\"Mentiras sinceras me interessam\": Considerações sobre o conceito de sinceridade na música pop

May 26, 2017 | Autor: Thiago Soares | Categoria: Performance Studies, Performance, Música, Voz
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014

“MENTIRAS SINCERAS ME INTERESSAM” “SINCERE LIES INTEREST ME”

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Jeder Silveira Janotti Júnior2 Thiago Soares3 Resumo: A proposta deste artigo é retomar a discussão em torno do conceito de sinceridade, com o intuito de complexificar os estatutos performáticos nos ambientes midiáticos. Para isso, visitamos a dicotomia sinceridade/ autenticidade de Lionel Trilling (1972), debatemos a noção de presença de Gumbrecht (2010) e mapeamos uma cultura da autenticidade como propõe Charles Taylor (2011) para postularmos a necessidade de trabalharmos com a sinceridade como um conceito deliberadamente difuso. A perspectiva é adotar o difuso e o efêmero como categorias relevantes no tratamento dos corpos performatizados nestes ambientes midiáticos. Palavras-Chave: Sinceridade 1. Autenticidade 2. Performance 3. Abstract: The purpose of this article is recapture the discussion on the concept of sincerity, to complexify performative status in media. We visit the dichotomy sincerity/ authenticity presented by Lionel Trilling (1972), discuss aspects of presence as postulated by Gumbrecht (2010) and map a culture of authenticity as proposed by Charles Taylor (2011) to increase the necessity to work with sincerity as an open and fuzzy concept. The perspective is to adopt the ephemeral as a important category to analyse and understand performance and bodies in media. Keywords: Sincerity 1. Autenticity 2. Performance 3.

“Em toda palavra há qualquer coisa que fica por exprimir” (Giorgio Agamben)

“Repara bem no que eu não digo”, escreve o poeta Paulo Leminski. Reparar bem, não dizer: um entre. Tentamos reparar no que o outro não diz. E nos pegamos, inseguros, tateando por pistas, soltas, efêmeras. Meias-verdades. Quase verdades. “Verdades” na efemeridade de quando são ditas. “Verdades” de uma enunciação. Queremos verdades – um pouco mais – perenes. E nos pegamos tentando mensurar: quanto tempo dura uma verdade? 1

Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Pesquisador com bolsa produtividade do CNPq, Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE, coordenador, e-mail: [email protected] 3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), email: [email protected].

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Para além das palavras, somos assombrados por ideias de verdades do corpo. “O que aconteceu? O que há de errado?”. Muitas vezes, quando escutamos a expressão fática, “está tudo bem”, acionamos o sensível, “percebo pelos seus gestos”. Pelo seu corpo. Há algo do sensível que escapa aos nossos auto-enganos. O corpo diz e se coloca como presença, sintomas e afetos dos quais não podemos escapar. Que muitas vezes nos obrigam a desabitar nossas certezas verbais. Tecemos uma intriga em emaranhados de sensibilidades e razões. Verdade é uma ficção, nos diz Antoine Compagnon. E, como ficção, verdade é, portanto, uma névoa. Um tatear que nos coloca suspensos diante de um quadro precário de postulados. Os postulados aparecem, caminhamos. Somem, paramos. Até onde? Impossível precisar. De que adianta caminhar? Quando erramos, vagamos. Algo se afirma no próprio movimento. Efeito de presença? Não queremos a névoa. Queremos o vento que, num momento, nos mostra onde estamos. Precisa nossa localização. Diz algo sobre o caminhar. O vento: a sinceridade. Mas o vento, em sua natureza efêmera, passa. E a névoa retorna. A pergunta que assombra este texto: o que norteia a sinceridade4?

Primeiro assombro: sujeitos e contextos sinceros Neste primeiro momento, revisitamos “Sincerity and Authenticity”, de Lionel Trilling (1972), texto que serve como base para pensar que a sinceridade5 atravessa obras que lidam com a noção de experiência, pensando aqui experiência como o conjunto de fenômenos vividos e organizados em valores que estruturam o indivíduo, inaugurando sua subjetividade e lhe posicionando em relação ao mundo. A sinceridade, portanto, se encontra na ordem de 4

Mas não seria sinceridade um conceito por demais difuso? Na sua natureza de “jogo”, a sinceridade seria o constituinte de atribuição de valor à performance neste jogar. E ser difuso ao jogar é parte integrante da própria performance. 5 Há versões que afirmam que a sinceridade teria sua origem latina em antigos marceneiros romanos que, para ocultar imperfeições surgidas no talho de móveis de madeira, colocavam ceras, que, à primeira vista, faziam que numa primeira “visada” esses móveis parecessem “perfeitos”. Quando a técnica se tornou usual, consumidores mais exigentes passaram a pedir peças sin cera (“sem cera”). Esta etimologia da palavra “sincero” se alia à origem latina do adjetivo sincerus, junção de “sin” (“um só”), com “cerus”, que se desenvolve (CUNHA, s/d).

