IDENTIDADE DES/CONSTRUÍDA: A PERSONAGEM SURDA EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE

July 26, 2017 | Autor: J. Correia Muzi | Categoria: Surdez, Literatura Brasileira Contemporânea
Share Embed


Descrição do Produto

IDENTIDADE DES/CONSTRUÍDA: A PERSONAGEM SURDA EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE

Joyce Luciane Correia MUZI1

Não são muitos os personagens com algum tipo de deficiência na literatura brasileira. Personagens surdos são ainda mais raros. Isso se dá provavelmente porque historicamente as pessoas com deficiência, especialmente os surdos, mantiveram-se “escondidos” da sociedade, sendo tomados como anormais, ou considerados como desprovidos de linguagem. Ou seja, ter uma deficiência significou durante muitas décadas estar condenado ao espaço privado, longe das relações sociais, o que, consequentemente, reflete no fato deles serem bem pouco representados. Nesse artigo trataremos de Soraya Ângela, personagem surda do romance Relato de um certo Oriente do escritor amazonense Milton Hatoum. Tentaremos entender de que modo ela é representada e o que isso representa para a narrativa. Além disso, cabe destacar o fato de que essa representação abre as portas tanto à discussão da questão dos surdos na sociedade, bem como à discussão de que, ao ser definitivamente tratado como parte dessa sociedade, sejam cada vez mais representados na literatura.

O ser surdo: esclarecimentos iniciais Em relação à surdez, as questões terminológicas são as primeiras a virem à tona. Karin Strobel (2009), doutora em educação e surda, explica que a expressão “deficiente auditivo” tem sido rejeitada pelos surdos/as por dizer respeito às representações construídas pela medicina, em oposição ao termo surdo/a, cuja questão cultural e identitária está em primeiro plano. O “deficiente auditivo” portanto se define por ser um indivíduo doente e/ou deficiente, sendo categorizado de acordo com seu grau de surdez, que pode ser leve, moderado, severo ou profundo. O sujeito que quer ser reconhecido como surdo/a tem em suas relações sociais a demarcação identitária; possuidor de uma língua natural, a Língua de Sinais Brasileira, assim como qualquer falante de toda língua oral, ele se constrói e se completa na interação com os outros, falantes da mesma língua (GERALDI, 1996). Pode-se dizer então que a identidade 1

Professora do IFPR – Campus Curitiba e doutoranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá.

surda se forma a partir das relações engendradas dentro das trocas linguísticas entre falantes que compartilham a mesma língua. Devido a isso, algumas teóricas consideram estrangeiro o sujeito surdo que nasce em família de ouvintes (FERNANDES, 2003; GESUELI, 2008), o caso da personagem com a qual estamos trabalhando. Ela é portanto considerada como estrangeira, e, além disso, ainda que não haja a verbalização da sua designação, que ela não seja nomeada deficiente, é desta maneira que a família tratará a menina. A escrita do texto de Hatoum antecede leis e decretos federais que dizem respeito à questão da pessoa surda no Brasil, o que aponta para uma posição bastante interessante, pois consideramos que a questão levantada pelo autor faz parte de um momento em que os Estudos Culturais apontam para a pluralidade, o que interessa especialmente aos Estudos Surdos. Segundo Fernandes (2011, p. 114) os Estudos Surdos são “uma possibilidade de problematizar os discursos hegemônicos sobre os surdos, buscando uma ruptura com as representações dominantes que situam suas identidades no território da anormalidade ou da deficiência”. Gladis Perlin e Ronice Quadros (2006, p. 168) consideram a emergência dos Estudos Culturais uma “grande oportunidade histórica para a emergência das alteridades que não se repetem e que atualmente nos brindam com novos significados epistemológicos que se produzem entre os discursos no interior de diferentes culturas”. Hatoum problematiza, portanto, ainda que de maneira breve, o conflito entre a cultura ouvintista e a cultura surda. Cabe ressaltar nesse momento o que se entende por cultura surda: Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de se torná-lo acessível e habitável ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das “almas” das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo (STROBEL, 2009, p. 27).

Por último, importante também dizer que a língua de sinais, considerada recentemente como a língua natural e de direito do povo surdo, é um dos artefatos que mais contribui para a formação da identidade dos sujeitos surdos, pois ela traz em si as marcas da relação destas pessoas com o mundo, por ser visual-espacial e por ser fator preponderante no respeito à cultura surda. A partir da apresentação de conceitos-chave para nossa análise, passaremos à discussão sobre a representação da personagem surda no romance de Milton Hatoum.

