Huasipungo, um libelo dos colonizados

May 24, 2017 | Autor: Joaquim Botelho | Categoria: Languages and Linguistics, Translation, Literatura
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Huasipungo, um libelo dos colonizados


Joaquim Maria Botelho


Concluí a tradução, para o português, do livro Huasipungo, do equatoriano
Jorge Icaza, um dos grandes nomes da literatura latino-americana. Pela via
do romance, o autor relata um dos maiores dramas americanos – a exploração
do índio, o sufocamento da sua cultura e a sua manutenção na condição de
sub-humano. É um livro cru e cruel, que impressionou gerações ao redor do
mundo, desde o seu lançamento, em 1934. A nova edição, com a minha
tradução, está prevista para o início de 2017, pela Editora Letra Selvagem.









O autor e seu ambiente


Jorge Icaza Coronel publicou Huasipungo, seu livro mais conhecido, em
1934, quando contava 28 anos. O texto é um libelo contra a exploração da
população indígena do Equador pela burguesia branca, um romance social que
compõe, junto com o livro Pueblo enfermo (1909), do boliviano Alcides
Arguedas, e Los perros hambrientos (1935), do peruano Ciro Alegría, e
alguns outros, o ciclo da narrativa do indigenismo sul-americano do século
XX (movimento literário que precedeu o realismo mágico). Um ano antes,
Icaza havia publicado o livro de contos Barro de la Sierra (1933), já sobre
a temática da exploração do índio equatoriano, que pautaria toda a sua
obra. Órfão de pai, havia passado a infância na fazenda de um tio, na serra
equatoriana, onde conviveu com os índios e conheceu profundamente a
realidade social da distinção de classes embasada em considerações de
etnia. Depois chegou a cursar medicina, mas abandonou a faculdade por não
se considerar vocacionado. Dedicou-se ao teatro, como ator, e nessa
condição percorreu o país, tomando conhecimento mais íntimo da situação sub-
humana do índio na sociedade equatoriana. Escreveu diversas peças
dramáticas, com as quais não obteve sucesso nos palcos do Equador, com
exceção de Flagelo, de 1936. No entanto, suas denúncias não tiveram
repercussão entre os governantes, que estavam mais preocupados em manter o
poder do que cuidar da questão social do índio. Em 1925, o governo que à
época representava a oligarquia bancária foi derrubado por um golpe de
estado. Sucedeu-se um período de vários anos em que o Equador passou por
profunda recessão econômica e desemprego altíssimo, ainda em decorrência da
queda da Bolsa de Nova York, em 1929, e que afetou o cenário mundial. Mas,
em Quito, a situação era muito grave, com a redução da exportação de cacau,
banana e tabaco, e culminou numa convulsão política cujo episódio decisivo
foi a Guerra dos Quatro Dias, de 1932, que derrubou o presidente eleito
Neptalí Bonifaz Ascázubi. Foram convocadas eleições em meio a um dramático
episódio conflituoso entre dois vizinhos, Peru e Colômbia, que brigavam
pela posse da cidade fronteiriça de Letícia. Temia-se que pudesse se
repetir o traiçoeiro Protocolo Mosquera-Selaya, de 1859, em que Peru e
Colômbia acordaram repartir o Equador em duas partes, ficando cada país com
um pedaço.
Sob ameaça de ter seu território invadido por tropas dos exércitos
vizinhos a qualquer momento, o Equador consagrou presidente a Juan de Dios
Martínez Mera, em eleições consideradas fraudulentas; empossado, Martínez
não chegou a ficar um ano no cargo. Pressionado pela oposição, sucumbiu à
oratória poderosa do presidente do Senado, José María Velasco Ibarra, e foi
destituído. Assumiu Abelardo Montalvo, como presidente interino, entre 1933
e 1934. José María Velasco Ibarra foi eleito em 1934, ainda em meio à crise
mundial, com o apoio dos conservadores, principalmente grandes
latifundiários. Mas, ao anunciar a imposição de um programa de reforma
agrária, com a divisão das grandes fazendas, acabou derrubado em 1935 por
um golpe militar. (Ibarra ainda seria eleito presidente do Equador por mais
quatro vezes.) Antonio Pons assumiu como interino e, no mesmo ano, Federico
Páez, também como interino, até a eleição de Alberto Enríquez Gallo, em
1937. Porém, em 1938, acusado de ter recebido a patente de general em
tempos de paz, Enríquez renunciou e foi substituído, interinamente, por
Manuel María Borrero González.
O resumo sinótico serve apenas para evidenciar o clima num país varrido
pela crise econômica, pela baixa produção agrícola e pela instabilidade
política. Diante dessas questões, que a dita civilização costuma considerar
prioritárias, a questão da escravidão índia não entrava na lista das
urgências. Mas, de todo modo, Jorge Icaza denunciava.
Um ano depois de publicar Huasipungo, Jorge Icaza venceu o Prêmio
Nacional de Literatura do Equador, com o livro En las calles (1935), em que
trata da situação de abandono e desprezo do índio que busca trabalho na
cidade.
Huasipungo foi um sucesso imediato de público, e tornou-se um clássico da
literatura latino-americana. Nos meios literários equatorianos, os estudos
acadêmicos indicam que Jorge Icaza integrou a chamada Geração de 30,
didaticamente dividida em dois grupos. O Grupo da Serra, do qual ele
próprio fez parte, ao lado de Fernando Chávez, Humberto Salvador, Enrique
Terán, Jorge Fernández, Humberto Mata, Alfonso Cuesta e Ángel Felicísimo
Rojas. O outro, o Grupo da Costa, era composto por Joaquín Gallegos Lara,
José de la Cuadra, Enrique Gil Gilbert, Demetrio Aguilera Malta, Alfredo
Pareja Diez Canseco e Adalberto Ortiz.


