Micro-utopias dos sem terra: A re-imaginação de subjetividades políticas

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Micro-utopias dos sem terra: A re-imaginação de subjetividades políticas Alex Flynn

Durham University, UK

Apresentação Este artigo trata do aspecto do Movimento dos Sem Terra (MST) que me interessa mais: as atividades do sector de cultura e particularmente, o fenômeno da mística. No sentido mais simples, uma mística é um performance de 5 a 10 minutos, sem palavras, em que os membros do MST se expressam sobre vários assuntos, tais como a repressão que eles sofrem, democracia, reforma agraria, politicas neoliberais. Argumento que uma leitura da mística através da lente da teoria de ‘estética relacional’ pode ser produtivo a fim de entender teorias de mobilização social. E nessa artigo queria destacar porque eu considero particularmente relevante trazer uma teoria como a da estética relacional e mobilizá-la fora do campo das artes. A direção da minha pesquisa está cada vez mais orientada pela ideia de que a teoria da arte e a teoria antropológica mostram semelhanças importantes e se atravessam bastante. Parte do envolvimento antropológico com a arte tem tradicionalmente se preocupado a classificar a “arte primitiva” e a “estética” (Gell 1996), pensado em termos de “autenticidade” (Morphy 1989), contornado o “campo da arte” (Bourdieu 1984). Em contrapartida a tais preocupações, minha linha de pensamento se propõe a discutir novas abordagens teóricas e etnográficas para as interseções entre arte e antropologia. Os recentes desenvolvimentos nas teorias e práticas da arte contemporânea se colocam cada vez mais em diálogo com as teorias de socialidade e, portanto, ligadas a interesses antropológicos fundamentais. Dessa forma, James Elkins argumenta que “ver é metamorfose, não mecanismo” (1996) e vou destacar hoje a posição do Nicolas Bourriaud (1998) ao afirmar que as obras de arte devem ser julgadas não por critérios de ‘beleza’, mas pelo seu potencial de unir as pessoas em espaços temporários de diálogo e significação. Me interessa então explorar como abordagens como essas podem estimular o estudo antropológico de fenômenos como os programas de revitalização urbana, construção de novos mercados, movimentos sociais, artivismo, protestos, e novas subjetividades políticas... sendo que esta ultima é o foco principal desta palestra. Aí o projeto convida as nossas disciplinas a ir além do trabalho cujo objetivo principal é entender o que uma obra de arte representa a fim de, por exemplo, perceber as dimensões transformadoras da presença nas relações sociais que a arte cria. O objetivo dessa pesquisa sobre o MST é, portanto, não apenas aplicar teorias  