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uma partilha entre sujeitos, um sensível que articula subjetividades dentro de experiências culturais6, reorganizando padrões cognitivos e reconstruindo valores dentro de novas poéticas dos campos sensíveis. Se pensarmos que a experiência é uma ação de experimentação direta, ou seja, uma espécie de processo na dimensão prática da vida; a sinceridade estaria na ordem do processo, de um constituinte do fazer performático que mantém atados ou frouxos os elos entre os sujeitos. Aqui, a argumentação de Trilling nos leva em direção a Gumbrecht: a sinceridade como possibilidade de desvelamento, o abrir-se do tempo para a presença no espaço. “Sugere-se, por exemplo, que concebamos a experiência estética como uma oscilação (às vezes uma interferência) entre ‘efeitos de presença’ e ‘efeitos de sentido’”. (GUMBRETCH, 2010, p.22) Pensamos a abertura da sinceridade como afirmação espacial do sensível. “Esse sentimento parece ter sua origem na experiência de que o corpo é capaz de um comportamento complexo que a consciência não consegue permitir ou controlar”. (GUMBRETCH, 2012, p.110). De acordo com Trilling, a sinceridade é constituinte do pacto de verossimilhança no fazer das ações. Na aparência, atributo e probabilidade de estar mais perto da verdade, o autor nos encaminha para pensarmos o sujeito sincero: ou o indivíduo capaz de nos atar ao pacto de verossimilhança no que é postulado. Mesmo a verossimilhança, naturalmente, é constituinte de uma relação ambígua entre imagem e ideia. Portanto, a sinceridade seria um laço entre imagem e ideia atado pelos sujeitos e que pode ganhar diferentes contornos de acordo com o momento histórico em que se pensa a mímese. A noção de sujeitos “atados” nos direciona para uma tradição sobre a sinceridade investigada por Lionel Trilling. Aquela que não ignora, naturalmente, a figura do sujeito sincero, mas aciona refletirmos sobre os contextos de recepção – culturais - em que se dão os pactos entre estes sujeitos. Próximo de pensar a sinceridade como um código profundamente enraizado na Estética da Recepção, o autor parece nos dar uma guinada antropológica sobre a sinceridade, na medida em que discerne disposições ligadas a modos de viver, habitar e reconhecer, que são constituintes de valores – e, portanto, centrais nos engajamentos entre

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Ao pensarmos subjetividades e, portanto, sujeitos, estamos circunscrevendo tais premissas dentro de um lastro também antropológico. Como atesta Vladimir Safatle: “regularidades esperadas nas capacidades cognitivas, expressivas e judicativas dos sujeitos”. (SAFATLE, 2012, p. 2)

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sujeitos – no tocante à sinceridade. Trilling está se referindo a “ordens sinceras” que emergem nos fazeres culturais, nos hábitos, nas relações sociais. Quando circunscreve a sinceridade na Teoria da Literatura, Lionel Trilling nos chamar atenção para a dimensão sincera dos textos e das linguagens. Ao investigar, por exemplo, como autores do campo da literatura utilizam cartas e diários íntimos como unidades ficcionais em suas obras, tem-se aqui um constituinte da sinceridade que parece estar “tatuada” em algumas disposições materiais, evocando a discussão não somente sobre sujeitos e contextos em que pactos de sinceridade são construídos, mas colocando em relevo que os textos constituem, em si, ambientes nas quais uma certa dimensão sincera é negociada. Nossa argumentação, ao evocar Trilling, visa mapear “clareiras” na névoa difusa do conceito de sinceridade. Para avançar na problemática, para além de categorias de sujeito, contexto e texto, Lionel Trilling propõe uma leitura em perspectiva da sinceridade a partir da ideia de autenticidade – mais um assombro sobre o nosso conceito.

