INSEGURANÇA, VIOLÊNCIA E LIBERDADE

May 24, 2017 | Autor: Atahualpa Fernandez | Categoria: Law, Violence, Direito, Freedom, Violência, Segurança Pública, Liberdade, Segurança Pública, Liberdade
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INSEGURANÇA, VIOLÊNCIA E LIBERDADE


Atahualpa Fernandez(


"Cuando uno renuncia a sus sueños tiene
que masturbarse con la realidad". Ennio Flaiano




É possível que o alto e descontrolado índice de criminalidade,
violência e insegurança de que tem sido vítima a sociedade brasileira seja
um fenômeno que não tenha a dimensão e a transcendência que parece. É
possível! Também pode ser o contrário: que por razões nada difíceis de
imaginar nossas instituições públicas não estejam dando a devida
importância a uma situação cruel que assusta as pessoas e que mantém a
sociedade em permanente sobreaviso, isto é, à tarefa de garantir a
liberdade e a segurança dos cidadãos neste mundo incerto e ruidoso.
Sem descuidar o papel útil, em termos de utilidade mediática e de
interesse político, dos discursos proferidos pelos governantes toda vez que
surge uma vítima inocente da barbárie que experimentamos no cotidiano,
tenho a sensação de que o atual modelo de Estado deveria tomar outro rumo
completamente distinto. Entre outras coisas, porque em questão de
"segurança pública" o Brasil se encontra – e sobre isso parece que há certo
consenso - em um momento francamente deplorável, com uma enxurrada de
propostas políticas e projetos legislativos ("redução da maioridade penal",
"multiplicação de leis em matéria criminal", "rapidez da justiça",
"maximização do poder punitivo", "endurecimento das penas", etc...etc.) que
mais se parecem a um grotesco e esquizofrênico evangelho de desesperação e
estupidez de cúmplices impotentes.
Todo um conjunto de imposturas que, sendo parte do problema e não
parte da solução, são próprias de uma verdadeira «anocracia» (anocracy),
quero dizer, de um regime cuja característica é a combinação de um governo
débil, politicamente instável, ineficaz, altamente corrupto e que não faz
nada bem, ou, como prefere Steven Pinker, um «gobierno de mierda».
De fato, qualquer parecido com o que caberia chamar um Estado
republicano brilha de maneira clamorosa por sua ausência. E o que salta à
vista, por mais que insistam em negar as autoridades e as instituições
responsáveis pela segurança cidadã, é a evidência de que, já faz algum
tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e
feia. Ademais, que isto esteja sucedendo de forma desenfreada supõe algo de
tanta gravidade que deveria inquietar a todos. Porque é a própria sociedade
em concreto a ameaçada e constantemente violada, com bem negras
perspectivas no horizonte do futuro.
Sejamos sérios. Não é necessário estar geneticamente dotado de uma
grande inteligência para perceber o grau de estancamento a que chegou o
Estado, as nefastas consequências da atual situação de quebra das
instituições e o desconcertante fracasso que cada dia suporta a dignidade
dos cidadãos: basta com folhear qualquer jornal, ver a televisão ou
passear por qualquer cidade brasileira. Notícias e números que gritam e
inflam a larga e degradante estatística da criminalidade brasileira e que,
por si sós, já deveriam ser suficientes para conscientizar do circular,
vicioso e atroz desprezo estatal pelo reconhecimento e garantia dos
direitos (e deveres) assegurados a todo e qualquer cidadão.
Repetindo a pergunta feita por Walter Benjamin ao referir-se a seu
tempo: «¿Pero de verdad alguien puede dormir tranquilo?» À toda evidência
que não. Não é fácil viver em uma sociedade em que se os governantes não
logram encontrar ofensiva a dura realidade da violência e suas implicações,
não é porque careçam de informação, senão porque se negam a enfrentá-la,
porque animados pela covardia e respaldados pela indecência optam por
ignorá-la de forma deliberada. Não pode ser fácil viver em uma sociedade em
que a ideia de liberdade e segurança parecem ter perdido todo sentido de
valor, ainda que dando por assentado que vivemos em um entorno social em
que se pode dizer qualquer coisa das que não temos nenhuma prova
(afirmações acerca de Deus, a religião e crenças sobre a Bíblia, por
exemplo).