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antropológicas para situações etnográficas caracterizadas pela produção artística, mas fomentar novas teorias antropológicas através do envolvimento com as abordagens conceituais que atualmente sustentam a produção artística em suas diferentes expressões. Uma tal teoria antropológica é a ideia de mobilização social. É uma das questões mais antigas e mais difíceis do campo para entender como dimensões de expressão individual e de empoderamento coletivo se atravessam e se colidem. Na verdade é, de fato toda a razão por trás da recusa do movimento Occupy citar um manifesto claramente definido. Occupy acredita numa horizontalidade que deriva do conceito de rizoma do Deleuze e Guattari, a falta da hierarquia que Bourriaud também defende no Estética Relacional. A projeção de micro-utopias – espaços temporários, sem líderes, efêmeros, totalmente não-utópicos deriva do pensamento do Deleuze e Guattari e é totalmente em desacordo com a hierarquia vertical do MST, que tem como premissa líderes, objetivos definidos e projeções utópicas de um ideal de uma nova sociedade. Então na mobilização da ideia de micro-utopia no contexto do MST, o objetivo é desenvolver uma teoria antropológica em torno de mobilização social, proporcionando um contexto através do qual podemos entender melhor como até mesmo dentro de estruturas que se consolidaram, ainda há espaço para um grupo de pessoas elaborarem significação com um significado individual. Fiz esse trabalho de campo entre 2007 e 2009 em Santa Catarina e na etnografia seguinte resumo uns exemplos da mística do MST. *** Estou no encontro estadual do maior movimento social na América Latina. Muitas pessoas vieram de todas as regiões de Santa Catarina, Brasil, em busca de ser reenergizado, para planejar a estratégia de movimento com a liderança, ou apenas para conversar com antigos companheiros. Um monte de gente, um monte de conversas; o chimarrão, as imagens do movimento, as fitas, as bandeiras, um grande grupo de pessoas vestidas no vermelho revolucionário do Movimento dos Sem Terra (MST) se senta na frente de um palco, uma plataforma elevada no final do salão. Nesta plataforma é uma mesa com cinco cadeiras, uma instalação sonora, e um par de tripés de microfone. Pendurada atrás do palco é uma enorme bandeira do MST, e ao lado, uma bandeira Brasileira ainda maior, pelo menos quatro metros por três. Na parte dianteira da plataforma são penduradas bandeiras menores; as bandeiras de outros movimentos com o qual o MST está em solidariedade, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Em frente desta plataforma, antes da primeira fila de cadeiras, é um espaço deixado claro. A salão sendo totalmente lotado, é claro que este espaço está deliberadamente vazio. Cada dia do encontro estadual começa com uma mística. Na reunião parece que o papel da mística é animar o público, como também reunir todo mundo no mesmo lugar. Estou empolgado a ver a performance; o MST é conhecido por sua mística e eu terminar minha café da manhã para ir para o salão para dar uma olhada ‘nos

 

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bastidores’. Não há muitas pessoas presente ainda, só alguns membros do MST e alguns líderes. Parece que eles estão ensaiando e vejo o Rafa, o líder do sector de cultura, parcialmente obscurecido, atrás de uma pilha de caixas de som. Alguns participantes estão com olhos vendados e há alguém tocando uma guitarra no palco. Vejo que Rafa não está sozinho; Mariana, co-coordenadora do setor de educação está presente, também como a Teresa, a coordenadora. Com Mariana e Teresa conduzindo o ensaio, parece que tudo está indo bem. Daqui a pouco a performance começara, e o salão já está enchendo com o pessoal para o início às 8:00. A performance começa com as pessoas de olhos vendados sentindo o seu caminho através do espaço do palco, o tempo todo sendo ameaçadas por outros atores segurando cartazes de ‘Coca-cola’ ou ‘EUA’. Há também um participante que está segurando uma televisão improviso rotulado 'Globo', que ele coloca sobre a cabeça de uma pessoa de olhos vendados. De repente, a música, que até agora tem sido triste, muda de tom inteiramente, como participantes de camisetas do MST e segurando ferramentas rurais (foices de cabo longo e enxadas) entram no palco e afugentar as pessoas acenando cartazes. Depois de livrar os participantes dos atores que representam Coca-Cola e outros corporativos, as vendas nos olhos são tiradas e todos de mãos dadas e canta uma canção, junto ao qual o aplauso público e participar. Nesta performance há uma distinção muito clara entre as personagens ‘boas’ e ‘más’. Também não há nenhum tipo de interação com o público. A reação do publico só cabe ao final da performance através das palmas, tem um clima do respeito durante a apresentação. Tenho dificuldade em acordar cedo dia após dia, e não estou sozinho; há muitas pessoas que demoram a vir para o salão para a mística de abertura. Essas pessoas, inclusive eu, são recolhidas pelos organizadores e incentivados a assistir as místicas; parece importante que todo mundo esteja presente. O salão está lotado. Um jovem e uma mulher estão sentados um diante do outro no centro do palco. O jovem é humildemente vestido; chapéu de palha, bermuda e uma camiseta. A mulher está usando uma saia longa, a camiseta vermelha do MST com a imagem do Che Guevara, e uma bandana, onde que está escrita um slogan do movimento. Não fica claro o que as duas personagens representar. No redor do casal, sentado em um círculo, são outras figuras: duas mulheres detêm uma representação de uma tocha acesa; outra mulher está vestida de forma a ser identificado como um indígena. A mulher usando a camiseta do Che Guevara começa a ficar de pé e seu parceiro espelha sua postura. Ela está segurando algo em seus braços e, juntos, eles levantá-lo acima de suas cabeças. Acho que é uma boneca, mas agora percebo que é um bebê. Parece que há um significado profundo ligado a sua união, o que é reforçado quando as três mulheres que foram sentadas avançar para tocar a ‘mãe’, ‘pai’ e ‘filho’ com algo que elas estão segurando em suas mãos. Primeiro, a ‘família’ são ungidos com água, e depois com sementes e solo. A  