Identidade que se (des)constrói: a personagem e o romance A personagem que nos interessa, Soraya Ângela, compõe o enredo do primeiro romance do escritor, cujo tema é a memória, a reconstituição de lembranças e a identidade. A narradora sem nome de Relato de um certo Oriente busca, por meio da rememoração de seu passado e das lembranças de outros, dar sentido e valor à sua origem. Para Francisco (2008, s.p.), o silêncio perpassa toda a obra: “silêncio de histórias e dramas familiares não revelados, silêncio de personagens que se recusam a falar ou de personagens que não conseguem falar, silêncio que não é apenas voluntário, mas que é também constatação de uma impossibilidade inerente à própria enunciação”. Os “silêncios” que perpassam a obra emanam de vários personagens: da matriarca Emilie e seu segredo relacionado ao relógio, de que adiante trataremos, e de seu próprio marido, sempre calado e solitário; da narradora, filha adotiva de Emilie, atravessada por silêncios de todas as direções, sendo que um deles é o mistério sobre sua mãe biológica; de Dorner, o fotógrafo que registra imagens e nada diz; de Emir, que após viver também se mata em silêncio; e de Hakim, o filho que não compreende o porquê de tantos silêncios e se afasta silenciosamente. Além desses personagens, temos também a criança Soraya Ângela, que, para Francisco (2008, s.p.) é a personificação do silêncio, por ter nascido e morrido sem ouvir nem emitir palavra, o que provoca involuntariamente o silêncio de sua mãe que se sente culpada pelo “problema” da filha. Em relação à primeira questão tratada aqui, a da nomenclatura, pode-se considerar que a família, embora não verbalize, toma a personagem Soraya Ângela como deficiente, como um ser diferente e destoante. Samara Délia, mãe de Soraya, não permite que a menina tenha um contato natural com as pessoas da família, por achar que elas são indignas. Sua dureza em relação a isso só é abrandada quando a menina rabisca o nome da avó, surpreendendo a todos: “Samara Délia ficou radiante naquele momento porque os irmãos pela primeira vez reconheceram em Soraya um ser humano, não um monstro” (HATOUM, 2008, p. 11). O desejo pautado na ínfima possibilidade de a menina se “normalizar” revelada nesta fala da narradora aponta para o fato de que a menina só seria aceita se se constituísse como alguém que se comunica verbalmente. Conforme dissemos, no contato com os outros, diferentes ou iguais, as identidades vão se formando, num processo de multifacetamento que leva à identificação ou oposição (MAHER, 1998 apud FERNANDES, 2003). Por meio das lembranças da narradora, ficamos sabendo que o processo de “identificação” de Soraya acontece em duas direções: a primeira que podemos chamar “positiva” se resume às relações afetivas com pessoas que dela

gostavam – temos a própria narradora quando ainda criança, o tio Hakim, que, contrariando as recomendações de Samara Délia, sua irmã e mãe de Soraya, divertia-se com a sobrinha, e, o que é bastante representativo, uma boneca. Já em relação à direção “negativa”, podemos encontrar o contato, também em âmbito doméstico, com primos e tios que se negavam a conviver com a menina, bem como aceitá-la como uma pessoa. Já a relação de Samara com o “problema” da filha é de culpa, por isso ela “frequentava as novenas e lia os jornais de cabo a rabo com a esperança de encontrar uma descoberta da medicina que devolvesse à filha os dois sentidos que lhe faltavam” (HATOUM, 2008, p. 11). Por ser considerado um ser doente, a mãe pensa que há uma “cura”, que virá da ciência ou da fé. Por meio destes contatos afetivos “positivos” e “negativos” que ajudaram a formar a identidade de Soraya, o autor deixa expresso como a criança surda era vista na sociedade. É possível aqui aproximar esta representação feita pelo autor de outros discursos correntes a respeito de pessoas surdas, por exemplo no campo das artes plásticas. Susan Dupor, artista surda, no quadro “Family Dog” (imagem 1), que numa tradução livre significa “Cão da família”, apresenta no fundo pessoas sentadas com rostos disformes e no primeiro plano uma criança, cujo gênero é possível inferir devido ao uso de um vestido cor-de-rosa. Ambos os planos, e seus protagonistas, estão separados por uma espécie de “cerca”, barras que aparentemente servem para manter as pessoas do plano mais ao fundo protegidas, afastadas daquela que pode ser comparada a um animal doméstico. Seu rosto, olhos esbugalhados, língua para fora, a posição de seus braços e pernas, e o fato de estar no chão, evoca a imagem de um cão aos pés dos donos, mas na devida distância que não trouxesse perigo a ninguém. Imagem 1: Family Dog Acrílico sobre tela. 56" x 57", 19912

2

Disponível em: Acesso em: 12 set. 2012.

