãos brasileiros, indistintamente. Encontram muita dificuldade em acionar os canais cabíveis 220 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

diante da situação de ocorrência de um crime de natureza grave tal como um assassinato. Foi definida, assim, a necessidade de acompanhamento do percurso seguido por dez famílias, com o objetivo de conhecer os meandros que cercam o trajeto obrigatório a ser feito por elas no tocante à luta pela justiça em relação à morte de seus filhos. É dessa experiência que tratarei a partir de agora, chamando a atenção para o fato de que a descrição será feita em primeira pessoa, e não serão tomados casos isolados, nem se farão necessárias as identificações dos familiares uma vez que o fio condutor é definido pela experiência de quem acompanha. O primeiro passo foi reunir um grupo de pessoas para pensar e, ao mesmo tempo, levar adiante a ação do acompanhamento. Um sociólogo, uma antropóloga e eu, que sou professora de comunicação, construímos um pequeno projeto e passamos a contar, inicialmente, com a colaboração de três bolsistas de comunicação social. Cada um de nós estudou um pouco sobre sistema de justiça criminal como parte da preparação para o referido acompanhamento. Pela experiência acumulada tanto em pesquisas empíricas quanto em atividades de extensão, tanto eu quanto o colega sociólogo, Gino Tapparelli, e a colega antropóloga, Andrija Almeida, sabíamos que havia a demanda por acompanhamento por parte das famílias e, diante da calamidade do registro frequente de mortes cujos responsáveis são policiais, não haveria a necessidade de criamos proclames a respeito de nossa nova busca; certamente o fato mesmo de estarmos disponíveis proporcionaria o encontro com a parte que nos interessava. E isso aconteceu. Refletindo, agora, sobre essa primeira ‚facilidade‛ me vem um certo amargor. Quero ilustrá-lo a partir da adulteração da ideia contida na frase ‚laranja madura na beira da estrada, t| bichada ou tem marimbondo no pé‛. Conforme essa citação, a fruta boa, saborosa, à beira da estrada, seria coisa rara de se encontrar. Na analogia que faço para aplicá-la a nosso encontro com famílias de vítimas, eu diria que aquela ‚fruta‛ est| por toda parte, mas ela é difícil de se ver, de se notar, justamente por ter se tornado tão comum, tão banal, tão disponível. Para encontrá-la, basta dispor de uma lente que recupere a visão perdida pela indiferença que surge ante as coisas que se tornam corriqueiras. Guardo, então, essa impressão desconfortável que se sintetiza em uma espécie de efeito contraditório pelo qual a multiplicação de existências dramáticas quanto mais excessiva mais se oculta da visão, ou seja, o próprio exagero tem logrado o poder de cegar, de desclassificar e de gerar a perda de oportunidade para as atenções, cada vez mais, afeitas à raridade. Fomos à delegacia em um bairro popular de Salvador. Havíamos sido informados, previamente, de que ali estavam familiares de um rapaz que havia

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sido assassinado no dia anterior. Caso não soubéssemos onde se localizava a DP, não teríamos dificuldade para encontrá-la, pois a frente da edificação havia sido tomada por pessoas que portavam cartazes nos quais se exigia a justiça. À medida que nos aproximávamos, podíamos avistar um jornalista, que fazia a cobertura do evento, e, entre as pessoas, uma adolescente que se apresentou como irmã da vítima e nos informou que sua mãe se encontrava com a delegada titular para prestar declarações. Nós também nos apresentamos, mas não houve maior demora nesse ato porque os membros da comunidade informaram sobre a nossa ida e, assim, éramos esperados e bem esperados. Enquanto prosseguia a manifestação, nós nos dirigimos à sala no momento em que se iniciava a tomada de declarações da jovem mãe cujo segundo filho fora morto a tiros por uma guarnição policial. Imediatamente fomos incorporados à cena enquanto representantes de uma entidade que defendia a paz e a justiça (o FCCV). Aquela inclusão imediata me faz pensar, agora, no tamanho da carência que mais tarde pudemos constatar. Éramos ainda pessoas estranhas e, mesmo assim, imediatamente incorporados como fundamentais para a luta daqueles familiares, sem que houvesse qualquer sinal de desconfiança. Com essa abertura, que se assemelhava a uma entrega, dei-me conta de que havia não uma, mas um conjunto heterogêneo de carências, apresentadas pelos familiares, entre as quais a falta de respaldo para acolhê-los em um momento de dor, de desorientação e de despreparo material e simbólico de modo a fazerem frente às novas dificuldades que se instalariam como definitivas em suas vidas. E essas questões foram se descortinando à medida que adentrávamos aos cenários públicos e privados a que os casos conduziam, de tal modo que agora as vejo como o coração do problema a ser encarado. Voltando à situação em frente da delegacia, recordo-me dos cartazes, alguns dos quais já davam sinais de usados com as letras perdendo a nitidez sobre papéis envelhecidos e, discretamente amassados. Em um deles a mensagem reclamava a morte de outra vítima ocorrida anteriormente, e isso me faz pensar a respeito dessa espécie de oportunidade de devolver à cena pública a reclamação a propósito de um ente querido que já havia cumprido seu papel de morto recente, o mesmo que, naquele momento, era imposto a um seu equivalente social. Todos os que estavam ali ocupando um espaço da rua e da fachada da delegacia, a seu modo, pediam justiça e clamavam por segurança para os moradores do bairro. Entre os portadores das mensagens, se misturavam adolescentes e jovens, meninos e meninas. Essas manifestações espontâneas sugerem a existência de uma atuação comunitária já conformada em modelo de protesto, desenvolvido em razão da grande incidência de casos semelhantes ao que, naquele momento, era objeto da atenção policial. Um elemento que corro222 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

bora com a ideia da existência de um hábito proporcionado por repetições daquele tipo de problema veio da fala daqueles que passavam, olhavam para o movimento e diziam, resignadamente, que isso não resultaria em nada, como quem dissesse que já conhecia aquele ‚filme‛, no qual, invariavelmente, o menino morre no final e pronto. A fala com algumas pessoas que integravam a manifestação permitiu-me saber de alguns dos vínculos com a vítima. Recordo-me de uma jovem que me informou ser colega de sala dele e apontou para algumas outras pessoas que tinham o mesmo tipo de laço. Algumas pessoas estavam mais claramente consumidas pela dor, tinham as feições abatidas, olhos vermelhos ou choravam; imaginei que fossem parentes do falecido. Havia também vizinhos e conhecidos da família. Pode-se dizer de um vínculo baseado no conhecimento pessoal: indivíduos testemunhas da vida do jovem morto, os quais, naquele momento, podem se ocupar da tarefa de construir frações da ‚biografia do outro‛ (GOFFMAN, 1976). Inicia-se, nesse ambiente, a defesa da vida do morto, forjada por aquele coletivo enquanto, na esfera individual, a mãe da vítima fazia o mesmo em suas declarações junto à autoridade policial. As cenas protagonizadas pelo grupo se apóiam em um saber comunitário que está relacionado ao hábito de se defrontar com eventos idênticos àquele. Nesse sentido, eu, Gino e Andrija deveríamos observar os comportamentos, os pequenos e grandes gestos que estavam correlacionados a um saber construído a partir das experiências trágicas pelas quais passam os habitantes dos bairros populares de Salvador. E assim o fizemos, procurando captar pistas no modo de estar das pessoas em relação aos referidos eventos. E isso nos levou, posteriormente, a surpreendentes revelações. Os espaços urbanos onde são registradas as ocorrências de mortes violentas e onde residem as vítimas são, na sua maior parte, áreas nas quais prevalecem várias formas de abandono, e seus habitantes são objeto de vários estigmas, entre os quais se destaca, para efeito dessa narrativa, o rótulo de pessoas violentas. Essa qualificação tende a ser transferida àqueles que são mortos pela violência, especialmente na visão dos que não o conheceram, não habitam nem frequentam os referidos espaços sociais onde são verificadas as mortes. Entretanto, esses indivíduos ou grupos, mesmo fora da cena, desempenham um papel importante na definição das imagens relativas às violências e, em especial, a esses óbitos, em razão de sua credibilidade e legitimidade social. Eles seriam o público desejado pelos atores que se manifestavam em frente à delegacia. E, naquela oportunidade, eles puderam contar conosco e com o jornalista, enquanto representantes de um espaço social privilegiado, se comparado com o lugar de pertencimento daqueles atores.

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Não suponho que aquela ou outras mobilizações dessa natureza tenham o fito claro de transmitir ao outro desconhecido e distante uma mensagem de reação comunitária, exclusivamente. Ao contrário, há aspectos relativos a outras dimensões, a exemplo da expiação e da catarse refletidas no ânimo dos adeptos ao movimento. Entretanto, a vontade de gritar ao mundo e dizer basta se faz evidente, a exemplo das mensagens que pedem outro tipo de atenção policial. Nesse sentido, a morte recente reacende a vontade de se fazer visível; e talvez não exista palavra mais usada nesse universo do que visibilidade ou algumas locuções que condizem com sinônimos desta. O querer ser visto vem carregado da necessidade de se contar a própria versão, a própria história e o próprio parecer. E esse exercício é feito como uma espécie de homenagem ao morto, a demonstração de que ele é a vítima; e sobre isso são narrados detalhes do último encontro, as últimas palavras trocadas, os últimos gestos. Metaforicamente, pode-se dizer que s~o feitas algumas ‚autópsias‛ que demonstram, fartamente, a inocência do morto. Porém, para quem o morto é revelado, através desses exames e ‚laudos‛? Como já mencionado, são poucos os estranhos à comunidade; portanto, o trabalho de revelação pouco frutifica. E eis um problema que a nós soa como um desafio: como contribuir para fazer ressoar aquelas ‚autópsias‛ para além das fronteiras do corpo social ali circunscrito; enfim, como ampliar aquelas imagens, de sorte a romper com o limite-padrão de público estabelecido; como permitir que aquelas mensagens ganhem mundo. Essas reflexões passam a povoar nossas mentes e nossos encontros. Retorno ao interior da delegacia e ouço o relato da mãe. A delegada a escuta e pede água algumas vezes para ajudá-la a prosseguir em suas declarações. E aquelas eram, sobretudo, declarações de amor ao filho, preenchidas por provas que eram exibidas como a demonstrar o prazo de validade não vencido daquele jovem. Ele tentava se integrar, fazia cursos de telemarketing, word, já dispunha, portanto, de registros para o preenchimento de um currículo que ele distribuía, ao mesmo tempo em que havia começado a trabalhar, sem carteira assinada, em uma empresa de segurança. Ao lado dessas virtudes sociais, era apresentada a dimensão relativa aos afetos a partir, sobretudo, das fotografias que comprovavam os gestos de alegria e de camaradagem. As imagens fotográficas eram também utilizadas para se referir a gosto e a talentos, a exemplo da paixão pela música baiana e pela dança. A cada vez que essas provas eram apresentadas, a jovem mãe, através de gestos e impostação de voz, sugeria que uma pessoa como aquela ali revelada não poderia sofrer uma violência de tal magnitude perpetrada por policiais. 224 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