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encenação tem conotações religiosas fortes. Na plateia, estamos arrebatados por esta coreografia, e eu não percebo até que está acontecendo que uma menina veio para me levar para a performance. Eu noto que dois outros visitantes, um Colombiano, e uma Norueguesa, também estão sendo levados para o palco e de repente estamos caminhando ao redor e através da performance, parte da teatralidade, o público rendido performer. Como estamos atravessando lentamente o palco, mais crianças aparecem, segurando grandes desenhos de girassóis. Elas circulam em torno de toda a performance, como eu, o Colombiano e a Norueguesa também são ungidos com água, sementes e solo. No final da performance em que participei, uma menina amarra uma fita vermelha no meu pulso. Na fita estava escrito em letras pretas: XXIII Encontro Estadual MST / SC. Refletindo depois, tenho a impressão que a performance foi muito bem dirigida. Até o momento não sabia que eu iria participar, mas quando alguém me levou ao palco, tinha um papel claro para eu atuar. A fita em si parece um símbolo coletivo, mas quando a menina amarrou a fita no meu pulso pareceu para mim uma experiência intensamente pessoal. Após a reflexão, me sinto confuso se participar nessa mística foi uma performance de ser sem terra ou uma performance da minha própria transformação. *** O MST e o papel da mística Por causa do seu tamanho, o MST é dividido em vários setores e um dos setores mais importantes é o setor de cultura. Esse setor trabalha sobre a iteração e divulgação da identidade 'sem-terra' do MST, usando a Mística como sua ferramenta principal (Flynn 2013a; McNee 2005). Vários estudos apontam que o papel da mística é o de produzir uma ‘comunidade imaginada’ (Wolford 2003: 500), na qual todos os membros partilham desse sentimento comum, mesmo que muitos, provavelmente, nunca se encontrem, devido a dimensão do movimento. Logo o potencial da Mística esta em criar uma comunidade a partir de mensagens simbolicamente poderosas do mesmo jeito de uma encenação Católica. O MST surgiu a partir de movimentos da reforma agrária ligados à Igreja Católica e mais particularmente de alguns padres que foram profundamente influenciados pelos princípios da Teologia da Libertação. Os princípios da Teologia da Libertação, e a estrutura dos Mistérios são frequentemente citados como uma contribuição para a mística (Lara Junior 2005; Löwy, 2001). Os mistérios eram encenações de passos da vida de Jesus Cristo na idade media. Então, podemos constatar que a mística tá enraizada num contexto histórico, mas também num entendimento específico de performance, que se baseia na espontaneidade e na participação (Prosser 1961: 7). Assim como as performances dos Mistérios facilitaram a re-imaginação simbólica da relação de uma pessoa com Deus, é cada vez mais forte o argumento de que a mística permite aos membros do MST a re-imaginar a luta pela terra, como uma luta por uma nova sociedade. Nessa linha de pensamento afirma-se que através da mística uma nova relação com a terra é criada, na qual o membro participante  

