NENHUMA FORMA DE VIOLÊNCIA VALE A PENA

May 27, 2017 | Autor: Pedro Paulo Bicalho | Categoria: Psychology, Violence, Human Rights
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NENHUMA FORMA DE VIOLÊNCIA VALE A PENA VI Seminário Nacional de Direitos Humanos

1ª Edição - Brasília, 2011

NENHUMA FORMA DE VIOLÊNCIA VALE A PENA VI Seminário Nacional de Direitos Humanos

1ª Edição - Brasília, 2011

Organização: Conselho Federal de Psicologia Comissão Nacional de Direitos Humanos

NENHUMA FORMA DE VIOLÊNCIA VALE A PENA VI Seminário Nacional de Direitos Humanos

1ª Edição - Brasília-DF Conselho Federal de Psicologia 2011

É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e citada a fonte. Disponível também em: www.cfp.org.br 1ª edição – 2011 Projeto Gráfico – Luana Melo/Liberdade de Expressão Diagramação – Fabrício Martins Capa – Serviço de Saúde Mental de Ouro Preto/MG Revisão – Joíra Coelho/Suely Touguinha/Cecília Fujita

Liberdade de Expressão - Agência e Assessoria de Comunicação [email protected] Coordenação Geral/ CFP Yvone Duarte Edição Priscila D. Carvalho – Ascom/CFP Produção Gustavo Gonçalves – Ascom/CFP Direitos para esta edição – Conselho Federal de Psicologia: SAF/SUL Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 104, 70070-600, Brasília-DF (61) 2109-0107 E-mail: [email protected] www.cfp.org.br Impresso no Brasil – Outubro de 2011 Catalogação na publicação Biblioteca Dante Moreira Leite Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Conselho Federal de Psicologia Nenhuma forma de violência vale a pena / Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP, 2011. 148 p. ISBN: 978-85-89208-38-3 1. Direitos Humanos 2. Violência 3. Psicologia I. Título. JC571

Plenário promotor do evento Conselho Federal de Psicologia XIV Plenário Gestão 2008-2010 Diretoria Humberto Cota Verona – Presidente Ana Maria Pereira Lopes – Vice-Presidente Clara Goldman Ribemboim – Secretária André Isnard Leonardi – Tesoureiro Conselheiras efetivas Elisa Zaneratto Rosa Secretária Região Sudeste

Maria Christina Barbosa Veras Secretária Região Nordeste

Deise Maria do Nascimento Secretária Região Sul

Iolete Ribeiro da Silva Secretária Região Norte

Alexandra Ayach Anache Secretária Região Centro-Oeste

Conselheiros suplentes Acácia Aparecida Angeli dos Santos Andréa dos Santos Nascimento Anice Holanda Nunes Maia Aparecida Rosângela Silveira Cynthia Rejanne Corrêa Araújo Ciarallo Henrique José Leal Ferreira Rodrigues Jureuda Duarte Guerra Marcos Ratinecas Maria da Graça Marchina Gonçalves

Conselheiros convidados Aluízio Lopes de Brito Roseli Goffman Maria Luiza Moura Oliveira Comissão Nacional de Direitos Humanos (2008-2010) Ana Luiza de Souza Castro (Coordenadora) Cláudia Regina S. F. da Costa Deise Maria do Nascimento Fernanda Otoni Edmar Carrusca Janne Calhau Mourão Maria de Jesus Moura

Plenário responsável pela publicação Conselho Federal de Psicologia XV Plenário Gestão 2011-2013 Diretoria Humberto Cota Verona – Presidente Clara Goldman Ribemboim – Vice-presidente Deise Maria do Nascimento – Secretária Monalisa Nascimento dos Santos Barros – Tesoureira

Conselheiros efetivos Flávia Cristina Silveira Lemos Secretária Região Norte

Aluízio Lopes de Brito Secretário Região Nordeste

Heloiza Helena Mendonça A. Massanaro Secretária Região Centro-Oeste

Marilene Proença Rebello de Souza Secretária Região Sudeste

Ana Luiza de Souza Castro Secretária Região Sul

Conselheiros suplentes Adriana Eiko Matsumoto Celso Francisco Tondin Cynthia Rejane Corrêa Araújo Ciarallo Henrique José Leal Ferreira Rodrigues Márcia Mansur Saadallah Maria Ermínia Ciliberti Mariana Cunha Mendes Torres Marilda Castelar Sandra Maria Francisco de Amorim Tânia Suely Azevedo Brasileiro Roseli Goffman

Conselheiros convidados Angela Maria Pires Caniato Ana Paula Porto Noronha Comissão Nacional de Direitos Humanos (20011-2013) Pedro Paulo Bicalho (Coordenador) Maria Lúcia Silva Paulo Maldos Rosemeire Aparecida da Silva Maria Auxiliadora Arantes (Dodora) Ana Paula Uziel

Apresentação Vivemos e somos subjetivados pela ideia de que há uma crise, caracterizada pelo aumento de atos violentos. Vivemos em uma sociedade injusta, desigual. Cada vez mais a cultura do medo nos faz acreditar que o único caminho possível é a criminalização de conflitos, o encarceramento das pessoas e o uso cada vez maior da força policial ou militar. O Seminário Nacional de Direitos Humanos “Nenhuma forma de violência vale a pena”, que ocorreu entre os dias 21 e 23 de junho de 2009, em Brasília, discutiu o suposto aumento de atos violentos no Brasil. Também tratou de denunciar e combater as saídas criminalizantes e violadoras dos direitos humanos que têm sido adotadas diante da violência. Refletindo as preocupações da Psicologia com esses temas e aprofundando os debates propostos pela Campanha “Nenhuma forma de violência vale a pena” O seminário teve mesas voltadas para temas como violência institucional e violência nos locais de isolamento, intolerância às diversidades culturais, sexuais e raciais e criminalização dos movimentos sociais. No início do seminário, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) premiou, pelo trabalho em defesa dos direitos humanos, a liderança do povo Makuxi, de Raposa Serra do Sol, Jacir José de Souza, conforme nos contam os textos da abertura do evento, da qual participou também o sociólogo Edgar Morin, em conferência com o tema “Sobre uma nova sociedade”. A história de envolvimento da Psicologia com os direitos humanos é longa e já gerou muitos frutos. Esperamos que esta publicação reflita a riqueza dos debates realizados ao longo do seminário.

Humberto Verona Presidente do Conselho Federal de Psicologia

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Sumário Abertura e Premiação ................................................................................................ 11 Humberto Verona ............................................................................................................................... 13 Erasto Fortes ......................................................................................................................................... 17 José Geraldo de Sousa Júnior ........................................................................................................ 21 Maria Elisa dos Santos ..................................................................................................................... 23 Ana Luiza Castro ................................................................................................................................. 25 Paulo Maldos ....................................................................................................................................... 29 Jacir José de Sousa Makuxi ............................................................................................................. 31

Conferência: “Política de Civilização, Política da Humanidade” ...................................................................................... 33 Fernanda Otoni de Barros-Brisset ............................................................................................... 35 Edgar Morin ......................................................................................................................................... 37

Violência Institucional e Violência nos Locais de Isolamento . ............................................................................................ 45 Vicente de Paula Faleiros ................................................................................................................. 47 Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes ....................................................................... 59 Maria Amélia de Almeida Teles (Amelinha Teles) .................................................................. 71 Marcus Vinícius de Oliveira ............................................................................................................. 81

Intolerância às Diversidades Culturais, Sexuais e Raciais ............................................................................................................... 91 Gabriela Leite ....................................................................................................................................... 93 Ronaldo Laurentino Sales ............................................................................................................... 99 Paulo Maldos ........................................................................................................................................111

Criminalização dos Movimentos Sociais.................................... 113 Jacques Távora Alfonsin ................................................................................................................. 115 Vera Vital Brasil .................................................................................................................................. 123 Gilson Cardoso .................................................................................................................................. 133 Ela Wiecko de Castilho . ................................................................................................................ 137 9

Abertura e Premiação

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Humberto Verona1 O Seminário Nacional de Psicologia e Direitos Humanos é parte de uma caminhada na luta pelos direitos humanos e essa temática atravessa hoje o conjunto de nossas produções, seja na ciência, seja na profissão. A Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia foi criada em 1997 e tem, portanto, doze anos. Desde então, as comissões regionais e a nacional de Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia vêm se consolidando como referências. Eu arriscaria dizer, mesmo, que vêm se tornando uma ouvidoria da Psicologia em temas de direitos humanos. Nossa contribuição se dá a partir da leitura da dimensão subjetiva da realidade e tem produzido efeitos importantes na defesa dos direitos humanos para a sociedade brasileira. Alguns fatos são marcantes na nossa trajetória. Podemos citar as inspeções nacionais, que foram realizadas em instituições de longa permanência para idosos, em julho de 2008, em unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, em março de 2006, e em unidades psiquiátricas brasileiras, em julho de 2004. Essas inspeções trouxeram dados relevantes sobre abusos, torturas e maus-tratos em muitas das instituições visitadas. Isso tem contribuído sobremaneira para que se mantenha vivo o olhar sobre a sociedade. Tem aberto discussões urgentes e necessárias sobre a crise do sistema penitenciário e sobre os rumos da política de saúde mental, apontando a necessidade de aceleração da reforma psiquiátrica no país e a defesa intransigente dos direitos dos portadores de transtorno mental, sobretudo direitos à liberdade, à cidadania e à participação social. Enfrentamos, igualmente, a discussão sobre os avanços necessários para a defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente em um país que, dezenove anos após a promulgação da Lei, ainda tem suas crianças e adolescentes vítimas de situações de violência e desconsiderados como sujeitos de direito. Do mesmo modo, assumimos a discussão das políticas e práticas voltadas ao idoso. Nossa população, quando envelhece, não encontra 1 Presidente do Conselho Federal de Psicologia (2008-2010 e 2011-2013)

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lugar de pertencimento na organização do espaço urbano e social e, se vê, em sua maioria, segregada e, não raro, humilhada, na sua condição vulnerável. Além disso, apontamos e reiteramos permanentemente a necessidade de que toda e qualquer violação de direito humano seja apurada com seriedade e compromisso social. Outra marca importante nessa luta do Sistema Conselhos pelos direitos humanos é a resolução do Conselho Federal nº 1, de 1999, que proibiu o tratamento, pelos psicólogos, da homossexualidade como doença. Fez, portanto, dez anos, em 2009, o posicionamento crítico da Psicologia em relação ao direito, à diversidade de orientação sexual e à denúncia da homofobia como práticas de violação de direito. Ainda, como desdobramentos da Resolução nº1, contestamos a decisão do Vaticano de recorrer a psicólogos para avaliar a orientação sexual dos candidatos a entrar nos seminário da Igreja Católica, com repercussão internacional, e a publicação do caderno adoção, um direito de todos e todas defendendo, com subsídios, diversas abordagens teóricas à adoção de crianças por casais homoafetivos. Em 2009, todas essas ações renderam ao Conselho Federal de Psicologia um prêmio da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), que muito nos honrou. É preciso destacar, ainda, o convite da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Brasileiro para que o Conselho Federal de Psicologia fizesse parte do Comitê de Combate à Tortura. Nossa participação nesse espaço tem contribuído para incorporar a dimensão subjetiva na análise dos efeitos da prática de tortura, com reflexos, inclusive, na formação de policiais e outros agentes de segurança pública. Nossa Comissão Nacional de Direitos Humanos contribuiu para o plano de ações integradas para a prevenção e controle da tortura no Brasil que planejou amplas ações que visam a atacar as causas e minimizar as consequências em pessoas que sofreram tortura no país, com a responsabilização dos agressores, acolhimento, assistência e proteção às vítimas e, ainda, o monitoramento e a avaliação dessas ações. Nosso foco no Seminário de 2009, em sintonia com a Campanha Nacional iniciada em 2008, é a superação da violência em todas as suas formas. Precisamos falar da violência, compreendê-la, esmiuçar 14

sua genealogia e encontrar maneiras de superá-la. Todo o pensamento crítico já nos mostrou que a superação da violência passa pela superação das desigualdades estruturais tão visíveis no Brasil, na América Latina, nos países do Sul. No sentido totalmente contrário, o Governo de Minas Gerais anunciou com festa a construção do primeiro presídio do Brasil em parceria públicoprivada. É a lógica do encarceramento, agora privatizada, insistindo na reprodução de políticas públicas sabidamente fracassadas, que não apenas se mostram incapazes de enfrentar os problemas para os quais foram formuladas, mas que se tornam, elas próprias, parte importante dos problemas a sere superados. A prisão, que já questionamos quando falamos do fim possível das prisões, agora, vira negócio. E a esfera do negócio, do mercado, do lucro é justamente aquela oposta à de direitos, representada pela esfera pública. Em contraposição ao cenário de desigualdades estruturais Emir Sader nos diz que não basta criar legislação que garanta direitos, temos de criar uma sociabilidade alternativa de solidariedade, de complementaridade de afirmação dos direitos, o que só é possível fazer apoiado pelo Estado. Isso não quer dizer articulado em torno da estrutura burocrática do Estado, mas promovendo essa sociabilidade por meio do espaço público, da participação, das trocas sociais, onde o Estado tem o papel de suporte afirmando direitos e implementando políticas públicas. Tudo isso nos mostra que a solução das desigualdades econômicas é necessária, mas não é suficiente, porque as práticas, as relações, as formas de viver estão imbuídas nas ideias de segregação, de encarceramento, de criminalização, de intolerância à diferença sexual, racial, étnica do crescimento do privado-individual, em detrimento do público, compartilhado, coletivo. Então, também precisamos incidir sobre as práticas e a reprodução delas, para avançar em um mundo sem violência, em um mundo em que a ideia de que a violência não vale a pena seja hegemônica. A homenagem neste ano será prestada a uma liderança indígena, Senhor Jacir José de Souza Makuxi, que há mais de trinta anos é um dos Tuxauas que organiza a luta dos povos indígenas na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Foram mais de vinte mortos, diversos atentados, além de muitas vindas a Brasília para romper barreiras do poder institucional. 15

Em 2009 a área indígena Raposa Serra do Sol foi finalmente homologada de forma contínua, em decisão do Supremo Tribunal Federal. As lideranças de lá são exemplos de persistência, de capacidade de formação de alianças, de resistência à violência dos arrozeiros, que com grande influência política regional conseguiram, por anos, obstruir os direitos dos povos à terra, à produção de alimentos, à coleta, ao acesso a seus lugares sagrados. Mas, esses povos não desistiram e não temeram enfrentar opressão. Há uma história do seu Jacir, ainda na década de 1970, que é inspiradora para a nossa luta pelos direitos humanos e contra a violência. Em uma das primeiras assembleias que reuniu os tuxauas de Raposa Serra do Sol, seu Jacir e lideranças de sua região levaram um feixe de varas longas com quase dois metros cada uma. Seu Jacir falou sobre a história da invasão da terra indígena e contava sobre a estratégia dos fazendeiros de quebrar um tuxaua por vez. Alguns eram mortos, outros, enganados e iam para o lado dos fazendeiros. Para dar um exemplo do que estava falando, Seu Jacir pegou uma vara e quebrou. Depois, pegou duas varas e, quebrou; depois, partiu três varas, então, ele pegou o feixe todo de varas e mesmo fazendo força, não conseguiu quebrar. Ele explicou que cada vara era como um tuxaua, como uma comunidade e, se estivessem todos unidos, ninguém poderia quebrar o grupo. As varas usadas ficaram expostas por mais de trinta anos na missão Surumu e foram queimadas em 2005, depois de atentados de arrozeiros. As ideias que embasaram essa luta nunca foram destruídas, assim como não serão destruídas pela violência as ideias do fim dos locais de isolamento e das instituições opressoras, do direito à diversidade, do direito de expressão dos movimentos sociais sem que isso seja visto como crime.

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Erasto Fortes2 A Secretaria Especial dos Direitos Humanos é um órgão de governo, alçado à condição de status ministerial no primeiro dia do mandato do presidente Lula anteriormente vinculado anteriormente ao Ministério da Justiça como secretaria nacional. Cito esse fato porque acho que ele não é ocasional, ele é a marca de uma política pública do Estado Brasileiro que confere ao tema dos direitos humanos uma natureza de ação estratégica do Estado, porque ligar a Secretaria Especial dos Direitos Humanos diretamente ao gabinete do presidente da República, confere a ela a tarefa, que não é pouco complexa, de promover a articulação das políticas públicas de direitos humanos espalhadas em todos os órgãos do poder público. Não cabe à Secretaria Especial de Direitos Humanos atuar diretamente em algumas ações de direitos humanos, ainda que o faça, mas cabe a ela a tarefa mais complexa de articular aquilo que o Ministério do Trabalho faz quando promove o combate ao trabalho escravo; que o Ministério da Educação faz quando entra em uma luta gigantesca de universalizar a educação básica no nosso país, e assim em outras áreas de governo. A finalidade da Secretaria, portanto, é articular políticas públicas de direitos humanos e quando falamos das políticas públicas, falamos que essas políticas são as políticas do Estado, elas não são apenas as políticas deste governo. O governo passa. O governo é provisório. O Estado permanece. E é necessário que construamos, como temos tentado construir, neste governo, característica de que o tema dos direitos humanos precisa ter uma continuidade das políticas públicas para que consigamos avançar, como temos feito, com a consideração do Programa Nacional de Direitos Humanos, que teve a sua primeira versão em 1996, a segunda versão em 2002, com a incorporação dos direitos econômicos e sociais, e em um grande trabalho que foi realizado no final do ano passado com a Conferência Nacional dos Direitos Humanos a incorporação das sugestões, da participação da sociedade organizada na construção de uma terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos. 2 Em 2009, era coordenador-geral de Direitos Humanos da então Secretaria Especial de Direitos Humanos, atual Secretaria de Direitos Humanos.

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Cito isso para situar e materializar a compreensão do governo brasileiro de que é necessário que tenhamos continuidade dessas políticas. Não há no tema dos direitos humanos a política de terra arrasada, de se inventar a roda a cada governo que entra. Isso é bom para o país. Tem sido bom para o país. A Secretaria dos Direitos Humanos tem neste momento empenho muito forte de considerar o tema da educação em direitos humanos como eixo estratégico de todas as ações que a ela desenvolve. Esperamos que esse empenho do Conselho Federal de Psicologia seja um estímulo para que outras entidades e associações acadêmicas profissionais da sociedade civil também entrem nessa luta de se organizar para pautar o tema dos direitos humanos na agenda social do país. Este evento, que propugna a ideia de que nenhuma forma de violência vale a pena, se traduz, de certa maneira, na construção de uma cultura de direitos humanos, e, portanto, de uma cultura de paz. Trazer a figura emblemática do professor Edgar Morin à conferência de abertura, uma pessoa que participa de um pequeno e seleto grupo dos maiores pensadores da atualidade, converte este evento, sem dúvidas, em uma grande referência, na área dos direitos humanos. Professor Edgar Morin, eu creio, dispensa qualquer tipo de apresentação, porque a influência que ele tem exercido no campo das ciências no Brasil – eu, pessoalmente, sou ligado à área de educação –, a influência que tem materializado, nas nossas pesquisas na área de educação no país tem servido para um grande avanço na compreensão da educação como ciência humana, ciência da pessoa humana e, portanto, a necessidade da compreensão desse indivíduo que está sob para a responsabilidade de uma instituição educacional, no sentido de que ele é também encarregado das suas limitações, das suas misérias, de suas emoções. A compreensão desse indivíduo como pessoa tem sido, em grande parte, aprofundada pela capacidade de compreensão dessas ideias trazidas pelo professor Edgar Morin. Finalizo lembrando que a ideia de direitos humanos apesar de como defesa da dignidade da pessoa humana estar desde sempre vinculada ao esforço da humanidade na compreensão desse valor, ela, sem dúvida, teve, em dois momentos da história da humanidade, reconhecimento de sua consubstanciação: o momento da Revolução 18

Francesa e o momento do Pós-Guerra quando a humanidade, por meio da Organização das Nações Unidas, proclamou solenemente uma declaração composta de trinta itens de afirmação de direitos sobre a dignidade da pessoa humana. A Revolução Francesa nos lembrava a ideia de liberdade, igualdade e fraternidade como um trido de valores que não são separados uns dos outros, mas que atuam em conjunto e que atuam na compreensão da complexidade de cada um desses valores e na compreensão de que, sem um deles, possivelmente os valores da Revolução Francesa estão prejudicados. Curiosamente, eu acho que não ocasionalmente, a declaração universal dos direitos humanos já no seu prólogo, no seu pequeno prólogo, lembra a ideia de liberdade, de igualdade e de fraternidade, e o primeiro item da declaração - que eu penso que, de certa forma, resume todos os demais vinte e nove – afirma mais ou menos o seguinte: “Todo ser humano, nasce livre e igual em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem conviver uns com os outros no espírito de fraternidade”, portanto, esse primeiro item da Declaração Universal dos Direitos Humanos também tem um pé nos valores da Revolução Francesa porque aqui estão afirmadas a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Lembro essa questão porque é forçoso reconhecer que aos sessenta e um anos de afirmação da Declaração Universal dos Direitos Humanos , a humanidade – nosso país não é diferente disso – segue sendo uma humanidade violadora dos direitos humanos, daí a necessidade de que processos de educação para os direitos humanos e em direitos humanos sejam uma tarefa para a qual todos nós somos chamados e devemos nos empenhar. Acho muito curioso que todos nós que viemos do mundo acadêmico ou que estamos nele temos a consciência de que dois desses valores são profundamente estudados, debatidos, que são os valores da igualdade e da liberdade. Teses, tratados, dissertações, artigos, livros, congressos a todo momento têm se empenhado para fortalecer o campo das ciências políticas da Sociologia, da própria Pedagogia, e é muito curioso como a ideia de fraternidade tem sido esquecida no cantinho da religião, como ela não tem sido tratada com o mesmo peso de categoria civil e política que é dado aos temas da igualdade e da liberdade. 19

E eu creio que esse tema que o Seminário Nacional de Direitos Humanos trata, nenhuma forma de violência vale a pena, se embasa na compreensão de que a fraternidade precisa ser resgatada no campo dos direitos civis e políticos, para que tenhamos a possibilidade de nos compreender na nossa diversidade, nas nossas diferenças como filhos de uma mesma família humana. Eu acho que a nossa compreensão é o grande desafio, é o desafio da educação em direitos humanos. É uma boa causa pela qual se lutar e um bom projeto de vida pelo qual viver.

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José Geraldo de Sousa Júnior3 Manifesto imensa satisfação de que um seminário com esta grandiosidade e com este alcance tenha como eixo essa chamada mobilizadora de repúdio a qualquer forma de violência e, portanto, a afirmação de que nenhuma delas vale a pena. Penso que essa chamada mobiliza nossos valores e indica o horizonte programático de construção de sociabilidades. No que diz respeito à universidade, é importante ter em mente o chamamento que o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos faz para que, também no âmbito das universidades, essa mobilização implique construir políticas não só de formação, mas de organização de nossas estratégias de desenvolvimento acadêmico, de desenvolvimento cultural também orientados por esse eixo. Para além da condição de orientar nossas práticas formadoras, o principal chamamento é considerar tanto a universidade como as instituições, em uma cultura que tem como eixo os direitos humanos. As instituições têm de se tornar instituições educadoras. Como nas universidades, que não devem apenas produzir educação, construir formas pedagógicas, mas se tornar educadoras, ou seja, constituír-se plenamente como mediação para que a vivência, o cotidiano dos relacionamentos, seja condição emancipatória do homem e de sua firmação plena. Neste seminário, o programa, a formação do seu eixo de homenagens, quando escolhem como referência o reconhecimento da luta histórica da comunidade indígena Raposa Serra do Sol, traduzem quanto a nossa cultura e nossa condição civilizatória requerem trabalhar essa dimensão transformadora e emancipatória. Quando se pensa, por exemplo, que, homenageando as comunidades indígenas demarcamos um horizonte em que a luta histórica implicou construir mediações, não só para o reconhecimento das subjetividades emergentes nas identidades dos nossos ancestrais pré-cabralinos, mas a luta que foi representar a construção da identidade dessas comunidades. O difícil reconhecimento da humanidade inscrita nesse processo e como isso implicou refazer as instituições. 3 Em 2009, era reitor da Universidade de Brasília. Este texto não foi revisado pelo autor.