Sabemos, ou ao menos intuímos, que as ruas estão cada vez mais
perigosas e que a ilusão da desconexão entre liberdade e segurança é cada
vez mais aguda. O único problema é que não existe propriamente liberdade
sem segurança. A insegurança implica ela mesma uma falta de liberdade,
tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa insegurança. Por isso
poucas palavras se pronunciam tanto; poucas dizem tanto e com tanto poder e
eloquência que a palavra violência, que nada mais é, em última instância e
em primeira, insegurança. E a insegurança é o efeito da violência sobre a
liberdade dos cidadãos.
Insegurança é a violência mirada desde os inseguros, ou melhor, desde
os que se sentiam livres e se encontravam seguros, mas que já não estão.
Insegurança é, em si, uma palavra que denota certa covardia moral: uma
palavra dita desde a submissão e o medo a sofrer a violência dos que não
respeitam a ideologia que diz que «não há que interferir arbitrariamente na
vida dos demais», «não há que roubar», «não há que matar», «não há que
sequestrar», «não há que causar dano»... A violência dos que não encontram
mais solução que essa violência para formar parte de uma sociedade que "no
los necesita – y se lo hace saber todos los días"(M. Caparrós). Assim que
enquanto não comecemos a tratar como Deus manda e sem delirantes
dissimulações o vínculo entre liberdade, insegurança e violência, não
estaremos falando em sério.
Por que? Pois pelo simples fato de que sem segurança, a liberdade é
uma quimera. A liberdade (e me refiro à liberdade republicana) é o
contrário da submissão de qualquer espécie ou natureza. É livre quem não
pode ser arbitrariamente interferido por outros; a possessão da liberdade
requer não somente a ausência de interferência por parte dos demais nos
espaços em que elegemos e tomamos decisões relevantes para nossas vidas,
senão também a ausência de controle não justificado, isto é, ausência de
dominação.
Por outro lado, não é livre neste sentido ou está minguado em sua
liberdade quem, podendo ser interferido por outros, não se vê interferido
de fato, por exemplo, por pura casualidade ou artimanha. Quer dizer,
desfruto dessa «não interferência» só pela muito contingente razão de que,
sendo um indivíduo relativamente privado de poder e estando rodeado de
agentes que me dominam (agentes com poder de interferência arbitrária), sou
demasiado cauteloso, renuncio a satisfação de alguns de meus desejos ou sou
muito "astuto" e cuido de manter-me afastado ante a ameaça de problemas:
procuro não sair de casa em determinadas horas, não paro em semáforos pela
noite, não uso jóias ou objetos de valor em qualquer ambiente, não me
detenho para atender estranhos na rua, etc...etc.
A liberdade, assim entendida, é um conceito disposicional: sou livre
quando não estou baixo a mão ou potestade de ninguém, quando ninguém poderá
– faça de fato ou não – imiscuir-se caprichosamente em meus planos de vida.
Desfrutar dessa «não dominação» é estar em uma posição tal que ninguém tem
o poder de interferir (arbitrariamente) sobre mim, sendo esta a medida de
meu poder.
Dito de outro modo, falta de liberdade (de eleger, de decidir, de
fazer e ainda de rechaçar e resistir) é a que tem o cidadão que apenas
chega ao fim do dia e não sabe se amanhã conservará a sua vida; é a que
sofrem todas as mães (e pais) que dependem da exígua caridade dos
assaltantes e sequestradores de seus filhos. Falta de liberdade é a que
sofrem muitas famílias brasileiras porque necessidades e desejos vitais
para elas já não dependem de instituições que dão suporte a uma vida digna
e segura. Falta de liberdade, enfim, é o que padece aquele que vive (ou
sobrevive) com a permissão de delinquentes. Em suma: se tenho que pedir
permissão a X para poder viver cotidianamente, minha existência material
depende de X; se dependo da vontade de outra pessoa para poder sobreviver,
não sou plenamente livre.