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torna-se simbolicamente tocado pela ideia de um novo começo, estabelecendo assim novas relações com a comunidade, o ambiente, a nação e o mundo (Wolford 2010: 102). Então nesse entendimento, numa performance de um mistério, você encontraria Deus para se tornar um novo sujeito, enquanto que numa mística, você encontra um terreno para iniciar o mesmo processo de auto-cultivo ético, ou seja, um tipo de evolução espiritual. É justamente esse processo que informa minha compreensão da mística como uma ‘performance política’. A ‘política’, nesse sentido, é um espaço onde a dissidência pode ser articulada, mesmo que isso não necessariamente resulte numa mudança imediata. As dimensões de transformação individual são sutis e quero apontar que esses nuances podem ser tão ‘revolucionários’ como, por exemplo, uma ação coletiva. A ‘Performance política’ move as pessoas, e isso ocorre tanto a nível individual quanto a nível coletivo, perpassando diversos planos de subjetividade. E como esse processo acontece? Na verdade, a mística, como definida pelas lideranças do movimento delimita as forma em que essa espontaneidade pode acontecer. Por exemplo as lideranças do setor de cultura elaboraram algumas orientações para estas apresentações: 1. Mística para fins de diversão, ou para chocar não é autêntico 2. Para ser bonita mística deve ser breve e simples e incorporar símbolos, gestos e testemunhos pessoais 3. Não deve ter surpresas; ela deve ser preparada e ensaiada 4. Ela não deve se tornar a tarefa para especialistas 5. Improvisação deve ser evitada (Issa 2007: 137) No entanto o líder do MST, o João Pedro Stédile, pauta que é impossível uma institucionalização da mística: Queremos que esse sentimento aflore em direção a um ideal, que não seja apenas uma obrigação. Ninguém se emociona porque recebe ordem para se emocionar; se emociona porque foi motivado em função de alguma coisa. (Stédile e Fernandes 2000: 130) Mas então como podemos entender uma prática artística em si tão codificada e ainda assim uma forma espontânea e criativa como o MST afirma ser? Será que há de fato um espaço para a expressão pessoal, espontânea, dentro de um enredo tão fixo? E além disso, será que nesse momento podem haver conflitos entre as subjetividades políticas de membros e a identidade coletiva do movimento? Então, para ir além desse problema e oferecer um caminho para frente, proponho o conceito de “reflexividade relacional”, o qual utilizo como uma ferramenta analítica e também como uma descrição etnográfica da mística. Aqui gostaria de argumentar que através dessa lente, e juntamente com a teoria de Nicolas Bourriaud (2002) e de Claire Bishop (2004), podemos pensar a mística tanto como um projeto de auto-cultivo ético quanto como um meio de transformação  

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coletiva. Assim, ainda que essa performance monológica siga a um enredo, ali sempre há um espaço para a interpretação pessoal e, portanto, uma abertura para a expressão de subjetividades múltiplas. Múltiplas subjetividades políticas Mística foi imaginada como um espaço em que os membros do MST poderiam se expressar e através disso, se transformar. Branford and Rocha (2002) afirma que um dos grandes desafios para o MST foi convencer pessoas rurais de contextos marginalizados a transgredir e ‘cortar o fio’ das cercas das grandes fazendas. Há uma significado simbólico mais amplo nesse sentido do ‘fio’ que se manifesta de várias maneiras. Como um gesto político coletivo, ele aponta para derrubar centenas de anos de desigualdades enraizadas. No entanto, num nível pessoal, desafiar séculos de repressão significa tornar-se um sujeito ativo com um novo senso de identidade. Neste último contexto, ‘o ato de ocupar torna-se o fusível para um profundo processo de transformação de uma vez pessoal e política’ (2002: 66 grifo meu). Logo, como uma performance política, no início do movimento, a mística derivou seu poder visceral de mover as pessoas a partir das esferas internas de reflexividade que ela gerou. Participantes consideraram o significado de ocupar e conquistar terra como indivíduos, embarcando num processo de auto-cultivo ético. Nesse sentido, ‘cortar o fio’ foi uma re-imaginação coletiva de subjetividades políticas, e também uma transformação pessoal. No entanto, a vida cultural do MST não é estática e a estrutura da mística se engessou durante 30 anos do MST. Hoje o MST perdeu muito desse lado... o subjetivo. Violão, poesia, música do subjetivo... Isso move montanhas, isso transforma, muito mais que as vezes muitas palavras.i Como apontei, as dimensões de transformação numa performance política movem pessoas, e como esta citação acima do Thiago, um membro do MST, deixa claro, isso ocorre tanto a nível individual quanto a nível coletivo, perpassando diversos planos de subjetividade. Nessa conceptualização, a performance política não podem ser simplesmente ‘importada’ ou ‘lançada’ assim como uma ‘tecnologia de emancipação’. Pelo contrário, um elemento importante para a sua capacidade de emocionar as pessoas são as privadas esferas reflexivas em que as pessoas interpretam espontaneamente o que está encenado. Thiago afirma a importância dessa dimensão do que ele chama de ‘o lado subjetivo’ ao contemplar as consequências do MST 'perder' a sua mística, um processo que ele argumenta já está em andamento: Perder a mística esfria o espírito. Você perde, sei lá. A mística tira medo, a mística ela te dá um, não sei exatamente assim. Esfria, se vira muito