Segundo assombro: sinceridade e autenticidade

Ao chamar atenção para o ideal de sinceridade, Trilling nos coloca diante de implicações morais. Ou nos confronta com a autonomia do indivíduo tão alardeada nos séculos XVIII e XIX. Da noção de sinceridade, emergem questões como máscaras, expectativas e paradigmas pessoais: o espelhamento do indivíduo diante de si e do outro. E, evocando Rousseau em suas “Confissões”, temos o rompimento de uma certa polidez social, a amoralidade e comportamentos desviantes como operadores de uma lógica sincera. Lionel Trilling está aqui dimensionando a sinceridade numa exterioridade comportamental: uma conduta que se “classifica” como sincera e, portanto, como um ato de virtude. Evoca-se então a sinceridade como da emergência da presença, do irrupção pontual de possibilidades sensíveis diante do desenrolar temporal das máscaras que se afirmam ao longo da história. É nesta ordem que, colocada em perspectiva, a ideia de sinceridade se articula à noção de autenticidade. Para o autor, “o ideal de autenticidade começa a emergir quando é reconhecido que a pessoa sincera se auto-ilude e se identifica com um sujeito socialmente produzido”. (TRILLING, 1972, p. 42) ou seja, a sinceridade seria uma partilha sensível que emerge do indivíduo, coloca em perspectiva sua moral e aciona formas de engajamento que

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corroborem de um mundo comum. Já a autenticidade estaria na ordem de um “sentimento de ser” que dependeria da “opinião de outras pessoas”. Tais contornos conceituais moldariam o que se chama de criação artística. E é sobre a criação artística que recai nosso interesse no mapeamento entre as perspectivas de sinceridade e autenticidade – uma vez que a nossa intenção debruça-se sobre a investigação destes conceitos em ambientes midiáticos. Os ambientes midiáticos são envolvidos por aspectos afetivos, não somente em dimensões orgânicas ligadas à capacidade que os corpos possuem de afetar e serem afetados por estímulos sensoriais, mas também em torno de uma rede de agenciamentos sensíveis e de sentidos, ou seja, como uma “complexa relação de investimentos” que também nos permitem pensar possíveis interrelações entre sinceridade e autonomia. Se pensarmos que a criação artística é um invólucro conceitual da auto-definição, “o artista se torna o paradigma do que as pessoas classificam como auto-definição. O artista, de alguma forma, passa a ser o paradigma do ser humano, como o agente da auto-definição”. (TRILLING, 1972, p. 93) No esteio da autenticidade, o artista, portanto, é agente de heroísmo, da essência da condição humana e venerado como “vidente” ou criador de valores culturais. Um artista autêntico, aos olhos dos outros, é fiel a si e à sua originalidade e trata-se de algo que somente o próprio artista pode dispor e descobrir. Articulando-se, centrando-se, o artista vive num processo de auto-definição , uma vez que, aos olhos de outrem, potencializa o que é “dele” – dentro de uma certa tradição moderna de autenticidade. É possível desde já pensar a própria produção artística como um agenciamento performático que, além do ato do fazer, engloba o corpo do artista, seus traços biográficos que envolvem jogos entre sinceridade (desvelamento) e autenticidade (posicionamento). Emergências do corpo criador como efeito de presença. Se producere quer dizer, literalmente, “trazer para diante”, “empurrar para frente”, então a expressão “produção de presença” sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades da comunicação é também um efeito em movimento permanente (GUMBRECHT, 2010, p.38) Estamos filiados aqui ao que Walter Benjamin (2000) chama de autenticidade, ou, disposições extensivas de originalidade, unicidade na evocação do conceito de aura. A autenticidade seria fundada naquilo que a obra teria de originariamente transmissível – duração material e testemunho histórico. Ambos repousam sobre noções de originalidade e autoridade. Sublinhamos aqui dois aspectos do conceito de Benjamin que nos ajudam a

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circunscrever melhor nossa perspectiva sobre a autenticidade: a materialidade e a história. Se a sinceridade é da ordem do efêmero, de um enunciado que se forma e se dissipa diante da partilha de um sensível; a autenticidade se constitui historicamente a partir de disposições materiais, de vestígios, de rastros. A autenticidade seria, portanto, a reiteração da sinceridade, sua repetição, sua dobra, que estaria ambientada num determinado campo, a partir de regras que inscrevem modos de agir e partilhar que levem a postulados sobre a dimensão autêntica. Sem cair em binarismos redutores é possível articular a sinceridade como da ordem da presença, inscrita nas coisas, corpos e objetos artísticos, enquanto sua reiteração social transfigurada em autenticidade é da dimensão social do sentido, do tempo. Essa articulação pressupõe um jogo entre a materialidade da produção artística e sua absorção como dispositivo através de instituições, da crítica e das próprias teorias da arte e comunicação. Também é possível rearticular a efemeridade do objeto ou sujeito sincero a possibilidades de profanação dos espaços institucionais reservados à autenticidade: os museus e seus congêneres. “Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é”. (AGAMBEN, 2007, p. 73). Profanar é um ato de restituição ao mundo humano daquilo que foi subtraído de seu convívio, transferido para uma esfera divina, separada. “A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde sua aura e acaba restituído ao uso”. (AGAMBEN, 2007, p. 68). Se estamos discutindo aqui reiterações sinceras e materializações sobre autenticidade, nos encaminhamos para a dimensão contextual que nos interessa neste momento de pesquisa: a indústria da música, de maneira mais detida, a música pop ou popular massiva. O pop, como se sabe, articula possibilidades de alta circulação midiática, envolvendo e sendo envolvido como aquilo que “é pop”, “é consumido em escala ampla”, “vira hit” e, ao mesmo tempo, carrega a desconfiança de supostas homogeneizações de padrões produtivos. Surge aí uma certa suspeição em relação à “sinceridade pop”. Mas isso talvez seja das contradições inscritas em quaisquer textos, subjetividades e objetos que se tecem em ambientes midiáticos. Há tensões que perpassam os valores culturais associados a ideia de pop como popular. Usualmente, o termo popular é utilizado, ao mesmo tempo e de maneira contraditória, como vivência que se diferencia da “cultura de elite” (da música dita “erudita”)