Cenas dessa natureza são repetidas a cada novo caso ou a mesma história é recontada em outras oportunidades. No início, seus narradores têm uma postura que revela uma convicção de que os seus argumentos serão cruciais para retirar os filhos da indiferença dos números, das estatísticas e da injustiça. Para cada família, seu filho não era um qualquer; parece ser essa a vontade inscrita naquele conjunto de providências, a qual pode ser vista, também, como a ilusão de separar a vítima da insensibilidade pública. Vão sendo desenhadas, assim, identidades particulares para os mortos, as quais comporão um currículo pleno de virtudes que dão ao lugar vago a expressão da perda de um pequeno herói do núcleo familiar. Esse modo de representar a vítima lembra as operações simbólicas descritas por Certeau (2006) ao tratar da edificação hagiográfica: ‚os fatos s~o antes de tudo significantes a serviço de uma verdade que constrói a sua organizaç~o ‘edificando’ sua manifestaç~o‛. Tal operaç~o alcança êxito com o apoio do tecido comunitário que dispõe de fragmentos de memória envolvendo ações positivas realizadas pela vítima as quais são narradas de modo entusiasmado por essas testemunhas. Emerge, como resultado do ‚trabalho de simbolizaç~o‛ (CERTEAU, 1998, p. 278), a perda do filho maravilhoso, do irmão sem defeitos, do amigo sincero, do vizinho disponível, do aluno aplicado e do religioso fiel. Esse trabalho toma forma de empenho paralelo às exigências das instituições encarregadas da justiça, porém contribui, de modo subjetivo, para sustentar os familiares nas suas lutas. Ao lado disso, as referências levantadas funcionam como recursos que podem ser acionados pelo Ministério Público no momento da acusação, para a descrição da vida perdida. Antes de chegar ao quase inatingível tribunal, eu me remeto ao tempo de espera e, antes dele, ao tempo de mídia. A exuberância de eventos relativos a mortes violentas coloca, mais de que nunca, os meios de comunicação de massa em permanente exercício de escolha; isso implica que muitas ocorrências não sejam reportadas pela mídia, gerando-se, desse modo, uma espécie de segregação do evento, que fica restrito a seu ambiente de origem. Com essa restrição, o óbito deixa de ser um acontecimento da cidade e passa a se limitar aos contornos do bairro, da rua, dos ambientes aonde chega a notícia, passada boca a boca, pelas vias de comunicação que implicam a presença de emissor e receptor em um mesmo espaço e ao mesmo tempo. Pode-se dizer de uma morte que atinge, profundamente, um lugar determinado, mas não repercute sobre os outros espaços em relação aos quais o evento é incomunicável, que ela gera, em termos de trocas de informações, um efeito morte-zero.

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Cada caso anunciado pela mídia, ao contrário da situação anteriormente mencionada, vem caracterizado como mais uma morte, independentemente da forma como é dada a notícia. A validez das mortes devidamente midiatizadas supera a das que são silenciadas em razão do status de existência e, portanto, de concretude que ganham os fatos tornados públicos pelos meios de comunicaç~o de massa. Os óbitos assim ‚publicizados‛ concorrem para sua classificação como preocupação coletiva, aumentando as chances de mobilização da opinião pública e a correspondente atenção por parte das esferas governamentais. Embora essas reflexões não estejam incorporadas ao dia-a-dia das pessoas, a forte presença da mídia na vida dos indivíduos lhes proporciona um senso de apreciação a respeito da dimensão de poder que têm os meios de comunicação de massa. E, no momento em que se encontram em situação de crise, como no caso das mortes por motivo de violência, a mídia passa a ser cogitada como espaço a se buscar para ampliar o poder do fato ao torná-lo acontecimento de conhecimento público. Cultiva-se uma expectativa por parte das famílias em torno do potencial resultante da inscrição das mortes de seus familiares na agenda midiática; e este cultivo não é desprovido de razões, principalmente quando a estrutura da notícia pode propiciar uma percepção pública menos afeita à confirmação de estigmas e se aproximar mais da politização do problema. Tem sido afirmado que os problemas têm de encontrar soluções, e as soluções devem envolver porta-vozes e recursos para serem levadas a termo. Porém a percepção pública destes fatores resulta chave. Os meios de comunicação poderiam ofertar plataformas para difundir marcos discursivos de incidência política considerável (BLANCO, 1997, p. 41).

O recurso à comunicação de massa, entretanto, não é automaticamente conquistado; ao contrário, trata-se de um desafio à parte ou de uma luta dentro da luta; aliás, nesse percurso tenho observado a impossibilidade de se estabelecerem contornos definidos para os próprios empenhos, dada à diversidade de carências relativas a coisas básicas: do dinheiro para o transporte, para fazer frente às providências, à necessidade de esquemas cognitivos para a tradução dos scripts institucionais. Tudo é urgente e prioritário e deve ser conseguido à base da atuação nada profissional de colaboradores que, inicialmente, se desdobram em ações às vezes coroadas de êxitos enquanto outras resultam em fracassos. Esse domínio é nomeado pelos envolvidos pela expressão correr atrás; e é nessa ‚correria‛ que s~o vislumbradas as estratégias de ocupaç~o midi|tica. Um dos endereços que se colocam à vista são os programas de rádio e televisão, os quais se ocupam da crônica do cotidiano popular. A ida a esses 226 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

programas assume um status de tomada de decisão. Os interessados enfrentam filas nas madrugadas com o intento de que seus casos sejam selecionados pelas produções dos referidos programas, e, ali mesmo, se veem cercados por sujeitos que portam problemas idênticos aos seus. Essa constatação comporta mais um ajuste relativo à necessidade de criação de táticas tendo em vista a situação de concorrência. É preciso vencer a disputa por visibilidade e, portanto, dotar o caso específico de vantagens para o espaço midiático, e isso se faz com um arranjo de apostas, sem qualquer orientação técnica, mas apoiadas, basicamente, na familiaridade que se tem com o programa, a partir do hábito enquanto receptores. Esse recurso, na maioria das vezes, resulta em empate, pois os concorrentes da fila disponibilizam táticas e produtos similares, resultado de seus saberes equivalentes. Nessas condições, a mídia tem uma ampla chance de escolhas que são baseadas em aspectos tais como grau de saturação do assunto em contraste com uma tem|tica ‚inovadora‛; disponibilidade de imagens como gravações telefônicas; filmagens por aparelhos celulares, sem falar nos talentos ‚naturais‛ mais ou menos midi|ticos conferidos aos personagens que procuram os programas, e outras conveniências mais. Como é possível notar, sair do sofá para a tela, para as ondas de rádio ou, ainda, para as linhas dos jornais implica em muito mais que uma disposição motora e se converte, em termos existenciais, em uma sorte quando o intento é bem sucedido: [...] quero chamar a atenção para uma diferença importante: isto é, que a comunicação de massa implica, geralmente, uma transmissão de mensagens de mão única, do transmissor para o receptor. Ao contrário da situação dialógica de uma conversação, em que aquele que escuta é também um respondente em potencial, a comunicação de massa institui uma ruptura entre o produtor e o receptor, de tal modo que os receptores têm relativamente pouca possibilidade de contribuir no curso e no conteúdo do processo de comunicação (THOMPSON, 1990, p. 288).

A observação feita por Thompson permite visualizar, ainda que brevemente, distinções estruturais entre os dois pólos da comunicação de massa. E faz ver, também, que as habilidades comunicacionais cotidianas não são aplicáveis ao universo da mídia sem que haja adulterações muito profundas que as tornem irreconhecíveis. Desse modo, galgados à condição de emissores, em razão das trágicas ocorrências contra um ente querido, os familiares da vítima tentam se integrar a um mundo cujas lógicas e procedimentos lhes são estranhos. Isso exige desses indivíduos uma disposição adicional diante de uma situação que demanda outras mobilizações para além daquela relacionada com a área da comunicação. Desse modo, posso notar que a composição da mídia no

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quadro de providências a serem tomadas indica quanto os familiares nutrem esperanças em torno dessa agência. Um dos atributos a serem perseguidos pelos indivíduos em seus desejos de midiaticidade diz respeito à incorporação de uma certa noção de tempo midiático, visto aí como oportunidade, em relação à qual cabe a ele se dotar de condições para perceber quando a agenda dos meios de comunicação de massa favorece o investimento. Um outro aspecto relativo a esse tipo de tempo diz respeito ao caráter da duração no espaço midiático que se traduz no desempenho ante uma velocidade acelerada. Eis um descompasso frequente entre o saber comunicacional adquirido pela vida cotidiana e a exigência de clareza e concisão em tempo mínimo. Mais do que nunca, fica evidenciada a necessidade de dizer pouco, pois não se pode dizer tudo, em tão pouco tempo. E essas ponderações, mesmo quando se dispõe de compreensão sobre as razões de ordem técnica, não deixam de ser sentidas como mais uma fonte de privação imposta àqueles que têm uma longa história a contar. É como se alguém descobrisse que a longa história não teria tido lugar que não aquele, circunscrito à vida de seus próprios atores. Observo um desconforto dos familiares, que passam a ter que se moldar aos roteiros das agências, inclusive da midiática, distribuindo fragmentos de suas histórias a partir da ‚especificidade‛ de cada uma delas. E tais peculiaridades são derivadas das funções dessas mesmas agências, funções estas que, via de regra, não são explicitadas em domínio público ou não estão presentes, com a consistência necessária, no senso comum. Cada instituição tem uma demanda peculiar orientada pela atribuição exercida, podendo-se dizer que essas instituições dispõem, em suas rotinas, de uma ‚curiosidade técnica‛, e seus usuários devem procurar um encaixe, mesmo sem conhecer distintamente a demanda implícita que rege cada uma delas. Esses encontros entre leigos e peritos, portanto, n~o s~o ‚meros esbarrões‛, aquilo que Searle (2000, p. 114-115) denomina de fatos brutos; ao contrário, está próximo do que ele classifica de fatos institucionais, tornados possíveis através do uso de regras. Chamo tais regras de ‚regras constitutivas‛, porque agir de acordo com tais regras constitui a atividade regulada por elas. Regras constitutivas também regulam, mas fazem mais do que regular; elas constituem a própria atividade que regulam da maneira que sugeri. A distinção entre fatos brutos e fatos institucionais, como argumentei e continuarei a argumentar aqui, só pode ser totalmente explicada em termos de regras constitutivas porque os fatos institucionais só existem em sistema de tais regras (SEARLE, 2000, p. 115).