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No século XVII, em Valladolid, os intelectuais tiveram de se reunir para discutir se os índios eram gente ou não. E foi um debate tremendo que implicou, naquela altura, suspender o empreendimento da conquista, enquanto esta questão dramática não fosse resolvida. É verdade que ela se deu por uma mediação integracionista, a reconhecer a humanidade pela inserção em uma cultura católica evangelizadora, mas a abertura para esse debate é o horizonte de sentido para o processo emancipatório, que implica, desde então, construir as mediações de reconhecimento que passam pela definição daquilo que no nosso trabalho cotidiano é o poder determinar o reconhecimento do outro. Do ponto de vista da universidade presente neste evento, todo esforço de configurar nossa instituição hoje como essa instituição educadora cuja mediação para a convivência entre seus segmentos, entre o que elabora, os seus pesquisadores, seus professores e a sociedade em que ela se instala tem essa condição para construir uma pedagogia da emancipação, que é a firmação plenamente humana dos que vivenciam a realidade de interpretar o mundo, compreender a sua complexidade e orientar essa compreensão para transformar esse mundo na dimensão e em uma vivência fundada em princípios civilizatórios. Nossos olhares estão atentos ao que se discutirá. E certamente as principais conclusões deverão ser referências muito importantes para que os nossos pesquisadores, os nossos professores possam ter em mente o significado dessa ideia de constituição do humano nas nossas relações sociais e de orientar a construção de sentido dos nossos saberes, elaborados como prática das nossas ações acadêmicas, na convicção de que isso realiza plenamente os direitos humanos.

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Maria Elisa dos Santos4 Nossa categoria inúmeras vezes compõe, juntamente com os assistentes sociais, as equipes profissionais que, no cotidiano operacional das políticas públicas brasileiras, trabalham no combate às violações, principalmente porque a Psicologia não vem se esquivando do enfrentamento da barbárie da vida contemporânea, vem contribuindo, denunciando, interferindo e lutando por direitos. O Serviço Social como profissão existe há sete décadas e vem atuando em todos os espaços ocupacionais onde a questão social explode com repercussões, especialmente no campo dos direitos humanos. Ocorre que, na década de 1960, essa profissão questionou seu enfoque individualista, e muitas vezes moralizador, da questão social, e construiu um novo projeto, que intitulamos projeto ético-políticoprofissional comprometido com uma nova ordem societária sem dominação, exploração de classe, raça, etnia, gênero ou orientação sexual. Ele incorpora a resistência, a ruptura com o conformismo e um compromisso claro da profissão com a sociedade. E, como diz um pesquisador assistente social, José Paulo Neto, a possibilidade de transformação dessa realidade continua sendo tarefa dos homens e das mulheres quando organizados politicamente em torno de projetos de ruptura. A opção pela construção de uma outra sociabilidade só pode existir com políticas públicas universais de Estado e articulado com os movimentos sociais e com categorias profissionais que partilhem desses princípios éticos emancipatórios. A compreensão crítica da realidade e de seu processo de produção e reprodução das desigualdades e das violações é pressuposto para constituirmos enfrentamentos que nos possibilitem acertar na análise para acertar nas estratégias.

4 Representante do Conselho Federal de Serviço Social. Este texto não foi revisado pela autora.

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Ana Luiza Castro5 Reconheço os psicólogos e as psicólogas que nos últimos doze anos ousaram em trazer a discussão dos direitos humanos para o Sistema Conselhos e, assim, iniciaram a construção de um novo caminho para a Psicologia. Este seminário com certeza é um momento importante, marcado pela participação de um convidado do porte do professor Edgar Morin, um dos maiores pensadores do mundo contemporâneo. Momento muito significativo para nós que ainda acreditamos que um outro mundo é possível, mas não é um momento de festa. Nosso VI Seminário Nacional almeja discutir a violência, aprofundando as questões levantadas por nossa campanha de direitos humanos. Quando da escolha desse tema, já sabíamos das dificuldades que encontraríamos. às vezes esta parece uma guerra já vencida, pois ampla parcela da sociedade e da mídia já discutiu, julgou e condenou determinados grupos sociais e pessoas pelo suposto aumento da violência no mundo. Não temos dúvida de que o atual modelo econômico traz pobreza, desigualdade, injustiça social, desemprego, violência. Talvez sua forma mais perversa, sua consequência seja justamente a responsabilização de determinadas camadas da população pelo aumento da violência e, obviamente, sua criminalização. Cada vez mais a cultura do medo, a política internacional de manutenção da hegemonia mundial de um capitalismo imperial nos empurra a acreditar que o único caminho possível para enfrentar a crise, nossas angústias e o mal-estar é a construção de uma sociedade criminalizante-criminalizadora e, obviamente, o encarceramento de determinadas pessoas e o uso cada vez maior da força policial ou militar. Seus efeitos infelizmente igualam os excluídos de todas as nacionalidades, culturas, etnias e religiões. É a globalização da exclusão, do sofrimento, das discriminações e violações dos direitos humanos. Não esquecendo as pessoas que permanecem em Guantánamo, sem julgamento ou acusação formal, da população civil do Iraque, peço licença 5 Coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia de 2008 a 2010. Conselheira do CFP no período de 2011 a 2013.

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hoje para ser um pouco menos internacionalista e rapidamente falar do Brasil. Não obstante os avanços sociais obtidos nos últimos sete anos com o governo Lula, a desigualdade social aqui ainda é imensa, milhões de pessoas, a maioria negros, ainda vivem em zonas de misérias. Ações policiais ou grupos de extermínio ligados à polícia, nessas comunidades, resultam anualmente em milhares de mortos ou feridos, pessoas detidas em penitenciárias ou delegacias e adolescentes cumprindo medidas socioeducativas continuam sofrendo tortura e maus-tratos. Ativistas rurais e povos indígenas lutando por acesso à terra são atacados por policiais e seguranças privados. Há denúncia de trabalho forçado, exploração de trabalho em vários estados. Tem-se notícias da morte de três homossexuais por dia. Causam-nos enorme preocupação as soluções defendidas pela sociedade brasileira e pela mídia para a superação desses graves problemas. Alternativas cada vez mais vingativas e punitivas: a redução da idade penal, o recrudescimento da legislação, a construção e a privatização de novos presídios, a criminalização de conflitos e dos movimentos sociais. Obviamente, saídas legitimadas e estimuladas pela cultura do medo amplamente disseminada pelo governo estadunidense após o 11 de Setembro – desde então, todos somos terroristas em potencial e, portanto, tudo deve ser aceito: da humilhação em aeroportos até as mais infames práticas de tortura, violação dos direitos individuais, violência contra pessoas em situação de aprisionamento, nas instituições, preconceitos culturais, sexuais e raciais, a repressão aos movimentos sociais e a criminalização dos defensores dos direitos humanos. Nesse cenário, os psicólogos têm sido convocados, muitas vezes, a colocar seu saber e suas práticas a serviço da repressão da excessiva criminalização e dos aprisionamentos da apologia do medo. Ao contrário, nossa postura deve ser de não mais aceitar as condições sub-humanas de nossos presídios, das unidades de internação para adolescentes considerados autores de atos infracionais, dos manicômios, a violência policial, os extermínios e o desrespeito às diversidades culturais, sexuais e raciais. Reafirmamos, então, o caminho que tem sido construído pelos psicólogos: uma profissão comprometida com as mudanças sociais, com as práticas de inclusão, em consonância com a defesa intransigente 26

dos direitos humanos de todos e de todas. Não é aceitável como única alternativa a apologia do medo com suas consequências: criminalização, segregação e práticas repressivas e violentas. Deveríamos discutir como efetivamente implantar o Estatuto da Criança e do adolescente, priorizando implantação e qualificação das medidas socioeducativas sem privação de liberdade, políticas efetivas de inclusão social, como fortalecer e ampliar os programas de penas alternativas, a constituição de serviços substitutivos de saúde mental, avançar na reforma agrária, não retroceder na demarcação das terras indígenas quilombolas e, acima de tudo, erradicar as torturas sofridas pelas pessoas em condição de aprisionamento e nas instituições. Estamos empenhados em colaborar na construção de uma nova sociedade, permeada por relações de fraternidade, igualdade, justiça social e de respeito a todas as diversidades.

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Paulo Maldos6 Agradeço ao Conselho Federal de Psicologia a honra de poder entregar um prêmio ao Jacir de Sousa. Em abril deste ano fez vinte anos que nos conhecemos em uma assembleia indígena em Manaus, em abril de 1989. A assembleia indígena reunia cerca de duzentas lideranças de toda a região amazônica. Nos conhecemos, eu, como psicólogo e assessor, e ele, como liderança desse encontro, cuidando da infraestrutura e, claro, da linha política da assembleia. Estava sendo criada uma organização naquele momento, que persiste até hoje, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que reúne mais de 60 organizações de toda a região amazônica. O presidente do CFP, Humberto Verona, Jacir, da luta dos povos Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona, cinco povos que vivem na Raposa. Gostaria de destacar que esse prêmio vai para o Jacir, para chegar às mãos de vinte mil indígenas dessas cinco etnias, que vêm lutando de forma exemplar nos últimos trinta anos contra toda forma de violência que vem se abatendo contra eles. Inclusive a violência de Estado, na forma de militares, na forma do Comando Militar da Amazônia, na forma de infinitas atrocidades. Quem já foi a Raposa pôde ver posto de saúde calcinado, igreja, comunidades e pontes destruídas, lideranças assassinadas. Então, contra tudo isso a resposta deles foi a firmeza na luta, a tranquilidade, a altivez, foi superioridade ética desses povos perante nossa sociedade. Esse prêmio vai para o Jacir, mas para chegar às mãos dessas comunidades que guardam o mito Macunaíma, um mito fundador na nossa identidade, trazido pelo grande Mário de Andrade. E como eles escreveram com a sua cultura uma marca profunda na cultura de toda a sociedade brasileira, é importante conhecermos cada vez mais essa luta, há grupos que conhecem e se solidarizam com ela, em toda a Europa, até na África e na Ásia, no mundo inteiro. Esperamos que, como eles deixaram essa marca de identidade cultural, deixem também com essa luta a marca de forma de luta, da atitude de luta, da forma superior de luta que é essa que diz que nenhuma forma de violência vale a pena e é vitoriosa.

6 Em 2009, era secretário nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República. Este texto não foi revisado pelo autor.

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Jacir José de Sousa Makuxi7 O senhor Humberto Verona falou do feixe de varas que começou pelos tuxauas, os caciques. A vitória da demarcação da [terra indígena] Raposa Serra do Sol é uma varinha para completar o feixe de varas mais fortes. Quem são essas pessoas? Os indígenas que vocês viram ainda agora, os indígenas do Brasil. Depois, os parceiros. Falamos de direitos humanos, quantos documentos nós enviamos, ao mundo inteiro, aqui a Brasília… sempre colocado um feixe de varas mais lá dentro. Em seguida, veio o presidente da República, reconheceu o nosso sofrimento e a terra foi homologada pelo presidente da República, o Lula. Em terceiro, o ministro da Justiça, demais autoridades de Brasília. Isso fez crescer a força do povo indígena, quando se fala em feixe de varas. Muitos dos aqui presentes nos ajudaram. Em razão disso, queria agradecer ao senhor, por ter pensado na minha pessoa para representar meu povo Makuxi, o povo de Roraima, não só da Raposa Serra do Sol, porque a vitória não é só da Raposa Serra do Sol, mas dos indígenas no Brasil. Tem gente, tem os indígenas aqui de outros estados que, sem conhecer a comunidade dos Makuxi, lutaram, gritaram e choraram para que saísse a homologação, e ela continua. Então, companheiros e autoridades presentes, eu quero falar agora de uma realidade mais forte ainda, de um problema que está acontecendo em Roraima. O governo do estado não concorda com a homologação. Mais uma vez o feixe de vara entra naquele feixinho. Cada vez mais estamos nos juntando. Estamos ensinando aos senhores brancos como trabalhar unidos, porque um feixe de vara é fácil de quebrar se for bem fininho, mas um monte de varas, como estão aqui presentes, ninguém quebra. Este venceu a violência que está acontecendo. Muitas vezes passava noite sem dormir, triste, e hoje eu vim aqui com muita alegria. O sofrimento tem seu valor. E eu vou levar esta placa de homenagem para o meu povo, para mostrar como é que tem pessoas que têm o respeito. Quando a pessoa está defendendo o indígena, está respeitando as leis que são fabricadas por vocês. Muitos lá em cima, poderosos, não respeitam. Destruíram até 7 Liderança da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foi coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Este texto não foi revisado pelo autor.

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uma escola. Enquanto o filho dele estava estudando não sei onde, nos Estados Unidos, o nossos não podiam estudar, foram amedrontados, mas a luta continuou e conseguimos. Hoje os arrozeiros saíram todos, mas também deixaram destruídas as casas deles. Nós estamos reclamando que tirem aquela sujeira de lá, porque não encontraram daquele jeito. Tem de levar. Amanhã nós queremos vender a nossa produção, senhores que estão aqui em Brasília, queremos vender arroz de primeira, de qualidade, sem veneno, sem agrotóxico. Nós já estamos estudando isso. Nós queremos convidar o governo federal que repare na nossa produção. Nós não queremos estragar a nossa produção. Eu estou falando de arroz, mas eu estou falando em geral, toda a produção de carne, de farinha. A nossa luta sobre a terra é exatamente para matar a fome e também para que aquela comunidade tenha mais alimentação. Às vezes, nós trouxemos aqui à cidade de Brasília alguma farinha, porque aqui não tinha, beiju, pimenta, enfrentando a dificuldade, mas hoje eu estou muito feliz, hoje a noite aqui é uma festa para mim. Eu queria terminar a minha palavra agradecendo cada um dos que estão nessa mesa, abraçando cada um de vocês.

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Conferência: “Política de Civilização, Política da Humanidade”

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Fernanda Otoni de Barros-Brisset8 O professor Edgar Morin é filósofo, sociólogo, historiador e advogado. Diretor emérito do Centro Nacional de Investigação Científica da França, presidente da Associação do Pensamento Complexo, presidente do Instituto Internacional de Pesquisa e Política de Civilização. É um homem com o pensamento vivo, inquietante, buliçoso, que nos faz repensar, principalmente nessa trajetória de formação e de prática em direitos humanos, a nossa experiência de humanidade. Para apresentá-lo, extraí quatro trechos de sua obra – que é longa – que me parecem uma pequenina demonstração de como nos ensina nesse campo. É quando ele fala de sociedade, da barbárie, da ética e da esperança. São quatro pequeninos trechos em sua luta por um mundo melhor. Edgar Morin nos diz: “Não se trata em caso algum de chegar a uma sociedade de harmonia, onde tudo seria pacificado. A boa sociedade só poderia ser uma sociedade complexa, que abraçaria a diversidade. Não eliminaria o antagonismo e as dificuldades de viver, mas que comportaria mais de religação, conexão, mais de compreensão, menos incompreensão, mais consciência, mais solidariedade, mais responsabilidade”. E o professor Edgar Morin pergunta: “Isso é possível?” Ele diz que “a barbárie humana está incluída no coração mesmo das nossas civilizações, nas relações de dominação, de exploração, de humilhação e de desprezo. A barbárie fermenta em cada um de nós. Nossa própria barbárie interior nos autojustifica sem parar e nos faz mentir a nós mesmos. Ela nos empurra sempre na lei do talião e da vingança. Então, a ética. A ética é complexa. É uma ética sem saída, sem promessa. Ela integra nela mesma o desconhecido do mundo e do futuro humano. A ética é complexa porque nela exporta a incerteza do resultado, comporta a aposta e a estratégia. A ética é complexa, porque ela não impõe uma visão maniqueísta do mundo e renuncia à vingança punitiva. Ela não é triunfante, mas resistente. Ela resiste ao ódio, à incompreensão, à mentira, à barbárie e à crueldade”.

8 Psicanalista, EBP/AMP; doutora em Sociologia e Política-UFMG.

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Por essa via, então, a esperança. A esperança não é certa. Dizer que nós temos esperança é dizer ao mesmo tempo que nós temos muitos motivos para desesperar. Nós ignoramos os limites do possível. Isso justifica a esperança, mas nós sabemos que existem limites. Isso confirma a desesperança. A esperança do possível nasce de um fundo de impossível. O mal existe, mas não existe o princípio do mal. Uma metamorfose é inconcebível a princípio. As grandes mutações são invisíveis e, logicamente, impossível antes que elas apareçam. A asa teria parecido impossível ao réptil, cujos descendentes, parte deles, tornaram-se pássaros. Teria parecido impossível aos nossos ancestrais que andavam a quatro mãos, que seus descendentes se tornariam bípedes. Toda metamorfose parece impossível de acontecer. Essa constatação comporta um princípio de esperança. Desse modo, assentado que o mal existe, mas não existe o princípio do mal, contudo, existe o princípio da esperança.

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Edgar Morin9 Amigas e amigas, vou falar um idioma que é um misto de espanhol, de italiano, de francês e de português. Perdoem-me pelos equívocos. Penso que, hoje, o contexto fundamental das vidas é o da globalização. Ela é o pior de tudo e o melhor de tudo. Por que o pior de tudo? Porque o processo acelerado do chamado desenvolvimento, o processo da nave espacial Terra, com motores, ciência, técnica, economia, reúne todas essas coisas que nos conduzem a catástrofes. As armas nucleares se disseminam, a ciência, a técnica, a economia produzem a degradação da biosfera do planeta. Também todos os conflitos religiosos, ideológicos, políticos, são condições de uma pluralidade de catástrofes prováveis – as catástrofes não são certas, mas prováveis. O desenvolvimento também tem algo muito negativo. É positivo em alguns elementos de desenvolvimento de condição e de padrão de vida. Na China, no Brasil, crescem as classes médias, como as do Ocidente. É também positivo que muitos jovens descubram a possibilidade da liberdade, do gozar da vida, de relações sem autoridade familiar. Há muitas coisas positivas. Mas não podemos esquecer que o desenvolvimento de classes médias é também a intoxicação do consumismo, da publicidade e todas as outras intoxicações. O desenvolvimento de algumas prosperidades, em vários países ricos, é também o desenvolvimento da miséria. O pequeno camponês tinha sua vaca, sua cabra, sua cultura, uma pobreza com um mínimo de dignidade humana, de autonomia. A eliminação da pobreza será também a promoção da miséria. Há miséria nas favelas, nas megacidades da América Latina, da Ásia, da África. São populações proletarizadas, sem o mínimo de autonomia, com todas as humilhações e a opressão da miséria. Outro traço negativo do desenvolvimento é que não se pode continuar o crescimento permanente de todos, quantitativo, esquecendo que o problema central é o problema da qualidade de vida, e não unicamente da quantidade de coisas. 9 Pesquisador emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Formado em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia. É considerado um dos principais pensadores sobre a complexidade. Autor de mais de trinta livros, entre eles: O método (6 volumes), Introdução ao pensamento complexo, Ciência com consciência e Os sete saberes necessários para a educação do futuro.

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E, ademais, a mundialização produz crises da planetarização mesma. É evidente que é um processo de unificação tecnológica, econômica, das comunicações de todo o planeta. Mas o mesmo processo de unificação é um processo de deslocamento, de separação das bases éticas, culturais, nacionais. Isso ocorre a partir dos anos 1990, a separação da União Soviética, da Iugoslávia, da Checolosváquia, as guerras étnicas nos países africanos. Esses processos de deslocamento são consequência do processo de unificação, pois se a unificação significa homogeneização, eliminação das diferenças culturais, das singularidades culturais, então a cultura se encerra em si mesmo e rechaça a globalização. O caso mais extremo é o do Irã, da revolução de Khomeini, processo em que uma minoria refuta a homogeneização. Não a econômica, porque o Irã foi desenvolver tecnologia nuclear, armas de guerra, mas a homogeneização cultural. O problema fundamental humano é o de entender a relação entre a unidade e a diversidade humanas. No modo de pensar comum, quando se vê a unidade, pensa-se que a diversidade é uma coisa secundária, contingente, acessória. E quando se vê a diversidade, pensa-se que a unidade não é uma coisa importante. As duas coisas estão interligadas. Por exemplo, todos os humanos têm identidades comuns: genética, anatômica, fisiológica, cerebral, afetiva. Todos os humanos são diversos, cada um na sua personalidade singular. Em toda a humanidade, a cultura se aprende, ela não é geneticamente inata. A cultura se vê nas culturas singulares. Em todas as culturas há músicas, línguas, e elas são diferentes. A unidade humana produz a diversidade humana. O tesouro da unidade humana é sua diversidade; e o tesouro da diversidade é a unidade. Se vocês entendem isso, estamos feitos. Um processo desenvolvimento, de globalização, que não vê os valores das diversidades – não unicamente das grandes civilizações, como a Índia ou a China, mas as pequenas civilizações dos povos indígenas da Amazônia, que são tesouros para a humanidade, então há um processo cego que faz parte do pior do processo de globalização. Crises da planetarização, deslocamentos, conflitos cada vez maiores, a crise econômica que agora se vê. Essa crise econômica não se pode isolar de outras, pois há uma crise do sistema planetário da Terra, crise do progresso, crise do futuro. 38

Havia uma fé de que o progresso era uma lei da história humana. Essa é uma ideia do mundo ocidental que se desenvolveu em todo o planeta até o final dos anos 1970 do século passado. Agora, vemos que os motores do progresso, a ciência, a tecnologia, são ambivalentes. O futuro é a incerteza, a noite. Não se pode antever o futuro. Então, quando se perde o futuro e o presente é de angústia, de miséria, então se volta ao passado, às tradições, à identidade singular. A crise de futuro parte da grande crise planetária, da crise da biosfera. É evidente a degradação cada dia maior da biosfera. Ademais, o desenvolvimento da utilização do universo leva à crise das civilizações tradicionais, para o proveito da modernidade. No entanto, nos países ocidentais onde chegou a existir a modernidade, ela não trouxe a felicidade, o bem-estar, o bem-viver. Há uma crise da modernidade, de desenvolvimento, crise demográfica, com migrações dos países pobres aos ricos, dos países superpovoados aos menos povoados. Todas as crises estão mescladas e interagem umas com as outras. Todas essas crises são crises de humanidade. Assim, podemos ver que a globalização é o pior de todos e, ao mesmo tempo, o melhor. Como se pode pensar isso? Chegou-se à interdependência de todas as partes da espécie humana. Se houvesse alguma declaração das Nações Unidas, seria uma declaração de interdependência, que significa comunidade de destino, porque os mesmos perigos mortais são de toda a humanidade: perigo nuclear, perigo ecológico, perigo econômico. O que significa comunidade de destino? Uma Nação, uma Pátria, eram definidas como comunidades de destino. Hoje, a humanidade é uma comunidade de destino, é uma Terra Pátria. Não uma pátria que nega as nações, mas reconhece as nações, com o princípio da unidade-diversidade. A consciência de que é uma comunidade de destino ainda é muito limitada a alguns grupos altermundistas, mas é ainda muito limitada. O problema é como desenvolver a comunidade de destino. Outra coisa, quando um sistema não dá mais a possibilidade de tratar seus problemas vitais e mortais, ocorre ou sua desintegração, ou sua regressão, ou a capacidade de produzir de si mesmo um metassistema, quer dizer, um sistema mais rico, mais forte, com a capacidade de resolver e tratar seus problemas vitais. 39