Por onde se vê, a sociedade brasileira, porque vive baixo o manto de
um Estado monstruoso, impotente e imprestável, padece de um profundo e
crônico problema de falta de liberdade. O que me leva a perguntar: Sabem
nossos governantes governar? A resposta mais sincera disponível diz que
não. Mas, sabem ao menos em que consiste governar? Repetir a negativa seria
tremendo e espantoso. Nada obstante, parece ser esta a sensação que dão à
sociedade, posto que não fazer nada para evitar ou se opor ao mal quando
deve fazê-lo, se converte em grave e implacável injustiça, como outra
qualquer que possa cometer um Estado corrompido.
Talvez seja bom recordar a respeito algumas trivialidades. A primeira,
que se governa sobretudo por meio da participação e compromisso integral
dos dirigentes das instituições públicas estatais. A segunda, que somente
com instituições permanentemente atuantes, vigilantes e eficazes é possível
viabilizar o florescimento e o crescimento de comunidades éticas. A
terceira, que a ausência de segurança por detrás da apatia política e/ou
desinteresse institucional condena a liberdade cidadã à ruína e à miséria.
Enquanto olvidemos essas verdades, enquanto as administrações não contarem
com sistemas próprios de uma democracia apresentável, enquanto continuarem
a responder aos delitos internos com represálias indiscriminadas contra (e
unicamente) determinados coletivos, o fracasso do Estado estará garantido e
a pergunta sobre "o que fazer com nossa falta de liberdade" será pura
metáfora.
E se continuarmos a dar essa situação por normal, se não fazemos nada
para corrigi-la, se fechamos nossos olhos ante tantas coisas feias, talvez
já seja hora de economizar os gastos que se investem em segurança pública
porque, de uma maneira ou outra, não servirão de grande coisa. Assim que
deveria preocupar, e muito, a atitude de nossas instituições e governantes
quando continuam a insistir em um modelo de Estado que não trata de
defender nossa liberdade, de proteger-nos frente aos abusos, a corrupção e
a inércia dos poderes públicos, de prevenir e condenar com eficácia a ação
delitiva, de inviabilizar qualquer forma de existência indigna ou de
desmedida criminalidade, de tutelar e garantir a inviolável segurança de
todo cidadão, de educar e formar bons cidadãos, de incluir os excluídos...
Enfim, de atuar como agente construtor de uma comunidade de seres humanos
livres e iguais, unidos por uma comum e consensual adesão ao Direito e em
pleno e permanente exercício da cidadania.
Do contrário, continuaremos a menosprezar a liberdade real de boa
parte da cidadania e a limitar nossa indignação a "ocasionais"
acontecimentos trágicos, sempre matizados por uma retórica de cosmética,
inoportuna e inútil. Não tem nenhum sentido seguir falando de «liberdade»
ou «não dominação» sem considerar as condições materiais indispensáveis
para garantir a segurança dos indivíduos que pertencem a uma comunidade
política. Se as pessoas não podem articular seus planos de vida, se não
podem levá-los à prática de uma maneira efetiva e contínua, se não são
respeitadas como um fim se si mesmo, a cidadania plena resulta impraticável
– parafraseando a Charles Darwin, se a miséria de nossos cidadãos "é
causada não por leis da natureza, mas por nossas próprias instituições,
imenso é o nosso pecado".
O ato de governar carrega consigo a disposição e a obrigação de
reconhecer que enquanto houver indivíduos vivendo baixo o temor gerado pela
total falta de segurança e com a permissão de outros, liberdade, dignidade
e cidadania não são para eles sequer meras possibilidades humanas. Empregar
estratégias de evasão e distração para evitar ou fugir da evidência dos
fatos e/ou eludir a responsabilidade de remediá-los não passa de um pérfido
recurso para distanciar-se das virtudes de um bom governante, como o
sentido da justiça, o compromisso ético-político e o dever de pôr às
pessoas no centro de tudo o que faz. (K. Annan)
Claro que, como existem incontáveis formas de caminhar pelo mundo,
sempre haverá aqueles para quem em realidade não lhes importa em absoluto
este tipo problema ou que simplesmente preferem deixar as coisas em seu
santo lugar e não se queixam. Que somos seres com um talento extraordinário
para cambiar nosso ponto de vista sobre as coisas com o fim de poder sentir-
nos melhor em relação com elas (D. Gilbert), com uma habilidade fascinante
para negar a realidade (A. Varki & D. Brower) e com uma capacidade insólita
para acostumar-nos a qualquer coisa são ideias que todos conhecemos e que
se repetem constantemente na vida diária acerca de muitos aspectos.