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Essa característica não se restringe à instituição midiática, muito ao contrário, sua aplicação a esse campo é menos evidente porque se trata de um universo que vem embalado por um véu de liberdade, onde se supõe tudo ser possível. Nesse sentido, a busca por esse espaço é animada por um senso de poder dizer tudo o que fica preso na garganta, tudo o que as outras agências não são capazes de açambarcar. Porém, com o uso desse recurso, vai-se descobrindo que também ali existem modelos a seguir. Um último ponto relacionado com o tempo midiático a ser referido neste relato toca ao estágio da ocorrência que é mais explorado pela mídia e está, normalmente, associado ao tempo presente, no sentido cronológico. A maior projeção de fatos violentos pelos meios de comunicação de massa é dada imediatamente à verificação da ocorrência. As mensagens, na maioria das vezes, se estruturam a partir do cometimento do crime e dão conta do quê, do quando, do onde, do quem, reproduzindo as perguntas clássicas propostas pelo lead na cultura jornalística. Desse modo, os eventos regulares tendem a ser substituídos por seus idênticos recentes, de tal forma que a duração midiática fique centrada na etapa que corresponde, no plano das intervenções institucionais, ao tempo de delegacia. Tal correspondência tem impacto sobre o modo como o público aprecia o desempenho das instituições, uma vez que as outras agências que se encarregam de atuar posteriormente ao tempo de delegacia têm suas dinâmicas, relativamente, preservadas das pressões públicas. O aspecto anteriormente assinalado condiz com a forma com que as manifestações violentas costumam ser referidas. Popularmente, são definidas como questão ou coisa de polícia. Essa fixação em torno de apenas uma das agências que compõem o sistema de justiça criminal tem efeitos sobre a construção dessa duração que eu divido em: tempo de mídia e tempo sem mídia, de modo que corresponde a este último o sentido de página virada, assunto ultrapassado. Entretanto, esse ínterim é o mais demorado dos tempos (no sentido físico do termo) quando o assunto é crime contra a vida, e os envolvidos são pessoas desprovidas de capitais capazes de mobilizar a atenção da sociedade e da justiça. Vale lembrar que os familiares adotam um comportamento de colecionadores de recortes dos jornais, usando como critério as matérias que fazem menção à morte de seus filhos. Tal coleção, por sua vez, integra o conjunto de papéis que, reunidos em um classificador passam a funcionar como um acessório sempre usado por esses parentes, em especial pelas mães. Essa providência eu noto como automática. Se nos primeiros dias após a morte, os papéis são alocados em envelopes que estão à mão no momento da necessidade, logo em seguida são transferidos para os classificadores que acompanharão os familiares

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a todos os cenários, para demonstrar que há sempre expectativa de emprego ‚avulso‛, através do surgimento de uma oportunidade que pode ser frutífera, e, portanto, deve-se estar sempre preparado. Por esse acervo, é possível constatar uma maior densidade de recortes de jornais relativos ao intervalo que chamo de tempo da delegacia. Coincide com a etapa de maior silêncio midiático a perda dos recursos comunitários originalmente disponíveis. Eu a sinto como a estação da solidão. Nessa quadra, ao lado da desmobilização dos apoios mais amplos, se enfrenta uma estranha experiência com relação ao tempo: o de todo dia e o da luta aí representada pelas qualidades como paciência, perseverança e força. O primeiro exige o uso da vida, e o segundo precisa que a vida seja economizada para o seu emprego na hora necessária. Em relação ao primeiro, vale mencionar as palavras de Elias (1998, p. 22) quando trata do tempo na era moderna: Nessas sociedades, o tempo exerce de fora para dentro sob a forma de relógios, calendários e outras tabelas de horários uma coerção que se presta eminentemente para suscitar o desenvolvimento de uma autodisciplina nos indivíduos. Ela exerce uma pressão relativamente discreta, comedida, uniforme e desprovida de violência, mas que nem por isso se faz menos onipresente, e à qual é impossível escapar (ELIAS, 1998, p. 22).

Essa duração insiste em ser única em razão do seu caráter permanente e nela não cabe uma previsão regular, como um horário protegido de outros ânimos, destinado à luta por justiça, pela simples razão de que a experiência mostra que o tempo da justiça é descontínuo e irregular, não podendo, portanto, integrar a rotina cotidiana. Ao contrário, esse tempo perturba o viver habitual, pois impõe a suspensão dos afazeres. A cada ida ao Fórum para o acompanhamento dos casos, são interrompidos compromissos de trabalho referentes a empenhos domésticos ou atinentes às prestações profissionais; também há uma interrupção no que se refere ao estado emocional das pessoas mobilizadas, o que repercute no corpo sob forma de dores de cabeça, pressão alta, dores de estômago, descontrole intestinal e outras formas de mal-estar. Nesse sentido, são frequentes as cenas de ingestão de medicamentos enquanto se aguarda uma audiência, por exemplo. Mas, antes de se chegar ao Fórum, passa-se pelo Ministério Público, órgão que vai analisar o inquérito e verificar se o material disponibilizado reúne elementos técnicos para se fazer denúncia à justiça. Essa instância, dada à natureza de suas funções, dispõe de procedimentos convergentes com a perspectiva das famílias das vítimas. Tal coincidência dá à quadra de tempo relativa a esse órgão uma maior leveza e a impressão de que a ele se pode voltar quando for 230 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

preciso. E tem sido necessário esse retorno a cada vez que se apresenta a conveniência de se fazerem novas denúncias ao longo de um processo. Funciona, então, como um espaço reserva ao qual se pode apelar diante de novos fatos; entre os mais frequentes, menciono aqueles atinentes às ações relacionadas com ameaças às testemunhas. Comparando-se com o tempo da Justiça, o do Ministério Público pode ser classificado como mais condizente com o respeito à pessoa humana, principalmente no que se refere à duração, que é mais curta, e à falta de burocracia para o atendimento. Todos esses tempos vão convergir no tempo da justiça e lá estará o Ministério Público na figura do acusador; mas aí já não é mais a marca da sua duração a dar o tom, mas a da agenda, sempre repleta, da justiça. Pelos ponteiros da vida dos que aguardam, são tempos de recursos parcos, o que faz realçar, também, o valor do investimento. A cada faxina que deixa de ser feita para se ir ao Fórum, perdem-se valores financeiros contados para fazer frente às necessidades de sobrevivência, e a isso se acresce a despesa do transporte e, eventualmente, da água mineral para a ingestão do remédio, resultando em uma soma difícil de ser arcada. A tudo isso se deve acrescentar um outro aspecto dentro desse tempo que pode ser representado pela imagem de um relógio parado enquanto o tempo passa. Refiro-me às inúmeras viagens inúteis, especialmente ao Fórum, para acompanhamento de audiências marcadas previamente e não realizadas porque a justiça não consegue convocar as pessoas a serem ouvidas, em tempo hábil. Recentemente, fui a uma dessas sessões e lá estavam a irmã, a mãe e o padrasto da vítima. Além deles, compareceram duas outras mães que participam do grupo de pessoas que acompanhamos, e uma delas levou a filha, grávida de oito meses, para seguir uma sessão de julgamento no Tribunal do Júri. Lá estavam também os colegas Andrija e Gino, além de dois bolsistas italianos que estão estagiando no Fórum Comunitário de Combate à Violência. Na audiência, que, como quase sempre, foi agendada para um horário e começou mais de uma hora depois, estava presente apenas a mãe para ouvir que a justiça não conseguiu convocar, pela quinta vez seguida, as testemunhas; e, assim, foi novamente adiada a sessão para mais adiante. Nas idas ao Fórum, as famílias procuram informações junto ao Serviço de Atendimento Judiciário (SAJ) para saberem sobre a previsão de novos compromissos. Via de regra, a resposta oscila entre a indefinição quanto à data do próximo passo e a marcação da audiência para dali a meses. Convém recordar que esse tempo, em termos cronológicos, envolve anos. Por trás da criticada morosidade do judiciário, habitam explicações inacreditáveis para uma sociedade em pleno século XXI, para um país rico, que