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e carrega consigo tanto noção de resistência quanto de cooptação, o que nos permite articular jogos entre os aspectos sagrados (auráticos) da música e possíveis apropriações mundanas (profanas). “A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente do sagrado”. (AGAMBEN, 2007, p. 66). Algumas passagens-imagens musicais para articularmos “aura” e “profanação”: a queda da diva da música popular, no palco; uma inesperada derrapagem musical de um exímio músico; a detenção por uso de drogas de uma estrela que se diz “limpa”. Atos que vazam a acepção de “música popular”.

Se as formas de cultura popular comercial disponibilizadas não são puramente manipuladoras, é porque, junto com o falso apelo, a redução de perspectiva, a trivialização e o curto-circuito, há também elementos de reconhecimento e identificação, algo que se assemelha a uma recriação de experiência e atitudes reconhecíveis as quais as pessoas respondem. O perigo surge porque tendemos a pensar as formas culturais como algo inteiro e coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias, jogam com as contradições, em especial quando funcionam no domínio do popular. (HALL, 2003, p. 256)

O “jogo” da “sinceridade pop” pressupões gradações e o aparecimento de brechas que impossibilitariam uma dualidade essencialista entre expressões musicais que seriam “totalmente cooptadas” ou “profundamente autênticas”. As formas de expressão da música pop pressupõem abertura para popularização de partilhas sensíveis que podem ser ao mesmo tempo inclusivas (quando conectam ouvintes e sensibilidades dispersas), exclusivas (quando funcionam como formas de reivindicação de distinções sensíveis), bem como excludentes (quando o global pode servir como forma de desqualificação do local). O conceito de autenticidade já detém uma tradição nos Estudos Culturais, notadamente a partir de uma discussão sobre cânone e valor em contextos específicos, especialmente, nas indústrias da cultura. Grande parte das análises que se utilizam do conceito de autenticidade adotam a premissa dicotômica da modernidade: autenticidade em oposição a cooptação– num contexto produtivo das indústrias culturais (ou criativas). Assim, usualmente, valor, quando se pensa a música pop, é trabalhado dentro de uma tradição semiótica em que acionamento do que está ausente seriam traços fundamentais para sua compreensão. Por outro lado, como demonstra Groosberg (2010), nem todo valor é