Agora os processos catastróficos são mais prováveis. Isso não significa certeza, porque muitas vezes houve grandes probabilidades que não se concretizaram. Havia uma grande probabilidade de um império nazista na Europa, até 1941, quando ocorreu uma primeira vitória soviética sobre o império, e quando os Estados Unidos entraram em guerra com o ataque dos japoneses ao Pearl Harbor. Isso era totalmente improvável seis meses antes, para o melhor e para o pior. Então, o caminho para a metamorfose é improvável. A metamorfose é uma coisa muito comum na vida animal, na vida dos insetos. Quando uma lagarta entra na crisálida é um processo muito interessante porque ele começa sua autodestruição que é, ao mesmo tempo, a autoprodução de uma borboleta. Uma borboleta é o mesmo e é diferente de uma lagarta. Quando a humanidade, dez mil anos antes de Cristo, tinha sociedades sem agricultura, sem Estado, sem castas sociais, coletoras, como as que se mantêm ainda na Amazônia. Para o pior e o melhor, chegaram as sociedades históricas, com Estado, com agriculturas, cidades, religiões, escravidão, filosofia. A metamorfose é uma possibilidade improvável. Então, não se pode decretar a metamorfose ou dizer que há sintomas da chegada da metamorfose, mas que há caminhos. Há dois caminhos. Um é a política da civilização, para lutar contra os efeitos negativos de nossa civilização ocidental, que produziu efeitos positivos, mas os efeitos negativos se desenvolvem mais fortemente a cada dia. O efeito positivo é o individualismo, o efeito negativo o egoísmo, a destruição de solidariedades. O efeito positivo é o bem-estar material; o efeito negativo é um mal-estar psicológico e moral. As grandes cidades são dos ansiolíticos, dos sedativos, dos psicanalistas e dos gurus, todas essas coisas que traduzem o mal-estar. Uma dominação da vida burocrática, obrigatória, e a necessidade de uma vida política, com amor, com comunidade, com fervor, com prazer. Vemos que há um caminho político da civilização, que significa um caminho contra os efeitos mais negativos da civilização ocidental, que hoje é uma civilização mundializada. Política de humanidade significa que se devem buscar caminhos de simbiose do melhor do Ocidente com o melhor das outras civilizações. Não devemos esquecer que o Ocidente é o melhor e o pior. O pior é a dominação tecnológica sobre a natureza, a colonização. O melhor são os direitos humanos, são os direitos da mulher, a democracia. 40

Nas outras civilizações há coisas de valor, os saberes, as artes de fazer, artes de viver, os conhecimentos, por exemplo, da Medicina. A Medicina ocidental não é a única, há várias Medicinas, na China, na Índia, há também a Medicina amazônica, de várias populações indígenas que conhecem as virtudes vegetais, animais. Há os xamãs, que têm poder de curar em cada civilização. É um total equívoco pensar que alfabetizar é dar a verdadeira cultura, porque os analfabetos têm tradições orais de milhares e milhares de anos. Também têm seus erros e ilusões, como no mundo ocidental. Nós temos necessidade de fazer a simbiose, o intercâmbio. Isso significa política de humanidade. É evidente que nós estamos no início de um caminho, que não está pronto. Sempre, na história, tudo que começa é modesto, as inovações são muito pequenas. Quando chegou uma nova religião, Jesus tinha poucos discípulos. Maomé foi rejeitado em Meca. Os socialistas eram alguns intelectuais isolados, considerados estúpidos. O caminho precisa comportar a necessidade de uma reforma da mente, de uma reforma cognitiva, porque nossa cultura nos ensina uma separação das coisas e da natureza, mas na vida não há separação. Não estamos separados da parte animal, do corpo, da parte mental e cultural. A reforma cognitiva é reforma da complexidade do conhecimento, da complexidade do pensamento. Falamos de esperança. Há princípios de esperança. Quais são eles? São as possibilidades criadoras da humanidade. Nas sociedades reificadas, as mentes dos pequenos são domesticadas na escola. As possibilidades criadoras de cada pessoa são inibidas, não podem se expressar. Apenas os artistas, os poetas, os músicos podem exprimi-las, mas elas são de todos e dormem na sociedade. E quando chega uma crise, como a atual, vê-se que todos os modos do pensamento, digamos, normal não têm mais possibilidade de dar resposta. A crise é um estímulo à imaginação e às possibilidades criativas. É também um estímulo às possibilidades regressivas, de uma ilusão de solução de crises, mas a crise é um despertar das possibilidades criadoras. E estamos em um período de crise. Devemos pensar que apenas uma pequena possibilidade da mente e do espírito humano é utilizada. Quando se pensa na época da préhistória, percebe-se que aquelas pessoas tinham o mesmo cérebro que nós, mas havia poucas possibilidades estudadas. Hoje pensamos 41

que estamos no final do desenvolvimento da mente humana ou da humanidade. Não é o fim da história, no sentido de Fukuyama, que dizia que, com a democracia liberal e com o mercado liberal, a humanidade teria encontrado suas últimas possibilidades e nada mais havia para buscar. Penso que sim, é o fim da história que começou há 8 mil anos com guerras sem fim, porque hoje a possibilidade de guerras significa a destruição total da humanidade. A história da humanidade tem 150 mil anos antes da história, a pré-história. Há uma evolução. E nós devemos continuar a evolução além da história que significa guerra, além da violência. Isso significa uma possibilidade de continuar a hominização e a humanização também como esperança, como uma aspiração muito velha, que corre por toda a história humana, nas cidades, nos impérios, que é a harmonia. Aquela harmonia das pequenas civilizações anteriores à história das comunidades, que depois deixou de ser possível, com as classes sociais, as especializações, as opressões. O sonho da harmonia é a razão de existência da ideia de um paraíso. Como não se podia realizar harmonia na terra, então as religiões imaginaram a harmonia no céu, o paraíso cristão, o paraíso islâmico. Depois, houve pensadores que imaginaram a possibilidade de harmonia, que são os utopistas. Thomas Morus imaginou uma ilha de utopia. O francês [Charles] Furier também imaginou utopias em que se satisfizessem todas as paixões humanas. Depois chegaram o socialismo, o comunismo, e disseram “vamos realizar a harmonia sobre a terra”, mas estavam equivocados sobre o modo de fazer harmonia, porque não havia o senso – bastante complexo – de que devemos buscar harmonia sobre a terra, mas não podemos realizar uma total harmonia. Não podemos chegar ao melhor dos mundos, mas podemos tratar de chegar a um mundo melhor. A aspiração da harmonia empurra a busca. As revoltas dos jovens de maio de 1968 tinham essa mesma busca de harmonia. A aspiração da harmonia não vai morrer, vai renascer com formas novas que nós não podemos imaginar. Se pensarmos que há todas essas possibilidades de criação, que chegam do imprevisto, do improvável. Se pensarmos que estamos subdesenvolvidos não economicamente, mas mentalmente. Se pensarmos em tudo isso, podemos pensar que devemos fazer a ressurreição, esperança, porque é evidente que esperança não é certeza. O paradoxo da nossa época é que a esperança é ligada à 42

desesperança, ao progresso dos perigos mortais. O poeta Hölderlin diz que onde cresce o perigo, cresce também a salvação. Quer dizer que a esperança é desesperança, a esperança nasce da desesperança, é uma possibilidade de esperança. O maior problema que vemos é um motivo para nos empenhar nesse movimento e na busca de uma nova via, da política de civilização, da política de humanidade, e chegar, não sei quando, à metamorfose.

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Violência Institucional e Violência nos Locais de Isolamento

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Vicente de Paula Faleiros10 Esta é uma oportunidade de trazer a público uma reflexão sobre a estrutura e o evento da tortura, como um processo político e um evento pessoal, pois vou referir-me ao que passei no Chile com minha prisão em 1973. Agradeço a oportunidade dada pelo Conselho Federal de Psicologia para expressar minha voz silenciada em 35 anos. O trauma Começamos por nos referir à tortura sob o ângulo do sujeito que a sofre, o ângulo do trauma, da perda de referência sobre a relação de si mesmo com o mundo e as pessoas e que traz sofrimento e angústia. Segundo Laplanche e Pontalis (1990), o trauma “é um acontecimento da vida do sujeito que se define por sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de responder a ele adequadamente, pela comoção ou transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que ele provoca na organização psíquica. Em termos econômicos o traumatismo se caracteriza por um afluxo de excitações, que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e a sua capacidade de controlar e de elaborar psiquicamente essas excitações”. Em grego, trauma quer dizer ferida e traumatismo se configura num contexto de complexidade em que o sujeito fica transbordado pelo surgimento da angústia em que se articula o perigo externo com o perigo interno de se não ter reação ao sofrido e ao sofrimento. A tortura é uma situação de perigo extremo para o EU, pois está em risco não só a vida do sujeito, com a possibilidade da extenuação, do sofrimento e da morte, mas também da extenuação psíquica e do terror sobre a sua existência como personalidade tanto por sua memória como por seus conhecimentos e afetos. A relação de submissão e poder A tortura abala a integridade física e psíquica do sujeito, não só pela 10 Vicente de Paula Faleiros é assistente social, doutor em Sociologia, professor da Universidade Católica de Brasília, pesquisador do CNPq, coordenador do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), autor, consultor e poeta.

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ameaça, pelo terror e pela provocação do pavor, mas principalmente pela relação de submissão a que o torturado é submetido. Busca-se a dominação total do outro ao poder do torturador. Essa submissão se faz tanto pela anulação do sujeito e de suas reações mais simples como pela expressão de superioridade e de suposta “magnanimidade” do poder do torturador. Suposta “magnanimidade” pelas ofertas de conciliação, de perdão e mesmo de pausas ou cigarros, pois ela faz parte do jogo de extenuação e respiro a que o torturado é submetido, não saindo das mãos do algoz. É importante destacar como o torturado vê o torturador e sua estrutura de dominação. O torturado fica à mercê do torturador, com diferentes dispositivos e tecnologias que veremos mais adiante. Destaco a visão de quem se vê na visão do outro. O torturado é visto como o inimigo que está nas mãos do torturador, como uma presa ou trunfo a quem se pode dar liberdade ou mais terror e repressão. Esse é o poder que detêm, em geral, os torturadores. Assim, a relação de tortura se apresenta profundamente arbitrária: não existem direitos, mas a vontade de poder é limite de quem pratica a tortura. A arbitrariedade A arbitrariedade ora se apresenta como força bruta, ora como uma forma de sedução para a aliança entre torturado e torturador. O objetivo da tortura política é o de aniquilar a organização opositora pela obtenção de informação sobre o grupo, os atos, os projetos e o processo em que a organização considerada opositora possa atuar. A tortura política nos regimes totalitários se inscreve num sistema que não aceita divergências nem negociação, mas que visa a sustentar o pensamento único dos dominantes. Isto configura um duplo vínculo entre o torturado e o torturador, que perde a referência de uma lógica, pois o torturador se estrutura também na dominação do ambiente. Hannah Arendt (1972:67) assinala que o totalitarismo associa propaganda e terror, mas substitui a propaganda pelo doutrinamento e usa a violência para expandir suas doutrinas e impor falsas informações. O regime totalitário se caracteriza pelo aniquilamento do outro e pelo aniquilamento da política como mediação de conflitos. O conflito é considerado insurreição e deve ser aniquilado pela força. 48

O ambiente da tortura O ambiente da tortura é a casa do torturador. Ele organiza o espaço conforme os limites e as possibilidades do humano a que pretenda chegar com objetos de agressão, de sinais sonoros aterrorizadores, de objetos de sufocação, de perfuramento, de sangramento, de crueldade, sem limites para a vida e para o humano, como são o pau de arara – uma vara pendurada no teto na qual se amarra o sujeito pelas mãos e pés. Pode usar também o cigarro aceso para queimar partes sensíveis do corpo, o chicote, o saco plástico para sufocar, um tanque com água para afogamentos, conforme relatos de colegas presos políticos comigo. Existe também a possibilidade do domínio externo, com ameaças para a família, especialmente para os entes mais queridos, como filhos e filhas, com recados de morte e de tortura em relação a eles. A quebra física da resistência do sujeito se alia à quebra moral, com xingamentos, desqualificações e humilhações do mais baixo nível, para deixar o outro sem nenhuma autoestima. O planejamento O exercício da tortura não consiste em um evento isolado de raiva ou de explosão pessoal, é um poder planejado em detalhes e com requintes. Depende das informações colhidas sobre o torturado e da resistência dele. Considera, também, a prevenção das repercussões que a morte do torturado possa acarretar. Esse planejamento se organiza conforme a própria situação do sujeito e de uma possível pressão sobre ele. Pode haver também uma assessoria médica ou psicológica para que a presa não se esvaia antes de fornecer os dados buscados pelos torturadores. Assim a situação de tortura pode durar vários dias ou até semanas no sentido de enfraquecer o sujeito, torná-lo quebrado ou maleável e também de poder articular outras informações que venham a ser usadas nas sessões de tortura. Quando as informações são obtidas, ou quando são aniquilados outros membros da organização, a tortura pode cessar e passa-se a uma situação de inutilidade do preso.

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O impedimento da ação adversa Diferentemente da prisão comum, a prisão política não visa a uma mudança de comportamento diante de um crime, mas ao impedimento da ação política adversa ao dominante no curto ou médio prazo. Quando essa ação adversa é controlada, o preso se torna inútil, mas a prisão impede que ele volte a fazer contatos ou difusão de ideias. As acusações contra os presos políticos em geral são arbitrárias ou manipuladas em relação a fatos concretos ou nas dimensões em que ocorreram. A punição depende da classificação do inimigo e não da correspondência aos fatos. O enquadramento de alguém como subversivo, para o terror político dominante11, pode ser uma carta, um grito, um gesto, uma afirmação qualquer que passa a ser interpretada como antirregime. Colegas presos comigo acusados de subversivos eram, na véspera do golpe, por exemplo, químicos então acusados de fazer bombas, coisa que nunca haviam feito, ou operários que trabalhavam na construção acusados de construir prédios para o governo deposto. Eu mesmo fui acusado, como professor de planejamento, de ensinar planejamento de guerrilha, e como professor de teoria social, de formar marxistas. Ou seja, sua atividade legal se torna ilegal diante do arbítrio. O que era normal no dia anterior passa a ser anormal, criminoso. Pelo arbítrio, o legal se torna ilegal. O normal se torna patológico, o legitimado, ilegítimo. Relação entre vencedores e vencidos sem direitos A tortura é uma relação entre vencedor e vencido em que com este se pode fazer tudo que vier ao arbítrio do torturador sem o direito, inclusive, de se calar, pois, a captura deve levar a submissão. Um relato de tortura Essas reflexões servem para situar o processo de tortura por que passei no Chile, onde era professor de Serviço Social, na Universidade Católica de Valparaíso, e exilado político. Com o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, a Junta Militar Chilena, sob a liderança do general Augusto Pinochet12, tornou inimigos 11 O terror dominante chama de terrorista a quem o questiona. 12 Nomeado por Allende para conter as rebeliões nos quartéis mobilizadas pelo imperialismo norteamericano e pela elite econômica chilena, prometeu apoio ao presidente e depois o traiu, liderando o golpe.

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não só os apoiadores de Allende como os exilados políticos. O próprio Palácio Presidencial foi bombardeado e Allende se suicidou para não se entregar à sanha dos golpistas apoiados pelos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Em 16 de setembro, quando me prenderam, fui levado para a delegacia policial comum de Viña del Mar, sem nenhuma explicação, com olhos vendados, tendo sido conduzido para um jipe militar na frente do meu filho de um ano e meio, o que lhe causou insegurança. Na delegacia, para diminuir a resistência, passaram-me por um corredor polonês, ou seja, um fila de policiais armados, que me golpearam, naquela hora sem quebra de costelas. A noite passou-se na cela comum, em meio a fezes e água suja, sem respeito a nenhum direito humano, mesmo devido a prisioneiro comum. Na manhã seguinte fui conduzido a um lugar não informado inicialmente, para justamente mostrar o poder da condução e das decisões. E com ameaças de ser jogado no mar quando o veículo militar com homens armados até os dentes passava na praia. Cheguei ao Lebu, um barco desativado ancorado no cais de Valparaíso, fui encaminhado diretamente para o porão, onde havia mais prisioneiros. O piso de aço estava sujo de carvão e sobre ele deveríamos acomodar-nos e, se possível, dormir. O ambiente era de total dominação, como salientei acima. As fezes eram depositadas em tambores que uma vez por dia eram içados para o convés. Numa das vezes, a corda se rompeu e literalmente tomamos um banho de merda. A nós coube a limpeza. Cada oficial do dia exercia seu poder arbitrário: um nos fazia cantar, outro, rezar, outro, ajoelhar, outro, contar piadas e assim por diante. Frequentemente diziam: “Isto aqui não é um hotel”, para lembrar a condição desumana de “ratos de porão”. Quando se necessitava de algum remédio urgente, algum oficial aparecia no convés e perguntava o que havia, jogando para baixo alguns comprimidos de aspirina. Ou seja, o direito à saúde não existia, como aliás nenhum direito social, civil ou político. Não havia cidadania. Quando se comentava das condições, por exemplo, de dormir no ferro do casco do navio, extremamente frio, havia a zombaria dos oficiais ou controladores, como castigo de um feito que se tornava malfeito, na lógica repressiva. Como se ser judeu, de etnia oposta, opositor, passasse a ser crime. 51

O canibalismo político O oficial pode ser caracterizado como um canibal, no sentido de querer estabelecer uma articulação entre a libido, o ódio e a agressividade, pois queriam não só devorar o outro enquanto outro, mas também destruir seus vínculos e sua existência, seu patrimônio, sem nenhum ritual de mediação a não ser seus gritos e ameaças ou zombarias. Esse canibalismo se apropria também das comidas e dos objetos enviado aos presos. Não é de uma fase oral que estamos falando, mas da crueldade, ou seja, do prazer em fazer mal ao outro, em se afirmar em cima do outro, na negação do outro, e de forma consciente. É uma crueldade ao extremo. É, a meu ver, diferente do sadismo, muito longe do sadomasoquismo, pois o torturado tem sofrimento, e não gozo, No sadismo, há um componente de dominação que busca apropriar-se do corpo, ferir o corpo, e a tortura canibal quer destruir o outro como sujeito político, como cidadão e como ser humano, com sua morte civil (liberdade e demais direitos civis), política (direito de participar, de ser reconhecido) e social (vínculos) e de direitos sociais (assistência, saúde, educação). A humilhação do cotidiano e o compartilhamento da dor Para comer, subia-se ao convés, para qualquer tipo de refeição vinda, por exemplo, feijão carunchado com macarrão, que os chilenos chamam de “porotos con riendas” (feijão com rendinhas). O banho era de ducha forte fria, como se fosse uma lavagem de carro. Os interrogatórios eram feitos, em geral, no quartel da Marinha e, quando alguém era chamado, pensávamos em três alternativas: fuzilamento, tortura ou liberdade. Pelos relatos e pela situação dos que voltavam dos interrogatórios, passávamos a preferir o fuzilamento à tortura. Os companheiros que chegavam vinham com costelas quebradas, partes genitais queimadas, feridas, prantos, e nossa maior tortura era ver a tortura dos companheiros. Dois brasileiros presos comigo foram interrogados por oficiais brasileiros no próprio Chile, mostrando a conexão entre as ditaduras latino-americanas na operação conjunta chamada Condor no Cone Sul. Eu já havia sido condenado no Brasil, e eles não. Foram expropriados até de seus relógios no interrogatório, pois o torturador torna-se também um ladrão, já que é protegido pela impunidade, e toma os objetos pessoais dos torturados como troféus ou um botim de guerra. 52

A negação dos vínculos afetivos Quando a família, depois de buscas e buscas por informação, descobre você, a comunicação é impedida diretamente, só se permitindo bilhetes, que são lidos e censurados, ou seja, os vínculos possíveis são cortados. Os bilhetes falam de afeto e têm pelo menos a finalidade de dar sinais de vida, pois o risco da morte é absolutamente presente. Se a família enviasse alimentos ou objetos de uso pessoal, uma parte era roubada pelos carcereiros, entregando-se apenas o que lhes conviesse. Assim, o capturado era desapossado de tudo: não tinha mais posse de si nem de seus objetos nem de seus vínculos. No conteúdo dos bilhetes havia no silêncio da vida política, a expressão de que “estávamos bem”, preocupando-me com meu filho de um ano, na busca de um conforto nas raspagens das palavras dos bilhetes. Entre os prisioneiros, fazíamos a solidariedade possível, além de cuidar dos feridos pela tortura, ferida que significa justamente trauma, na sua expressão etimológica acima assinalada. Dividíamos a comida recebida, as acomodações para os enfermos, os restos de algum barbante para fazer bola ou uma rede de jogo, e conversas. O único livro permitido era a bíblia, e alguns usavam de sua interpretação para doutrinamento. O interrogatório No meu interrogatório, por ser estrangeiro e com possibilidade de ser reclamado pelo Comitê de Refugiados da ONU13, as técnicas usadas foram planejadas para o máximo de efeito, com o mínimo de lesão física. Fui atado pelo pescoço com um corda com nó de enforcamento e obrigado a colocar-me na ponta dos pés, com olhos vendados, a altas horas da noite, e o movimento de baixar os pés fazia com que a corda se apertasse. Essa situação mostrava o domínio do torturador sobre o ambiente e a tentativa de domínio e de poder sobre o torturado. Creio que o interrogatório durou umas duas ou três horas, com as perguntas de inversão da situação legítima para a ilegal, configurando acusações de fomentador do comunismo ou do marxismo no Chile, sem nenhuma prova material, como se exige nas acusações no sistema democrático. Não interessava a prova, interessava a destruição do inimigo forjado apenas por ter uma vida legal de apoio ao presidente Allende. O legal 13 Um limite para o torturador. É importante ter esses organismos internacionais.

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se inverte em ilegal apenas pelo poder arbitrário, e não pela estrutura democrática. A lei do mais forte substitui a lei legítima. Após o interrogatório, sob efeito do trauma, lembro-me apenas de ter tomado um balde de água que estava no convés. Não revelei nome de ninguém. A dominação também se combina com ofertas como, por exemplo uma vez fui convidado a varrer a sala administrativa e também a ajudar nas amarrações do barco. Convites que visavam a aproximar o torturado do dominante, ou o preso do carcereiro. Do ponto de vista político, é mais difícil viver o dilema do prisioneiro, pois persiste não só a violência do mais forte como sua doutrina, que é oposta à visão política do prisioneiro. A resiliência É essa visão política da estrutura de classes da sociedade, a motivação por uma causa social, a crença nos ideais democráticos, de justiça, de igualdade que colocam força para a resiliência. O terror dominante do Estado totalitário representa a realização do capitalismo na sua máxima expressão e a maioria dos presos políticos sabem que essa repressão é uma fase histórica que precisa ser lida no contexto. As histórias dos presos comuns são interrompidas na prisão, e mesmo em regimes democráticos “a sobrepena” é imposta nas prisões onde se negam os direitos fundamentais e os direitos humanos. A resiliência se fortalece com o apoio das organizações internacionais, de comitês locais e principalmente da família. Forma-se, assim, um feixe que é mais difícil de quebrar que uma vara isolada, como mostram os indígenas nos atados que fazem. Minha mulher, Eva, pode ter salvado minha vida. Fez tudo para proteger nosso filho. Fez contatos com as Igrejas, com conhecidos, com pessoas de alguma influência no Brasil para pressionar a Junta Militar. A relação entre ética e violência é complexa e a relação entre meios e fins nos coloca diante da violência da ordem e da violência da Justiça. A ordem instituinte implica a luta pela emancipação dos grilhões (FALEIROS, 2004). Os escravos se rebelaram contra os grilhões dos senhores, mas as revoluções passam por momentos em que o confronto muda para um nível em que a derrota ou a vitória são tratadas sem mediações políticas. 54

Na tortura não há mediação política, não existe a negociação livre. A tortura não se justifica nem mesmo pela revolução ou pela guerra, pois existem limites da própria humanidade e valores que podem ser construídos com vencedores e com derrotados. A consideração pelo inimigo construído ou como ameaça real implica reconhecê-lo como sujeito, embora em posição contrária. Segundo Hannah Arendt (1972, 232), “permanece também essa verdade de que cada fim na história contém necessariamente um novo começo; esse começo é a única promessa mensagem que o fim possa jamais dar. O começo, antes de se tornar um acontecimento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente ele é idêntico à liberdade do homem... esse começo está garantido em cada novo nascimento; ele é em verdade cada homem”. No Brasil os opositores à ditadura eram classificados de subversivos e hoje a CIA os denomina de insurgentes, ou seja, insubordinados. O livro Brasil Nunca Mais (1985) destaca como instrumentos do poder do torturador a partir de depoimentos: as aulas de tortura, o pau de arara, o choque elétrico, a pimentinha – máquina vermelha com alta amperagem e baixa voltagem; o afogamento com mangueira de água nas narinas; cadeira do dragão com choque em cadeira de zinco ou barbeiro; a geladeira, que é ser colocado nu no frio; uso de insetos e animais; uso de produtos químicos; uso de objetos nos orifícios; palmatória. Ou seja, não há limites para o terror, o horror é o que alguns presos chamam de inferno. Terror e horror se misturam e fazem o inferno. Paradoxalmente, talvez o torturador se ache no paraíso. Se em situação não há obrigação de autoinculpação, muito mais diante da tortura. Não há mentira diante da tortura. A palavra é a autodefesa. Ameaça à vida. Se se pode reagir com arma em legítima defesa, muito mais com o silêncio. A única arma do torturado ou a versão. Saída Se a resiliência, em seus aspectos individual e coletivo, é fundamental para suportar o terror organizado da tortura, a saída da prisão é o objetivo do prisioneiro. Ela depende das circunstâncias políticas, das manobras do regime, da situação física do preso e das pressões exercidas.