 

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pragmatismo. Vou lá porque vai dar lucro, vou lá porque vou pegar terra. A mística pura espírito, eu vou lá porque tem povo, gente, justiça. O pragmatismo ao que Thiago refere é sentido profundamente; dentro desta constelação de subjetividades, Thiago sugere que o MST realiza ocupações exclusivamente para conquistar mais terra, planta exclusivamente para ganhar mais dinheiro, e apresenta místicas numa maneira iterativa, não abrindo esferas que possibilitam um verdadeiro processo de auto-cultivo ético. Thiago descreve mística como ‘uma espiritualidade para a luta’ , e sendo que o movimento ‘tem perdido muita da sua mística’, como consequência, ‘o movimento se perdeu’. Estética relacional Num trabalho anterior (Flynn 2013b), apresentei um argumento baseado em torno das noções de individualismo ‘receptivo’ e ‘expressivo’. Elaborado a partir de uma etnografia sobre a nova geração, aponto que está acontecendo uma mudança na vida cultural do MST. Esses membros estão cada vez mais insatisfeitos com este tipo de individualismo receptivo, no qual estão limitados a internalizar a mística. Por conta disso, caminham em direção ao que seria um individualismo expressivo, através do qual propõem uma mudança na própria estrutura dos programas culturais do movimento, por exemplo, um grupo de rap. Gostaria de desenvolver esse posicionamento, juntando duas abordagens teóricas baseadas em compromissos profundos com a arte contemporânea. O conceito de ‘estética relacional’ de Nicolas Bourriaud (2002) argumenta que a arte tem “como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado”. Obras de arte, ou, nesse caso as performances políticas do MST, ambas produzem “microutopias”, ou seja, comunidades temporárias onde podemos ‘inventar relações possíveis com os vizinhos de hoje” (ibid: 45). No entanto, o artigo “O antagonismo e estética relacional” da Claire Bishop (2004) questiona a compreensão do Bourriaud e propõe assim um 'antagonismo relacional’, mobilizando Ernest Laclau e Chantal Mouffe. Bishop afirma que na maioria dos trabalhos que podem ser caracterizados pela estética relacional, "a estrutura do trabalho circunscreve com antecedência o resultado", apesar da retorica dessas obras ter um caráter aberto. Ou seja, uma previsibilidade do resultado. Para Bishop, o antagonismo relacional é importante porque não pretende suavizar as diferenças existentes no interior dos grupos. Nesse sentido ocorrem conflito entre pessoas, dimensões de fricção que são importantes para a elaboração de uma verdadeira democracia. Então, contextualizado por essas abordagens, gostaria de sugerir que podemos pôr em questão a mística do MST como as micro-utopias. Sendo a mística o meio pelo qual o MST facilita espaços democráticos temporários em que uma nova sociedade pode ser imaginada, será que essa estrutura de performance circunscreve o resultado dessa significação com antecedência? Agora, estaria esse caráter

 