Traduzir é recriar. E também escolher.


Um dos traços pioneiros da narrativa de Jorge Icaza foi constituir o
índio equatoriano em objeto estético-literário. É preciso esclarecer que,
após a primeira edição de 1934, Huasipungo foi reescrito e reeditado em
1953 e em 1960, principalmente em razão da dificuldade que o público, mesmo
entre pessoas nativas de outros países hispânicos, enfrentou com a profusão
de termos e referências à cultura índia dos Andes equatorianos. Uma dessas
edições – que não é a de que nos servimos para esta tradução – foi
utilizada pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, em parceria
com a Editora Paz e Terra, dentro da coleção "Clássicos Latino-Americanos",
na tradução de Heloísa Archêro de Araújo, publicada em 1978. Nosso texto
original, de 2005, é da Editora Kiliko. A linguagem é eivada de termos do
quéchua (ou quíchua), importante família de línguas indígenas da América do
Sul. Usada como língua franca na época do Império Inca, no século XV,
principalmente pelos catequizadores católicos, atualmente ainda é falada
por cerca de dez milhões de pessoas de diversos grupos étnicos da
Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru, especialmente ao longo
dos Andes, onde se concentram as populações indígenas desses países. No
Peru e na Bolívia, o quéchua é língua oficial, ao lado do espanhol e do
aimará. No Equador, calcula-se que entre 900 mil e 1 milhão de pessoas
falam o Kichwa. Os registros mais antigos de que se tem notícia, do idioma,
foram feitos pelo frei Domingo de Santo Tomás, que o estudou no Peru
durante vinte anos. Em 1560 o religioso publicou a sua Grammatica o arte de
la lengua general de los indios de los reynos del Perú.
Além de utilizar vocábulos e expressões em quéchua, Jorge Icaza também
registra, em nome da coloquialidade e da verdade nativa dos protagonistas,
muitas corruptelas, contrações e anotações de pronúncias erradas do falar
indígena e do falar camponês. O primeiro desafio deste tradutor foi
transpor, para o português, não apenas o significado inteligível dos
diálogos dos índios, entre si ou com outros elementos étnicos, mas também
remeter à música típica do falar andino, entrecortado e mal prolatado. Para
permitir entendimento do leitor, nossa estratégia foi aproximar os diálogos
do falar caipira brasileiro.
Utilizamos, como base de consulta, a 23ª edição do "Diccionario de la
lengua española – Edición del Tricentenario", da Real Academia Española e
da Asociación de Academias de la Lengua Española, atualizada em 2014.
Em contraposição ao coloquialismo bruto anotado nas falas do índio e do
cholo (o mestiço de sangue europeu e índio, que, por sua vez, é vítima do
branco e verdugo do índio), o discurso narrativo é pomposo, numa alusão às
fanfarronices linguísticas dos oligarcas e dos eclesiásticos. Portanto, o
texto apresenta três níveis de linguagem: o falar regional dos índios,
mesclado de espanhol e quéchua, o falar despojado e inculto dos mestiços, e
o discurso pomposo e pedante do equatoriano branco burguês do início do
século XX. São três vozes sociais, que exibem o multiculturalismo e as
relações de poder. Icaza pratica, em Huasipungo, a estratégia discursiva
que Bakhtin denominou de heteroglossia. Em resumo, é a evidenciação da
dominação cultural, realizada inclusive – ou principalmente? – pela
linguagem.
Ainda sobre a linguagem, poderíamos dar-lhe o epíteto de agridoce. Ao