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construído de maneira opositiva. Por exemplo, o inconsciente freudiano só existe através do consciente, é mais uma valência do que relação oposicional. No caso, da música chamada de periférica, pode-se imaginar que hoje, antes de ser da ordem de uma oposição a um centro fixo, trata-se de uma agenciamento relacional de um centro virtual que, num dado momento, serve para caracterizar uma certa “sensibilidade periférica”. Em alguns momentos, gêneros musicais como o funk e o tecnobrega são valorados quase que exclusivamente por suas inovações em torno de novos modos de circularidade e afirmação identitária das periferias. Apesar de produtiva, de uma maneira inversa, essas “valorações” acabam por reforçar a autonomia de “músicas pop-cultdescoladas” em termos de valor estético, enquanto para os chamados “gêneros periféricos” restariam valor econômico e social. Para além dessas dicotomias, como demonstra Soares (2012), gêneros como o brega recifense acionam ao mesmo tempo questões de capilaridades em diferentes conformações de cidades como Recife, ao mesmo tempo em que reivindicam, às vezes de forma belicosa, performatizações corporais. E não teríamos como separar esses elementos, da própria valoração econômica dessa produção musical. Mercados, ao contrário do que pode parecer a um certo discurso macroeconômico, não são entidades autônomas, eles são construídos e se relacionam não só com aspectos locais, globais em suas variadas relações históricas e sociais, como também com outras valências sensíveis. Ultrapassando os aspectos duais que tradicionalmente estão conectados a ideia de valor, percebe-se então uma dinâmica articulada dos valores em torno da música que operam valor de uso (o que se faz com a música, como se coleciona artefatos musicais, agenciamentos afetivos), valor de troca (interrelação com seu valor econômico e posicionamento histórico-social), valor cultural (identitário) e valor estético (conflitos e partilhas sensíveis). Desse modo, o reconhecimento ou desqualificação do valor de uma dança, do preço dos discos, da performatividade de um gêneros musical, dos aspectos afetivos e econômicos de uma apresentação de música, bem como a circulação gratuita de música e os modos de escuta compõem essa dinâmica valorativa do universo musical. É no bojo da indústria da música que as dicotomias sobre autenticidade e cooptação se materializam – embora saibamos dos limites destes conceitos. Temos, de maneira bastante definida, ordens produtivas no mercado musical que articulam posicionamentos, trajetórias e

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lugares hegemônicos para alguns artistas.

Mas aqui, propomos adentrar à dicotomia

autenticidade x cooptação tentando enxergar brechas (um “entre”) no espaço entre estas noções “duras” e estanques de larga tradição dentro dos Estudos Culturais. Seguir na dicotomia excessivamente valorativa de autenticidade x cooptação significa obliterar as nuances existentes entre tais pólos classificatórios. Portanto, trazer à tona a ideia de sinceridade se faz presente na medida em que trata-se de um dimensionamento de máximas valorativas que jogam para a performance, para um “efeito de presença” do corpo, a atuação, as condições em que se encenam e se vivem discursos. A noção de sinceridade, na medida em que convoca um corpo e uma biografia, parece trazer à tona uma dimensão performática, corpórea e material, para conceitos hegemônicos dentro das análises sobre música. Estamos falando da capacidade que a presença possui de materializar espacialmente o encontro de corpos antes de serem reiterados em discursos de autenticidade. Seguimos a seguir mais um assombro sobre nosso conceito.

Terceiro assombro: sinceridade na performance

Sinceridade é um conceito que se articula a um movimento do corpo e, portanto, a uma performance. A sinceridade atribui valor à performance: a exemplar execução de uma atuação, de um ato que é, em si, o instante, “efeito de presença” anterior a sua conformação como sentido. O momento em que as coisas são ditas, como são ditas, sob que égide. Atribuir sinceridade a uma performance, nos parece, está na ordem de tocar uma superfície. Um corpo, um rosto: em forma. O que chamamos de performance

é o momento de uma exposição. Um corpo se expõe e ao se expor cria a situação na qual se expõe, não sem, no mesmo gesto, criar-se a si mesmo. Uma forma aparece e ganha forma, não previamente, mas à medida em que aparece (BRASIL, 2011, p. 5)

A definição sobre performance de André Brasil, na ênfase em torno da efemeridade, da aparição, da dinâmica de uma forma, de seu movimento – lento – de criação sobre o corpo, nos parece em consonância com a tradição sobre a performatividade, ou seja, a ação da performance. Aqui é particularmente importante a noção de movimento: uma vez que,

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perscrutar sinceridade, significa se deparar com a sensibilidade dos atos, das ações, dos gestos. Um corpo em ação gerando uma camada sensível sobre a qual repousam crenças. Por isso a noção de movimento – e o contínuo entre performatividade e performance – na base de ligação entre indivíduos. Neste sentido, cabe pensar a performance recuperando um termo pouco explorado nos escritos de Paul Zumthor: a de que performatizar significa buscar uma “forma improvável”. A ideia de Zumthor parece trazer, na noção de improbabilidade, o acaso. E, portanto, o jogo. Não se oblitera a premissa de que performatizar é parte integrante do jogar, mas evidencia-se que nos interessa, corroborando com Zumthor, “menos uma completude do que um desejo de realização”. (ZUMTHOR, 2007, p. 33) O que seria, então, a sinceridade na performance? Um movimento, uma passagem. E enfatizamos, portanto, a ideia do “em-formação”, do contínuo, uma vez que, como comentamos anteriormente, a sinceridade é da ordem do efêmero, do fugidio, que poderá ser reiterada. A sinceridade é uma superfície-devir que nos convoca a um estado que nos conduz por imagens compostas por postulados precários. Façamos aqui uma pausa para decantar conceitos que estamos colocando em operação. São eles: performance e performatividade. Não vai aqui qualquer tentativa de estancar o fluxo dinâmico destas palavras, mas circunscrevê-las na forma com a qual lidamos com elas das nossas observações sobre a sinceridade. Se a sinceridade caracteriza-se por um efêmero e, portanto, aparece diante de circunstâncias enunciativas, estes dois desdobramentos da performance são indícios de materialização da ação sincera. Tomo aqui portanto:

1. performance como o aqui-e-agora de um corpo, um efeito de presença em um contexto (GUMBRECHT, 2012), numa lógica de atuação, que estaria articulado tanto a uma premissa de construção do eu na vida cotidiana (GOFFMAN, 1975) quanto da uma busca por uma forma (ZUMTHOR, 2007) e de uma lógica do encontro (RYNGAERT, 2009), da atuação para outrem ou como o outro condiciona/modula regras de atuação.

2. performatividade como a ação, movimento, gesto, o recorte da matéria-corpo que coloca em síntese intenções (DORT, 2010), a energia da presença, disponibilidade, a escuta, a ingenuidade ou a sagacidade, a capacidade de apreensão dos códigos no espaço potencial do

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enunciado (BARRET e LANDIER, 1992), reação, imaginação, cumplicidade, júbilo, conflito, adesão.

Emerge, portanto, a noção de jogo. Ou como situa Jean-Pierre Ryngaert

o jogo desliza nos espaços mais ínfimos entre dois atores, dois jogadores; ele existe, de maneira precária, apenas no movimento que o faz nascer, no jorro do instante que possibilita seu surgimento. Se a língua falha para qualificar com exatidão esses fenômenos, ela arrasta, contudo, algumas expressões já prontas que escapam ao vocabulário teatral. (RYNGAERT, 2009, p. 53)

Após estes assombros conceituais, queremos deslocar nossa argumentação para um contexto específico: o debate sobre a cultura da autenticidade nas lógicas midiáticas para apontar uma reconfiguração na noção de sinceridade, em específico, no ambiente musical.

Sinceridade em contexto de alta visibilidade

Gestão de imagem, aparecimento, desaparecimento, memória, esquecimento, processos instantâneos de celebrização, fama, ocupação estratégica de espaços midiáticos, personagens na TV, avatares em redes sociais: no contexto de alta visibilidade (PEREIRA, 2005), o biográfico passa a ser um valor e a funcionar como artefato de subjetivação das interações. A “intimidade à distância” (GIDDENS, 1991) já apontada desde a nossa relação com astros do cinema, artistas de TV, da música e da indústria do entretenimento, em geral, ganha contornos ainda mais intensos diante das redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, entre outras) e aplicativos dispostos em dispositivos móveis (Whatsapp, Tinder, Grindr, etc). Noções como proximidade e distância são relativizadas, assim como a própria produção da presença (GUMBRECHT, 2004) passa a integrar um circuito que atravessa os meios de comunicação, vaza por redes wifi, adentra aplicativos móveis e nos coloca diante de um quadro cada vez mais complexo de interações – convocando, portanto, a necessidade de novos esboços teóricos capazes de funcionar como chaves de interpretação de fenômenos contemporâneos. Ao mesmo tempo em que se vive o contexto de alta visibilidade, onde os critérios para entrada, ocupação, gestão e duração de indivíduos no espaço midiático nem sempre são

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claros (reality shows, competições musicais, “achados” de produtores, etc são formas usuais de “habitar” o midiático), coloca-se em questão, sobretudo, a noção de talento como condição para a ocupação de indivíduos na mídia. Por isso, num contexto de alta visibilidade, também se acentuam as estratégias para gerar acesso e duração nestes espaços. Celebridades altamente visíveis, em geral, estão ancoradas por uma invisível “indústria de celebridades” (que envolve assessores de imprensa, de marketing, publicitários, produtores de conteúdos para redes sociais, entre outros) que são fundamentais para manter em pleno funcionamento o star system e a indústria do entretenimento no mundo. Desenha-se portanto um curioso quadro de esconder-revelar, aparecer-desparacer do espaço midiático que acentua o interesse e a “magia” pelas figuras célebres da cultura do entretenimento. A “ascenção do rosto público” no século XVIII, gerando um “modo público de ser elaborado por novos idiomas do corpo, critérios de notabilidade e estilos de comportamento” (ROJEK, 2008, p. 112) na sociedade urbana, ancorou possibilidades de acomodação do “tônus de interação” (GOFFMAN, 1975) fazendo com que a notabilidade seja um processo que envolve dotes artísticos e pessoais, mas, frequentemente também, competência e gestão na forma de gerenciar indivíduos nos ambientes midiáticos. Portanto, no atual momento de alta visibilidade, parece oportuno trazer à tona o conceito de performance como aparato teórico para a compreensão dos fenômenos de celebrização na indústria do entretenimento. As discussões em torno da performance em contextos de alta visibilidade nos convoca a pensar sobre o que Charles Taylor chama de uma “cultura da autenticidade”, ou seja, um contexto tão volúvel de questionamentos acerca dos critérios de existência dos indivíduos nos ambientes midiáticos que se trava uma busca incessante por vestígios, traços, indícios de autenticidade nas aparições destes indivíduos – ou seja, em suas performatizações midiáticas. Neste sentido, uma cultura da autenticidade sustenta o subjetivismo moral, uma vez que “as posições morais não estão de forma alguma baseadas na razão e na natureza das coisas, mas são, em última instância, adotadas por cada um de nós porque nos encontramos atraídos por elas”. (TAYLOR, 2011, p. 28) Neste sentido, a razão não pode julgar as disputas morais, aumentando assim – nas palavras de Taylor -