Estamos dotados de uma mente que tem mecanismos para bloquear o que
nos dá espanto, uma mente que intenta racionalizar tudo quanto nos ocorre
para poder adornar a realidade, antecipar o futuro e sentir-nos mais
seguros: é uma questão de sobrevivência. Por isso que para algumas pessoas
não lhes custa muito habituar-se ao mal (R. Baumeister), perguntar-se,
"bajo el hacha del asesino, si no es también él un ser humano" (B. Brecht)
ou diminuir a resposta emocional ante a perda da liberdade e a violência a
que estão potencial e repetidamente expostas. Pessoas que, por dizê-lo de
alguma maneira, quando desertam de seus melhores desejos e legítimos
interesses, aprendem a masturbar-se com a realidade. Neste caso, pior para
todos.
Afortunadamente, existe também outra classe de gente: a dos que não
fomentam o que os psicólogos chamam «crença» ou «hipótese do mundo justo»
(E. J. Langer; M. J. Lerner). Indivíduos que não intentam maquiar o mal com
eufemismos e entendem que a forma como o governo tem tratado a (in)
segurança pública oscila entre a farsa e a tragédia. Para estes - que sabem
constatar uma realidade, sua realidade, e em algum momento a de todos -, a
mensagem que há que enviar àqueles que estão governando é que não é
insignificante ou «sem-sentido» o que está sucedendo: que o desprezo, a
poltronaria e a falta de uma adequada atuação e vigilância estatal não são
(e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal (e
vai!) já constitui razão suficiente para ficar atento, para pressionar as
instituições públicas e, sendo o caso, para atuar (legitimamente) em
consequência.
Com uma condição: a de que assumir que os valores e as exigências
morais também exigem um tipo de esforço cujo cumprimento supõe o que se
pode chamar «tarefas coletivas», quer dizer, tarefas que os indivíduos em
conjunto se comprometem por uma meta comum que proporciona valor e
benefício para toda a comunidade. Garantir a convivência entre os cidadãos,
preservar o direito fundamental à liberdade e à integridade pessoal, são
responsabilidades do Estado, mas também são direitos e deveres de cada um
dos cidadãos, de todos e cada um dos coletivos nos que se organizam e de
todas e cada uma das instituições que os representam. É um projeto comum,
um «mutualismo» - para usar a expressão de Michael Tomasello - em que deve
participar a sociedade inteira. Assim, e somente assim, será possível
impedir que a legítima necessidade de proteção se degenere no infantilismo
ou vitimização que combina a exigência de segurança com uma avidez sem
limites e sem submetimentos a nenhuma obrigação ética ou jurídica. (P.
Bruckner)
Com o fim de que se elimine a insegurança, portanto, o primeiro passo
consiste em abraçar responsabilidades cívicas e atuar movido pelo
imperativo de que o significado moral e social de uma vida digna e livre
não se sustenta em presença de tanta violência, para, em seguida, poder
exigir o dever e a obrigação do Estado de adotar os meios legítimos,
necessários e suficientes para que seus cidadãos possam viver em uma
sociedade decente na qual impere a segurança e a liberdade, sem ter que
temer sequer os indivíduos que (casualmente) «nasceram para matar». Já não
se trata somente do «direito à vida», senão do «dever de viver a vida» (J.
L. Sampero), livres de qualquer interferência arbitrária em nossos planos
de vida e protegidos da angústia e do sofrimento produzidos pela violência
humana.
O resto é mitologia.


( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil; Doutor (Ph.D.)
Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Pós-
doutor Teoría Social, Ética y Economia/ Universidad Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Pós-doutorado/Center for
Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA;
Research Scholar/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu
Kiel/Deutschland; Pós-doutorado Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les
Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil;
Profesor Colaborador Honorífico e Investigador da Universitat de les Illes
Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/
Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC
(CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas
Complejos/UIB/España.
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