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conta com um processo de modernização em algumas áreas e se equipara às pátrias mais avançadas do mundo. Um dos pontos críticos diz respeito ao número reduzido de varas do tribunal do júri (contava-se com apenas duas e, neste ano de 2008, foi criada mais outra) para um número superior a dez mil casos. Cidades muito menores que Salvador contam com números bem mais expressivos. Esse quadro explica, em parte, o peso que o judiciário e o estado dão ao problema que atinge duramente a população mais pobre. Ao lado disso, as varas não dispõem de recursos para a realização, de modo mais diligente, de suas atribuições. Esse quadro é gerador de uma imagem contraditória. Na perspectiva dos peritos da justiça, ela não pára, ao passo que, pelo olhar de quem aguarda, ela não anda. Nesse sentido, a imagem que mais se aproxima dessa configuração é a de um engarrafamento, no qual a maioria dos envolvidos cumpre a espera e se sentem perdendo o tempo, ao passo que os peritos do trânsito ofertam todas as soluções técnicas possíveis, mas estas só abalam, lenta e quase imperceptivelmente, as rodas dos carros e não as pessoas em seus humores e movimentos. Esse ‚teatro‛, onde se espera encenar o último ato, evidencia, de modo desencantador, a quantidade excessiva de casos: são milhares. E fazer parte de números tão expressivos, em termos práticos, corresponde a não ser ninguém. Nesse particular, eu me aproprio de uma passagem do livro A violência totalitária, de Michel Maffesoli (2001, p. 288), centrou-se: ‚[...] em torno das noções como as de equivalência, uniformização ou de indiferença que fomos levados a extrair as linhas gerais do individualismo e do totalitarismo‛. O autor utiliza a expressão serialidade para tratar de outros aspectos não relacionados imediatamente com o que aqui está sendo tratado, mas o vocábulo se adapta, perfeitamente, ao espírito do teatro e das cenas aos quais me referi. Em geral, nos horários de expediente estão em cena múltiplos indivíduos que desempenham o papel de ‚corredores‛ a encenarem o ato de correr atr|s, conforme a expressão por eles usada. Ficam postados, normalmente, em espaços cuja expressão é homônima da sua condição, corredores, mas ironicamente, ali se praticam atos de espera os quais em nada se coadunam com o sentido relacionado com as corridas; ao contrário, ali o ritmo é lento, e, apesar das setas de sinalização e da lógica implícita nos ritos, a trajetória vivida não é uma reta e nem sempre leva adiante. Não obstante, semelhante às corridas em que se passa o bastão, eles se retiram sem que se note quebra no movimento, pois o processo de substituição é ininterrupto, tal como a produção em série na indústria. Sente-se aí, nessa ponta que resta da sucessão de tempos ultrapassados, um sentido de excesso a conformar os vivos à condição de vítimas da máquina da justiça. A serialidade ganha corpo e toma os corpos de modo a se poder definir 232 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

o tempo da justiça por esse senso de equivalência dos casos despejados sobre o mesmo aparelho que irá aquilatá-los, pesá-los, medi-los através de audiências que recontarão, muitas vezes, o mesmo caso, até que um dia, anos depois do começo, uma história fica pronta para ser apresentada no tribunal. E, mais uma vez, se espera na fila silenciosa por uma data na agenda da justiça. Enquanto esse cronômetro mede o nada ou o quase nada, os familiares experimentam um drama à parte que diz respeito ao fato de que, ao longo da trajetória, vão se acumulando danos, um dos quais é, particularmente, relevante. Trata-se da perda de vista das testemunhas. Já não moram mais nos velhos endereços, talvez tenham se mudando de cidade e já não têm a disposição inicial de colaborar. Formalmente estão arroladas no processo, mas a vivência acumulada ao longo dos anos impede que os interessados se sintam tranquilos, pois já se sabe que a Justiça não tem sido tão eficaz assim, quando o assunto é alcançar testemunhas. Nessa etapa, o medo da perda dessa espécie de ingrediente básico assume feições dramáticas, mas esse temor se instala desde os primeiros momentos quanto mais tênues são os laços entre as testemunhas e os indivíduos que correm atrás da justiça. A vontade de ter as testemunhas à vista e até de protegêlas se expressa junto com um sentimento de insegurança e de impotência. Sabese que são pessoas-chave e, por isso mesmo, têm chance de ser ameaçadas e, portanto, têm motivos justificados para temer e até desenvolver comportamentos que visem a sua exclusão do processo, pois aqueles saberes básicos ao esclarecimento do caso podem lhes custar caro, pode lhes valer a vida. É possível dizer que o tempo de espera é para eles um período de apreensão que, dado ao caráter extenso, representa uma alteração excessiva em suas vidas, que passam a comportar o peso do medo, normalmente acompanhado de conselhos no sentido de recuar desse papel tão arriscado. Recordo-me da mãe que ficou sabendo que uma das testemunhas da morte de seu filho foi procurada pelo policial acusado de ser responsável por aquele óbito. Ela entrou em contato conosco sentindo-se insegura, e fomos acompanhá-la ao Ministério Público. Assim, eu conheci o jovem que era amigo de seu filho e se encontrava com ele quando ele fora alvejado pelo policial. Ele estava preocupado com sua própria segurança, e ela, a mãe, queria transmitirlhe confiança, ao mesmo tempo em que compreendia o seu receio. É uma cena que envolve desespero e ponderação, quase a sugerir um estado de perfeição humana. Em outra situação, para que uma testemunha ocular fosse ouvida na delegacia, foi necessário estabelecer um horário no qual ela se sentisse menos amedrontada. Cabe lembrar que a ida da testemunha à delegacia, normalmente,

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é sentida como um gesto arriscado porque os agressores, muitas vezes, sabem quem são as pessoas que estavam presentes à cena ou nas imediações do crime. O deslocamento dessas pessoas à delegacia, com a visibilidade que isso implica no interior daquele tecido comunitário, confirma as suposições nutridas pelos acusados, tornando as testemunhas mais vulneráveis a ações de represálias, ameaças e violências mais contundentes. Isso quer dizer que os indivíduos capazes de prestar essa importante e intransferível colaboração não ficam invisíveis aos olhos dos agressores; pelo contrário, entre as testemunhas e os acusados s~o interpostas ‚lentes especiais‛ que alcançam esses ‚confidentes‛ em seu viver diário bem como a vida daqueles que lhes são caros. Tal possibilidade, por sua vez, dá lugar à exacerbação do medo, o que torna ainda mais complexa a fixação das testemunhas no tecido social comprometido pelo risco. Nós sabemos de casos em que famílias inteiras se transferem de suas moradias em razão das sombrias possibilidades de serem vítimas dessa espécie de vigilância instalada sobre elas. Um outro fator que foge ao controle das famílias diz respeito à representação da vítima por parte da defesa. Esse é um capítulo em relação ao qual reside a necessidade de se fazer uso de uma força adicional e quase desumana que consiste em escutar versões condenatórias sobre a vida do filho morto. É comum à defesa buscar elementos de persuasão endereçados, especificamente, aos representantes do júri para que possam influenciá-los na tomada de posição, levando-se em conta o conjunto dos defeitos reais ou fantasiosos associados à vítima. Nessa hora, a biografia do morto, construída pelos familiares e amigos e integrada à acusação, é acionada como elemento do debate sobre quem era aquele que não pode mais falar. A situação agora invocada é mais amplamente verificada quando há um desequilíbrio de poder entre as partes, de modo que o pólo relacionado com a vítima disponha de menos vantagens. Por exemplo, quando o acusado é um policial, e a vítima é um jovem pobre, negro, morador de bairro popular, com pouca instrução escolar e profissional, enfim, que tenha o perfil correspondente à grande maioria dos vitimados pela violência letal. Nessas condições, os seus ‚defensores naturais‛, pais, amigos e vizinhos compõem um núcleo previamente estigmatizado, ou seja, o morto é filiado a um berço repleto de ninguém. É nessa situação de abandono de natureza simbólica que se dá a luta entre as versões relativas à vida e à morte daquele que já não mais se pronuncia. Tal caracterização remete à análise desenvolvida por Elias e Scotson (2000, p. 24): Afixar o rótulo de ‘valor humano inferior’ a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. Nesta situação, o estigma social im-

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posto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo (ELIAS, 2000, p. 24).

Vale lembrar que essa ‚regra‛, quando aplicada às situações aqui narradas, tende a ser mais coroada de êxitos por parte da defesa quando, no currículo da vítima, são identificadas passagens que a comprometem no âmbito criminal, mesmo não havendo qualquer relação causal objetiva entre as referidas passagens e a sua morte. Através do ato anteriormente aludido, pode-se melhor aquilatar o quanto é necessário contar com uma expressiva condição de acusação, tornando-se central a importância de testemunhas, não apenas por uma questão técnica jurídica, mas também no que toca à configuração da peça que se desenrola em frente aos olhos do júri. Quando descrevo todos esses elementos que se colocam relevantes para a minha perspectiva, eu me obrigo a fazer muitos cortes. Eu salto por cima de coisas, de cenas, de pessoas, de fatos, de emoções. Esse fragmento de texto, no entanto, precisa conter um lugar para outra dimensão da dor familiar e está relacionado à morte e ao sentido do repouso e do descansar em paz, tão caro à cultura religiosa existente em nossa sociedade. Não há, entre as famílias, nem mesmo uma que imagine aquele fim para seus filhos. Ao contrário, as mortes violentas causam um impacto, provavelmente, mais avassalador que os outros óbitos dado a seu caráter inesperado e desprovido de qualquer cogitação prévia e, ao mesmo tempo, à própria brevidade entre o estar ‚integralmente vivo‛ e, pouco depois, se encontrar ‚fatalmente morto‛. As falas das famílias são cheias de sinais que indicam a discrepância entre os dois estados anteriormente citados. ‚Ele tinha 13 anos e, pela manhã do mesmo dia, participou de uma caminhada pela paz organizada pelo bairro; ele levou cartaz e tudo. E, de tarde, mataram ele‛. ‚Ele combinou uma ida à praia; ele tinha dito que voltaria mais tarde; ele falou que ainda ia me dá muito presente; ele foi comemorar seu aniversário com amigos no bar‛. E assim, ele era aquele que voltaria logo. A discrepância entre o retorno garantido e a falta de quem não volta mais passa a caracterizar aquele sentimento de morte. Essa atmosfera se distribui por todas as partes que se vinculam àquelas mortes, mas os cantos da casa são os espaços privilegiados para se referir àquela vacância e conferi-la: ‚ele dormia nesta cama, ao lado da minha‛, diz a avó de um jovem morto. Um outro ambiente potencial para essas lamentações são os lugares de homenagem, a exemplo das dependências religiosas onde são celebrados rituais em memória daquele que se foi. O cemitério é um espaço onde

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se cultivam essas expressões perplexas de saudade. Ali são realizados encontros, conversas, são demonstrados carinhos entre mortos e vivos. A mãe de uma das vítimas lhe porta uma placa e dela fala como se fosse um presente. As expressões de afeto se fixam como uma identidade: ‚eu sou aquela mãe que perdeu um filho para a violência‛. E, quando esse estágio está consolidado, eis que surge um senão a ampliar a dor ou a construir uma nova forma de aflição. Depois de três anos de sepultado, o morto será desenterrado e seus restos serão misturados aos dos demais mortais cujas covas estão nos cemitérios públicos ou filantrópicos, a não ser que seja efetuado o pagamento de mil e duzentos reais. É hora de correr atrás de novo, agora para obter recurso para a sepultura definitiva. Há famílias que não têm como fazer frente a uma tal despesa e veem os restos mortais de seus filhos desaparecerem em meio a outros idênticos. É mais uma expressão da serialidade, sob forma de vala comum. Uma pequena alteração na grafia: de vara (do Tribunal do Júri) para vala (do cemitério). Em torno dessas diversas formas de dor e de espera se notam as mais variadas formas de amor entre as famílias que sofrem com o mesmo drama e essas são expressas por um senso de cooperação, de solidariedade entre os seus membros. Porém, a forma de amor que mais se sobressai são as constantes declarações de luta para que se faça a justiça em relação aos filhos mortos. REFERÊNCIAS BLANCO, Victor Sampedro. Movimientos sociales: debates sin mordaza. Madri: Boletín Oficial del Estado: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2004. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. CALDEIRA, Tereza. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo . São Paulo: Ed. 34; Edusp, 2003. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada . Rio de Janeiro: LTC, 1988. LEÓN, Emma. Usos y discursos teóricos sobre a vida cotidiana . Barcelona: Anthopos, 1999. MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária: ensaio de antropologia política. Porto Alegre: Sulina. 2001. SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade: filosofia do mundo real . Rio de Janeiro: Rocco, 2000. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica da era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1990.