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relacional mais inclinado para uma comunidade homogeneizada, ou para aquela que reconhece os diferentes? Espaços intersticiais É importante dizer aqui que de fato a mística se tornou bastante estruturada. Na verdade muitos membros se decepcionaram. Tais, a filha de um líder local, havia crescido no movimento. Quando perguntei Tais sobre a percepção de que a mística estava em declínio, ela respondeu que ‘o que é realmente falta no movimento é o investimento em matéria de cultura’. Eu perguntei o que isso significou e ela descreveu como a única forma de expressão que foi aceita no MST foi mística. Ela contou que ela foi chamada sido convidado para fazer uma apresentação para uma reunião de jovens em que todos os assentamentos contribuiria um evento cultural. Ela e sua amiga decidiram a apresentar uma dança de ventre. Na programação da reunião, a forma da apresentação gerou muito debate e finalmente elas foram censuradas pois a coordenação julgou a dança vulgar e inapropriada. Tais notou como todos as outras apresentações foram místicas e foi claro que esta experiência negativa havia deixado Tais com um sentimento forte de alienação. Ela explicou sua frustração com o que ela chamou de ‘gerontocracia’ do movimento e foi fácil de ver que para Tais, alguém que havia se dedicado ao movimento, a desvalorização de sua interpretação do lado subjetivo do MST foi incrivelmente desanimador. Como Thiago também afirma, a estrutura da mística se engessou durante 30 anos do MST; outras místicas que assisti também foram planejadas, dirigidas e ensaiadas. Mas seria um erro imaginar que o conteúdo das místicas do MST seja inteiramente determinada pela estrutura da performance. Embora membros tenham pouco controle sobre a forma, existem espaços intersticiais importantes em que processos reflexivos podem surgir. Analisando mística através da lente da estética relacional, fica claro que, como uma performance política, se caracteriza por tensões subentendidas e antagônicas. Bishop afirma que uma sociedade democrática é aquela em que se sustentam as relações de conflito, e embora a mística apresente uma visão bastante unificadora do mundo, existem muitos aspectos dentro dela, como a presença da bandeira brasileira por exemplo, que deixam em aberto possibilidades de reflexão. Durante a mística surgem temas ambíguos como a palavra ‘Brasil’, o hino nacional e a bandeira brasileira. Esses são pontos de entrada que levantam grandes questões que o MST raramente aborda. No texto cito o exemplo do Fernando, que sentiu que os símbolos da nação eram importantes. Brasil representou a terra que ele esperava ganhar, ele tinha se envolvido com o movimento para lutar por melhores condições para a sua família. Perguntei a ele o que sentiu ao olhar a bandeira enquanto encenava a mística, respondeu que estava sonhando; sonhava com seus filhos e com o futuro deles. O relacionamento entre o MST e o estado é delicado, a maioria das lideranças desdenham a postura do estado. No entanto, para muitos membros o MST é visto como um canal para ter melhor acesso ao estado. Logo, nas místicas, a bandeira brasileira e o hino nacional são chaves para esta reflexão, que põe em  