lado de um discurso narrativo atraente, conciso e instigante, Jorge Icaza
alcança acrescentar laivos de humor a situações de máxima degradação
humana; é um humor amargo, desdentado e chulo, que pelo contraste destaca a
ironia como carro-chefe dos relatos. O oprimido ri de si mesmo, num riso
frouxo, um riso pejado de resignação, de humildade imposta que vai de mãos
dadas com a humilhação, e de uma submissão que evidencia o medo e disfarça
a mágoa ressequida e centenária. O índio andino, na denúncia de Jorge
Icaza, não é considerado senão como um animal. Não porque não seja humano –
mas porque foi desumanizado, impedido pelos maus tratos, pela servidão e
pela ignorância, de refletir sobre a sua própria existência e seu papel no
mundo. O único personagem índio que parece adquirir senso crítico e ganha
uma evolução de consciência é Andrés Chiliquinga, não sem antes sofrer o
que não parece humano aguentar.
Na elaboração linguística, comparecem as anáforas, frases que começam com
a mesma ou com as mesmas palavras, recurso de estilo que confere aos
diálogos o teor de manifestação de rebanho, ou seja, falas repetidas,
derivadas da inconsciência coletiva. A interrogação retórica é outro
recurso, para evidenciar que não há resposta – do lado índio – ou que as
respostas já estão implícitas – do lado da burguesia pré-capitalista. As
antonomásias e epítetos servem para apoiar o entendimento, emprestando
também certa musicalidade (ao lado da ordem inversa, em alguns momentos)
típica do falar quéchua. E, por fim, os impropérios, os xingamentos, as
intromissões chulas nos diálogos evidenciam, além da falta de repertório, a
manifestação incontida de mágoa, de um e de outro lado – oprimido e
opressor.
Um registro especialmente pungente é a cerimônia quase ritualística de
velório à índia Cunshi. O marido se ajoelha e faz uma série de lamentações
meio cantadas, ao som de flauta e tambor, em que destaca as qualidades e
excelências da mulher e a falta que ela vai fazer. É uma espécie de
cantochão em que aparecem, quase como refrão, essas frases dolentes: "Ai,
Cunshi sha, ai, bunitinha sha!". Há algumas dramatizações e leituras
dramáticas que podem ser consultadas pela Internet, e que seguramente darão
ao leitor uma representação mais realista do lamento índio nesse ritual de
morte.
É nesse trecho da narrativa que aparece, plena, a alma doce e sentimental
do índio. É um momento lírico e poético, em que o índio se desveste da
carapaça de animal que lhe impuseram e mostra-se, como homem, inteiro. E
imensamente triste.
Há mais, na narrativa de Jorge Icaza. Usos e costumes, curandeirismo,
superstições, escala social, comportamentos aceitáveis e inaceitáveis. Tudo
concorre para exibir o que é central: o índio é coisa, é moeda, é pertence,
é nada.
A rigor, o romance é permeado pelo pensamento socialista e pode ser
chamado de romance social proletário – tanto que trechos de sua primeira
edição foram amplamente festejados na Rússia. Mas a abordagem mais imediata
não é com a exploração das classes trabalhadoras, mas com a escravatura
propriamente dita do trabalhador rural. Denúncias semelhantes foram feitas
nos Estados Unidos, em "As vinhas da ira", de John Steinbeck (1939), e no
Brasil, também dentro do gênero de romance social, por exemplo na obra de
Hernâni Donato, "Selva Trágica" (1959), que denunciou a exploração dos
ervateiros do Mato Grosso do Sul, livro reeditado em 2013 pela mesma
Editora Letra Selvagem, que ora reedita Jorge Icaza. Não é demais comparar