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A pressão pela saída foi articulada por minha mulher e pelo Comitê de Refugiados das Nações Unidas, com apoio do pastor Joaquim, da Igreja Evangélica, e também de contatos feitos com brasileiros que se mexeram para pressionar o regime chileno pedindo minha libertação. O preso não pode ficar em situação de isolamento social, embora o coloquem em isolamento físico em celas ou cubículos. A soltura é um momento de esperança, alívio e de recomeço, assim como de preocupação com os que ficam. Alívio de não ter sido fuzilado ou mais torturado. Na minha soltura os companheiros presos no barco perceberam meu aceno e começaram a gritar: “Escriba, escriba”, para pedir a denúncia da situação, o que fiz no exílio na Holanda e no Canadá. Começaram a cantar em coro, num uníssono de mais de 500 vozes14, uma das poucas músicas brasileiras divulgadas no Chile naquele momento: “Tristeza, por favor vá embora, minha alma que chora está vendo seu fim”, que mostra o fim para o torturado, mas a esperança do fim da tortura. Passei vários anos sem poder ouvir essa música pelo embargo que o momento e a tristeza provocam. Depois de 35 anos pude falar da tristeza da ditadura, que só vai embora com a democracia e uma sociedade mais justa. No Brasil, os opositores à ditadura foram classificados pelo conceito de subversão. E ainda é importante falar para os jovens dessa situação, porque permanece essa ferida na sociedade brasileira. Nós, no Uruguai, na Argentina, no Chile, estamos diante não de um fato que passou. Estamos diante de uma situação que está ferindo a sociedade. No dia 27 de setembro, anteontem, o Curió abriu arquivos, mostrando que a repressão foi muito mais dura do que pensamos. No Brasil não houve ditabranda, a ditadura foi violentíssima. E há uma discussão sobre a revisão ou não da lei de anistia de 1979, que não pune os torturadores. No governo federal existe esse debate entre a Advocacia Geral da União e a Secretaria de Direitos Humanos, tendo a primeira, pelo parecer do Dr. Toffoli, legitimado a lei da anistia, que também aplica a anistia aos chamados “crimes conexos” e perdoa os torturadores. É preciso voltar a retomar, a discutir essa questão no Brasil, está em jogo nossa dignidade como povo e nossa proposta civilizatória para isto nunca mais venha a acontecer. 14 No barco havia três porões onde se amontoavam 900 pessoas, sendo 300, aproximadamente, em cada um deles.

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Referências ARENDT, Le système totalitaire. Paris: Seuil, 1972. LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUF, 1990. FALEIROS. V. P. A questão da violência. In. SOUSA Jr. J. G. et al. Educando para os direitos humanos. Porto Alegre: Síntese, 2004, p. 83-98. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.

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POR QUE A VIOLÊNCIA?15 Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes16 Na mitologia grega, os grandes trágicos se incumbiram de perpetuar histórias de violência contadas e recontadas em suas obras, apresentando-a ora como destino, ora como castigo e punição. A tragédia de Édipo é uma das que se impuseram como destino, do qual Édipo, apesar de todos os artifícios, não conseguiu escapar. Nem ele nem seus descendentes. Antígona, sua filha, também predestinada ao fim trágico, enfrentou com altivez seu ocaso, após desafiar Creonte, o Rei de Tebas. Os irmãos de Antígona, Polinices e Etéocles, lutaram em posições adversárias, na guerra dos Sete Chefes contra Tebas. Iguais em destreza e coragem se feriram de morte um ao outro. Creonte organizou cerimônia fúnebre para Etéocles, que lutara em seu favor, e proibiu que se desse sepultura a Polinices, que o desafiara. Antígona se revoltou contra a proibição do Rei e decidiu sepultar o irmão Polinices, cumprindo o sagrado dever de dar sepultura aos mortos. Informado sobre o ato de Antígona, Creonte determina a sua tortura e morte, encerrando-a viva em uma gruta de pedras nas montanhas. Ao ser confinada nesse lugar opaco, indeterminado entre a vida e a morte, Antígona sucumbiria sem qualquer possibilidade de sobreviver. A sentença de Creonte antecipa um destino trágico que os tiranos de civilizações posteriores passaram a exercer. A negação da sepultura aos que mandam matar e a punição cruel aos insubmissos, fazendo-os desaparecer. A humanidade continua a conviver com acontecimentos que tiveram sua fundação há dois mil e quinhentos anos e que têm sido reatualizados, através das civilizações, por atos igualmente violentos e perversos. Pensadores modernos e contemporâneos continuam a se preocupar com a violência e a esquadrinhar as raízes de sua fundação. Entre estes, Freud é um dos que tentam compreender como a violência se 15 Versão modificada deste trabalho foi apresentada no livro Tortura, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 2010. 16 Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (2007-2009). Membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (2007-2009). Coordenadora-Geral de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (2009-2011). Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP ( 2011-2013)

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constrói, e seu livro Totem e Tabu, escrito em 1913, fala do assassinato do pai da horda primitiva pelos irmãos, que imediatamente após esse ato se descobrem irmanados em um ato criminoso. Em culpa passam a converter o pai terrível em um pai mítico e simbólico e os laços frutos da culpa sustentarão sua união para manter a idealização do pai protetor. Essa nova relação irá aparecer como um laço social, perpetuado em novas formas de organização. A análise que Freud faz desse ato primevo revela também que o que cria o movimento civilizatório não é a violência, mas sim o movimento que intercepta a continuidade da violência, o estabelecimento simbólico do pai totêmico, o acordo entre os irmãos para interromper os assassinatos. A criação dessa estrutura é possível pela sustentação de um acordo que perpetua uma ordem e ao mesmo tempo sustenta o poder. Somos herdeiros de uma história de violência e a fundação do social para a psicanálise se constrói a partir do parricídio e das decorrências desse ato, pela via simbólica. Os requisitos para que a cultura se sustente estão nos mecanismos que passam a regular as relações sociais, que se multiplicam na mesma medida em que a violência irrompe como um ato que pulsa na raiz. Também as religiões propuseram um acordo civilizatório para administrar a culpa e a violência, tornando a violência presentificada mediante rituais sacrificiais de purificação. René Girard em seu livro A violência e o sagrado diz que o sacrifício e os atos de expiação instituídos pelas religiões tinham o papel de atenuar a violência, e que as sociedades arcaicas o exerciam permanentemente por meio das vítimas expiatórias, os pharmakós. Essas vítimas eram mantidas às custas da cidade de Atenas na Grécia Antiga e permaneciam disponíveis para ser sacrificadas quando acontecia alguma calamidade ou mesmo se houvesse ameaça de acontecer ou quando havia epidemia, invasões estrangeiras, desavenças internas ou quaisquer outros acontecimentos que perturbassem a coletividade. Quando algum desses perigos ameaçava a população, entre os pharmakós um era escolhido para circular pela cidade e eliminar as impurezas que seriam dissolvidas quando fosse sacrificado em uma cerimônia da qual deveria participar toda a população. Os pharmakós eram considerados personagens desprezíveis, mas, ao mesmo tempo, tinham um papel a desempenhar: sua morte sacrificial traria a paz e a fecundidade. 60

Com o desenvolvimento das formas de organização em sociedade, do conhecimento e dos saberes, a ciência também passa a buscar uma solução para enfrentar a violência, criando novas estruturas para resolvêla. A organização de um sistema de juízes e julgadores supostamente cegos e imparciais não dá conta do papel que lhe é outorgado. Edgar de Assis Carvalho, na apresentação do livro A violência e o sagrado (GIRARD, 1990), diz que mesmo que o sistema judiciário contemporâneo acabe por racionalizar toda a sede de vingança que escorre pelos poros do sistema social, parece ser impossível não ter que se usar da violência quando se quer liquidá-la. é exatamente por isso, que ela é interminável. Tudo leva a crer que os humanos acabam sempre engendrando crises sacrificiais suplementares que exigem novas vítimas expiatórias para os quais se dirige todo o capital de ódio e desconfiança que uma sociedade determinada consegue por em movimento. A figura do pharmakós irá permeando as organizações contemporâneas, e os homens, conforme suas crenças, engendram novos pharmakós que não são sacrificados para expiação de desastres ambientais parcialmente resolvidos pela ciência e pela tecnologia, mas para aplacar medos e angústias próprias, para aplacar preconceitos que se revelam nas diferenças não toleradas em relação ao exercício da sexualidade, à cor da pele e traços genéticos, na intolerância religiosa e de crenças e, principalmente, nas diferenças de ideais sobredeterminados por interesses macropolíticos, ideológicos, econômicos e de poder. Entre os atos expiatórios contemporâneos, o linchamento aparece como a manifestação violenta em grupo. Maria Victória Benevides (1982), em um texto sobre a prática do linchamento no Brasil, disse que a interpretação mais comumente aceita para a palavra linchamento remete a Carlos Lynch, fazendeiro da Virgínia, que durante a revolução americana liderou uma organização privada para a punição de criminosos e de legalistas fiéis à coroa. Historicamente são apontados como análogas à prática do linchamento as organizações informais que pretendiam substituir os procedimentos legais de prevenção e repressão ao crime, uma justiça criminal paralela, tais como a perseguição dos judeus na Alemanha hitlerista. Em épocas mais recentes, são conhecidos os linchamentos dos negros nos Estados Unidos com a Ku Klux Klan. Correntemente o termo 61

linchamento, continua Benevides, “passou a designar toda a ação violenta coletiva para punição sumária dos indivíduos suposta ou efetivamente acusados de crime [...] e ele é conhecido mais popularmente como o ato de se fazer justiça com as próprias mãos.” No Brasil, o linchamento se manifesta também como massacre, chacina ou extermínio praticado não por uma turba anônima e enraivecida, mas instigado por agentes públicos ou por quem se arroga o direito de execução. Os acontecimentos que ocorreram em 1992, na Casa de Detenção em São Paulo, conhecido como Massacre de Carandiru, deixaram pelo menos 111 presos mortos no confronto com o batalhão de choque da polícia, que invadiu o presídio autorizado pelo então governador do estado de São Paulo, Antonio Fleury Filho. A operação envolveu 400 policiais, além de cães treinados para o ataque, deixando corpos despedaçados. Dos 120 supostos autores do massacre, apenas um foi julgado, o coronel Ubiratan, principal responsável, pessoalmente presente na chacina. Foi condenado a 632 anos de prisão. O coronel não ficou preso, recebeu o benefício de recorrer da sentença em liberdade por ser réu primário e acabou sendo assassinado em 2006 em sua própria casa, em São Paulo, em circunstâncias ainda não plenamente elucidadas. Passados quatorze anos do massacre do Carandiru, ocorreu um massacre a céu aberto em São Paulo, entre os dias 12 e 21 de maio de 2006. Quatrocentos e noventa e três pessoas foram assassinadas em cercos empreendidos pela polícia como represália aos ataques atribuídos ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Muitos dos quatrocentos e noventa e três presos eram jovens e trabalhadores com carteira assinada no bolso e contracheques sujos de sangue. A revolta levou mães e familiares dos mortos a se organizarem em vã e dolorosa busca de justiça. A principal meta dessas mães é o resgate da memória dos filhos, tratados como bandidos. Outros foram mortos por serem negros, pardos e também pobres. Em média, cada vítima levou quase cinco tiros, 60% dos mortos receberam ao menos um tiro na cabeça, e 27%, ao menos, um tiro na nuca. Uma das mães disse à revista Carta Capital em maio de 2009 “que seu filho era gari e que varreu de manhã a rua em que foi executado à tarde”. O aniversário dos crimes de maio de 2006 coincidiu com a divulgação, feita em 2009, da informação sobre a Operação Castelinho 62

de 2002. A operação envolveu mais de cem soldados e foi planejada e coordenada por policiais do Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi), que emboscou e executou, em uma rodovia paulista, doze homens apresentados como integrantes do PCC e que teriam resistido à voz de prisão. O grupo supostamente do PCC viajava em ônibus que foi emboscado e recebeu 61 tiros. A praça em uma rodovia no estado de São Paulo, onde a operação de eliminação ocorreu, era conhecida como Castelinho. O relatório sobre a tortura no Brasil, organizado em 2005 pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados Federais, incluiu relatos de extermínio, de execuções sumárias, de arrastões, além de suicídios suspeitos em diferentes lugares de cidades no Nordeste do Brasil. Três breves fragmentos relatam casos de extermínio: 1) a morte de Carlos, ocorrida na noite de 10/7/2005, que, segundo informações da família, teria sido retirado da cela por três agentes, por volta das 22 horas, e levado para um lugar ermo na estrada e espancado até a morte. O corpo de Carlos foi visto por uma pessoa que passou pelo local. O delegado José Berto Cruz explicou que o corpo exposto no IML foi encontrado dependurado em um lençol do interior da cela; 2) de acordo com levantamento do Ministério Público, conforme a CPI de extermínio do Nordeste, mais de 32 crianças foram assassinadas nas ações conhecidas como arrastões, que consistiam em arrastar a criança na rua, retirada de sua residência e levada a lugar ermo ou até mesmo em praça pública para execução. Os corpos eram carbonizados; 3) na chacina de Juripiranga, o cabo César, então delegado comissionado, abrira a porta da cadeia e incitara a população contra dois acusados de estupros, que foram arrastados das grades e mortos a pauladas, a socos e tudo mais, no centro da localidade, como publicado pelas comunicações locais. O caso de Sidnei, relatado em 2004 pelo psicólogo Paulo Endo (2007), é um caso emblemático de morte de adolescente dentro de instituição. O caso ocorreu em uma instituição de abrigamento de jovens em conflitos com a lei, em São Paulo. O psicólogo relata: Após um ano e três meses de internação, e vários episódios de espancamentos e tratamento degradante, vexatório, em diferentes unidades da FEBEM, Sidney, então com dezoito anos, encontrado em uma cela em uma das unidades, com parte frontal do tronco e os 63

pés com queimadura de terceiro grau, levado ao hospital permanece dezessete dias no Centro de Terapia Intensiva, onde vem a falecer. As explicações para o incidente que levou Sidney à morte por parte dos funcionários da FEBEM, afirmavam que ele havia ateado fogo no colchão e se queimado. Tais afirmações queriam fazer crer que Sidney havia tentado suicídio (ENDO, 2007).

Os inúmeros casos de falsos suicídios de prisioneiros dentro de instituições do Estado são recorrentes. Na época da ditadura militar, o suicídio do jornalista Lladimir Herzog foi publicamente denunciado como farsa pela família e, por seus advogados, e posteriormente o Estado assumiu a culpa, por sua morte. Também o sindicalista Manoel Fiel Filho foi apresentado como suicida, versão desmontada como farsa pela família e por seus advogados. Entre muitos, esses dois casos se somam a vários outros de desaparecimentos forçados durante o regime militar, ainda sem solução. O suicídio de presos em delegacias de bairros, bem como dentro das próprias instituições prisionais, são frequentes. Em Alagoas, em minuciosa apresentação feita pelo especialista em medicina legal, Jorge Paulete Vanrell, em seminário organizado pela Secretaria de Direitos Humanos em Porto Velho, Rondônia, foi relatado um caso ocorrido em Maceió. A família de um jovem detido para averiguação apresentou queixa ao Ministério Público de Alagoas, por temer pela integridade física do familiar, em razão das queixas que ele fazia à sua irmã. Durante a detenção, o preso sofreu queimaduras, recebeu socos e pontapés, passou por afogamentos e foi transferido da unidade prisional, tendo sido encontrado morto após alguns dias. A perícia feita pelo médico mostra que a posição do corpo, suas vestes impecáveis, o cinto e o tênis com os cordões comprovaram a falsa versão de suicídio. O preso estava como Vladimir Herzog, com as pernas dobradas, e o nó que ele supostamente fizera para se enforcar era um nó profissional e bem cuidado. A posição da corda em volta do pescoço não coincidia com as marcas de dedos indicando esganadura que certamente o levara à morte. De acordo com o legista, houve tentativa de estrangulamento com a vítima consciente, defendendo-se. Houve a concretização do enforcamento com a vítima inconsciente, provavelmente por um forte soco na região da órbita, sem 64

sinais de defesa. O episódio foi um libelo contra os falsos suicídios em instituições penais, que diminuíram e, tragicamente, passaram a ser substituídos por mortes sob custódia, conforme relatos apresentados durante o mesmo seminário. Em 15/12/2007, na cidade de Bauru, no estado de São Paulo, o adolescente Carlos Rodrigues Júnior foi submetido a uma forma de tortura mais ágil na perpetração da violência. Os policiais que o torturavam portavam, dentro da viatura de polícia, o equipamento de tortura. Carlos, dentro de sua própria casa, sofreu trinta descargas elétricas e outras lesões, durante abordagem dos policiais. Dois dos trinta choques elétricos sofridos na região mamária esquerda causaram a parada cardíaca que levou o adolescente à morte. O jornal da cidade de Bauru, em 19/12/2007, apresentou reportagem sobre o caso relatando os fatos, mostrando todas as marcas da tortura de Carlos. De acordo com Maria Orlene Daré (2009), do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, seis policiais militares chegaram à casa de Carlos às três horas da manhã, dizendo ter recebido uma denúncia de que Carlos havia furtado uma moto. Após violentas coronhadas na porta, invadiram a casa. No próprio quarto de Carlos o torturaram, apesar dos apelos da mãe e da irmã, que do lado de fora o ouviam sofrer. Saindo, levaram-no desacordado, e quatro horas depois a família foi informada de sua morte. Os seis policiais foram expulsos da corporação e julgados. Os relatos das chacinas, os casos de execução dentro de aparelhos da polícia militar evidenciam que os locais de isolamento, de prisão e de abrigamento no Brasil, têm sido usados também para matar. A genealogia da violência no Brasil se fundou em um modo de apropriação e de predação pelo colonizador, e esse modelo renovado e atualizado se materializa em diferentes momentos dentro das instituições do Brasil. A escravidão que vigorou no Brasil até 1888 deixou a marca indelével na nossa história. O Brasil manteve a tortura na Colônia e no Império e até 1888, como recurso do poder político para garantir o poder econômico e a riqueza, pois os escravos, mesmo sendo considerados mercadorias, foram inequivocamente os principais produtores da riqueza do país. Também o apresamento dos índios para servir como mão de obra escrava foi prática mantida até o final do século XVIII. A partir de 1964 uma ditadura militar se instalou no Brasil, e os militares não hesitaram em fazer valer toda herança de violência e o 65

pior das formas de dominação que se produziram na nossa história. Atravessados por ideias fascistas e anticomunistas, apoiados por setores orgânicos da sociedade, empresários, banqueiros e setores da hierarquia e da igreja católica, os militares armados depuserem o presidente eleito pelo voto popular. A tortura passou a ser uma prática diária e clandestina, apesar de exercida por agentes do Estado e com autorização dos donos do poder, e desrespeitou todo o arcabouço das proibições do direito internacional sobre a tortura. Muitos presos foram banidos e um contingente significativo permaneceu no Brasil. Pelo menos quarenta mil brasileiros foram atingidos por atos de exceção, por tortura e assassinato durante o regime militar, conforme o livro Brasil Nunca Mais (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). Como a ditadura que se instalou no Brasil teve caráter eminentemente anticomunista e fascista, sua violência atingiu trabalhadores, operários, camponeses, setores da pequena burguesia e da intelectualidade, bem como setores ligados à Igreja Católica que não se aliaram aos golpistas. A campanha pela denúncia da tortura estendida pela ampla anistia geral e irrestrita, no final dos anos 1970, acabou por desnudar o aparato sustentado pela lei de segurança nacional e seus dispositivos de vigilância e monitoramento, que permanecem atuantes. Algumas propostas da anistia ampla, geral e irrestrita foram vitoriosas: abertura das prisões, volta dos banidos e exilados, reintegração profissional dos cassados e início das homenagens a mortos e desaparecidos políticos. Existem objetivos da campanha que não foram minimamente alcançados: a revogação da lei de segurança nacional, o desmantelamento do aparato repressivo, o esclarecimento da situação dos desaparecidos, a extinção absoluta e radical da tortura, o julgamento e a apenação dos responsáveis pelas mortes e pelas torturas praticadas. Essas são exigências que a sociedade brasileira deve assumir em sua plenitude; são bandeiras que a nós competem e nos dizem respeito. A anistia concedida pela Lei de Anistia de 28/8/1979 aos crimes conexos, lei aprovada pelo voto das lideranças dentro de um parlamento sob os limites da ditadura, foi imediatamente interpretada como uma anistia de dupla mão, anistiando as vítimas e, ao mesmo tempo, seus carrascos. A interpretação de quais seriam os crimes conexos aos crimes 66

políticos anistiados distorceu o entendimento a ponto de interpretar a tortura como um crime conexo ao crime político anistiado, unindo no mesmo laço o crime político e o crime praticado pelo torturador. Também, a atitude dos que defendem o esquecimento como um gesto de anistia expressa o negacionismo da memória em relação à história do Brasil, em relação à história de testemunhos e de imagens que se acumularam desde a década de 1970 sobre esses fatos. Os acontecimentos aqui relatados de 1992, 2001, 2002, 2004, 2005, 2006 e 2007 sobre os massacres de presos em delegacias e em instituições sob a responsabilidade do Estado, nos mais diferentes recantos do país, a execução de brasileiros em suas casas e nas ruas à luz do dia são crimes filhotes de um Estado que deixou intacto o aparelho de matar e que não puniu os que o sustentaram; alguns desses agentes foram promovidos, ocupam lugares de poder. A atual exacerbação da escuta telefônica, a sofisticação dos chips e das tornozeleiras para localização de presos foi saudada como avanço no seu monitoramento. As novas tecnologias atualizaram formas de vigiar e de punir. Serviços de detetives foram parcialmente substituídos por câmeras, sensores, chips e, sobretudo, pelos dispositivos eletrônicos e virtuais que se voltam contra a população em geral. Hoje nos constituímos no reverso daquela aldeia global imaginada em 1967 por Marshall McLuhan, em que todos estaríamos dispostos em volta do mesmo monitor de TV. Os equipamentos de escuta, digitais e de captação de imagem nos circulam silenciosos e em segredo, e os limites da privacidade foram eclipsados. A sensação é de estarmos dentro de um aquário eletrônico, em que a ficção científica deixou de ser ficção, tornou-se uma prática de monitoramento. A ciência avança veloz em outras vias, como a do mapeamento cerebral de adolescentes em conflito com a lei, para a descoberta do gene da violência e da agressão, aplaudido por parte da comunidade científica que chamou de obscurantistas os que se insurgiram contra essa prática, entre os quais, os Conselhos de Psicologia Federal e Regionais. Estamos a favor do avanço da ciência; somos profissionais que pesquisamos, produzimos e transmitimos conhecimento. Somos cidadãos e cidadãs que habitam o terceiro milênio e que querem ajudar a construir uma civilização melhor, com todas as conquistas da informação, da imagem e dos recursos da energia elétrica, da energia solar e dos recursos 67

eletrônicos disponíveis pela nanotecnologia e até mesmo em busca das possibilidades do teletransporte de objetos. Contudo, sabemos que o avanço da ciência nunca foi garantia de avanço da civilização. Os campos de extermínio nazistas, com seus dispositivos de eliminação de seres humanos e seus laboratórios com cobaias humanas, estarreceram os homens do século XX e determinaram o desmoronamento da civilização suplantada pela barbárie. No Brasil do século XXI, a espetaculização da violência policial elegeu a população pobre, negra, desempregada, que vive em situações de rua nas grandes cidades e nas comunidades e favelas, como a população a ser monitorada, detida para averiguação e, a qualquer momento, exterminada sumariamente, se assim ficar decidido. Queremos um país em que todos os brasileiros sejam respeitados e que as condições de sua vida sejam dignas e compatíveis com a consolidação crescente da democracia; um país em que a reconciliação nacional e política passe necessariamente do assentamento da verdade, da memória, da justiça. Essas, entre outras, são as questões que assumimos pensar com a campanha contra a violência que foi proposta para psicólogas e psicólogos do Brasil, cumprindo um papel que nos cabe, o de construir um país melhor e de fazer avançar a civilização à qual pertencemos. Referências AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. Trad. Henrique Burigo. _________. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. Trad. Iraci D. Poleti. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. BENEVIDES, M. V. Respostas populares e violência urbana: o caso de linchamento no Brasil (1979-1982). In: DA MATTA, Roberto et al. Violência Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. BOMFIM, M. A América latina – males de origem. Rio de Janeiro: Topkooks, 1993. 68

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão de Direitos Humanos. Relatório sobre Tortura e Direitos Humanos. Brasília, 2005. COMPARATO, F. Dossiê Ditadura – Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil 1964-1985. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. DARÉ, M. O. Informe, CDH/CRP 06, 2009. Mimeografado. ENDO, P. Caso Sidnei. Curso de Capacitação de Multiplicadores em Perícia em Casos de Tortura. SEDH/Conselho Britânico, Brasília, 2007. FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Trad. J. O. Aguiar Abreu. SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Trad. Millôr Fernandes. GIRARD, R. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990. Trad. Martha Gambini, rev. técnica Edgard de Assis Carvalho (UNESP). MARIZ, L. M. Mecanismos de punição e prevenção da Tortura. Texto apresentado no Seminário Nacional “A eficácia da lei da tortura”, revista CEJ, Centro de estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, Brasília. n. 14.