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MIDIATIZAÇÃO DE UMA EXECUÇÃO1 Vincent Lavoie2 Eddie Adams, A execução de um suposto responsável Vietcong pelo general Loan, 1968

Eddie Adams, Execução, 1968. Associated Press

Lembremos que é à fotografia a quem compete a tarefa de produzir a ultima narrativa visual do século XX. No final dos anos 1990, pouco antes da chegada do ano 2000, as estantes das livrarias apresentavam um número sem precedente de obras ilustradas de fotografias consideradas como as mais famosas do século XX3. Havia uma profusão de álbuns fotográficos com vocação de memorial reproduzindo imagens da imprensa, arquivos fotográficos, fotos amadoras e diversas imagens do fotojornalismo, preciosos auxiliares para se lembrar dos momentos fortes do século. O século XX será memorável ou não, era essa, aparentemente, a injunção implícita que motivava o recurso abundante à fotografia fatual. Imagens mos1 2 3

Tradução do original francês: Profa. Dra. Licia Soares de Souza. Universidade do Québec em Montreal (UQAM). Ver alguns exemplos desses álbuns comemorando o século: COJEAN, Annick. Retour sur images. Paris: Le Monde/Grasset, 1997; ROBIN, Marie-Monique. Les 100 photos du siècle. Paris: Hachette, 1998; BERNARD, Bruce. Siècle. Londres: Phaidon Press, 1999.

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trando essencialmente fatos de guerra, catástrofes, cobranças, tantas circunstâncias infelizes, tantos traumas, próprios a produzir a memória. O século XX tinha a obrigação de ser notável. É o que explica a presença obrigatória dos ícones da fotografia de atualidade, essas obras-primas do fotojornalismo, várias vezes coroadas com prêmios e distinções, esses instantes-monumentos que são exibidos como cristalizaçoes exemplares da história. A imagem fotográfica, assim como a matéria impressa, é permanente e constitui, nesse sentido, um mundo de representação privilegiado a fim de perenizar instantes emblemáticos. Esta especificidade fotográfica se situa na origem de um dos mais célebres prêmios Pulitzer de fotografia: A execução de um responsável presumido do Vietcong pela general Loan, 1968, por Eddie Adams, fotógrafo para a agência Associated Press. A narrativa das circunstâncias que cercam essa execução sumária é conhecida: em 1º de fevereiro de 1968, o chefe da polícia nacional sul-vietnamita, o general Nguyen Ngoc, escolta um homem algemado, em uma rua de Saigon, e, em seguida, atira uma bala na cabeça dele. A execução foi gravada por Eddie Adams, como também por Vo Suu, correspondente da NBC, e por um cameraman da ABC. Esta comunicação propõe uma leitura deste ícone do fotojornalismo de atualidade que analisaremos no interior de um ato midiático complexo, levando em conta a representação fílmica do acontecimento traumático. A repercussão midiática das imagens do assassinato é considerável: a fotografia feita por Adams no momento da detonação é reproduzida na primeira página dos principais jornais e o filme é visto por 20 milhoes de telespectadores. O impacto político dessas imagens é igualmente considerável: a fotografia é realizada enquanto que a opinião pública americana oscila em favor de uma retirada das tropas americanas. A imagem simboliza as atrocidades cometidas no Vietnam e torna-se um instrumento de propaganda pacifista, o clichê cristaliza o mito, desconstruído desde então por inúmeros estudos, segundo o qual a mídia é responsável pela derrota americana. É que as imagens da execução são divulgadas alguns dias após a ofensiva do Tet que constitui um momento importante da guerra. Em 30 de janeiro de 1968, as tropas da Frente de Liberação Nacional (Vietcongue) atacam várias cidades importantes do sul e investem em postos de polícia, estações de rádio e quartéis gerais do exército americano. A Embaixada americana em Saigon é tomada. Se a batalha do Tet culmina, entretanto, em uma derrocada das tropas comunistas, a ofensiva afeta seriamente Washington. O conflito se torna interno à medida que as imagens realizadas nessa época — entre as quais as de Adam- afetam a opinião pública e ameaçam o establish238 | Cláudio Cledson Novaes; Licia Soares de Souza; Roberto H. Seidel (Org.)

ment político. A elite militar americana responsabilizará a mídia do atentado político e da derrota psicológica da América subsequentes ao ataque do Tet. A fotografia de Adams é realizada em uma época em que o índice de mortalidade dos soldados americanos atinge o auge. As estatísticas mórbidas preocupam bem mais a opinião pública americana que uma imagem mostrando um vietnamita morto por outro vietnamita. Se não existe nenhuma documentação sobre as reações suscitadas pela publicação da fotografia da execução, um estudo foi dedicado, por outro lado, à recepção pública do documento fílmico da NBC. Fala-se que, após a divulgação do documento no programa HuntleyBrinkley Report, a NBC recebeu mais de 90 queixas escritas. A maior parte delas (56%) condenava o ‚mau gosto‛ dessa reportagem divulgada na hora do jantar. As outras cartas provinham de pais preocupados com seus filhos pequenos. As reações negativas provocadas pelas imagens não traduziam, de fato, nenhuma preocupação específica relativa à evolução do conflito armado, nem uma posição quanto à eventualidade de uma retirada das tropas. Portanto, a reportagem da NBC é, de longe, a mais sensacional já transmitida. O essencial das representações da guerra do Vietnam escolhidas pelas redações e pelos serviços de notícias não comportam nenhuma cena de combate, nem de ferido, nem de morte4. A mídia poupa o público americano das representações mais perturbadoras, sobretudo após o episódio do Tet, mas é acusada, pela difusão das imagens da execução, de manipular a opiniao pública contra Washington. A fotografia feita por Adams, assim como o documento da NBC, marca um momento importante do conflito, não apenas em razão da violência de seu conteúdo, mas igualmente porque ela encarna, de forma exemplar, o mito de uma ‚deriva‛ midi|tica respons|vel pelo enfraquecimento do apoio popular em favor da intervenção militar. O fato que a fotografia, mais do que o documento da NBC, tenha assim valor de símbolo se explica de várias maneiras. A imagem fotográfica beneficia de uma diversidade de suportes de difusão — jornais, revistas, cartazes, cartões postais, etc. — o que lhe garante uma perenidade que o filme não possui. Se a teledifusao da fita fílmica permite atingir um grande público, em menos de 24 horas após os acontecimentos, ela garante entretanto à representação da execução uma exposição de curta duração. Inversamente, a fotografia impõe sua presença, de forma durável, no seio de instituições culturais variadas. Ela se 4

Antes da ofensiva do Tet, menos de 22% dos documentos visuais realizados no Vietnam e transmitidos na televisão apresentam cenas de combates, enquanto que 24% mostram feridos e mortos (BROTHERS, Caroline. War and Photography. A Cultural History. London: Routledge, 1997, p. 203).

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integrou notavelmente no museu, como o museu da guerra em Saigon5. Ela foi incorporada a obras artísticas, como a do artista alemão Wolf Vostell6. Ela se insere no panteão dos prêmios Pulitzer. Todas essas inst}ncias de legitimaç~o contribuíram bastante para ‚monumentalizar‛ o clichê fotogr|fico, isto é, a investi-lo dessa função simbólica particular que consiste a perenizar o acontecimento. Ora, a televisão participou ativamente da monumentalizaçao da fotografia da execução em uma época em que, paradoxalmente, a imprensa eletrônica destroniza a imagem fotográfica de sua posição de modo de representação privilegiada da atualidade. Mencionamos anteriormente que um cameraman sul-vietnamita da ABC tinha filmado igualmente o desenrolar da execução. Esta segunda gravação chamou menos a atenção dos contemporâneos pela simples razão que o clímax da ação — o tiro fatal — não aparece na sequência. O filme mostra tudo — a chegada dos dois homens, o general com a arma na mao, a vítima no chão, o sangue — exceto o instante fotografado por Eddie Adams. As razoes da omissão deste ponto histórico cego variam segundo as fontes. O operador teria interrompido a gravação porque uma pessoa teria obstruído o campo da câmera segundo alguns7. Outros dizem que o cameraman teria voluntariamente cessado de filmar por receio das reações do chefe da polícia8. Sejam quais forem as hipóteses, é a soluçao escolhida pela direção da cadeia ABC, a fim de preencher o vazio narrativo, que nos interessa particularmente. Na transmissão do filme em cadeia nacional, a direção da ABC decidiu recorrer à fotografia de Eddie Adams com o objetivo de corrigir a ausência de clímax. O desenrolar narrativo do drama é efetuado, então, normalmente, até a interrupção da gravação. Em seguida, aparece a fotografia da execução, antes que a representação fílmica recomece. É assim que a televisão delega à fotografia a tarefa de representar o instante paroxístico da ação. As implicações teóricas dessa presença da imagem fotográfica no seio da representação televisiva são numerosas; principalmente que a proposta editorial da ABC ilustra perfeitamente a complexidade das relações que entretêm esses dois principais modos de representação da atualidade. Importa, então, levar em 5

6 7 8

O museu da Guerra em Saigon (Ho Chi Minh-Ville) possui um exemplar desse clichê que aparece sob um formato monumental (v. GOLDBERG, Vicky. The Power of Photography. How Photographs Changed Our Lives. New York: Abbeville Press, 1991, p. 229. Miss America, 1968. Sérigraphie et peinture transparente, effaçage et toile émulsionnée. 200 x 100 cm. Museum Ludwig, Cologne.