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questão de um lado uma visão de dialogo e negociação e de outro, de fixidez e identidades rígidas. Assim, as reflexões sobre a relação do MST com os temas ‘Brasil’, ‘nação’, ou ‘Estado’, são mutáveis, complexos e múltiplos. A mística então permite que os membros articulem suas respostas a estas perguntas, se as suas opiniões se encaixam no discurso do movimento ou não. Seguindo a interpretação da Claire Bishop sobre estética relacional, não devemos confundir a estrutura da forma e o conteúdo. Assim não é somente a criação de relações intersubjetivas que importa, mas que tipos de relações estão sendo gerados. A mística, sem dúvida, harmoniza relações e cria um grupo de interesse comum, assim como Bourriaud descreve os trabalhos caracterizados pela Estética Relacional. No entanto a mística também deixa espaços abertos para as pessoas refletirem. Consequentemente isso vai ao encontro do Antagonismo Relacional proposto por Bishop. Qualquer análise da performance politica nos movimentos sociais deve-se considerar estes espaços intersticiais de reflexividade, para entender melhor como o processo de auto-cultivo ético está enraizado no antagonismo, bem como no coletivo. Como exemplo disso, apresento a diversidade de respostas do público para a performance final que eu descrevi na etnografia deste artigo, a da família que foi abençoada. Mesmo se a estrutura da mística se tornasse menos espontânea, as subjetividades múltiplas inerentes do coletivo atuam na realização de uma mística ambígua e contribuem a uma performance que é profundamente resistente a um discurso de fixidez. Nessa mística, as mensagens subentendidas foram difíceis de discernir. Conversando com pessoas depois, ficou claro que, embora que um vocabulário semelhante foi usado para descrever a performance, palavras como ‘lindo’ ou ‘bonito’, as razões para usar essas palavras foram muito diferentes. Algumas pessoas gostaram da performance por causa das suas conotações religiosas, enquanto outros gostaram do fato de que um bebê apareceu no palco. Alguns membros falou de como a mística fez pensar de suas famílias, e como eles estavam lutando no MST para que eles tivessem algo para passar para seus filhos. Outros comentaram sobre o simbolismo da água, sementes e solo e como se sentiam que suas vidas tinham começado de novo como resultado do MST, enfatizando a idéia de que eles não tinham sido sujeitos ‘completos’ antes de participar no movimento. O MST é um movimento secular, depois de ter se distanciado das redes católicas de apoio, mas ainda assim muitos de seus membros frequentam igrejas neopentecostais. Eu gostaria de argumentar que uma performance tão ambígua, uma que aponta para as tensões veladas no MST, não poderia ter realizada e encenada sem um conhecimento da importância das diversas subjetividades múltiplas que existem dentro do MST. Conclusão Então, a mística se apresenta como um campo de subjetividades múltiplas. Sendo assim, amarrar uma fita vermelha pode levar o participante para um sentimento muito intimo de reflexão, um auto-cultivo ético. Ou pode reforçar as identidades, tão fortes do movimento. João Pedro Stédile fala com veemência sobre esse assunto.  

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Diz que na ação de ‘cortar o fio da cerca’, ou seja, o ato de ‘occupar’, por conta da urgência desse ato, isso “não permite que ninguém fique em cima do muro [...] todos tem uma posição, ou são a favor ou são contra” (Caldart 2000: 109). Mas será que todas as escolhas de vida dentro do MST são assim tão definidas? Parece que a mística reflete muito bem a efemeridade da micro-utopia. Amarrar uma fita vermelha não necessariamente significa que você tenha que montar as barricadas para a revolução, como na fala de Stédile. Do mesmo modo que ao ser incentivado a produzir coletivamente quando se tornar um assentado, não significa que você tenha que tenha que plantar desse jeito. Estas contestações internas são importantes para o MST. Como apontei numa outra publicação (Flynn 2013b), há uma atmosfera de que o movimento caminha em direção a uma encruzilhada. Alguns lideres veem que a mudança da estrutura da mística pode ser uma ameaça. No entanto acredito que as microutopias que nascem na construção da mística são enormemente importantes para futuro do movimento. Para os próprios membros, a mística sempre foi considerada mais do que uma ferramenta pragmática. No texto trago o exemplo do Thiago. Para ele a mística representou o lado subjetivo do movimento e que sem ela o próprio movimento se perderia. Nota-se que ao longo dos anos a mística foi se engessando, mas para as novas gerações esse canal ainda é valido – é um canal que pode adquirir outra estrutura, com formas mais improvisadas e abertas. Desse modo a mística ainda tem flexibilidade de criar significação coletivamente, mesmo que essas novas formas não sejam sempre aceitas oficialmente. Por exemplo nos raps do John Muller são trazidos temas como hierarquia e gênero; a nova forma também aponta para novos debates que tocam assuntos delicados. Para encerrar, acredito que ao mobilizar a teoria de micro-utopia para a leitura do fenômeno da mística do MST é fornecer um passo adiante no jeito que podemos compreender a re-imaginação de subjetividades politicas. Bibliografia Barthes, Roland. 1977. ‘The Death of the Author’ in Image-Music-Text. Roland Barthes (ed.) New York: Fontana. Bishop, Claire. 2004. Antagonism and Relational Aesthetics. October 110: 51-79. Boal, Augusto. 2000. Theater of the Oppressed. London: Pluto Press. Borras, Saturnino, Marc Edelman, and Cristobal Kay, editors. 2008. Transnational Agrarian Movements Confronting Globalization. London: Wiley-Blackwell. Bourriaud, Nicolas. 2002. Relational Aesthetics. Dijon: Les Presses du Réel. Branford, Sue, and Jan Rocha. 2002. Cutting the wire: The story of the landless movement in Brazil. London: Latin American Bureau. Caldart, Roseli Teresa. 2000. Pedagogia no movimento sem terra. Petrôpolis: Editora Vozes Comerlatto, Giovani Vilmar. 2010. A dimensão educativa da mística na construção do MST como sujeito coletivo. Porto Alegre. Doctoral thesis: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De la Fuente, Eduardo. 2007. The ‘New Sociology of Art’ Putting Art back into  