Da mesma forma, no romance podemos ver essa condição inferior quando ao tentar narrar uma história à sua maneira, história esta em que existia um cão, a menina gesticula e se apresenta de “olhos meio arregalados, as mãos apoiando-se no chão” (HATOUM, 2008, p. 16), o que provoca riso em todos da família, com exceção da mãe e do tio Hakim. Ao compararmos as representações, a de Hatoum e a de Susan, percebemos que muito do que se construiu socialmente a respeito do nascimento de uma criança surda na família está ligado à questão do diferente negativo, o diferente que deve receber um tratamento que, mais do que diferente, é excludente. Desse modo, à medida que cresce, esta criança percebe que é diferente das demais: “Quando me faltou a palavra?” (HATOUM, 2008, p. 14). Nesse sentido, mais do que rostos distorcidos, a criança surda vê o mundo distorcido – bocas que se mexem, lábios que provocam reações, olhos desatentos, tudo ao seu redor aponta para uma desfiguração. A identificação ou a demonstração de uma tentativa de identificação de Soraya com outras crianças partia da percepção de que ela era diferente, algo que era, por sua vez, perceptível aos demais, como podemos notar na leitura que a narradora é capaz de fazer: Em que momento descobri que não podia falar?, talvez vexada porque tu, com a tua pouca idade, já eras capaz de construir frases mal-acabadas, fracionadas, desconexas, é verdade, mas com um movimento dos teus lábios, alguém reagia, alguém movia os lábios, o mundo ao teu redor existia (HATOUM, 2008, p. 14).

Esta impressão transmitida pela narradora nos leva a pensar que o processo de identificação/identidade de Soraya se dava aos poucos, ainda que a questão linguística avançasse a passos lentos. Isso aconteceu com a boneca de pano confeccionada por Emilie, cuja manifestação de uma preocupação para com a neta está marcada no fato de ter feito as orelhas e a boca sem relevo, de modo a “facilitar” o processo de identificação de Soraya com o outro: Soraya nunca largava a boneca; enfeitava-lhe a cabeça com as papoulas que colhia, oferecia-lhe pedaços de frutas, dirigia-lhes os mesmos gestos com a mão, com o rosto [...]. Foram dias de exaltação, de descobertas. Soraya, que parecia uma sonâmbula assustada, começou a abstrair (HATOUM, 2008, p. 13).

A partir desse contato, Soraya começa a interagir com o mundo por meio de desenhos no papel, no pano, nas paredes. Parecia querer se comunicar com o mundo. Nas palavras da narradora ao “abstrair” ela se dava conta de que, assim como a boneca, era diferente dos demais. No entanto, é a mesma narradora que destaca que “o odor e o olhar compensavam de certa forma a ausência dos dois sentidos” (HATOUM, 2008, p. 13). Tio Hakim, como já citado, contribuía para que Soraya se comunicasse quando do contato com a sobrinha – ao mostrar um livro, “ao escutar os teus arremedos de nomes eslavos” (HATOUM, 2008, p. 15), e ao, em zombaria, “afirmar que a pronúncia correta dos nomes dessas personagens só podia vir da boca de uma criança de dois anos ou da de Soraya” (HATOUM, 2008, p. 15). Ao conceber que Soraya se parecia com qualquer outra criança da mesma idade, tio Hakim contribuía para que Soraya se sentisse criança:

Dos três tios era o único que costumava fazer macaquices com a gente, passear de mãos dadas com Soraya, sempre às escondidas, porque receava que tia Samara descobrisse e lhe jogasse na cara a mesma frase repetida desde que a filha nascera: “Nenhum de vocês é digno de tocar na minha filha” (HATOUM, 2008, p. 15).