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Maria Amélia de Almeida Teles (Amelinha Teles) 17 Eu trabalho com a questão da violência em diversas situações. Aqui vou dar mais ênfase a uma das atividades que faço na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Acho importante falar do tema sobre a violência, seja violência no âmbito privado, seja no âmbito público, seja nas relações interpessoais, seja a violência contra mulheres, contra negros, contra crianças, contra idosos, contra homossexuais, contra indígenas. Enfim, tudo isso tem de ser muito falado. Tem de ser feita uma leitura crítica dessa realidade, porque não é só a violência policial que foi “naturalizada”. Outros tipos de violência também foram “naturalizados”. Precisamos enfrentar essa questão com conhecimento de causa, com intervenções qualificadas, articuladas e com muita vontade de erradicar a violência na sociedade. Na verdade, a violência tem sido naturalizada de alguma forma. Há gente aparentemente esclarecida, intelectual de esquerda, que diz que a violência é própria do ser humano. Ou seja, o ser humano é violento. Fala assim como se tivéssemos de nos conformar com essa realidade, porque o ser humano teria nascido “com defeito de fabricação”, portanto, vai ser sempre violento. Mesmo que isso seja verdade, do que tenho muitas dúvidas, mas que seja: penso que nós podemos corrigir tantos “defeitos de fabricação”, por que não podemos corrigir esse? Por que não podemos ter uma vida sem violência? Por que não podemos viver sem violência? Acredito que podemos transformar numa convivência ética e digna a vida em sociedade. A violência se aprende e é aprendida, ou seja, é uma construção cultural. No caso da violência doméstica e familiar, aprende-se a ser o agressor ou a agressora, como aprende-se a ser a vítima. Temos de aprender a desconstruir a cultura da violência e transformar a realidade em que vivemos. Nós vivemos historicamente sob a violência do Estado, e é o que eu pretendo desenvolver neste debate: a violência do Estado, que tem sido o principal responsável pela violência na sociedade. É o principal violador 17 Bacharel em Direito, educadora jurídica popular, diretora da União de Mulheres de São Paulo, coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares e do Projeto Maria, Maria, integrante do Núcleo de Pesquisa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

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dos direitos humanos. E nós, que nos acostumamos com essa estrutura violenta, nesses quinhentos anos de história do Estado brasileiro, fomos desenvolvendo uma mentalidade de que é assim mesmo. Conhecemos pouco a nossa história. Temos a cultura de dar as costas à história. Mas precisamos lembrar que, no Brasil, vivemos 350 anos de escravidão. Quando falo em escravidão, falo também em tortura. A escravidão em si já é uma tortura. Mas esta também foi acompanhada de atos de tortura o tempo todo em que existiu. O Brasil foi o último país das Américas que fez a abolição da escravatura. E é o país que ainda não fez a reforma agrária. Eu acho que de todas as Américas, o Brasil e a Argentina foram os que não fizeram a reforma agrária. E quanta gente é assassinada, é violentada nesse conflito por terra em nosso país. O Estado brasileiro é um Estado violento, é um Estado de violência. Quando nos referimos à história dos familiares de mortos e desaparecidos políticos da época da ditadura militar (1964-1985), gostaria de lembrar que das quase duas centenas de desaparecidos políticos, só resgatamos os restos mortais de três, dos quais fizemos o enterro: Luís Eurico Tejera Lisboa (assassinado em 2/9/1972, em São Paulo) foi o primeiro, depois nós enterramos o Dênis Casemiro (assassinado em 18 de maio de 1971, em São Paulo) e, finalmente, a Maria Lúcia Petit da Silva (assassinada em 16 de junho de 1972, no sul do Pará). Ela foi uma guerrilheira do Araguaia, a única até 1996 que teve seus restos mortais localizados, depois de muitos anos, e que finalmente foi sepultada pelos familiares18. Em todos os casos de desaparecidos políticos encontrados, a localização se deu graças à atuação dos familiares e amigos dos desaparecidos políticos. O Estado brasileiro e seus representantes – com raríssimas exceções, eu faço um destaque especial a Luiza Erundina, que deu todo apoio à abertura da Vala de Perus, em 4 de setembro de 1990, na cidade de São Paulo quando era prefeita. Ali pudemos encontrar o Dênis Casemiro e, até com o esforço da Luiza Erundina, conseguimos chegar mais uma vez até o Araguaia, até Marabá, onde buscamos os restos mortais da Maria Lúcia Petit, e por dificuldades de identificação, foi encaminhada

18 No ano de 2009, em 2 de outubro, foi enterrado Bérgson Gurjão, guerrilheiro desaparecido da região do Araguaia, em 2 de maio de 1972. Neste caso também quem achou os restos mortais foram os familiares numa das idas àquela região, em 1991.

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uma outra ossada para Brasília19. Mas, fora isso, temos encontrado sempre uma atitude negligente, uma atitude de dar as costas às nossas reivindicações. E isso pode ser entendido como manutenção da violência. Nós vivemos a violência do Estado durante a ditadura militar. Mas não encontrar, ou não ter o direito de ter a verdade dos fatos, de ter aqueles fatos esclarecidos, também é uma violência. E, muitas vezes, há certa conivência de algumas forças políticas de não compreender ou não reconhecer a continuidade da ação violenta do aparato do Estado em relação ao tratamento dado ao caso dos desaparecidos políticos e de seus familiares. Negar a verdade, não reconhecer os fatos, manter a situação de ocultamento dos cadáveres é manter a impunidade, é autorizar a manutenção da tortura, o que certamente afeta toda a sociedade e a construção da democracia. Curió, um militar, coronel do Exército, que atuou na repressão política contra guerrilheiros e a população da região do Araguaia nos anos 1970, deu recentemente uma entrevista ao Jornal O Estado de S. Paulo20 a respeito dos guerrilheiros do Araguaia, na qual relata que foram executados 41 guerrilheiros. A maioria, homens, mas havia também a participação de mulheres. Ele fala nessa execução, fala inclusive que os executou depois de presos, estavam desarmados, totalmente dominados, portanto, não houve nenhum combate ou resistência. Eles foram friamente executados. Executados em um determinado local, portanto, pelo que ele informa, esse local é conhecido do Exército. Ele relata também sobre os locais, os acampamentos onde se encontravam as forças do Exército no sul do Pará. Pasmem, senhoras e senhores, não houve nenhum gesto do Estado brasileiro para intimar Curió e seus comandantes, responsabilizando-os pelas mortes e exigindo que localizassem os restos mortais dos guerrilheiros citados na entrevista. Aliás, o que tem sido feito para executar a sentença promulgada, em 2003, pela Justiça Federal brasileira, resultante da ação dos familiares para localizar os restos mortais dos guerrilheiros? Não tem sido feito nada. 19 Mais tarde, ou seja, 18 anos depois, o Estado brasileiro identificou a referida ossada como sendo de Bérgson Gurjão. Esta resposta , sem dúvida, se deveu à pressão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que cobra do Brasil uma solução para o caso dos desaparecidos políticos. 20 Entrevista dada ao Jornal O Estado de S. Paulo, em 22 de junho de 2009.

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Ainda hoje há gente que duvida que tenha havido o massacre dos guerrilheiros do Araguaia. Há jornal que fala que no Brasil houve uma ditabranda como disse a Folha de S. Paulo. Querem esconder a ditadura, a luta de resistência por uma parte do povo aos desmandos dos ditadores. Aqui houve movimentos guerrilheiros urbanos e rurais. Aqui há guerrilheiros desaparecidos até hoje. Seus familiares e parte consciente e digna da sociedade cobram tamanha violação dos direitos humanos que se perpetua até os dias atuais. Toda a ação da repressão política nasceu e foi estrategicamente montada e mantida pelo Estado brasileiro por meio de integrantes das Forças Armadas, do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, articuladas com as policias civil, militar e federal, e com o apoio logístico de empresários, latifundiários, entre outros. A ditadura instalou o terror do Estado e para isso houve responsáveis, executores e ordens para execuções, sequestros e prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos dos corpos. Quem executou, como é o caso do Curió, tem condições de citar os nomes dos guerrilheiros e das guerrilheiras assassinados e assassinadas. Certamente, eles sabem para onde mandaram os corpos, no entanto, recusam-se a localizá-los e entregá-los. Quer dizer, na verdade, houve ocultamento dos cadáveres, criando a figura do “desaparecido político” e assim os familiares vivem todos os dias: torturados sem saber o que se passou com cada um deles desde aquela época. Esses fatos dos quais eu estou falando ocorreram em 1972 a 1975, na região do sul do Pará. No entanto, os familiares não tiveram até o momento o direito à verdade, ao esclarecimento desses fatos. E quando os familiares exigem, vão à luta exigir esse reconhecimento, esse esclarecimento os familiares são taxados pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, de revanchistas, porque querem saber das circunstâncias dos sequestros, das mortes e dos desaparecimentos dos corpos, querem a responsabilização dos agentes que cometeram esses atos, querem a verdade, querem a transparência, querem justiça. Isso parece uma luta isolada, uma luta particular de um grupo de familiares, de um grupo de pessoas, digamos assim, “revanchistas”, inconformadas, rancorosas, saudosistas, são alguns dos vários nomes que nos dão. Mas isto faz parte da história de todo o Brasil, é um problema de toda sociedade brasileira. Porque os fatos que não são esclarecidos, não o são porque não há determinação política para que sejam colocados a 74

limpo. Não há vontade política por parte dos representantes do Estado em esclarecê-los, eles se repetem sempre, com o emprego da violência contra a população jovem, negra, pobre, sem terra, sem moradia, sem saúde, sem educação. Eles estão todos os dias acontecendo, repetem-se de várias formas. E hoje é uma violência generalizada, todo mundo tem medo. Se a repressão do Estado se voltou mais para aquelas pessoas consideradas subversivas ou terroristas, taxadas de ter ideias contrárias ao regime autoritário, ao regime ditatorial, hoje a violência do Estado se volta contra a pobreza e criminaliza os movimentos sociais. Portanto, aquilo de que estamos falando daquela época tem a ver com os dias de hoje. E vamos ver uma série de medidas que vão sendo tomadas. Nós temos de desnaturalizar a violência. E temos de trazer a verdade dos fatos, sempre, em qualquer circunstância. Senão, nós não enfrentamos, de fato, a violência. Estamos trabalhando, ainda que ingenuamente, ainda que inconscientemente, no sentido de manter a violência. E acho que nós precisamos pensar numa perspectiva de erradicar a violência, e não de sua perpetuação. Porque o conjunto de fatos que busca trazer o esquecimento, a desmemoriação de uma época, é extremamente grave. Existe uma imposição do silêncio, uma política do esquecimento. Por exemplo, quando o Ministério Público Federal entra com uma ação para que se apurem os crimes ocorridos no Destacamento de Operações de Informações (DOI-Codi) de São Paulo, onde 64 foram mortos sob a responsabilidade do então comandante, Carlos Alberto Brilhante Ustra, major, na época, hoje coronel ou general da reserva, e Aldir Maciel, que também foi comandante, a Advocacia Geral da União tem o descaramento de afirmar que os torturadores foram anistiados e pede o arquivamento do processo. Isso é outra mentira que se prega, dizendo que a anistia foi para os dois lados. Não é verdade21. Por exemplo, na minha família, eu e minha irmã fomos militantes políticas. Eu fui anistiada no dia 30 de agosto de 1979. Saiu no Diário Oficial o meu nome. E o da minha irmã, não. Porque minha irmã tinha participado da guerrilha do Araguaia. A anistia de 1979 foi parcial e não alcançou as pessoas que participaram da luta armada. Minha irmã só veio a ser anistiada em 2006, quando já estava em vigor a Lei nº 21 No dia 29 de abril de 2010, no julgamento da ADPF nº 153, o Supremo Tribunal Federal, aprovou, por 7 votos a favor e 2 contrários, a anistia, que foi para os dois lados, anistiando assim os torturadores. Fato lamentável de nossa história.

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10.559/2002, que também foi uma lei complementar da anistia, até porque a anistia foi parcial e restrita. Não abrangeu todos os militantes perseguidos, assim como também não alcançou os torturadores. Aliás, nem os torturadores reivindicavam anistia. Eles tinham tanta certeza da impunidade que nunca foram em nosso movimento reivindicar anistia. Foram para reprimir e intimidar o movimento pela anistia que mobilizou parcela expressiva da população. Os torturadores nunca tiveram seus nomes publicados como anistiados. A Advocacia Geral da União (AGU), ao fazer um raciocínio deste tipo que anistia torturadores, em pleno século XXI, quando já estamos numa democracia e o Estado brasileiro ratificou tratados e convenções internacionais de direitos humanos que repudiam a tortura, que punem os torturadores, ou está de má-fé ou é ignorante. Infelizmente, sabemos que estão mesmo agindo de má-fé, coniventes com torturadores e com a impunidade. Deram este parecer e conseguiram que a ação impetrada pelo Ministério Público Federal contra os comandantes torturadores e assassinos fosse arquivada sem sequer ter sido apreciado o mérito. Criam o tempo todo mecanismos para desvirtuar nossa luta por justiça e confundir a história. Apostam no esquecimento, na banalização da tortura. A juventude conhece quase nada sobre estes fatos, a maioria não sabe o que foi anistia, se foi para o torturador ou para o torturado. Aliás, é comum falar na anistia recíproca, para os torturadores, ou seja, é uma forma de impor a política do esquecimento. Quando reivindicamos a verdade, quando queremos uma comissão da verdade, que já foi instituída no Chile, na Argentina, na África do Sul, no Peru, enfim, em cerca de 30 países, nós mostramos que o Brasil também precisa fazer sua comissão da verdade, passar sua história a limpo para que possamos ser um povo de cabeça erguida. E o Nelson Jobim, o ministro da Defesa, nos chama de revanchistas, porque queremos a verdade dos fatos. É muito descaramento, e o pior que a gente não vê por parte dos representantes do Estado brasileiro uma reação de protesto que impeça que tamanha desfaçatez permaneça ameaçando a democracia. Há ainda outra questão, os familiares dos guerrilheiros do Araguaia entraram com uma ação em 1982. Para se ter uma ideia de como que o processo é difícil: essa ação só foi julgada 21 anos depois (2003), quando entramos com a mesma ação no âmbito do sistema interamericano 76

de direitos humanos, em 1996, ao encaminharmos o pedido para que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA o apreciasse e o encaminhasse para julgamento na corte22. Ou seja, em 1996, os familiares decidiram entrar na Organização dos Estados Americanos, na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, buscar justiça fora do país, já que aqui não se consegue. Finalmente, em 2003, a juíza federal Solange Salgado deu a decisão de que o Estado brasileiro era obrigado a localizar e entregar os restos mortais. A partir de então, o Estado entrou com vários recursos contra nós, perdeu todos. Somente em 2007, a ação foi transitada em julgado, isto é passou a ser definitiva, pois o Estado perdeu todos os recursos impetrados contra nós. Em 2007 foi o último julgamento desses recursos. Faz dois anos que nós estamos aguardando que o Estado execute uma ação que já foi decidida pelo próprio Estado que deve ser executada. O Estado não obedece o comando do próprio Estado. Porque o Executivo e o Judiciário são parte do mesmo Estado. Nós encaminhamos essa ação em 1996 para a OEA, ela foi finalmente admitida na Corte. E hoje o Brasil está na condição de réu na Corte Interamericana. E vai ser julgado em breve, e deve ser condenado, porque não fala nem busca a verdade. Essas notícias veiculadas no Estadão ou na Folha de S.Paulo, ou mesmo na grande imprensa, são notícias picadinhas e fragmentadas, são notícias usadas para prorrogar a prática da violência contra os familiares. Imagine que, você, família, um dia fica sabendo que seu companheiro foi assassinado pelo coronel Lício, que é um coronel do Exército, que vai ao Congresso Nacional, que fala que matou seu companheiro, em público, na televisão, na TV do Congresso Nacional a que qualquer pessoa pode assistir, como foi o caso da minha irmã. O coronel Lício foi ao Congresso Nacional, convidado para receber uma homenagem pelos crimes cometidos contra os guerrilheiros, seu discurso feito durante o ato público é transmitido ao vivo e ele diz o seguinte: “Olha, dona Crimeia, a senhora deve estar me ouvindo em algum lugar, fui eu que matei o André Grabóis”. André Grabóis era o companheiro da minha irmã. Um dia você ouve essa notícia, outro dia você vê o Curió falando que executou 41 guerrilheiros, quer dizer, 22 A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA deu a sentença , no dia 14 de dezembro de 2010, que condena o Estado brasileiro a localizar os restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia e também os demais assassinados em outras regiões do pais. Exige que o Estado brasileiro revogue a decisão do STF em relação à anistia e que cumpra os tratados dos direitos humanos.

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cada dia você tem uma notícia, por que, então, o Estado brasileiro não vem a público esclarecer os fatos? A nação brasileira merece respeito, a representação do Estado brasileiro tem sido covarde, não tem outro nome, para esta falta de coragem, é covardia. Por que o Estado brasileiro não chama os familiares, esclarece sobre os acontecimentos daquela época, nomeia e encaminha os responsáveis para serem devidamente punidos, conforme as leis e os tratados internacionais ratificados? Tudo se resolve quando há vontade para resolver. Para tudo se dá um jeito. Entreguem os restos mortais de nossos parentes. Deixem-nos sepultar nossos mortos. Mas deem uma resposta firme e definitiva. Acabem com essa tortura. Parece uma coisa particular, porque eu vivo isso intensamente, mas não é, é problema da história brasileira. Isso é um problema do estado e da sociedade brasileiros. Isso é um problema do nosso país. Isso é um problema que repercute nos pequenos atos da vida cotidiana, não apenas nos grandes atos. Nós vivemos recentemente um escândalo do Senado em que vimos, novamente, a existência de decreto secreto. Decreto secreto é coisa da ditadura. Quando foi instituído esse decreto secreto, foi no AI-5 (Ato institucional nº. 5) imposto ao país no dia 13 de dezembro de 1968. Naquela ocasião, quando vivíamos sob uma ditadura, foram emitidos, editados vários decretos secretos. Mas agora, quando precisamos com urgência, construir o estado democrático de direito, o Senado brasileiro mantém os mesmos mecanismos autoritários da ditadura, o que é isso, gente? Para discutir violência, nós temos de discutir tudo, ou pelos menos estar ligados em todo esse contexto histórico político que vivemos. Temos que ter uma leitura crítica desse contexto. Sou uma sobrevivente. Denunciamos a tortura ainda na época da vigência da ditadura, inclusive na Justiça militar, sendo ameaçados de ir novamente para a tortura. Quando a gente denunciava a tortura, muitos companheiros e companheiras foram ameaçados de voltar para a tortura, mas nós denunciamos o Carlos Alberto Brilhante Ustra, como torturador e responsável por assassinatos, em 1973, na Auditoria Militar de São Paulo. Evidentemente que a Justiça militar não tomou nenhuma providência no sentido de investigar. Nós voltamos com essa denúncia, em 2005, quando abrimos uma ação declaratória para que o Estado brasileiro reconhecesse e declarasse o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra como 78

torturador. Nós fomos vitoriosos, em sentença promulgada em 7 de outubro de 2008, o Estado brasileiro declarou o Ustra como torturador. Vale a pena lutar, por que nós fomos vitoriosos, e o juiz que deu a sentença a favor da família Teles, que é minha família disse que crime contra os direitos humanos é crime imprescritível. É a primeira vez que uma decisão judicial no Brasil tem esse conteúdo. Um conteúdo altamente positivo para que continuemos essa luta.