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Social Science Approaches to the Arts. Cultural Sociology 1(3): 409-425. Desmarais, Annette-Aurélie. 2002. Peasants Speak -The Via Campesina: Consolidating an International Peasant and Farm Movement. Journal of Peasant Studies 29(2): 91-124. Eco, Umberto. 1989. The Open Work. Cambridge, MA: Harvard University Press. Elkins, James. 1996.The object stares back: On the nature of seeing. New York: Simon and Schuster. Flynn, Alex. 2013a. Mística, myself and I: Beyond cultural politics in Brazil’s Landless Workers’ Movement. Critique of Anthropology 33(2): 168-192 —. 2013b. Transformation and ‘Human Values’ in the Landless Workers’ Movement of Brazil. Ethnos 79(5): 66-91 Freire, Paulo. 1975. Pedagogy of the Oppressed. London: Penguin Education. Hammond, John. 2004. The MST and the Media: Competing Images of the Brazilian Landless Farmworkers' Movement. Latin American Politics and Society 46(4): 61–90, Issa, Daniela. 2007. Praxis of Empowerment: Mística and Mobilization in Brazil's Landless Rural Workers' Movement. Latin American Perspectives 34(2): 124138. Karriem, Abdurazack. 2009. The rise and transformation of the Brazilian landless movement into a counter-hegemonic political actor: a Gramscian analysis. Geoforum 40(3): 316–325. Laclau, Ernesto and Chantal Mouffe. 1985. Hegemony and Socialist Strategy. London: Verso. Lara Junior, Nadir. 2005. A Mística no Cotidiano do MST: A Interface Entre a Religiosidade Popular e a Política. São Paulo: Master’s thesis at the Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Löwy, Michael. 2001. The socio-religious origins of Brazil’s Landless Rural Workers Movement.Monthly Review 53(2): 32–40. McNee, Malcolm. 2005. A diasporic, post-traditional peasantry: The Movimento Sem Terra (MST) and the writing of landless identity. Journal of Latin American Cultural Studies 14(3): 335– 353. Ondetti, Gabriel. 2008. Land, Protest, and Politics: The Landless Movement and the Struggle for Agrarian Reform in Brazil. University Park, PA: Pennsylvania State University Press. Meszaros, George. 2000. No ordinary revolution: Brazil's landless workers' movement. Race and class 42(2):1-18. Munarim, Antônio and Evandro Costa de Medeiros. 2002. A dimensão educativa da mística sem terra: a experiência da Escola Nacional Florestan Fernandes. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina Nascimento, Claudemiro Godoy do and Leila Chalub Martins. 2008. Pedagogia da mística: as experiências do MST. Emancipação 8(2): 109-120. Navarro, Zander. 2002. “Mobilização sem emancipação: As lutas sociais dos SemTerra no Brasil,” in Boaventura de Sousa Santos (ed.), Produzir para viver. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Pereira, Anthony. 2009. Brazil's Agrarian Reform: Democratic Innovation or Oligarchic Exclusion Redux. In: Smith W, editor. Latin American Democratic  

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Interview with Thiago, 11 December 2008.

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