a servidão dos índios andinos com a escravidão negra que se praticou no
Brasil, mormente no contexto da agricultura. Contra as duas raças, o
"civilizador" semifeudal utiliza na opressão a fé manipulada e a esperança
inalcançada mas sempre anunciada, como cenoura amarrada à frente do focinho
da besta de carga, que ela persegue sem jamais conseguir apreciar. Em
Sociologia há uma máxima que se aplica razoavelmente aqui: o religioso
vende fé, o cientista vende verdade, o político vende esperança. Podemos
retirar dessa frase, na sua aplicação ao romance de Jorge Icaza, o papel da
ciência, até porque o levantamento de situações é mais empírico, mais de
observação do que de experimentação ou análises cartesianas. Mas, de resto,
aparece com clareza revoltante, em Huasipungo, a conivência e, mais do que
isso, a participação da classe eclesiástica e das autoridades civis e
militares no suporte à escravidão dos índios. O latifundiário, dono das
terras onde estão instalados os huasipungos, é às vezes chamado de
fazendeiro, outras vezes de terrateniente (proprietário de terras), mas
pode-se aplicar a ele o termo equatoriano gamonal, que equivale ao nosso
coronel do sertão. O personagem Alfonso Pereira, a quem é aplicado o título
de don, típico da monarquia espanhola, é o instrumento por meio do qual o
imperialismo norte-americano representado pelo Mr. Chapy, explorador de
petróleo disfarçado de madeireiro, penetra o território, finca o pé, induz
ou ordena barbaridades e domina não só a serra andina, mas o país inteiro.
A título de informação, diga-se que a exploração do petróleo no Equador, a
partir dos anos 1940, representou um salto de urbanização. Em 1967, uma
nova reserva de petróleo foi descoberta na província de Sucumbios e o
Equador subiu mais um degrau na escala econômica mundial. A urbanização
decorrente dessa evolução econômica levou a uma valorização, tímida
inicialmente, dos grupos indígenas.
Huasipungo foi traduzido para mais de 40 idiomas. Uma das mais difundidas
foi a de 1962, publicada com texto integral pelo conhecido editor inglês
Dennis Dobson, da famosa Dobson Books de Notting Hill, que curiosamente
faleceu no mesmo ano que Jorge Icaza: 1978.
Apesar de festejado com o lançamento de Huasipungo, como ator e autor de
peças teatrais, a trajetória de Jorge Icaza não foi de sucesso duradouro.
Sua vida ganhou mais impulso em 1944, quando participou do grupo que fundou
a Casa de la Cultura Ecuatoriana, o que lhe valeu ter sido mandado a Buenos
Aires como adido cultural, onde ficou até 1953. De volta ao Equador, foi
nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Quito, função que exerceu por
quase vinte anos.
Entre 1973 e 1977 desempenhou vários cargos diplomáticos. Foi embaixador
do Equador na antiga União Soviética, na Polônia e na também antiga
República Democrática Alemã, a Alemanha Oriental. Viajou muito,
principalmente para países de orientação socialista, como China, Cuba e
Tchecoslováquia. Passou alguns meses na França. E esteve no Brasil,
visitando Jorge Amado, a quem conheceu em Moscou. Há uma aproximação
temporal e de gênero literário entre os dois autores: Jorge Amado havia
publicado Cacau, seu segundo livro, em 1933, um ano antes da publicação de
Huasipungo.
Huasipungo é um livro para ser conhecido. É um libelo, pungente, triste e
até cruel do papel do homem como lobo do homem.


Joaquim Maria Botelho
2017
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