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Marcus Vinícius de Oliveira23 Talvez o horror não seja a melhor forma de relacionamento com a violência; quero aqui defender que a violência tem produzido horror. O horror não é melhor forma de relação com a violência, o horror é uma das características dela, mas nos impede de olhar para a violência. Quero defender que precisamos superar o horror da violência para olhar para a violência, para compreender a violência. Esse talvez seja o desafio, porque, como o horror assusta, desviamos o olhar, acabamos apresentando eventualmente respostas e soluções que podem ser limitadas exatamente porque não podemos olhar diretamente nos olhos do monstro. Estou defendendo uma ideia de que essa investigação exige ousadia e coragem. Gostaria de pegar pelo ponto macro, que encontra apoio na fala da Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes (Dodora), mas eu quero na verdade trazer a ideia de que o projeto civilizatório greco-romano, judaico-cristão, ocidentalocêntrico, eurocêntrico, branco, católico, universalista, baseia-se na violência, permanentemente. A violência faz parte da sua trajetória, não acho que hoje sejamos mais violentos do que tenhamos sido nesse projeto civilizatório, inclusive porque somos mais romanos do que gregos nesse projeto, essa trajetória de violência é a trajetória que marca nossa civilização. A violência é um pressuposto dessa civilização, esse projeto de civilização tem como seu pilar de sustentação a violência. Talvez eu esteja um pouco em contradição com meus colegas, que não acham que somos mais violentos hoje, eu acho que esse projeto civilizatório depende da violência, precisa da violência. Isso não quer dizer que não vamos lutar contra a violência, isso não significa que vamos desmobilizar. Nós não vamos deixar de repudiar. Isso não significa que vamos. deixar de afirmar o ideal da supressão da violência ou da eliminação da violência, mas precisamos compreender que a economia 23 Psicólogo, mestre em Saúde Pública, doutor em Saúde Coletiva. Foi presidente do Conselho Federal de Psicologia. É professor da UFBA, coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do IPSIUFBA. Diretor do Instituto Silvia Lane, Psicologia e Compromisso Social. Integrante do Núcleo de Estudos pela Superação dos Manicômios, atuando principalmente em Reforma Psiquiátrica e Saúde Mental. Clínica Psicossocial das Psicoses, Psicologia e Direitos Humanos, Desigualdade Social e Subjetividade. Este texto não foi revisado pelo autor.

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política que sustenta os processos de dominação planetários com base em um projeto imperial é baseada na violência, sem a violência não se mantém essa ordem de dominação. Nós estamos lidando com a invasão do Iraque, com a mentira do Bush, o planeta inteiro sabe que é mentira, o planeta inteiro sabe que não tinha arma química coisa nenhuma, e o Bush invade o Iraque, é assim, nós todos sabemos de uma invasão fabricada. E é assim com todos os negócios que envolvem os interesses capitalistas. A eliminação recente de um pescador no Rio de Janeiro por oposição a uma obra de uma empreiteira brasileira é o velho método de resolver os negócios dos empecilhos ao capitalismo. O capitalismo sempre resolveu seus empecilhos removendo-os, por meio do extermínio. Eu queria trazer essa ideia, talvez uma ideia importante, de que a violência seja mais constitutiva do nosso projeto civilizatório do que nós gostamos de admitir. Isso é um tema que pode dar pano para a manga. A opção burguesa pelo liberalismo nunca significou um projeto de abolição da violência, mas a metamorfose das suas formas de presença social, o melhor que nós temos na perspectiva do mundo formatado, na perspectiva do homem burguês. Como nos ensina o Leandro Konder, o homem burguês somos nós, o homem formatado segundo as possibilidades dadas e passadas na ordem social instituída pela burguesia. Um homem burguês é um homem liberal, mas o homem liberal não significou em hipótese alguma a remoção da ideia de que a violência seria um recurso utilizável. Aliás, o sociólogo Norbert Elias nos ensina que, no processo civilizador, de que o combinado da interiorização da violência, da abdicação do exercício da violência nas relações interpessoais comuns correntes da cidade, o pressuposto da civilização, da educação, da introjeção dos nossos impulsos agressivos se deu como correlato da centralização do poder do Estado, da organização do poder do Estado absoluto e efetivamente aprendemos com Max Weber que o Estado é o detentor do monopólio da violência. O combinado foi de que a violência continuasse sendo um recurso do Estado para fazer gestão da ordem burguesa, da ordem capitalista. Então seria importante, quando analisamos a questão da presença da violência na sociedade contemporânea, que levássemos em consideração ela não 82

ter sido descartada como opção da economia política, da gestão social, da administração dos interesses, do desenvolvimento do capitalismo. E neste ponto, acho que o “bicho pega”, porque estamos lidando com a questão em uma proporção mais problemática. Queria trazer que para o Brasil e para outros países periféricos de modernização tardia, esta questão da forma como importamos os valores da modernidade ocidental, os valores típicos que constituem a ordem burguesa. É uma modernização seletiva, modernização que combina os pressupostos, as vantagens para as classes dominantes, daquilo que a ordem burguesa patrocina, mas que também obviamente sem o pressuposto de que nós vamos abrir mão daquelas taras ancestrais sadomasoquistas que caracterizam a nossa relação enquanto subjetividade brasileira e derivada de 380 anos de escravidão. Essas coisas, brasileiros e brasileiras, estão mais dentro de nós do que nós gostamos de admitir. A admissão de modelos hierárquicos de relacionamento pressupõe valores diferenciados para os tipos humanos que aqui se produzem, desde o início da colônia. Nós não valemos a mesma coisa do que a turma da periferia. Aliás, nós reunimos salas de pessoas muito seletas, muito especiais, nós não temos comunhão e comunicação física, cotidiana, relacional dos espaços comunitários coletivos com essa gente, essa gente que é a gente que morre. Quando nos reunimos para discutir a violência, discutimos geralmente a violência que fala deles, mas eles não estão conosco e não estarão, porque os abismos que separam as relações hierárquicas e clássicas na sociedade brasileira são inquestionáveis e nós somos muito autocondescendentes. Aprendi com Jessé de Souza que podemos chamar a atenção das pessoas e dizer: “Nós brasileiros somos muito autocondescendentes com a nossa imagem, com aquilo que achamos de nós mesmos”. Sempre achamos que o problema são os outros, que não têm consciência, mas nós precisamos pensar que algo de comum nos articula enquanto cidadania brasileira, define padrões muito diferenciais de cidadania e de subcidadania. A subcidadania no Brasil constitui-se hoje o enigma; a produção e a reprodução da subcidadania. Não me digam que é um problema da economia, éramos 80ª economia em 1930, fomos a oitava, somos a sétima economia do mundo e, a despeito deste crescimento econômico, não paramos de reproduzir 83

a “ralé estrutural”, nós não paramos de reproduzir sujeitos que não atingem a condição valorativa média daquilo que convencionamos chamar sujeitos, pessoas de bem, pessoas distintas. Aliás, distinção é uma ideia fundamental que marca as nossas relações sociais e nós permanentemente, diferentemente daqueles que foram colonizados pela modernidade na origem, temos de realizar uma operação mental, avaliando qual é o lugar da pessoa com quem falamos, se ela é uma pessoa aprazível que merece nosso apreço, nosso respeito, eventualmente até nossa vênia, nossa mesura ou se estamos falando com um desprezível, tipo que existe aos montes por aí, com quem não paramos para falar na rua, que não faz o menor sentido, essa gente que insiste em limpar os vidros dos nossos carros, que pede coisas pela rua. Essa operação valorativa das pessoas (qual o valor intrínseco de cada pessoa?) me parece um enigma da sociedade brasileira. Acho que nós, psicólogos, deveríamos nos dedicar bastante a pensar em como produzimos essa experiência que pode ser revelada, por exemplo, no sentimento de branquitude que a maior parte das pessoas tem. É um sentimento de que não precisa se preocupar com sua cor, porque sua cor é a certa, diferentemente do sentimento de negritude de alguns brasileiros, que têm de, permanentemente, lembrar que são negros. Isso estabelece uma ginástica valorativa para que eles possam se posicionar nas relações sem ser humilhados, ofendidos e de alguma forma escanteados por uma condição de menos valor. Se, em uma sociedade desigual como a nossa, fenômenos como o trazido pela professora Julita Lemgruber não ficam muito evidentes, por que esse país não tem Defensoria Pública? Por que o defensor público, grupo absolutamente minoritário dentro do Judiciário, ganha 3 mil reais e o promotor público, aquele que acusa em nome do Estado, ganha 12, 15 mil reais? É espantoso. É porque Defensoria Pública é para uma gente que pode abarrotar as cadeias. O Estado não vai investir nesse tipo de recurso, o recurso para garantir isonomia diante da Justiça. Aqueles que não podem pagar o advogado porque não têm posses devem ter garantido pelo Estado acesso à Justiça, para que a Justiça possa ser isonômica. E por que não temos Defensoria Pública? É porque Defensoria Pública é para pobre. Por que o Sistema Único de Saúde vive tantas dificuldades 84

e é permanentemente agredido nos meios de comunicação como ineficiente, incompetente, problemático, defeituoso? É porque nós todos temos plano de saúde. Por que o ensino público deveria ser o lugar no projeto revolucionário francês da igualização da oportunidade, ensino fundamental para todos no mesmo espaço, no mesmo lugar, no mesmo lócus, permitindo a relação física cotidiana entre os sujeitos das diversas classes, modelando a cidadania, mas não é? Por que temos escolas particulares onde estudam os filhos de alguns e as escolas públicas que são para os filhos dos pobres? Essa questão talvez devesse ser posicionada para compreendermos quem é vítima da violência, e de que violência os cidadãos – no seu diferencial de cidadania no Brasil – são vítimas. Eu acho que existe uma distinção entre os lugares de classe. Considero que os episódios trazidos no texto da professora Auxiliadora vinculam de modo forte a questão do aparato ditatorial montado nos conceitos, vinculam as ideias com a produção da violência do Estado hoje contra essa população. Mas eu não veria em uma relação de que é assim, só é possível ser assim, só é possível que esse aparato tenha evoluído da repressão aos opositores do regime para o desencadeamento de ações mais abrangentes, porque efetivamente esta ordem de sujeitos susceptíveis de ser tratados desta maneira pelo aparelho de Estado não para de se produzir. Estou querendo dizer que precisamos recordar como o Estado brasileiro se relacionou na colônia, se relacionou com Palmares, com a tentativa desse povo, dessa gente que não faz parte dessa sociedade inclusiva: com o extermínio. Foi assim também com Antônio Conselheiro e seu agrupamento sertanejo de gente querendo viver para além das regulações e dos poderes estabelecidos pela nossa então nascente república. E é assim com o Movimento Sem Terra até hoje. Quando esses “pé rapados”, essa “ralé estrutural” resolve se organizar politicamente e dizer que quer coisas e tem a ousadia de ocupar, tem a ousadia de fazer ações políticas que quebram as regras estabelecidas para mantê-los no seu devido lugar e na sua devida posição. Estou enfatizando uma direção para pensarmos o tema da produção da violência que coloque no centro o enfrentamento da questão da desigualdade social e os modos da sua reprodução e que saiamos das receitas simples que explicam que a reprodução da desigualdade é porque 85

um brasileiro formado em Odontologia pode ir para os Estados Unidos e limpar banheiros, que é coisa que pessoas formadas em Odontologia não fazem no Brasil, mas é possível limpar banheiros gringos durante quatro ou cinco anos porque se sabe que, se trabalhar direitinho, é possível depois ser até dono de uma frota de limousines ou coisa que o valha. Isto é dizer que a questão econômica estabelece um diferencial do ponto de vista da mudança da realização de uma certa ascensão social, da realização de uma mobilidade social. Mas nós falamos de um país que não tem mobilidade social, em que a mobilidade social é lenta, é para o pobre limpinho e honesto depois de 3 ou 4 gerações. Persistindo na sua condição de pobre limpinho e honesto ele vai ter alguma ascensão, porque o pai fez o primário, os filhos fazem o ginásio, os netos fazem o colegial, quem sabe os bisnetos vão à universidade. Mas este modo de ascensão social, esse controle das possibilidades de ascensão social no nosso país não tem nada a ver com a oportunidade econômica. A economia cresce muito, mas quanto mais ela cresce, mais ela concentra. Creio que talvez esse tema possa trazer uma perspectiva para discutirmos o tema da violência pensando no sujeito, nos diversos sujeitos que são vítimas da violência. A professora Julita Lemgruber traz com muita clareza o caráter diferencial da dor das classes médias e das classes populares, que definitivamente não é igual e nós precisamos pensar como é, porque isso se produz pela nossa capacidade de identificação. Quando tem uma tragédia com alguém de classe média obviamente temos como nos identificar, porque é gente como a gente e em relação a quem isso não deveria acontecer. Tem gente com quem isso pode acontecer, porque são pessoas que estão postas em uma posição diferencial na sociedade brasileira. Eu não vou insistir muito, porque de alguma forma essas duas ideias são suficientes para promover o debate, uma de que talvez a violência seja um componente mais estrutural do projeto civilizatório do que nós gostamos de admitir, e temos de olhar para isso para podermos compreender suas várias facetas e, não estou nem falando psicanaliticamente, pois psicanaliticamente, também entre psicólogos, poderíamos dizer: “Afirma Freud que nós somos um animal iracundo coberto por um verniz bastante fraquinho de civilização, de que o id, o 86

bicho id pulsa aqui dentro e a satisfação pulsional é alguma coisa que não está na ordem do autocontrole total, não é algo que esteja a nossa disposição. Não estou dizendo que a violência seja intrínseca, estou dizendo que a realização pulsional é intrínseca. E temos de ver quando e como a sociedade viabiliza a realização pulsional das pessoas. A viabilização pulsional é fundamental para equacionar o contrato social, todo mundo tem de gozar um pouquinho, tem de criar oportunidade de todo mundo gozar um pouquinho. Se alguns gozam desbragadamente, sem nenhuma regulação, sem nenhum limite e a outros você não deixa gozar nem um pouquinho, estão querendo o quê? Acha que alguém vai viver sem gozar? Acha que é possível uma vida sem que o sujeito se realize pulsionalmente, no mínimo da sua existência? É preciso rever esta ordem da produção da violência. E se a violência tem um lugar, como vamos lidar com esse lugar? Insisto, não estou aqui banalizando e dizendo que a violência é inevitável e que sempre vai ter violência. Estou dizendo que tem algumas pistas, alguns caminhos para olharmos para a violência e compreendê-la, que talvez sejam fecundas, no sentido de nos permitir o dimensionamento dos enfrentamentos que temos de fazer. E são dimensionamentos de enfrentamentos de natureza civilizatória, o projeto do homem burguês nos captura. Morin fala disso, porque tem coisas que amamos no homem burguês. Por exemplo, a noção de que o máximo de individuação é a meta civilizatória e é o ponto mais importante da meta civilizatória. Nós adoramos isso, nós gostamos muito dessa ideia da burguesia que revolucionou a sociedade ocidental com seu conceito de liberdade. Essa ideia de que nós devemos, em todas as instituições, em todas as circunstâncias, em todos os lugares e de qualquer maneira, patrocinar o máximo da exuberância da individuação para todos. Isso é de uma inviabilidade social total, isso é o inviável total e ele vai ter de ser administrado por meio de quê? De uma polícia que mata, de um sistema que encarcera, de instituições que gerenciam os desviantes. Temos de pensar que são faces da mesma moeda ou são dimensões inelimináveis. Se queremos uma outra coisa fica difícil recusar aquilo que é sua consequência, seu colorário, fica difícil que possamos recusar essa dimensão dessas expressões. Precisamos radicalizar a nossa crítica 87

sobre o tema da violência em alguns caminhos. O Morin também fala que tem alguns caminhos que nos permitem fazer isso. É importantíssimo que o Estado brasileiro possa sim esclarecer efetivamente a sua violência contra uma parcela da sociedade brasileira, esclarecendo sempre que inclusive nós devemos a presença do tema dos direitos humanos na agenda social brasileira à ditadura militar. Talvez, se não tivéssemos tido uma ditadura militar, o tema dos direitos humanos não tivesse ainda entrado na agenda das elites brasileiras. Porque a tortura sempre aconteceu, desde a escravidão, por todo o tempo da colônia, por toda a República, a ditadura de Vargas torturou, as instituições repressivas do Estado Novo se mantiveram na continuidade, nunca desmontamos esse aparato, o aparato das delegacias que espancavam os negros porque ousavam tocar atabaque e fazer suas cerimônias de candomblé. Essas coisas fazem parte da tradição cotidiana do nosso Brasil e na ditadura militar, pessoas que não deviam ser torturadas foram torturadas, mas nenhuma pessoa deve ser torturada, sabemos disso e sabemos inclusive, graças a essas experiências dramáticas. Não podemos aceitar nenhuma tortura, mas a elite da sociedade brasileira – da qual nós fazemos parte, pois comemos três vezes por dia, fomos à universidade, temos acesso a certos recursos culturais – também fomos torturadas, isso cria uma grande questão, porque nos traz consciência de classe. Uma consciência que mormente é muito adormecida nos setores médios da sociedade brasileira. A sociedade, os setores médios da sociedade, de modo geral, se lixam e é por isso que o Datena tem audiência. Porque o Datena faz esses programas na televisão que fala que bandido bom é bandido morto, que direitos humanos é coisa de bandido. Eles refletem um pensamento que está subjacente na sociedade brasileira. Não são aberração, não são uma tara, porque eles estão sintonizados com certas correntes, certos fluxos de crença, de valores que estabelecem o que é a sociedade brasileira. Não podemos, aprendi com Jessé, ser condescendentes conosco, e nós, os que estamos em uma posição diferencial de classe, de poder político, nós temos sim uma responsabilidade diferencial no processo de produção da liberação de todas essas mazelas. Agora, não o faremos se as nossas reuniões continuarem sendo reuniões que reúnem só a nós. 88

Eu sei que cada um de nós está em lugares reunido com pessoas com essas características, às vezes como clientes das instituições, às vezes é totalmente diferente. Mas eu estou dizendo é em um plano, convivencial, relacional, em um plano de vínculo orgânico de nós, os setores médios progressistas com as dinâmicas vivas desses grupos sociais, onde eles moram, onde eles vivem. Espero ter disparado alguns elementos para uma polêmica.

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Intolerância às Diversidades Culturais, Sexuais e Raciais

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Gabriela Leite24 Sou fundadora do movimento de prostitutas no Brasil, que hoje tem a Rede Brasileira de Prostitutas, que conta com 35 associações em todo o país. Trabalhamos há alguns anos, não para tirar as prostitutas da prostituição, mas para que as pessoas entendam que é uma atividade que existe na sociedade. As pessoas queiram ou não, ela existe, o que as pessoas pensam com relação aos preconceitos diz respeito às nossas intolerâncias com a diversidade sexual e com os direitos sexuais. Ainda temos de avançar muito nessa discussão. É difícil falar sobre violação de direitos humanos no nosso meio, até porque já se começa com uma forte violação subjetiva, que diz respeito ao que nós somos e ao nosso nome. Eu, particularmente, venho lutando muito para que nós sejamos reconhecidas por aqueles nomes que sempre fomos conhecidas, mesmo que eles sejam considerados palavrões e nomes feios. Porque esconder alguma questão por debaixo do politicamente correto que usamos hoje em dia é simplesmente outra vez esconder uma questão e higienizar um discurso, então eu gosto muito de ser chamada de puta. Eu trabalhei na prostituição muitos anos e gosto da palavra puta. Vou relatar algumas historinhas a respeito disso. Escrevi um livro há pouco tempo cujo nome é Filha, mãe, avó e puta. Um dia cheguei à livraria no aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro, procurei e não achava meu livro, perguntei à moça: “você tem o livro Filha, mãe, avó e puta, ela disse: “tenho” e foi para o fundo da livraria, bem no fundo, na última prateleira. Meu livro estava escondido atrás de outro livro e só aparecia Filha, mãe, avó”. Eu falei: “Escuta, por que meu livro está escondido?”, ela disse: “Porque meu gerente não gosta desse palavrão que está escrito no seu livro”. Então, estava falando de mim, puta, ele não gostava de palavrão. Resolvi contar essas “historinhas” para as pessoas imaginarem o que é preconceito. Contei isso para um amigo meu, ele foi comprar o livro, chegou à livraria e falou: “Você tem o livro Filha, mãe, avó e puta?”. A moça falou para outra pessoa: “o moço aqui 24 Socióloga, ex-prostituta, presidente da ONG Da Vida e coordenadora da Daspu. Esse texto não foi revisado pela autora.

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quer o livro Filha, mãe, avó“. As pessoas não querem nem falar o nome, mas vendem o livro. Saiu uma notinha do Joaquim Ferreira, do jornal O Globo, falando que o Evandro Mesquita, que era da Blitz, estava fazendo uma musiquinha contra a roubalheira no Senado. Ele tentou fazer a música, mas não conseguia de jeito nenhum porque com esses filhos da puta do Senado não dava para fazer absolutamente uma música. Eu li a nota e fiquei muito brava, fiquei puta da vida. Mandei uma nota para o Joaquim, que foi publicada, na qual eu disse: “Olha, eu não gostaria que as pessoas ficassem xingando nossos filhos dessa forma, porque filho da puta é meu filho, certo? Eu não conheço nenhuma prostituta assumida que tenha filho no Senado”. Então, por que ficar chamando os senadores de filhos da puta, eles são filhos da mãe deles, não são filhos da puta. Faço essas coisas para as pessoas começarem a entender que puta é puta, trabalha dentro da lógica da questão da sexualidade e filhos da puta, que é um grande palavrão da sociedade brasileira, são literalmente nossos filhos. Filho da puta é minha filha, minha filha é filha da puta. Eu quero fazer que um dia esses nomes se tornem bonitos. É difícil para caramba, porque as pessoas até matam, já vi isso na zona. Antigamente, o sujeito que chamava o outro de filho da puta até batia, essa coisa toda. Se nós não mudarmos a forma de se falar uma determinada expressão, não vamos mudar nada. Há uma nova tendência, que é dos epidemiologistas, do pessoal da saúde sanitária, por conta da luta contra a Aids, de chamar prostituta ou puta de profissional do sexo. Está certo, nós somos profissionais do sexo, mas profissional do sexo é todo mundo que trabalha com sexo, não só prostituta. Então, ficam chamando as prostitutas de profissional do sexo e nos textos já começa a aparecer PS, que não é absolutamente nada, são duas letrinhas, isso é para higienizar a história. Eu estava no encontro das prostitutas em Belém e apareceu uma colega de Manaus usando uma camiseta escrita PS. Eu perguntei, “O que é isso, essas duas letrinhas?”. Ela falou: “Você não sabe?”; Respondi: “Não sei, para mim é a letra P e a letra S!”. Ela disse: “É profissional do sexo”. Eu falei, “Está vendo, até você está se escondendo atrás das letrinhas, então de que movimento nós estamos falando, tem que assumir, eu sou puta, sou prostituta.” 94

Essas questões subjetivas são as mais trágicas da nossa história, esse grande estigma que nós vivemos, é muito difícil viver. Passamos para as questões mais práticas, das violações imensas dos direitos humanos que a prostituta vive. As violações de total falta de condição de trabalho, porque, como fazer prostituição não é proibido por lei, mas manter casa de prostituição é, e sabemos que para tudo que é proibido, mas existe, criam-se máfias, as prostitutas vivem à mercê das máfias criadas dentro da prostituição e não têm direito nenhum. Existe cárcere privado, eu já vi isso no Oiapoque, no Norte, cárcere privado de prostitutas, presas com cadeados durante o dia, falta de higiene, som altíssimo, a maioria das prostitutas fala muito alto porque o som daquelas maquininhas é alto. O que vemos por conta da moral sexual é que as pessoas acham que a prostituta sofre por conta do cliente, do homem. Cliente não faz prostituta sofrer, pelo contrário, o que faz a prostituta sofrer muito são as violações e as condições de trabalho péssimas, é a violência policial que continua seríssima em algumas cidades. Ganhamos uma causa no Rio de Janeiro. Toda vez que entra um novo governante, seja prefeito, seja governador, em qualquer cidade, ele quer mostrar serviço para a sociedade, então dizem que vão limpar a cidade, o que significa tirar as putas do meio da rua, tirar os camelôs. Mas a puta está incluída nessa história. O espaço público não é dela, o novo prefeito resolveu tirar todas as prostitutas de Copacabana. Chegou em Copacabana com um ônibus, e foi com um jornal, fotógrafo, televisão, colocou as mulheres todas dentro do ônibus e as mulheres foram fotografadas, toda sua intimidade de vida foi violada. Quando o jornalista perguntou ao Secretário de Segurança porque estava levando “as meninas” para a delegacia, se elas eram criminosas, ele falou: “Não, nós estamos levando para averiguação” e as levaram como se fossem presas, assim, mais de quarenta mulheres. Nós entramos com um processo para falar da inconstitucionalidade dessa história e ganhamos. Eles não podem mais colocar as prostitutas em um ônibus, ou em um carro e levar à delegacia para averiguação. Aconteceu por anos, anos e anos, em que prostituta nunca foi gente, nunca foi mulher para as pessoas. Porque as pessoas veem a prostituta assim na rua e isso é fim do fim do fim, não têm a mínima visão de que ali está uma pessoa, uma 95

mulher que trabalha, que vive uma história. Temos trabalhado muito essa história das violações. Começamos um levantamento, em onze capitais do Brasil, das violações de direitos humanos com apoio da ONU, do Fundo das Populações da ONU, para mostrar para a sociedade o que realmente acontece com a prostituta no dia a dia, a vida dela, para que um dia as pessoas consigam perceber que existe violação de direitos humanos da prostituta. Outra questão pela qual estamos lutando muito é a de que queremos trabalhar a questão dos direitos sexuais. Durante muitos anos o movimento feminista falou: “Nós trabalhamos os direitos sexuais e reprodutivos”. Eu fui analisar os vários documentos das diversas conferências mundiais ocorridas com a história dos direitos sexuais e reprodutivos, Cairo, Pequim, por exemplo. E a grande questão é que o que foi trabalhado bastante pelas feministas são os direitos reprodutivos, ninguém nunca trabalhou os direitos sexuais. Quais são os direitos sexuais perante a diversidade, onde a prostituição está incluída? Tudo ficou dentro de uma caixinha. “Nós trabalhamos os direitos sexuais e reprodutivos”, não, na verdade o que se trabalha são os direitos reprodutivos e, no máximo, a saúde sexual, não os direitos sexuais, mas a saúde sexual. Então, estamos tentando trabalhar essa história, tentando trabalhar com acadêmicos a história do direito sexual para que as pessoas possam entender a complexidade da prostituição, a complexidade do sexo pago que existe dentro da nossa sociedade. Finalmente, uma grande história é a seguinte: a intolerância com relação a todos nós que vivemos a diversidade sexual, seja ela a homossexualidade, seja a travestilidade, o trabalho sexual remunerado. A intolerância leva as pessoas a, no máximo, cometer atos de violência que são terríveis, mas que não resolvem absolutamente nada. Porque independentemente dessa intolerância que nós estamos vivendo, principalmente nesse momento em que a sociedade está profundamente conservadora, essa intolerância não vai adiantar nada, as prostitutas vão continuar a fazer sexo pago, os homens vão continuar a procurar as prostitutas e as travestis. Porque o desejo sexual é o desejo sexual, a fantasia sexual é um mundo imenso e vai continuar a existir. A questão da homossexualidade, a heterossexualidade, todos os nomes que as pessoas queiram para o nosso “fazer sexo” vai continuar a existir. 96

Simplesmente as pessoas só vão continuar a cometer violência, então temos de lutar para que possamos um dia poder viver na diversidade realmente. Porque não conseguir viver o outro diferente, não conseguir viver a fantasia sexual do outro é não conseguir viver a própria fantasia sexual, é não conseguir compreender a si próprio, é se esconder por debaixo do tapete como se tenta esconder a grande diversidade que nós temos no mundo da sexualidade.