“a escuridão acerca do ideal moral de

autenticidade”. Vive-se, portanto, uma espécie de liberalismo nas lógicas de atribuições de valor das performances.

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Faz-se necessário então pensar que espécie de jogo estamos acionando quando falamos de uma “experiência” em que emerge a sinceridade. Como todo jogo, há uma motivação inicial: a escuta privada, ir a um show, biografar uma estrela, ouvir música parra arregimentar noções de si, apresentar-se ao mercado, etc., mas quando algo se desvela (ou revela-se como corpos que se tocam), suspendem-se momentaneamente as motivações. Nesse sentido, nesse ir e vir, emerge um “estado de suspensão”: encontro de corpos acionados pelo sensível, anterior, mas também disparador das relações de sentido atreladas à autenticidade. Atos que se “colam” a gestos, aparições gerando performatividades que buscam, também, apreender a sinceridade – uma crença, mesmo que efêmera – naquela vida que se desvela. Mesmo porque, a biografia é a escrita da vida, a emergência de traços que pressupõe uma criação de si-próprio. Mas será possível antever aí valências para além das performatividades reiterativas que “naturalizam” trajetórias e mitos de origem? Parece-nos fácil, mas cômodo, articular de modo rígido a construção de “auras”; templos sagrados que afastam ídolos e sujeitos midiáticos do sujeito qualquer, a escuta comum que trespassa o pop. Por outro lado, o bios não se inscreve só em dispositivos. O chiste, o deslize e “a vida ordinária” materializam “espaços comuns”, partilhas possíveis de sensibilidades que podem fazer retornar ao mundo humano, profano, seres que parecem habitar o divino mundo do pop. É desse desabitar, de todos sermos antes de tudo, seres viventes, que acionam, mesmo que em uma epifania fugidia, a sinceridade como um efeito de presença que pode tornar humano, mesmo que momentaneamente, o mais arredio dos “deuses” do star system. “O qualquer que está aqui em questão não toma de fato, a singularidade na sua indiferença em relação a uma propriedade comum (a um conceito, por exemplo: o ser vermelho, francês, muçulmano), mas apenas o seu ser tal qual é “ (AGAMBEN, 2013, p.10). A sinceridade presente num corpo, na voz, no olhar dos que atuam criando a si mesmos como engrenagem de sobrevivência no ambiente midiático. Nascimento, crescimento e morte de uma performance. Uma vida que se propõe durar o tempo do interesse público. Como diria Drummond, “a vida, apenas, sem mistificação”. É possível? Talvez naquilo que dura um instante antes de ser percebido como tal.

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Desdobramentos: performances na música pop

O jogo de vestígios da sinceridade em ambientes de alta visibilidade se traduz como problema de pesquisa de como se articulam valores e valências sensíveis (FRITH, 1996; POWERS, 2004; SANJEK, 2005; DOUGHER, 2005) nas ambientações da música pop e, de modo amplificado, na cultura pop. Investiga-se, portanto, performações sinceras em performances de músicos; nas lógicas de fãs destes artistas articulados em redes (fandoms) e destas experiências performáticas enunciadas em espaços de enquadramentos sensórios (como escutas privadas, shows, eventos ou rituais midiáticos), a seus sentidos e linguagens retroalimentando disposições para outras experiências. Toma-se aqui a noção de performance na música como dinâmica corporal de sonoridades e suas ambientações em espaços de enquadramentos sensórios, mediatizados a partir de faixas, canções ou álbuns fonográficos (FRITH, 1996; AUSLANDER, 2012), reconhecendo que a performance é um efeito de presença espacial a ser investigadas como partilhas sensíveis na ambientação música pop. O debate recai em torno da dimensão estética das experiências performáticas, suas formas de produção e reconhecimento a partir de premissas de ordens individuais ou coletivas. Ao longo desse caminho é importante observar diferenciações dinâmicas em relação às descrições de performance musical ou materialização da ambiência pop. Aliás não se trata de performance em sentido uno e singular e sim, de percursos de performatização. David Hesmondhalgh (2013), citando o musicólogo Thomas Turino, desdobra esses mapas em pelo menos quatro diferentes “campos da atividade musical”:

a) performance participatória, que envolve partilhas a partir de um lugar comum entre músico e público; b) performance presencial, em que há divisões estabelecidas entre público e platéia; c) discos de alta-fidelidade, em que há a emulação nas gravações da sensação de uma performance ao vivo; d) arte de áudio em estúdio, que ao invés de emular a execução ao vivo, privilegia a música como objeto do fazer a partir dos dispositivos tecnológicos de gravação.

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Claro que o esquema parece apresentar lacunas mas não deixa de ser um bom ponto de partida para que se possa refletir sobre a dinâmica desses “percursos de performatização”, em que é possível acrescer o mapa com a ideia de performances da execução (incluindo aí cantar de modo solitário ou como parte de um público, dançar), da escuta (individual e coletiva); bem como amplificar o eixo das gravações, somando-se a força da materialização audiovisual das gravações nos dias atuais, bem como de tessituras da intriga, inclusive biográficas, que funcionam como dispositivos de memória acionados em boa parte da escuta para vivências em torno das possibilidades de acionamento de “experiências sinceras” e “sentidos de autenticidade”. Cabe lembrar também que a valorização da performance e da sinceridade como portas para experiências estéticas da música não se ligam somente a uma suposta positividade diante da música. A partilha também pode vir envolta em aspectos negativos e frustrantes quando, por exemplo, nos sentimos ludibriados diante de encenações forçadas da sinceridade, somos arrebatados fisiologicamente por músicas que não gostamos, somos obrigados a partilhar espaços acústicos com sonoridades que nos são impostas, quando os excessos mercadológicos parecem dominar o trajeto audiovisual da música, somos arrebatados em tal ordem por abismos narcísicos diante da escuta que não usufruímos das potências de partilha do sensível supostamente abertas por um ou outro gênero musical. No caso em específico da música pop, reivindica-se aqui a premissa de que escuta, participação em um show ou partilhas de gosto em torno de um artista abre possibilidades de “enquadramentos sensórios” para um tipo particular de experiência em que irrompem valores específicos no campo da música nos ajudando a entender que a relação entre voz e corpo precisa ser pensada para além de uma dimensão material, através de leituras que privilegiem a sinceridade emergindo do contato (a co-presença): um sensível que vaza ao gosto, afetando escutas que adentram uma espiral em que a vida do fã toca a vida do artista materializada na performatização de uma canção entoada num determinado número musical. Acionando Commolli (2007), em seus escritos sobre cinema, pode-se imaginar que a passagem de um indivíduo ouvinte para o público (massivo) é um trânsito político que articula sujeito e coletividade. A música pop se configura ao mesmo tempo em que se desenvolve a indústria da música e seu consumo em ambientes de alta visibilidade. Deste modo, a música, de maneira ainda mais capilar que o cinema” (...) trata a massa do público

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como uma coleção de indivíduos, e cada um como um sujeito dividido, a uma só vez não rigorosamente conforme ao grupo e não reconciliado consigo mesmo”. (COMOLLI, 2007,p.129). Assombro final: “Que seja sincero enquanto dure” Tomemos então, a sinceridade como uma movência que articula vidas – o cantor, o fã/espectador. Um encontro de alguém que diz algo, eu acredito, estou tocado, me emociono. Uma experiência conectada as singularidades quaisquer, mas que nos coloca em uma partilha sensível entre ser pop e original. “A ética começa somente lá onde o bem se revela não consistir em outra coisa senão em uma apreensão do mal, e o autêntico e o próprio, não ter outro conteúdo senão o inautêntico e o impróprio”. (AGAMBEN, 2013, p.21). Verdade? “Mentiras sinceras me interessam”, parece nos dizer Cazuza. Ou, parafraseando Vinicius de Moraes, “que seja sincero enquanto dure” esse vínculo: o que quer que seja que existe entre nós neste emaranhado de meias-verdades.

Referências AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que Vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

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