Haraway no país do futebol: o caso do Exoesqueleto de Nicolelis

June 28, 2017 | Autor: W. Camargo | Categoria: Anthropology of Sport, Cyborgs
Share Embed


Descrição do Produto

Haraway no país do futebol: o caso do exoesqueleto de Nicolelis Por Wagner Xavier de Camargo

Nada me estranha a pouca atenção dada ao chute cibernético prometido pelo tal exoesqueleto de Miguel Nicolelis. Afinal, a ênfase no futebol como “fenômeno cultural global” é oriunda de um esporte marcadamente masculino, viril, branco, cristão e, frise-se neste caso, eficiente – performado por atletas que têm membros inferiores e superiores, que andam sem problemas, escutam e enxergam. Para além da tal geringonça, o corpo plugado a ela era de alguém com deficiência, considerado sempre um “apêndice humano” da maravilha tecnológica! Portanto, não é de se estranhar os parcos segundos de aparição na TV, a quase (nenhuma) importância dada pelos narradores esportivos, e a forma discreta que o espetáculo de abertura da Copa do Mundo de Futebol conferiu ao fato. Ninguém soube direito o que se passara, muito menos a demonstração foi feita conforme o prometido pela FIFA. Havia especulações de o chute ser dado por uma pessoa com deficiência física, a partir de uma veste robótica controlada por atividade cerebral: o envolvido levantaria de uma cadeira de rodas no meio do gramado, caminharia por cerca de 25 metros e, logo em seguida, daria início ao campeonato. Entre ficção e realidade, o ‘Robocop do futebol’ abriria a maior e melhor (segundo alguns) de todas as Copas do Mundo. Em que pese uma exortação ao cientista Nicolelis e ao seu feito, a parafernália tecnológica e o corpo de Juliano Pinto (paraplégico de 29 anos escolhido para o momento) trazem à tona algo interessante e enigmático a ser pensado: a figura do ciborgue, que povoou a literatura de ficção em grande parte do século XX, principalmente nos anos da famosa Guerra Fria, nos quais Estados Unidos e a ex-União Soviética protagonizaram um redimensionamento de suas tecnologias, com vistas à (suposta) extinção um do outro. O ciborgue era um humano melhorado; uma máquina pensante; um amálgama de carne e metal, que prenunciava um mundo em transformação. Foi exatamente sobre esse ponto que a bióloga estadunidense Donna Haraway arquitetou uma pertinente discussão em seu Manifesto Ciborgue. Para ela o mundo é um conjunto de redes entrelaçadas, que em parte são humanas e em parte são máquinas. Mas para além dessa aparente separação, o ciborgue arremessa à lata do lixo as oposições natureza x cultura, e aquilo que sempre é considerado pelas pessoas como “natural” (ou porque o

“mundo sempre foi assim”) é posto em questão. Ele questionaria, inclusive, o lugar de submissão delegado à mulher (mãe, cuidadora, reprodutora) ao longo da história no Ocidente. De outro lado, Haraway postularia que tanto homens quanto mulheres não são naturais, mas construídos, tal como o ciborgue – que, portanto, evoca com sua presença a potencial reconstrução de nós todos, em via contrária. Assim, o “exoesqueleto-humano” que fez o chute na abertura da Copa e que quase não foi visto, não nos coloca o que seremos no futuro, mas nos delega o que somos hoje. Traz-nos à luz da contemporaneidade como a biotecnologia nos constrói como corpos (ou tecnocorpos), pois segundo as prerrogativas de Haraway, não conseguimos definir, em nossa vida moderna, onde acabamos e onde as máquinas começam. As relações colocadas pelas realidades vividas nos indistinguem; as fronteiras entre corpos e tecnologia são praticamente inexistentes. Ganhar a Copa Masculina do Mundo de Futebol não tem a ver só com melhores equipes, melhores atletas. Tem relação direta com uma complexa conexão entre fisiologia do exercício, dietas elaboradas, controle da ingestão calórica, medição da gordura corporal, drogas, sono, terapias, tratamentos, equipamentos, psicologia do esporte. Por isso, o ciborgue não só habitaria nosso imaginário, ou estaria ao nosso redor, mas ele nos incorporaria como ironia. Em palavras da teórica, ‘somos todos ciborgues e não sabemos’. Na superfície das coisas, o exoesqueleto de Nicolelis midiatizou algo das experiências científicas na área de Neuroengenharia, com destaque para as próteses neurológicas e informática médica, e apresentou uma possibilidade (ainda bruta e impraticável) de locomoção por parte de pessoas com traumas raquimedulares. De meu ponto de vista, contudo, a maquinaria tecnológica de Nicolelis e a encenação futebolística da Copa colocam em perspectiva, inclusive, o obsoleto modelo de esporte em vigor. Dito em outras palavras, Juliano e o exoesqueleto, o corredor Pistorius e suas próteses, Caster Semenya, Usain Bolt ou qualquer outro/a atleta testosteronado/a não diferem entre si pelas aparentes singularidades, mas se aproximam naquilo que têm em comum: tecnocorpos hibridizados, humanos-máquinas, cibercorpos construídos, ciborgues em atividades. Desde o advento do esporte moderno em fins do século XIX, nunca fomos tão diferentes. Estamos diante da confusão de fronteiras, de um mundo pós-corpo, pós-humano e, quiçá, pós-gênero! Da mesma forma que o mito do ciborgue de Haraway nos coloca a confusão e a transgressão de fronteiras, bem como potentes fusões e perigosas possibilidades, este exoesqueleto que veio a público nos incita, no mínimo, a pensar componentes de uma

desconstrução política dos corpos no futebol (e também nos esportes), por meio de um trabalho micropolítico de redimensionamento de olhares, posturas e considerações. Uma vez mais o futebol traz questões que não devem ser deixadas de lado, seja pelos especialistas do métier esportivo, seja pelas/os cientistas de outras áreas do conhecimento.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.