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Ronaldo Laurentino Sales25 Minha tese de doutorado tem o título Raça e Justiça: o mito da democracia racial e o racismo institucional no fluxo de justiça. Nela, analisei os casos de racismo que foram apresentados ao sistema jurídico na região metropolitana de Pernambuco. A opção por analisar esse tipo de dado foi estratégica do ponto de vista de que é um espaço onde identificamos um processo social e coletivo de debate do que se trata o racismo e cujo resultado implica um determinado resultado institucional e social. Em vez de um debate meramente acadêmico, poderia ter feito uma discussão pegando toda a bibliografia sobre relações raciais no Brasil, a discussão sobre: “Temos ou não uma democracia racial? Temos raça, somos um povo miscigenado ou não?” Mas optei por uma abordagem do ponto de vista teórico, na linha da teoria do discurso e da produção de subjetividade, por ver como eram produzidos e que efeitos de sentidos isso tinha no ponto de vista concreto. O debate sobre miscigenação do povo brasileiro, se há discriminação ou não, tem um efeito institucional e social concreto, no que se refere, sobretudo, a punir alguém ou não no sistema penal. Mas minha preocupação era menos de identificar e entender os mecanismos jurídicos, apesar dessa análise também ter sido feita. Era menos uma análise de Sociologia jurídica e mais uma tentativa de identificar os principais mecanismos discursivos de construção dos sentidos relativos ao processo de discriminação. Como é possível discriminar e continuar impune? Minha conclusão final, nada pessimista, é que não existe impunidade do racismo no Brasil, o que existe é impunibilidade do racismo no Brasil. No que se refere à abordagem penal, minha conclusão é que, do ponto de vista político, a criminalização do racismo foi um grande ganho político dos movimentos sociais negros e da população negra em geral no Brasil, mas do ponto de vista jurídico, querer abordar a discriminação racial do ponto de vista penal e criminal traz uma série de limitações que não vamos poder abordar porque não é nossa proposta. 25 Membro da Coordenação de Estudos Afro-brasileiros da Fundação Joaquim Nabuco, cientista social, doutor em Sociologia. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Políticas Públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: relações étnico-raciais, movimentos sociais negros, ações afirmativas e direitos humanos. Este texto não foi revisado pelo autor

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Porém, consegui identificar alguns mecanismos que vou apresentar para vocês, como a responsabilização e a desresponsabilização, a partir da construção de um sujeito que chamo de “sujeito cordial”. É a ideia da impossibilidade de conferir dolo ou intenção ao ato de discriminação. A forma como o racismo e a discriminação são praticados além da forma como são analisados no âmbito penal, é caracterizada por três mecanismos básicos: A noção do não-dito, inclusive algumas consequências do ponto de vista da subjetividade e da Psicologia, tanto do discriminador quanto do discriminado; e dois outros mecanismos que seriam o fetichismo linguístico e o subjetivismo psicologista, a tendência a querer identificar intenção ou dolo como algo que está no interior da cabeça do discriminador e não como sentido socialmente produzido. O jurista e os operadores do direito tentam identificar o que o discriminador pensa na hora que discrimina. E, na verdade, a intenção é um sentido socialmente produzido, ele está no significado que o ato produz. Quando eu estendo a mão para apertar a mão de alguém, o outro sabe que eu quero apertar, eu não preciso dizer “aperte minha mão.” Todos nós somos socialmente competentes, ou seja, nos processos de socialização, sabemos que determinados comportamentos e atos produzem para nós determinados sentidos e significados que também orientam nossas ações. Quando se trata de relações raciais, produzimos uma série de nãoditos, de desconhecimentos, de incompreensões que são frutos da nossa ética racial. Quando determinados atos têm significação que podem ter um conteúdo racial, fazemos de conta que não entendemos que se trata disso, se trata do que Florestan Fernandes chama de “nosso preconceito de ter preconceito”. Atualmente estou com um projeto analisando isso. Porque todas as minhas preocupações, um pouco a abordagem que eu vou trazer também na questão dos direitos, direcionam-se para uma análise do ponto de vista de entender as relações étnico-raciais como relações de poder, assim como as relações de gênero, de classe. Dessa perspectiva, sempre analiso também a partir do ponto de vista da formação dos movimentos sociais, nesse caso os movimentos sociais negros. Atualmente, estou analisando a questão das políticas públicas direcionadas ao papel que as religiões afro-brasileiras têm na constituição do sujeito político, movimento 100

social negro e as consequências disso na formulação das políticas de ação afirmativa. Em uma linguagem mais simples, quais são as políticas direcionadas para terreiros, candomblé, umbanda; mas formuladas a partir dos significados sobre o que é identidade negro-africana. Essas duas abordagens estão sobretudo fundamentadas no referencial teórico que é a teoria do discurso, uma dupla influência, por um lado Foucault, sobretudo a importância que ele tem na análise do papel das instituições no discurso. O discurso tem um fundamento institucional, tem uma consequência. Os efeitos de sentido discursivo são sobretudo efeitos institucionais, têm uma base material. Não se trata de sentidos quando dizemos que raça é um sentido produzido. Isso não significa que é uma coisa abstrata e etérea; é uma coisa que, com perdão do trocadilho, sentimos na pele, tem uma materialidade. O fato de isso ter sido socialmente produzido não significa dizer que não tenha materialidade, isso é artificial, foi produzido pela sociedade humana, mas é real. Do mesmo jeito, determinados sentidos como sexualidade, gênero, humanidade, o que é ser pessoa humana são socialmente produzidos, são sentidos, mas têm uma materialidade, elas produzem subjetividade que tem intensidades ditos sofrimento, dor, mas também de prazer, alegria. A partir da compreensão da teoria do discurso como produção de subjetividades, a abordagem que propomos, no que se refere à questão dos direitos humanos, é que temos de compreender os direitos humanos, não a partir da ideia de natureza inerente à pessoa humana, mas como uma construção histórica de discursos, no sentido que é produzido, que obviamente tem seus diferentes contextos. Uma coisa era a noção de direitos humanos no século XVIII, outra no século XIX, outra na primeira metade do século XX. E com certeza temos de repensar os direitos humanos hoje no século XXI, numa sociedade sobretudo globalizada, Para isso, eu indicaria algumas reflexões de Boaventura Sousa Santos, por exemplo. Pensar nos direitos humanos nessa ótica é também refletir sobre o papel da subjetividade, as relações raciais nessa constituição e o que é o sujeito humano. Tanto os direitos humanos quanto o pensamento sobre o racismo surgem praticamente no mesmo período. Na verdade, isso é uma relação muito profunda. Talvez a base histórica para construção do que 101

sejam os direitos humanos, para constituição do que seja a subjetividade humana, inclusive entendida em sua psicologia, em sua mente, para o que seja raça humana, tenha os mesmos fundamentos históricos que constituíram essas diferentes correntes discursivas. Sobretudo a questão das revoluções burguesas, dos processos de independência, ou seja, a crise do sistema colonial e do processo de abolição da escravidão. Não é à toa que o pensamento, o positivismo e o racismo científico praticamente surgem logo a seguir desses processos como resposta e como projeto de modernização conservadora. Vamos modernizar nossas sociedades, porém essa modernização implica ser possível alguém declarar direitos do homem. Homem mesmo, no sentido mais estrito do termo, tanto do ponto de vista de gênero quanto do ponto de vista racial, é homem branco ocidental. Como é possível declarar nos Estados Unidos o direito do homem e do cidadão e ainda assim manter a escravidão? Mesmo depois da abolição da escravidão manter um sistema de segregação racial? Isso depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É engraçado, pois os Estados Unidos lutam e apresentam em seus filmes e em sua história um dos países que tiveram papel protagonista contra os nazistas, contra o sistema racista dos nazistas contra os judeus, mas muitos soldados negros lutavam pelo direito de ir lutar na Europa como cidadão americano, pois, pela segregação, não tinham esse direito de cidadania. Só na década de 1960, praticamente vinte anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, é que os Estados Unidos acabam com o sistema de segregação, pelo menos do ponto de vista institucional. Isso tem a ver com determinadas concepções de o que vem a ser a pessoa humana, o ser humano, portanto, até onde esses direitos alcançam. É verdade que a Declaração de Direitos Humanos de 1948 é, sobretudo fruto da Segunda Guerra Mundial. Ela constitui um compromisso de Estado. Mais uma vez, as relações étnico-raciais vão ter papel fundamental na ressignificação dessas relações, pois os processos de independência dos países asiáticos e africanos, durante a década de 1950, e o movimento de direitos civis nos Estados Unidos são neles inspirados, tanto na África quanto na Ásia. Por exemplo, Martin Luther King vai se inspirar em Gandhi na questão da não violência; vão dar um novo significado à noção de direito humano e à ideia de pessoa humana. Em 1948 está colocado que todas as pessoas têm aqueles direitos independentemente de raça, de sexo. 102

Depois de todos esses movimentos, na década de 1960 é assinada a Convenção Racial para eliminação de todas as formas de discriminação racial, quer dizer, começa a se reconhecer que para que todas as pessoas tenham direitos, independentemente de raça, é preciso tratá-las racialmente, é preciso identificar que alguns grupos têm maior dificuldade de acessar aqueles direitos devido às suas identidades e às suas relações raciais locais. Ou seja, não é em nome de uma igualdade abstrata, na verdade a pessoa humana não pode ser confundida com a noção de ser humano que até então existia, que era incolor, inodora e insípida. Costumo até brincar “de quem já bebeu essa coisa de água inodora, incolor e insípida”: com certeza não é a água que bebemos. É coisa para químicos, que é a chamada água destilada. Se alguém se arriscar a beber água destilada, vai morrer certamente, pois água destilada no interior do corpo, como ela não tem nenhum outro elemento a não ser a água, rouba sais do corpo, rouba nutrientes do corpo provoca morte. A água que bebemos tem cheiro, cor e sabor. A noção abstrata de ser humano como uma coisa inodora, incolor e insípida também é uma noção morta, ela não existe na realidade, o que existe são pessoas humanas, que têm sexualidade, gênero, raça, construções socialmente possuídas de processos de socialização, mas que são colocadas assim. Esse processo nas décadas de 1950 e 1960, vai redirecionar a noção, depois vai ser assinada a convenção internacional contra a violência contra a mulher, mostrando a necessidade de identificar determinados sujeitos de direito, que, ao contrário de negar a ideia da universalidade dos direitos humanos, implicavam processos de universalização desses direitos. Geralmente quando falamos de racismo no Brasil, pensamos logo em escravidão, porque é uma herança da escravidão, o Brasil foi um país escravocrata. O que eu posso afirmar logo, de forma bem categórica, é que todas as sociedades desenvolveram modelos de relações étnicoraciais e de discriminação racial, todas elas, o Brasil não é uma exceção, com a sua suposta democracia racial, como os Estados Unidos não são exceção. Construiu-se um mito a partir do modelo americano, do modelo sul-africano e do modelo nazista, de que esses são os modelos de racismo. Quer dizer, para identificar se um país é racista ou não e a intensidade desse racismo, é se ele se aproxima ou não desses modelos. 103

O modelo brasileiro não é igual ao norte-americano, porque o nosso racismo é mais cordial, mais flexível. Quem estudar o racismo na América Latina vai perceber que o Brasil é um dos países comparados a outros menos democráticos. Essa questão da miscigenação foi desenvolvida como estratégia racial por outros países na América Latina, com indígenas, e construiu um modelo de desigualdade racial e segregação diferenciada. O modelo americano, o modelo sul-africano e o modelo alemão não são paradigmas, são exceções, são estados extremos por alguma razão histórica. Eles tiveram de adequar modelos raciais mais rígidos. Fato é que racismo científico é profundamente ligado a um projeto republicano e não monarquista. A monarquia elabora a escravidão em maio de 1888. Por essa razão, boa parte dos republicanos era chamada de republicanos de 14 de maio. Era um termo dado por um abolicionista e monarquista aliás temos sempre essa impressão equivocada de que todo republicano é necessariamente abolicionista e vice-versa, o que não é verdade. Infelizmente, havia muitos republicanos que não eram abolicionistas. A República tinha um projeto que não só casava com o abolicionismo, como também com os racismo científico. A nossa bandeira tem “ordem e progresso”, que veio do pensamento do positivismo científico baseado em Comte, que é a base do pensamento racista científico, a base da constituição de boa parte das ciências humanas, tanto da Sociologia quanto da Psicologia. Os republicanos tinham um projeto que não ficou só no papel, mas foi implementado tanto na constituição das instituições psiquiátricas, quanto na História e na Geografia do Brasil, que avançavam com o processo de modernização baseado no pensamento positivo científico e, portanto, ao mesmo tempo conservador e autoritário. Mas desconhecemos isso, acreditamos que é uma herança da escravidão, que, por alguma razão, a República não alcançou. Na verdade, a República aprofundou e sistematizou suas instituições, nas faculdades de Direito, de Medicina, instituições de Psicologia e Psiquiatria, nos manicômios, nos presídios, nas instituições policiais inclusive na educação um regime autoritário e racistas. O livro Diploma de brancura, por exemplo, vai mostrar na década de 1930, no Estado Novo, um modelo de eugenia sendo instaurado no 104

sistema educacional, um modelo de política pública, o primeiro modelo nacional de política de educação e saúde. Porque na época o ministério era Educação e Saúde. A noção de higienização é fundamental para compreender o papel do sanitarista no Brasil e dos seus pressupostos eugenísticos e raciais no processo de construção de política pública. Ora, até a década de 30 praticamente todas instituições republicanas e modernas estavam imbuídas de valores racistas. Com a Revolução de 1930, começa a emergir como discurso nacional, sobretudo da metade da década de 1930 em diante, ainda de forma muito contraditória, começa a emergir como discurso nacional a ideia da uma construção, de uma democracia racial e do povo brasileiro como um povo moreno e miscigenado, tem a ver como a construção de um discurso populista. Instaura-se e se fortalece nas instituições um modelo de discurso que fortalece institucionalmente dois mecanismos que eu identifiquei, um que é o desconhecimento ideológico do racismo, é retirar de todas as instituições qualquer referência. Isso tem a ver também com certa repercussão, obviamente da Segunda Guerra Mundial. A ONU diz que essa questão de raça oficialmente não faz nenhum sentido e que ela é mais um mal do que uma solução. O Brasil vai ser apresentado depois disso como modelo a ser seguido pelo mundo. Na década de 1950 é feita uma pesquisa no Brasil pela Unesco, o chamado Projeto Unesco em que a Bahia inclusive era considerada um modelo de relação racial democrática que deveria ser exportada para o mundo. O Brasil vende essa coisa para o exterior e cria-se esse desconhecimento. As instituições de Direito, de Psicologia, retiram de suas disciplinas todos os elementos oficiais, o discurso oficial institucionalmente formalizado tira qualquer referência a noções de raça, porém as instituições não funcionam apenas no plano formal e oficial, elas funcionam também na sua dimensão informal. Apesar, por exemplo, de a Polícia Militar não ter nada na Academia da Polícia, nenhuma referência a Antropologia, a polícia continua se comportando a partir desses modelos. Ainda que não haja nenhuma referência a higienização sanitária, a polícia continua se comportando na rua como se tivesse esse projeto de garantir a saúde mental e física das pessoas, assim como os manicômios, que ainda funcionam com esse projeto e misturam de tudo, ainda parece que estamos no século XVII. 105

Assim aconteceu com a faculdade de Direito, com a faculdade de Psicologia. E o segundo mecanismo é o chamado não dito, que é toda referência à questão racial que sai de um espaço sério, público e formal e, passa para um discurso informal, aforismático, que não é sério, é vulgar, é sempre indireto, como as piadas, os trocadilhos, os provérbios, as injúrias raciais. Trazer esse tipo de discurso do racismo, do não dito racial, é sempre uma forma não-séria de falar sobre raça, de que não possa haver responsabilização nunca. Porque, o que é contar uma piada? É não ser o autor da piada, é apenas ser o locutor, é aquele que passa para frente, o que é uma injúria. É como alguém que fala a expressão “filho da puta”. Sim, se você for pegar isso de forma muito séria, “mas minha mãe não é prostituta, não é uma referência de realidade, é uma referência de valor”, para mim você tem o mesmo valor que um filho da prostituta tem na sociedade como a nossa, preconceituosa como a nossa. Então dizer que uma pessoa, independentemente de ser negra ou não, está fazendo uma coisa de negro ou dizer que amanhã é dia de branco, porque é dia de começar a trabalhar, independentemente de quem esteja ouvindo, seja negro ou não, significa fazer uma referência a determinados valores e práticas das relações sociais. Só que isso não pode ser remetido para o plano do discurso sério, argumentativo. Qualquer tentativa de trazê-lo para esse discurso é socialmente sancionada, quer esse discurso seja racista, quer seja antirracista, e daí que a sociedade, durante muito tempo, chamava o movimento negro de racista. “Racista são vocês, que querem trazer para o espaço público um debate que não faz sentido nenhum, raça não existe, somos um povo miscigenado.” Ora, isso tem efeitos, alguns mecanismos que são, primeiro, por um lado, o que eu chamei de fetichismo linguístico do racismo brasileiro. Por alguma razão, racismo no Brasil só existe se for verbalizado e, se ele for verbalizado, é apenas o que é dito. Então, se um policial espanca um negro e não fala nada, como alguém pode dizer que foi racismo. Porém se ele espanca esse negro e chama de “nego safado”, o racismo não é o espancamento, é a injúria racial, ele vai ser acusado de injúria por usado a expressão “nego safado”. Isso leva a um ato de uma perversão absurda, que faz que o racismo, sempre, no nosso debate, vire um problema linguístico, de correção de linguagem ou de higienização linguística, de buscar o politicamente correto. 106

Só que aí está o grande paradoxo, o grande objetivo do racismo brasileiro é ser um racismo politicamente correto, ou seja, o grande objetivo dos racistas no Brasil ou do sistema racista brasileiro é conseguir discriminar sem verbalizar. Por isso as instituições não verbalizam, por isso as pessoas quando são acusadas dizem “não, não foi isso bem que eu quis dizer” ou seja, você está “colocando palavras na minha boca”; se eu disser “fulano é inteligente, ele é negro, mas é muito inteligente” “estou elogiando você, você é inteligente”, “mas eu não disse isso”, está implícito, está pressuposto, não está dito, ninguém vai dizer “todos os negros são burros”, vai dizer “você é negro, mas você é inteligente”, é a história do não dito. Todo sentido remete a um pressuposto que não está posto; a discussão vira um problema “linguageiro” o tempo todo. São surpreendentes os dados estatísticos brasileiros, não deixam dúvida de que, na sociedade brasileira, qualquer pessoa que consiga ler uma tabela ou um gráfico vê que é um país que adotou algum regime de segregação oficial durante anos, ou ainda adota, porque os níveis de desigualdade, além de ser muito altos, são muito estáveis. Porém, os exemplos de discriminação são o vizinho que brigou com o outro, o cara que brigou no trânsito com o outro, chamou o outro de “nego safado”, de “macaco”. Existe alguma coisa que não fecha: tem-se um dos mercados de trabalho mais racialmente estruturados do mundo, pior mesmo do que nos Estados Unidos e pior ainda do que na África do Sul em termos de nível de educação. A desigualdade entre negros e brancos no Brasil é maior do que a desigualdade entre negros e brancos na África do Sul, do sistema escolar, às relações no mercado de trabalho. Onde está o como esse racismo se reproduz? Isso tem um efeito profundo na Psicologia, vou usar apenas o efeito no que se refere ao discriminado, é você sofrer uma intensidade inefável, isso significa, algo que incomoda e que não tem nome, que não pode ser nomeado. Geralmente as pessoas costumam dizer que só quem sabe o que é ser discriminado é quem é discriminado, só quem sabe o que é sofrer discriminação de gênero, machismo, são as mulheres, só quem sabe o que é ser discriminado racialmente são os negros. Eu discordo, só quem sente a discriminação racial contra os negros são os negros, mas para que eles saibam que aquela discriminação que eles estão sofrendo é racial, precisam utilizar categorias socialmente 107

compartilhadas, ou seja, para saber que o que eu sinto é dor, eu preciso usar uma categoria chamada dor, que é compartilhada. Então, para que eu saiba que o que eu sinto é dor, você precisa saber também que eu estou sentindo dor, mas só eu sinto a dor que eu estou sentindo. O que significa dizer que, se existem algumas categorias que são socialmente proibidas ou consideradas absurdas, que eu não consigo nomear, eu sofro alguma coisa que eu não consigo nomear. Até pouco tempo era assim, algo me incomoda, algo me leva a adotar determinadas posturas, a sofrer, a ter baixa auto estima, a raspar minha pele, a colocar toalha na cabeça para brincar de Xuxa, a pintar na escola, “faça seu autorretrato e pinte”, e eu pintar de outra cor que não marrom, a beber água sanitária como muitas crianças que fazem isso, a me olhar no espelho e não me reconhecer, a sonhar e me sonhar branco. Algo na minha subjetividade provoca efeitos de autoimagem e eu não consigo identificar e nomear de determinada forma. O efeito do outro lado é o que eu chamei de subjetivismopsicologista, é a tendência a ver como uma intenção, que está ou dentro do que foi falado ou dentro da cabeça de quem falou, é sempre a intenção de ofender. Ele não é um ato concreto, é um ato intersubjetivo de provocar ofensa no outro. A discriminação é um ato tão objetivo como matar: alguém mata, o outro morreu, pronto. Agora, se foi doloso ou culposo é outra discussão, mas alguém matou e alguém morreu. Por que discriminar é sempre um ato subjetivo, é sempre preconceito? Nós confundimos, o brasileiro confunde discriminação com preconceito, se não consigo provar que o outro é racista ou que é preconceituoso, a discriminação evapora, o ato concreto que foi realizado independentemente da minha intenção ou não, consciente ou não, deixa de existir. Nesse sentido, a Psicologia tem papel fundamental, no sentido de repensar o que é esse sujeito humano, porque muito desses pressupostos que falei têm a ver com a concepção de pessoa humana e de ser humano que foi construída. Inclusive, quando se constrói a noção de direitos humanos, a ideia de uma intimidade, a ideia de interior subjetivo, de livre arbítrio, de liberdade liberal burguesa. Você é dono dos seus próprios pensamentos, a liberdade de expressão é uma liberdade de colocar para

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fora alguma coisa e não os sentidos que são intersubjetivamente e socialmente produzidos. A ideia de que o sujeito é o ontologicamente dado, você nasce livre, igual, e não uma construção socialmente produzida, a ideia de que raça ou é algo biológico, geneticamente provado, ou não existe, que é um pressuposto racista. Ou seja, para sermos iguais, temos de ser uma raça humana. Tem um paradoxo, quer dizer, se nós não formos biologicamente iguais, então nós não somos juridicamente e de direitos iguais, e não é. Nós temos de ter direitos na diversidade que temos, inclusive físico-biológica, assim como homens e mulheres, assim como pessoas com deficiência.