David D. Perlmutter defende esta hipótese (v. Photojournalism and Foreign Policy: Icons of Outrage in International Crisis. Westpoint: Praeger, 1998, p. 35). É a opiniao de Vicky Goldberg (v. The Power of Photography. How Photographs Changed Our Lives. Op. cit., p. 228).

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consideração essa proposta em um quadro mais amplo dos debates associados à onipotência crescente da televisão em matéria de representações dos acontecimentos atuais. A decisão da ABC é surpreendente à medida que repousa no convívio da imagem fixa e da atualidade televisiva, e numa época em que a televisão atrapalha profundamente a área do fotojornalismo. Que a ABC tenha recorrido à fotografia de Eddie Adam a fim de prover o filme de um instante, ao mesmo tempo notável e invariável, mostra bem o valor insigne dessa imagem. Nesse caso preciso, é a fotografia que literalmente ‚restaura‛ a representaç~o fílmica, é ela que preenche a depress~o factual do filme pela mostração fotográfica do clímax. Mais ainda, a fotografia corrige o déficit de atualidade do filme por uma referência a um modelo histórico: A morte do soldado americano (1936) por Robert Capa. Pois, a fotografia de Eddie Adams tanto está ancorada na atualidade da guerra do Vietnam, quanto ela é indissociável desse documento fundador do mito cercando a representação midiática da morte. A representação paroxística da morte instantânea, mais do que a das condições de vida dos soldados engajados em um conflito ou de todo outro aspecto relativo à prática da guerra, participa de uma mistificação à medida que os dados objetivos do conflito estão ocultos. Esse processo de ocultação é necessário para a reconstituição. Uma representação totalmente subordinada à autoridade do instante decisivo é necessariamente atemporal. Mas, mais do que o conteúdo da representação, é o fotógrafo que a imagem mitifica principalmente. Isso está ainda mais manifesto no caso de Robert Capa que a realização da imagem é percebida como uma demonstração de coragem. A fotografia representa um soldado republicano atingido por uma bala inimiga. Este é fotografado no momento do impacto, enquanto que seus joelhos dobram sob a violência do tiro. A posição do fotógrafo é perigosa, pois o ângulo de vista revela que a fotografia foi tirada em pé. A exposição do fotógrafo aos tiros dos insurgidos contribui a heroizar o autor da imagem pela assimilação deste com a figura do miliciano espanhol. A captura do momento dramático constitui uma proeza técnica, se não for um acaso, que o fotojornalismo não deixará de valorizar. Como para a imagem de Capa, o acaso é parte incluída na gênese da imagem de Adams. O testemunho do fotógrafo da Associated Press é explícita: ‚A execuç~o aconteceu t~o rapidamente que é por reaç~o que tirei a fotografia. Loan não forneceu nenhuma indicação sobre sua intenção de abater (‚shoot‛) o homem. Eu estava a uma distância de 5 pés aproximadamente (1,60m) e segurava meu aparelho munido de uma objetiva de 35mm quando Loan deambulava. No momento em que Loan pegou sua arma, eu fiz a mesma coisa com meu

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aparelho, mas não esperava que acontecesse o que aconteceu. Tirei a fotografia por instinto‛9 A eficácia da fotografia reside essencialmente na tomada de um instante emblemático, o da morte. É que a representação do instante fatal é a expressão da conjunção perfeita de dois gestos, o do fotógrafo de uma parte, o do atirador de outra parte. Dir-se-ia que a tomada de vista e a tomada de vida se confundem no mesmo instante exemplar e fantasmático. ‚Todo fotógrafo sonha capturar este instante, esse momento mágico da passagem da vida à morte, lembra David Hume Kennerly, laureado em 1972 com o prêmio Pulitzer por uma série de imagens realizadas no Vietnam‛. Nem ilustre, nem edificante, L’exécution d’un responsable présumé du Vietcong por Eddie Adams constitui, entretanto, uma representaç~o ‚enobrecida‛ do horror. Ainda que as condiçoes de realização da imagem sejam perfeitamente conhecidas, assim como a identidade de todos os protagonistas da imagem, essa fotografia (a integração dela ao filme da ABC assim demonstra) subtrai o espectador da representaç~o do ‚grito‛, retomando o termo de Lessing. Pois, se a presença dessa fotografia permite preencher a ausência voluntária de clímax no documento da ABC, esta oculta o que a televisão deveria ter mostrado, e o que mostra inclusive o outro documento da NBC: a fração de segundo, após a detonação e suas consequências as mais insustentáveis, o esfacelamento da caixa craniana, a caída da vítima, o sangue que jorra a cada pulsação cardíaca, etc. O momento imediato do instante captado por Adams aniquila toda perspectiva imaginativa. O que caracteriza inclusive essa fotografia é a redifusao incessante dessa sequencia de instantes que o documento fílmico permite, mas sobretudo a possibilidade de isolar, por meio de paradas na imagem, os instantes mais insuportáveis. A foto interrompe, por assim dizer, a corrida mórbida do tempo pela fixação de um instante, tipo juntura, após o qual tudo se torna grito. A fotografia representa um estado-limite da violência midiática que o filme ultrapassa obrigatoriamente; e, isso, mesmo às vezes, sem que o operador saiba, como o mostra o célebre filme amador10, realizado por 9

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Citado por BRAESTRUP, Peter. Big Story: How the American Press and Television Reported and Interpreted the Crisis of Tet 1968 in Vietnam and Washington. New York: Anchor Books Edition, 1978, p. 347. O essencial das representaçoes de acontecimentos trágicos é, a partir de agora, constituído de clichês amadores, ou imagens de televigia, se bem que estes participam, como o dizia Pierre Bourdieu a propósito das fotografias de família, de um verdadeiro ritual de integração coletivo. ‚É porque a fotografia de família é um rito do culto doméstico no qual a família é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, é porque ela exprime o sentimento da festa que o grupo familial se dá a ele próprio e que ela reforça exprimindo que a necessidade de fotografias e a necessidade de fotografar (interiorização da função social dessa prática) são cada vez mais

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Abraham Zapruder, do momento do atentado do presidente Kennedy em Dallas, em 196311. Mesmo que a fotografia, tirada por Adams, testemunhe uma relativa reserva, ela constitui entretanto o sintoma de uma nova gestão midiática do acontecimento choque. Esta imagem é realizada em um contexto de forte concorrência midiática em que as fotografias liberam uma verdadeira guerra das imagens. A busca do clichê choque é permanente e justifica todas as espécies de audácias. A representação do acontecimento, com seus atributos mais espetaculares, é imperativa. Os fotógrafos são maciçamente enviados aos mais diferentes teatros de operações militares porque a guerra oferece a possibilidade de realizar fotografias exemplares suscetíveis de valorizar a carreira do fotógrafo, de lhe dar uma notoriedade, de lhe fazer merecer um prêmio, um Pulitzer, por exemplo. A guerra é fonte de acontecimentos excepcionais. Cabe aos fotógrafos gravá-los. É assim que os milhares de fotógrafos e de correspondentes do mundo inteiro reagem ao menor anúncio de uma ação militar. Todos os fotógrafos que gravitam em torno do escritório da Associated Press, em Saigon12, são informados, a cada hora, do menor acontecimento suscetível de uma cobertura midiática. Informações emitidas pelos assessores de imprensa, pelos homens políticos mas também pelos civis, convergem cotidianamente para o escritório da Associated Press, laureada de comunicação com quatro prêmios Pulitzer durante seu mandato no Vietnam. A onipresença da mídia no território vietnamita e a celeridade das redes permitem, para alguns, antecipar o acontecimento. É que as estruturas midiáticas mais organizadas estão prontas para aqueles que podem gerar acontecimentos choques. A mídia precede o acontecimento13. As circunstâncias nas quais se desenrolou a realizaçao da fotografia da execução o mostram perfeitamente. As equipes de televisão, assim como Eddie Adams, correspondente da Associated Press, tinham sido informados da prisão de um suposto vietcong. O registro da agência de notícias na data de 3 de fevereiro de 1968 é explícito: ‚No auge dos combates para a tomada de Saigon,

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sentidas que o grupo é o mais integrado e que ele está em um momento de grande integraçao‛ (BOURDIEU, Pierre. Le sens commun. In: Idem. Un art moyen. Essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris: Editions de Minuit, 1965, p. 39-40). Precisemos, entretanto, que o filme só é transmitido nas cadeias de televisão nacional a partir de 1975. Para as informações sobre a fortuna crítica desse filme amador e sobre os diferentes empregos midiáticos, v. ZELIZER, Barbie. Covering the Body. The Kennedy Assassination, the Media, and the Shaping of Collective Memory. Chicago: University of Chicago Press, 1992. Dirigido por Horst Faas de 1962 a 1970. Informaçoes relatadas por GUERRIN, Michel. Profession photoreporter. Vingt ans d’images d’actualité. Paris: Gallimard/Centre Georges-Pompidou, 1988, p. 83.