Cabe destacar que estes contatos com seres reais ou não provocavam em Soraya ímpetos de se comunicar. Embora a mãe tentasse, era inevitável impedir que a filha fizesse contato com o resto do mundo, e no fundo ela já sabia que a menina “iniciara suas caminhadas pela cidade, acompanhada pelo tio Hakim” (HATOUM, 2008, p. 15). E a cumplicidade entre tio e sobrinha se acentuava quando ambos dissimulavam na presença de outros. Mas seu contato com o mundo de imagens, de gestos, de emoções, já estava dado, não poderia mais ser interditado:

as caretas de Soraya imitando o bicho-preguiça a escalar uma árvore; o corpo estático imitando a imobilidade das sentinelas de bronze plantadas diante do quartel, os gestos que ela fazia com as mãos e os braços evocando os irmãos sicilianos a dialogar com um cachorro, nada parecia escapar às suas andanças, como se o olhar fosse suficiente para interpretar ou reproduzir o mundo (HATOUM, 2008, p. 15).

Neste trecho é possível notar a identificação com o visual, à medida que recebe ou produz imagens, Soraya se comunica com o mundo, “como se o olhar fosse

suficiente para interpretar ou reproduzir o mundo” (HATOUM, 2008, p. 15). Para um ouvinte, esta frase soa como exclamativa, uma vez que isso lhe parece estranho por ser sua experiência verbal-auditiva. Há também um outro personagem que contribui para que Soraya se construa: o irmão da narradora, o interlocutor do “relato”. Ambos convivem quando crianças e pela relação que tinham, ele sente culpa por não ter visto Soraya morta, não compartilhar da memória que ela merecia. As diferenças entre os dois eram diluídas pelo fato de serem crianças; ela que muitas vezes era mais corajosa e ele cúmplice e sofredor, quando a perdia de vista. Naquele momento, eram crianças e agiam como crianças. Após a morte o menino passará então a sentir a “falta de Soraya Ângela rastejando contigo, as duas cabeças roçando o solo à caça de saúvas...” (HATOUM, 2008, p. 20). À medida que tem a possibilidade de viver como uma criança, Soraya sai da condição de “deficiente auditiva”, ser privado de comunicação, para se constituir um ser cultural, que interage com o entorno e se constrói por meio desse contato. É possível destacar, a respeito dessa possibilidade de se mover de uma condição a outra, que Fernandes (2003, p. 30), baseada em Hall, toma as identidades surdas como uma construção móvel, plural e multifacetada, transformada segundo as representações nas quais o sujeito é interpelado nos círculos de significação e sistemas de representação cultural. Ser surdo remete a uma construção permanente, na qual a identidade será sempre um construto sócio-histórico, um fenômeno intrinsecamente determinado pela natureza das relações sociais que se estabelecem entre os surdos e outros sujeitos sociais e étnicos.

Para finalizar nossa análise a respeito da representação de Soraya no romance, faremos uma breve reflexão a respeito das escolhas lexicais a partir do título, a fim de compreender o quão é importante a questão da linguagem, da expressão. O autor escolhe para começar o título do seu livro um verbo – relato, transformado em substantivo, mas também a forma do presente do indicativo na primeira pessoa do singular. Relatar é o ato de referir, expor, descrever, por meio da linguagem, escrita ou falada. Para fins desse estudo, nos detivemos nos dois primeiros capítulos do livro e examinamos outros verbos e substantivos que tivessem relação semântica com o título ou mais, com a própria questão da linguagem e a importância que ela tem na obra de Hatoum, que acaba refletindo na representação da personagem surda.

Em relação ao viés que propusemos, foi possível encontrar pelo menos 99 palavras diferentes, considerando inclusive diferentes flexões dos verbos, como é o caso do verbo falar – temos além da forma no infinitivo, o substantivo fala, e as flexões: 3ª pessoa do singular no presente do indicativo (fala), 1ª e 3ª pessoa do singular do pretérito imperfeito do indicativo (falava) e o gerúndio (falando). Estas palavras figuram entre as que tiveram maior ocorrência (treze), ao lado do verbo dizer (e formas como disse, dizem, diria, com dezessete ocorrências), e dos substantivos voz (vozes, vozerio, com nove) e palavra (com cinco ocorrências). São ao todo, contando as formas repetidas, 141 vezes que alguma palavra é utilizada nos dois primeiros capítulos evocando um mesmo campo semântico: linguagem, comunicação. Isso é interessante se projetamos para a compreensão do romance como um todo, se consideramos as palavras de Francisco (2008) para quem o romance traz em seu cerne o tema do silêncio. A oposição aparente entre o mundo de quem ouve e fala e de quem não ouve e, por consequência, custa a aprender a falar, se mostra se analisamos quais são os termos relacionados à Soraya Ângela: caretas, gestos, imitando, além das palavras utilizadas como qualificativos como ocorre na passagem referente ao atropelamento da menina, quando a narradora expressa “aquele baque surdo”, o que, simbolicamente, pode sugerir que ela pretendia negar a tragédia, justamente por não ter sido possível ouvir um grito ou um chamado de Soraya. Já no primeiro capítulo, a empregada que recebe a narradora se mostra acuada, medrosa, e a descrição é de que ela vivia confinada num “mutismo ancestral”, remetendo à impossibilidade de falar gerada por barreiras sociais. A representação entre fala e mudez, palavra e silêncio, pode ser vista em uma outra oposição: a simbologia do relógio e Soraya. Paradoxalmente, no romance o relógio representa mistério, silêncio, devido ao fato de ser um objeto ligado à matriarca Emilie, e o som que rege a rotina de uma família. Para a menina surda, o fascínio é pela imagem:

Ela permanecia horas diante dele, os seus cravados no movimento pendular da haste dourada, no ponteiro de minutos, esperando o salto regular e também calado da flecha negra. Hoje fico pensando no tempo que ela dedicava a esse diálogo surdo com o tempo, indiferente às badaladas quando as duas flechas coincidiam (HATOUM, 2008, p. 21).

Aquilo que chamava atenção da menina não era o mesmo que chamava a atenção das outras crianças que, ao contrário, se assustavam com “as pancadas que surgiam bruscamente, como trovões” (HATOUM, 2008, p. 21-22). A imagem do “relojão” encantava Soraya, o que, ao mesmo tempo que intriga a narradora, é por ela mesma justificado; sua imponência e mistério fascinavam porque não era um relógio comum, mas “o mais silencioso de todos os que conheci” (HATOUM, 2008, p. 21). A experiência visual, portanto, fazia sentido para Soraya, mas não para os ouvintes. Soraya é um sujeito que não tem referentes de sua cultura – ela é única no mundo. Por isso, ainda que ela tenha consciência de ser diferente por necessitar de recursos completamente visuais, por ter experiências diferenciadas, e que ela não encontre referente em relação à língua, aspecto fundamental de sua cultura, é possível dizer que ela tenta se constituir, ainda que de forma fragmentada. A morte de Soraya pode representar que essa busca seria inócua, pois sua relação com o restante da família dependia de esforços de ambas as partes. Nas palavras de Gladis Perlin (1998, p. 54), “O estereótipo sobre o surdo jamais acolhe o ser surdo, faz com que as pessoas se oponham, às vezes disfarçadamente, e evite a construção da identidade surda, cuja representação é o estereótipo da sua composição distorcida e inadequada”. Pode-se dizer que o silenciamento total de Soraya, bem como o silêncio da própria mãe e de outros silêncios presentes na obra, demonstra a dificuldade de interação entre uma pessoa surda com o restante do mundo ouvinte. A personagem criada por Hatoum representa realmente o que se construiu socialmente a respeito da surdez, conforme pudemos ver na obra de Susan Dupor. Entretanto, é possível considerar o estudo e a análise desta personagem em suas várias nuances como uma ótima oportunidade de problematizar a questão dos personagens excêntricos ou, se preferirem, periféricos.

Referências: FERNANDES, Sueli de F. Educação bilíngue para surdos: identidades, diferenças, contradições e mistérios. 2003. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003.

FERNANDES, Sueli de F. Políticas linguísticas e de identidade(s): a língua como fator de in(ex)clusão dos surdos. Revista Trama, v. 7, n. 14, 2011, p. 109-123. FRANCISCO, Denis Leandro. Linguagem, memória, ruínas: Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. Em Tese, v. 12, s.p., 2008. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2012. GERALDI, João W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 1996. GESUELI, Zilda M. Linguagem e surdez: questões de identidade. Horizontes, v. 26, n.2,

p.

63-72,

jul./dez.

2008.

Disponível

em:

Acesso em: 05 dez. 2011. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. PERLIN, Gládis T. T. Identidades surdas. In: SKLIAR, Carlos (Org.). A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998. p. 51-72. PERLIN, Gladis; QUADROS, Ronice M. de. Ouvinte: o outro do ser surdo. In: QUADROS, Ronice M. de. (Org.). Estudos surdos I. Petrópolis: Arara Azul, 2006. STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. da Ufsc, 2009.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.