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oficiais vietnamitas capturaram e desarmaram um oficial vietcong, Enquanto eles o conduziam para fora da zona de combate, Eddie Adams, fotógrafo membro da agência AP, vindo recentemente pela terceira vez ao Vietnam; Howard Tucker e o cameraman Vo Su da NBC; assim como um fotógrafo do exército vietnamita observavam o desenrolar da cena. Como os oficiais e o prisioneiro se aproximavam em grupo, o chefe da polícia sul-vietnamita, o brigadeiro geral Nguyen Ngoc Loan chegou‛14. A sequencia dos acontecimentos é bem inesperada, como o indica o testemunho de Adams. Todavia, a atenção midiática está mobilizada bem antes que o chefe da polícia abata o detento. Adams realizou inclusive uma foto em que se vê a vítima escoltada por três oficiais. A representação fotográfica do tiro mostra de alguma forma a irrupção de um segundo acontecimento que introduz uma parte aleatória no interior de um procedimento de gravação até então sob controle. A execução é o acontecimento no acontecimento, é a ruptura no continuum de uma ação que, por um instante, põe à prova a vigilância midiática. O fotógrafo, já o dissemos, captará perfeitamente este momento ao mesmo tempo crucial e autônomo. A captura desse instante é meritória não tanto porque ela constitui uma proeza ou uma sorte, mas porque ela é a expressão exemplar de uma ação não premeditada. Nessas condições, a reação do fotógrafo só pode ser instintiva, e a obra-prima involuntária. Ora, é precisamente a dimensão instintiva e aleatória associada à gênese dessa imagem que é valorizada pela profissão. O interesse dessa fotografia sensacional vem evidentemente do caráter excepcional da cena, como também da celeridade do fotógrafo, dois atributos fundamentais do fotojornalismo ortodoxo. A execução constitui, nesse sentido, o factual acidental permitindo a ligação com o ideal ‚rom}ntico‛ de um certo fotojornalismo de ação em perfeita simbiose com o drama, também tão súbito e violento. REFERÊNCIAS BERNARD, Bruce. Siècle. Londres: Phaidon Press, 1999. BOURDIEU, Pierre. Le sens commun. In: Idem. Un art moyen. Essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris: Editions de Minuit, 1965, p. 39-40.

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É o que sugere o procedimento fotográfico do repórter tal qual anunciado por Henri CartierBresson em 1952: ‚Eu andava todo o dia com o espírito tenso, buscando, nas ruas, instantes vivos para as fotos, como flagrantes delitos. Tinha sobretudo o desejo de captar, em uma única imagem, o essencial de uma cena que surgia‛ (CARTIER-BRESSON, Henri. L’instant décisif. In: Images à la sauvette, Paris: Verge, 1952, republié dans les Cahiers de la photographie. Paris: Association de la Critique D’art Contemporaine, n, 18, 1985, p. 11).

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BRAESTRUP, Peter. Big Story: How the American Press and Television Reported and Interpreted the Crisis of Tet 1968 in Vietnam and Washington . New York: Anchor Books Edition, 1978. BROTHERS, Caroline. War and Photography. A Cultural History. London: Routledge, 1997. CARTIER-BRESSON, Henri. L’instant décisif. In: Images à la sauvette, Paris: Verge, 1952, republié dans les Cahiers de la photographie. Paris: Association de la Critique D’art Contemporaine, n, 18, 1985. COJEAN, Annick. Retour sur images. Paris: Le Monde/Grasset, 1997. GOLDBERG, Vicky. The Power of Photography. How Photographs Changed Our Lives . New York: Abbeville Press, 1991. GUERRIN, Michel. Profession photoreporter. Vingt ans d’images d’actualité. Paris: Gallimard/Centre Georges-Pompidou, 1988. PERLMUTTER, David D. Photojournalism and Foreign Policy: Icons of Outrage in International Crisis. Westpoint: Praeger, 1998. ROBIN, Marie-Monique. Les 100 photos du siècle. Paris: Hachette, 1998. VOSTELL, Wolf. Miss America, 1968. Sérigraphie et peinture transparente, effaçage et toile émulsionnée. 200 x 100 cm. Museum Ludwig, Cologne. ZELIZER, Barbie. Covering the Body. The Kennedy Assassination, the Media, and the Shaping of Collective Memory. Chicago: University of Chicago Press, 1992.

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INFORMAÇÕES SOBRE OS LANÇAMENTOS DE OBRAS SOUZA, Licia Soares de. (Org.). Dicionário de personagens afrobrasileiros. Salvador: Quarteto Editora, 2009. — 61 verbetes escritos por professores de vários estados do Brasil, bem como da África e da França. No calor dos debates sobre cotas raciais, racismo e resgate das culturas subalternas que formaram o país, surge uma importante obra para levar à compreensão do modo de existência dos afrobrasileiros na história. Esta obra é um instrumento de trabalho docente que se alimenta na pesquisa constante em literatura brasileira. Ao mesmo tempo, ela constitui uma leitura agradável para todos aqueles que se interessam pela formação histórica do país. Nasceu de uma preocupação com o surgimento da Lei 10.639/03, do Parecer no. 3 e 4, do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Resolução CNE/CP 01/2004, que instituíram a obrigatoriedade do ensino de História da África e das culturas afrobrasileiras nos currículos das escolas públicas e particulares da Educação Básica. O projeto de Dicionário de personagens afro-brasileiros põe em cena as principais figuras literárias, nos séculos XX e XXI, na prosa narrativa, sobretudo, mas igualmente em algumas obras poéticas e musicais, e em contos populares e infantis. A negritude já representa um importante paradigma para o exame de expressões artísticas que abordam temáticas relacionadas às marcas da cultura africana nas Américas. Os processos de conscientização do valor de tais marcas africanas abrem o caminho para o resgate de todo um universo cultural que sobreviveu, durante séculos, oprimido e relegado ao segundo plano. Nessa direção, chega-se aos processos de mestiçagem aptos a mostrar que a identidade nacional não é um caminho de mão única, mas, sobretudo, uma encruzilhada para onde convergem várias formas expressivas de saberes distintos. O papel de todos — brancos, indígenas, negros — na formação da nação é inegável. Entretanto, pelas vicissitudes históricas, a cultura branca dominou as outras criando fendas profundas que ainda prejudicam o desenvolvimento social. Os debates sobre essa dominação são intensos e conduzem a muito desencanto em relação a qualquer esforço de valorização das culturas oprimidas, durante séculos. Buscar a visibilidade de uma cultura, tratada como desigual, sempre levanta discussões relativas ao uso de um racismo inverso, estimulando comportamentos parecidos com os da etnia dominante. É como se houvesse um movimento de racismo contra o branco, empreendido por negros e índios. No entanto, todos os esforços de mostrar o peso do negro e do índio na formação nacional só tem um objetivo: apontar para uma riqueza cultural e patrimonial, que cria uma diversidade mestiça, destinada a estampar a originalidade desse país. Essa obra inédita começa com os afrobrasileiros, contando uma história de dor, sofrimento e opressão, mas também de amizade, com festas, danças, sensualidade, criação artística, vivência popular, utopias políticas. Essa obra original começa homenageando os antepassados escravos dos brasileiros, e tudo que trouxeram, nessa rica

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transculturação, para fundar um Novo Mundo. Na sequência do projeto de valorização de culturas oprimidas, será necessário, mais adiante, a observação e o exame de outras que tiveram a mesma importância no desenvolvimento do país. Nesse momento, os pesquisadores da Universidade do Estado da Bahia, com o apoio da fundação de pesquisa do estado, sentem-se orgulhosos em formarem uma equipe de pesquisadores de vários estados, da França e da África, para reconhecerem a herança incontornável de um dos povos fundadores da nação. SOUZA, Licia Soares de. Literatura e cinema: traduções intersemióticas. Salvador: Ed. da UNEB, 2009. Este livro, incontornável para estudiosos do cinema, elabora uma análise de filmes, adaptados de narrativas literárias, dos anos 1960 a 2007. Inicia-se com Quarup, de Antonio Callado, de 1964, pelo fato dessa narrativa abranger um período bastante crucial para a compreensão da política nacional atual: de 1954 a 1964, passa-se do getulismo à ditadura militar. Nesse período, Callado traz à luz diversas utopias e correntes de pensamento que floresceram na sociedade brasileira: o cubanismo, o trotkismo, o indianismo, o jaguncismo guerrilheiro, as Ligas Camponesas, etc. O estreitamento do debate sobre a passagem do texto literário ao texto fílmico começa pelo enfoque da tradução intersemiótica, trabalhada por Júlio Plaza (2001), baseada na teoria semiótica de Peirce, que autoriza a tradução de textos, através das funções mediadoras dos signos repartidos em categorias fenomenológicas que apresentam relações de autogeração de sentido. A infinitude da cadeia semiótica, as transmutações de signo em signo, nas três categorias da virtualidade, da existência e da lei, fazem com que a tradução dê conta de um feixe de possibilidades de transformação de segmentos textuais de um veículo para outro. Em termos de tradução semiótica, envereda-se pela área fílmica e busca-se o equivalente das sequências literárias na grande sintagmática de Christian Metz, que constitui exatamente uma classificação de segmentos narrativos. Outros filmes, traduzidos de livros, são analisados, testemunhando a dinâmica da cultura brasileira contemporânea: O que é isso companheiro, Outras estórias, A terceira margem do rio, A guerra de Canudos, Incidente em Antares, Lamarca, Cidade de Deus, Tropa de elite. Conforme Pedro Barboza, na ‚orelha‛ da obra: ‚Literatura e cinema: traduções intersemióticas discorre sobre as várias formas de constituição de textos abrangidos pelo título na produção estética brasileira das quatro últimas décadas. Refletir sobre um dos modos importantes de nossa produção ficcional é a que se debruça Lícia Soares de Souza. O trânsito de textos da literatura ao cinema avolumou-se nos últimos quarenta anos, coincidindo também com as condições em que se observa a emergência do pós-moderno. A autora busca analisar o modo como se processa esse diálogo entre textos ficcionais, documentos de memória e a produção cinematográfica. Para tanto, aborda obras que se apropriam de temas históricos, políticos e a contemporaneidade urbana. A violência é o eixo que reúne o corte efetuado para as análises, indo, tematicamente, de A Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, a Tropa de elite, de José Padilha. Esta grande contribuição prática do livro aos estudos literários e da semio-

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logia do cinema vem precedida de todo um aporte teórico que situa o leitor na compreensão da estética da violência entre nós‛. WALTER, Roland. Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas. Recife: PPGLL/UFPE; Bagaço, 2009. ‚O objetivo da obra, conforme expresso pelo autor, é empreender análise das falas-escritas contemporâneas da literatura afro-diaspórica nas Américas, de forma comparativa, de obras de escritores afro-descendentes oriundos do Canadá, dos Estados Unidos, do Caribe e do Brasil. O pressuposto é que a própria situação cultural das Américas é intrinsecamente afim aos processos de hibridização, de crioulização, de mestiçagem e transculturadores. Daí exsurge que a própria noção de Novo Mundo só é possível de ser vislumbrada dentro deste contexto; portanto, intimamente atrelada à diáspora da africanidade transculturada nas Américas. O tropos por excelência desta situação cultural é a encruzilhada, enquanto local em que, simultaneamente, se encontram o sujeito da diáspora, o escritor da diáspora e o crítico da literatura da diáspora. É a partir deste prisma que se problematiza as confluências culturais, bem como seus efeitos, desde o passado até o presente. A hipótese de trabalho é processo permanente; portanto, devir ensejado pelo que é denominado de ‚narraç~o‛. E mais: trata-se de focar a fragmentação e a reconstrução de identidades individuais e coletivas em sua interface glocal (local e global) desta encruzilhada. [...] Nesta busca, o ‚ato de recordação‛ que a narraç~o enseja é encarado como processo mnemônico — i. e., uma via, por assim dizer, epistêmica —, de busca da memória: recordar é então processo complexo de seleção e recodificação de imagens e pensamentos, processo este que se dirige, enquanto ato de resistência, em um sentido contra-fluxo à perda, à expropriação, à desterritorialização e ao desarraigamento sofridos pelos afro-descendentes pan-americanos. Neste viés, a obra procura pelas diferentes sendas encontradas pelas escritoras e pelos escritores, a partir de suas obras aqui analisadas. De saída, o autor constata que a fala das autoras e dos autores da literatura da afro-diáspora nas Américas é marcada pela dificuldade em dizer, de forma que a ‚narraç~o‛ que surge das ‚ruínas do holocausto histórico‛ vai estar inscrita neste tropos da encruzilhada; portanto, atrelando-se diretamente ao conceito de performance. [...] A obra, como um todo, além de difundir aos leitores de língua portuguesa um grande recorte dentre a vasta produção literária de autoras e autores da diáspora negra das Américas — desde sempre e ainda invisibilizada tanto nas escolas quanto nas universidades, não sem referir as dificuldades de publicação e, quando publicadas, estas obras sofrem de interdição de circulação —, vai servir ao propósito do olhar reconstrutivo ao passado, de forma que se tenha elementos e subsídios confiáveis para a agência no presente, no rumo de evitar as ciladas da crescente racialização do contemporâneo (das ditas ciladas da diferença), para, desta feita, possibilitar a construç~o de um mundo em que esteja garantida ‚uma vida boa e feliz‛ — num sentido democrático, igualitário e fraterno — para as gerações vindouras, para nossos filhos, nosso netos, independente da tonalidade da pele‛ (trecho da Apresentaç~o, por Roberto H. Seidel).

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Revista Canadart XV, v. 15, n. 15, jan.-jul. 2008. 267 p. — Revista dedicada aos Estudos Canadenses, editada pelo Núcleo de Estudos Canadenses da Universidade do Estado da Bahia (NEC/UNEB). Este é o número 15 da Revista CANADART. Trata-se de uma publicação do Núcleo de Estudos Canadenses da UNEB, em parceria com a Associação Brasileira de Estudos Canadenses (ABECAN). Pioneira no gênero, o primeiro número foi publicado em 1993. Assim sendo, este número 15 agora lançado registra uma marca histórica que merece celebração. A professora Denise Lavallée, que faz apresentação deste número da CANADART XV, assim se refere: ‚Com efeito, distribuídos por uma prodigiosa variedade de gêneros e autores apresentando formas distintas de narrativa utilizando, sobretudo, quatro idiomas: o português, o francês, o inglês e o espanhol, os artigos da Revista CANADART atravessam fronteiras não só em território brasileiro, mas em vários outros países interessados pelos estudos canadenses‛. A CANADART propõe-se a fortalecer as relações o Brasil e o Canadá através de estudos comparados nas mais diversas áreas, em especial: literatura, cultura, história, antropologia, teatro, entre outras, atraindo assim, o interesse de pesquisadores renomados destes países. Este número é mostra de uma análise de duas peças teatrais que enfoca a luta de classes e os momentos de euforia política vividas no Brasil e no Quebec, o que é feito por Geraldo Lima e Lícia Soares. Destaca a obra de Noel Audet pelo seu livro ‚L’ombre de L’épervier‛, onde são vistos alguns outros temas que retratam o Quebec e a Bahia. Estão presentes Nova Dion, Danielle Forget, Carlo Lavoie, Andre Brodru, Jean François Cote, escritores canadenses que se destacam por suas atuações como literatos, historiadores e educadores. Alguns textos de tradução com temas instigantes focalizando a questão identitária e temas de caráter social onde apareceu Núbia Hanciau e Humberto de Oliveira pesquisadores de Nancy Horistan e Patrick Imbert. Outros pesquisadores brasileiros de universidades de excelência como Raimundo Redasee, Milena Brum, Eric Charles, Renato Venâncio, Daniell Gomes enriquecem este número de CANADART com textos de qualidade inefutável na esfera dos estudos comparados ampliam o leque de opções de levar leituras com temas recorrentes ricos, bem elaborados. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO —Denise Lavallée; LITERATURA: Le territoire: avancées et paradoxes en contexte de mondialisation et d’altérité — Danielle Forget; Espaço e identidades: leituras do Quebec francófono em Jacques Poulin et Jacques Godbout — Maisa Navarro; L’émergence d’une culture nationale dans les collectivités québécoise et brésilienne au cours de la première moitié du xixe siècle — Nova Doyon; Réflexions sur l’ombre de l’épervier de Noel Audet — Licia Soares de Souza; Le style d’Yves Thériault dans le partage de minuit — André Brochu; Fantasmas de um migrante: o Quebec multicultural de Dany Laferriere — Irene de Paula; Le dompteur d’ours: héritage animal et filiation du chasseur — Carlo Lavoie;

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Uma introdução à escrita migrante — Renato Venâncio Henriques de Sousa; Dany Laferrière e Émile Olivier: o processo da escrita — Danielle Pascotto B. Gomes; Literatura feminista quebequense: uma história — Raimunda Bedasee; POLÍTICA: Le contexte contemporain des amériques: entre impérialisme et cosmopolitisme — Jean-François Côté; Reflexions sur les politiques migratoires françaises et canadiennes et la notion d’identité nationale — Milenna Brun e Eric Charles Brun; TEATRO: To strike or not to strike: that’s the question in Gianfrancesco Guarnieri’s eles n~o usam black-tie and David Fennario’s on the job — Geraldo Ferreira de Lima TRADUÇÃO: Orgulho e fidelidade — Tradução de Nubia Hanciau O Engraxate — Tradução de Humberto L. L. de Oliveira;

Revista Interfaces Brasil/Canadá 9. — Revista oficial da Associação Brasileira de Estudos Canadenses (ABECAN), é editada semestralmente, por Nubia Hanciau, do Núcleo de Estudos Canadenses da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (NEC/FURG). Também disponível, na íntegra, no sítio de internet: http://www.revistabecan.com.br/. O número 9 da Interfaces Brasil/Canadá, focaliza o tema Brasil/Canadá: conexões, saberes, desenvolvimentos. Nesta edição inaugural da periodicidade semestral da revista encontram-se os textos selecionados entre os apresentados pelos palestrantes convidados para o IX Congresso Internacional da ABECAN, realizado em Salvador (Bahia) em novembro de 2007. Organização, editoração e seleção dos trabalhos: Ana Rosa Ramos e Sérgio Barbosa Cerqueda (UFBA). SUMÁRIO Apresentação — Ana Rosa Neves Ramos; 1. Estudos canadenses: balanços, perspectivas, parcerias 1.1. Estudos Canadenses: balanços e perspectivas — Zilá Bernd 1.2. Le Conseil internacional d'études canadiennes — Christopher Rolfe 1.3. Brasil/Canadá: interações críticas — Sandra Regina Goulart Almeida 1.4. Interfaces Brasil/Canadá — Nubia Hanciau 2. Estudos literários em perspectiva comparada 2.1. Le roman québécois contemporain face à la mondialisation — récurrences et perspectives — Klaus-Dieter Ertler 2.2. Étrangères de l´intérieur — Lucie Lequin 2.3. Identité et altérité: littératures migrantes ou transnationales? — Janet Paterson 2.4. La volatilité du sujet. Topographie de la migration chez Joël Des Rosiers — Pierre Ouellet 3. Paisagens culturais nas Américas 3.1. Societé des savoirs et transformations culturelles — Patrick Imbert 3.2. A Canadian Portraiture? Some Thoughts on Edwin Holgate — Christopher Rolfe 3.3. Produire et diffuser la culture dans les villes moyennes: le cas de Québec, Trois-Rivières et Rimouski — Fernand Harvey 3.4. Les rapports nature-culture dans l´art "biotech" canadien et brésilien — Christine Palmiéri 3.5. Ceci n´est pas une croix: regards contre-intuitifs sur le Mont-Royal — Robert Schwartzwald 4. Meio ambiente, desenvolvimento sustentável, patrimônio intelectual

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4.1. Biodiversidade e suas aplicações: parcerias entre Brasil e Canadá, resultados e perspectivas futuras — Blandina Felipe Viana; Domingos de Oliveira; Iracema Andrade Nascimento; Ramiro González Matute; Ruth Linda Benchimol 4.2. Brazil-Canada: Cooperation in Natural Sciences, Mathematics and Engineering: present scenario and perspectives in the Federal University of Bahia — Ademir Eugênio de Santana; Blandina Felipe Viana; Luiz Rogério Pinho de Andrade Lima; Roberto Fernandes Silva Andrade; Suani Tavares Rubim de Pinho; Thierry Corrêa Petit Lobão 4.3. Evolución de la Propiedad Intelectual en los Tratados de Libre Comercio suscritos por Canadá — Christian Schmitz Vaccaro Resenhas BERND, Zilá (Org.) Brasil/Canadá: imaginários coletivos e mobilidades (trans)culturais. Porto Alegre: Nova Prova, 2008 — Eloína Prati dos Santos Revista Romanica Silesiana n. 2. La réécriture dans la littérature québéciose. Katowice: Universidade Slaskiego, Polônia, 2007 — Zilá Bernd OUELLETTE-MICHALSKA, Madeleine. Autofiction et dévoilement de soi. Montréal: XYZ, 2007 — Kelley Baptista Duarte

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