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Paulo Maldos26 Destaco, da fala de Gabriela Leite, a questão do segredo, da discriminação, disso que ela chama de um tema debaixo do tapete. Toda a fala de Gabriela foi pontuada por essa questão do que fica sob o tapete – a palavra puta e a questão do livro escondido no fundo da livraria, o receio de dizer a palavra puta que está no nome do livro. Toda a fala foi muito marcada por essa questão do nome e de se esconder o nome, se esconder um sujeito por debaixo desse nome. A ideia de profissionais do sexo, que é uma higienização. E ela questiona a visão socialmente construída de que o cliente é violento, é importante esse questionamento de que a violência principal não é do cliente, a violência é das condições de trabalho, da falta de condições de trabalho e da ação do Estado via violência policial, que tem também essa compulsão de excluir, de manter as ruas “higienizadas”, excluindo as prostitutas do cenário. Observo na fala da Gabriela o tempo inteiro essa marcação no sentido de se excluir a palavra, o nome e o sujeito por debaixo desse nome. Quando vivi na Paraíba, tive contato com o trabalho das prostitutas, essa realidade, que era o tempo inteiro de exclusão. Conheci prostitutas que viviam em pensões em que escondiam seus filhos, crianças e bebês que não viam nunca a luz, eram muito brancas e até com deformidades físicas, tornavam-se obesas porque viviam escondidas dentro de quartos fechados, para não ser retiradas das mães e entregues para instituições. Eu gostaria de marcar, da fala da Gabriela, essa exclusão permanente, persistente, como se não houvesse, como ela colocou, a realidade pulsante permanente do desejo, da fantasia. Ela denuncia a falência desses mecanismos perante a necessidade do desejo e da fantasia. São mecanismos que a sociedade constrói, mas são todos fadados à não-realização devido a uma força muito maior que está subjacente: a necessidade do desejo. Ela coloca um desafio para compreendermos a complexidade desse desejo, da imbricação desse desejo com a vida social, com a sociedade que vivemos hoje, com a sociedade capitalista. Gostaria de comentar, da fala do Ronaldo Sales, os mecanismos subjacentes à discriminação e ao racismo. Ele fez uma contextualização 26 Este texto não foi revisado pelo autor

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histórica desses mecanismos, tanto na história de maneira geral, como na história do Brasil. Fez referências a vários modelos de discriminação, como o dos Estados Unidos e da África do Sul. Ele abordou a reprodução desses modelos no Brasil: o racismo é reproduzido aqui como se houvesse uma discriminação mais suave, reforçando o velho mito de democracia racial. Aqui no Brasil primamos por sempre achar que somos mais suaves. Talvez seja uma herança lusitana, citada pelo Chico Buarque em música: “enquanto o coração perdoa, a mão cega executa”. Essa permanente suavidade, o mito da suavidade é o mesmo que está presente na ideia de “ditabranda”, suposta “ditabranda”, citada ontem neste seminário pela Maria Auxiliadora Arantes, a Dodora. É o mesmo mecanismo recorrente numa suposta suavidade nas relações violentíssimas dentro da sociedade. Vejo nessa questão da higienização um ponto de encontro muito grande entre o que o Ronaldo falou e o que a Gabriela falou. Na questão da prostituição e na questão dos negros está presente a questão da política pública republicana, da higienização. Como se isso fosse resolver os nossos conflitos, fosse resolver a nossa realidade violenta, discriminatória. Uma contribuição muito interessante do Ronaldo foi se referencia aos mecanismos internos de reação a essa política pública, socialmente compartilhada. Ele fala das crianças que têm baixa auto estima diante desse inefável, essa coisa que sofrem, mas não podem nomear, a que não podem reagir, mas processam internamente, tomando água sanitária, sonhando que são brancos, sofrendo sem poder nem dizer que sofrimento é esse. Isso me lembra Frantz Fanon quando estuda os mecanismos internos. Negros que sonham que estão correndo, sonham que atacam seus patrões, sonham que possuem a mulher dos patrões, sempre nesse lugar, no sonho, porque, de forma consciente, não conseguem dar nome, não consegue processar, não conseguem superar essa realidade violenta e internalizada. Gostaria de terminar apontando esse ponto em comum das falas brilhantes dos dois, que foi essa denúncia do Estado como suposto higienizador, suposto negador de realidades, gerador de profundo sofrimento e de sofrimento pior do que tudo, sofrimento que não pode ser compreendido, não pode ser nomeado e, portanto, não pode ter uma ação estrategicamente consciente de combate. A contribuição dos dois, justamente, nos ajuda a compreender esse Estado, compreender essa política e a construir estratégias lúcidas para enfrentá-las. 112

Criminalização dos Movimentos Sociais

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Jacques Távora Alfonsin 27 Vou dividir minha intervenção sobre a Criminalização dos Movimentos Sociais em três partes. A primeira é uma pequena história do que está se passando em meu estado, da grande violação dos direitos humanos praticada no Rio Grande do Sul contra os movimentos sociais. Na segunda parte, vou me perguntar que responsabilidade jurídica existe na interpretação que se faz da lei em relação aos movimentos sociais, e a terceira parte, que vai provocar um debate maior com vocês, relaciona-se com as possibilidades jurídicas abertas por nossa legislação contrárias a esse tipo de perseguição que está havendo no país, especialmente no meu estado, aos movimentos sociais, para que possam, enfim, defenderse desse tipo de opressão social. O que aconteceu com o Movimento Sem Terra (MST), do qual sou advogado, serve de exemplo do que está acontecendo com outros movimentos sociais em meu estado. Estou me socorrendo para isso de um texto que escrevi para o livro Os conflitos no campo do Brasil, relacionado com os relatórios que a CPT faz todos os anos, publicado no volume de 2008. Eu disse o seguinte: depois de uma reunião do Conselho Superior do Ministério Público gaúcho que decidiu extinguir o MST, ainda em maio de 2007, baseados em um inquérito secreto que contou com ativa parceria da Polícia Militar do Estado, dois de seus promotores moveram quatro ações civis públicas contra o dito movimento, em quatro comarcas diferentes do Estado, visando a, entre outros efeitos, dissolver total ou parcialmente seus acampamentos, por cinco motivos principais, sobre os quais vou deter-me, porque deles vai partir meu raciocínio sobre a responsabilidade jurídica que existe nessa criminalização e sobre as possibilidades jurídicas de enfrentar essa injustiça. Os cinco motivos principais são os seguintes: O MST coloca em risco a segurança nacional, já que tem ligação com as FARCs colombianas; um de seus acampamentos, aquele situado em Canoas, está em região próxima ao polo petroquímico e de estação de energia elétrica, havendo risco de ser sabotadas as atividades dessas prestações de serviços, ou 27 Em 2009, era professor universitário, coordenador da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e assessor jurídico de movimentos populares.

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seja, os promotores estão dando a entender que, por ser uma atividade terrorista, o MST pode atacar o polo petroquímico e essa estação de energia elétrica e provocar um apagão em toda a região metropolitana; os integrantes dos acampamentos transferem seus títulos eleitorais para os municípios onde acampam, pondo em risco a lisura das eleições nesses locais; e o último argumento, que é aquele que mais nos feriu, às pessoas que defendem os direitos humanos no estado, é que as escolas itinerantes do MST, que atuam em tais acampamentos, põem em risco a educação das crianças, pois seu ensino é ideologicamente orientado, segundo o pensamento do movimento. Essas escolas, é bom que se abra aqui um parêntese, já foram várias vezes premiadas por instituições nacionais e internacionais, até pela excelência do ensino que o MST, por seus professores e suas professoras itinerantes fazem. O que desse pequeno resumo que fiz ocorrido em meu estado pode ser dito ainda antes de medirmos a responsabilidade? É verdade que os movimentos sociais, como o próprio nome já está dizendo, se movimentam, e se movimentam porque existe injustiça social que de alguma forma estruturalmente se reproduz por responsabilidade da própria interpretação e aplicação da lei. É por isso que eu quero agora debater com vocês as consequências jurídicas de todo esse quadro conjuntural. A linguagem do nosso direito e os condicionamentos que chegam às sanções nele previstas facilitam ideologicamente aquilo que Boaventura de Souza Santos chama de Sociologia das ausências, pela qual se “cria o inexistente”, ou seja, é necessário que toda a aplicação da lei esqueça a existência de todo um povo pobre e excluído vítima da injustiça social. Assim, um processo judicial tem o condão de transformar João, Pedro, Paulo, Maria, em autores e réus, abstraindo-os da realidade que os trouxe a juízo, transformando-os em não sujeitos de direito. Há um teólogo que, antes de ser assassinado em El Salvador, junto com outros companheiros jesuítas, Ignácio Ellacuría, dá uma resposta muito interessante a essa técnica que o direito ideologicamente tem de separar a aplicação da lei da valorização da justiça. Ele critica Heidegger, esse filósofo que é tão estudado e divulgado hoje. Para Ellacuría, Heidegger está muito preocupado com o ente, com o ser. Não está na hora, pergunta o teólogo – vejam isso para nossos 116

direitos humanos – de nos preocupamos com o não ente, ou seja, com a não verdade, com a não justiça, com o não direito, com a não pessoa, com o não cidadão? Parece-me que – em grande parte dando benefício da dúvida a esses promotores que estão nos perseguindo em nosso estado – isso se deve a esse metacódigo que está acima de todos os códigos, que vê o pobre, o negro, a prostituta, como vimos aqui, na mesa anterior, como um não ente, essas pessoas não chegam a sensibilizar os poderes institucionais que estariam em condições, pelo exercício do poder e da violência simbólica, para usar uma expressão de Eduardo Faria, de fazer valer um direito que realmente coincida com a justiça. Ainda no campo dessa responsabilidade, essa linguagem se encarrega também de acentuar o não ente e afastar o povo da Justiça. Dou dois exemplos, o primeiro repercutiu muito no país: um juiz transferiu uma audiência, porque a pessoa que deveria depor compareceu no foro com chinelo de dedo. Essa é uma demonstração cabal de que o aparelho judicial, o aparelho encarregado de aplicar justiça, parte do pressuposto de que até a maneira como a pessoa está vestida já não lhe concede a possibilidade de acessar a justiça. Outro exemplo, esse muito mais grave, é do próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. A única sombra que se vê quando ele estava tomando posse do cargo, e era um recado direto dado pelo MST a ele, foi a de que era necessário que os movimentos populares respeitassem a lei. Foi justamente por causa dessa expressão que escrevi o texto a que já fiz referência no livro Os conflitos no campo do Brasil, sob o título Do respeito as leis às leis do respeito. Depois, ele só se escandalizou com o uso das algemas em pessoas bem limpinhas, gente que estava com o bolso cheio de escândalos financeiros. Para essas pessoas, o uso das algemas era humilhante, como se, para pessoas pobres, não valesse o mesmo. Isso tudo que estou falando aqui não tem o sentido de provocar escândalo, tem o sentido de demonstrar que o mundo sobre o qual o direito tenta se tornar eficaz é um mundo completamente separado das reais necessidades do povo e dos direitos humanos mais elementares. É claro que isso não pode ser generalizado, mas nós ainda nos encontramos muito longe de uma democracia efetivamente participativa. 117

Nós não vivemos ainda, e aí está a grande responsabilidade da lei e do direito, o reconhecimento de que a miséria e a pobreza por si sós são violações de direito. Se a Constituição Federal diz que todo mundo tem direito à alimentação e à moradia, isso é sinal de que quem morre de fome ou de falta de teto morre porque teve os direitos correspondentes violados. Nós estávamos discutindo na mesa anterior, a questão do aborto. Eu conheço um aborto generalizado, que é o aborto da morte das crianças sem terra, que morrem nos acampamentos por força da não realização da reforma agrária; esse é um aborto provocado pela indiferença da sociedade com as e os pobres, pelos latifundiários que não cumprem a função social da propriedade e por todo o aparelho do Poder Público do Estado insensível às urgências de solução que esses problemas exigem. A palavra gewalt, não sei se vou pronunciar direito, a palavra gewalt, em alemão, pode ser traduzida como violência e também como poder, sendo que Friedrich Muller, um jurista alemão que já nos visitou aqui, disse o seguinte: “Esta é a cara real da nossa sociedade, ou seja, qualquer exercício de poder envolve violência, o que pressupõe que quem exerce esse poder sabe que o grau de violência passa por um juízo de valor do tipo: “A lei que eu vou aplicar aqui e a agora é justa ou não é?” Portanto, entre aquele poder dominação a que eu fiz referência com aqueles dois exemplos do Judiciário e o poder serviço existe uma diferença fundamental, em matéria de direitos humanos fundamentais. Enquanto a dignidade humana, que é um dos fundamentos da própria República Federativa do Brasil, como está escrito na Constituição Federal e sobre a qual vocês trabalham como psicólogos, não for reconhecida como tal, em uma das decisões relacionadas, criminalizando os movimentos sociais, é evidente que a mesma Constituição estará sendo violada, e estará sendo violada pelo próprio aparelho do Estado encarregado de respeitá-la. Constituição, se vocês prestarem atenção na palavra, vem de constituir. Uma Constituição é muito mais um ato de partida do que um ato de chegada para usar uma linguagem de Boaventura. Ela traduz muito mais um poder emancipatório do que um poder meramente regulatório. No final da minha exposição quero mostrar como nisso, do ponto de vista legal, o Judiciário é infiel, com exceções, é claro. 118

Vamos ver quais são as possibilidades abertas pela própria lei para cobrança dessa responsabilidade, tanto da sociedade civil como das instituições estatais. Vejam o seguinte: se vocês lançarem um olhar agora para suas próprias mãos, vão ver escrito nelas aquilo pelo qual vocês trabalham como psicólogos e psicólogas, e trabalham embebidos dos ideais dos direitos humanos. Humánus, do latim, vem de humus, ou seja, terra. A terra deu origem a homem, deu origem à pessoa; mánus, mão, ou seja, não se pode falar em direitos humanos a não ser exercendo-os humanamente. É por isso que os direitos humanos são tão execrados, porque só se fala em direitos humanos, como as mesas anteriores aqui mostraram, porque a beleza da sua previsão faz presumir que todos eles são respeitados, mas eles estão encarnados aqui, em nossas mãos, nos corpos, não raramente torturados, seja pela aplicação da lei penal, seja pela injustiça social. As mulheres das comunidades eclesiais de base têm um gesto que para mim é uma Constituição inteira, quando elas discutem seus problemas, nas associações de moradores, em acampamentos de semterra. No final das suas reuniões, sempre dizem isso: “Tudo o que nós discutimos estava aqui (apontando para a cabeça), mas tudo o que nós discutimos tem de passar por aqui (apontando para o coração), e nada do que nós discutimos vai ser útil se não chegar aqui” (apontando para as mãos). Isso significa que, sem a ação concreta desta mão, os direitos humanos realmente perdem a sua eficácia na vida de cada um. Não há como entender isso sem mudarmos nosso lugar social para o lugar social das vítimas que sofrem violação desses direitos. A aplicação do ordenamento jurídico só vai ser eficaz na medida em que se identificar com elas, ou seja, mudar o seu lugar social. Até a linguagem tem de mudar. “Vara”, por exemplo. Vocês já notaram a linguagem pedante, excludente, que o Judiciário tem? As audiências acontecem nas “Varas”. Isso ainda vem do tempo do direito romano, quando as pessoas vinham na base da vara, e continuam vindo, como as mesas anteriores aqui mostraram, com relação aos negros e às prostitutas, e com aqueles que têm seus direitos humanos violados. A dignidade humana, como fundamento de todos os direitos humanos, por isso mesmo chamados fundamentais, e o exercício pleno da cidadania como seu efeito constituem o pressuposto de um Estado 119

realmente democrático e de direito. Temos de convir que não vivemos realmente nesse Estado. O Brasil não é um Estado Democrático de Direito. Pode ser na letra e na forma, mas não no conteúdo, porque aqui a grande maioria do povo tem os direitos humanos violados, tais são a quantidade e a qualidade das multidões de famílias sem-teto e semterra no Brasil, atualmente. Nosso Roberto Lira Filho – jurista que criou uma nova escola jurídica aqui em Brasília – costumava dizer que a manutenção da ordem no Brasil não significa respeito ao direito, porque nós não vivemos numa ordem, nós vivemos numa desordem institucionalizada. A comprovação desse fato pode ser feita pela própria redação da lei: quando se acusam o sem-terra e o sem-teto de violar a lei, a prostituta e o negro, como se mostrou na mesa anterior, nos esquecemos de quem faz a lei. Quem quiser saber por que a reforma agrária não sai no Brasil leia o artigo 185, inciso II da Constituição Federal e observe que não se permite desapropriação de propriedade rural produtiva, independentemente de se fazer a distinção, juridicamente muito relevante entre produtivismo e produtividade. Essa expressão, “produtiva”, foi colocada para permitir perícias na esfera administrativa e todo o tipo de chicana em juízo. É uma expressão que foi introduzida à força na Constituição Federal. Isso é contado no livro do José Gomes da Silva, O buraco negro. Os jagunços dos latifundiários brigaram com os congressistas que tinham outra redação, antes de seu embarque, no aeroporto de Congonhas para irem votar em Brasília o capítulo da reforma agrária da, então, nova Constituição. Houve todo tipo de força física para que essa redação atual fosse imposta. Então, essa hipocrisia de dizer que pobre é sempre aquele que viola a lei tinha de começar mostrando como o rico, que é quem faz essa lei, se comporta, e como essa lei inviabiliza o respeito aos direitos humanos. Outro exemplo: no artigo 1.210, parágrafo primeiro do Código Civil, os latifundiários também encontram uma grande força em defesa de seus privilégios. Nele está dito mais ou menos o seguinte: “O possuidor turbado ou esbulhado pode reagir por sua própria força desde que o faça em seguida”. Se eu for entrar pela janela da casa de alguém, ele pode reagir defendendo a vida e o patrimônio, e isso é colocado sempre como justiça de mão própria pelos latifundiários. É o chamado desforço imediato. 120

Vocês conhecem algum esforço imediato que proteja a dignidade humana com a mesma força que esse aqui? Eu conheço. Temos de começar a ler a lei naquilo que ela abre fresta para a preservação dos direitos humanos. O artigo 188, inciso II, do Código Civil diz que “não constituem atos ilícitos” (portanto está pré-excluída a ilicitude) a destruição ou a deterioração da coisa alheia, ou a lesão à pessoa a fim de remover perigo iminente. Não há perigo mais iminente do que a fome, nem mais iminente do que a falta de teto, nem mais iminente do que a agressão ao meio ambiente. Portanto, existe base legal, sim, para a ocupação da terra, existe base sim para defesa dos direitos humanos fundamentais: a dignidade da pessoa humana. Até em um código privatista e patrimonialista como o Código Civil, basta ter olhos de ver para concluir isso. Os artigos 2º e 12 do Estatuto da Terra, os artigos 1º e 39 do Estatuto da Cidade, quando tratam da função social da propriedade, não autorizam juiz ou administrador público a conferir o cumprimento dessa função com uma simples matrícula no registro do imóvel. Neles está dito que é o uso da propriedade em função do bem coletivo que prova estar ela sendo exercida legitimamente. É uma lástima que tudo isso, por mais repetido que seja por nós em juízo ou na repartição pública, cause qualquer efeito. Há um metacódigo, aquele código que está acima de todos os códigos, a ideologia predominante, privatista e patrimonialista que faz o juiz ou a juíza, exceções à parte, olhar a matrícula do registro de imóvel, isolar o problema e julgar sem conferir o uso do bem. É claro que, assim, a injustiça social continua à solta lá fora, aquelas pessoas não têm nem destino, quando o caso tratar de sem-terras ou sem-tetos. Estive em 1996 na Conferência do Habitat, em Istambul. Ali, o que os movimentos populares brasileiros mais pregavam era que a declaração final daquela conferência previsse obrigatoriamente um destino para as pessoas despejadas. Isso não passou. Aquilo que qualquer bicho aqui em Brasília tem, ou seja, uma toca ou alimento, muitas pessoas não têm. O máximo que se conseguiu foi o reconhecimento de que o direito à moradia seja adquirido “progressivamente”. É por isso que a gente afirma quão difícil é a injustiça social ser afetada por decisões administrativas ou judiciais. Costumo dizer que o direito à alimentação 121

e o direito à moradia, mais do que direitos humanos são direitos “animais” não reconhecidos para as pessoas, embora tangenciados nos tratados internacionais. Vejam, todavia, o que pode nos dar esperança. Não pensem que é unânime essa opinião do Ministério Público, de alguns juízes gaúchos, outros delegados de polícia e da brigada militar, em relação aos direitos humanos. Vejam o que os juízes da democracia disseram para seus colegas do Sul, vendo os vídeos dos despejos que são feitos contra os sem-terras: “as imagens divulgadas chocam pela brutalidade, bombas jogadas em meio a famílias com crianças, balas de borracha disparadas à altura das cabeças e espancamentos. É contra essas medidas de cunho autoritário e ditatorial que vimos a público manifestar nosso apoio ao MST. Democracia não pode ser uma palavra vazia, dissolver o MST, tornálo ilegal, processar e criminalizar suas ações e seus militantes políticos, para “quebrar sua espinha dorsal”, (quebrar sua espinha dorsal está em aspas porque foi a expressão usada pelos promotores para extinguir o movimento), “quebrar sua espinha dorsal” significa, sem meias-palavras, caçar os direitos democráticos dos trabalhadores rurais sem-terra. No informe 2009 da Anistia Internacional, que já está circulando, podemos ler o que a própria Anistia Internacional diz sobre o que aconteceu no meu estado: “No estado do Rio Grande do Sul promotores e policiais militares montaram um dossiê com diversas alegações contra integrantes do MST”. Isso foi visto pelo movimento como uma tentativa de restringir suas atividades e de criminalizar seus membros. O dossiê que incluía alegações de que o MST teria ligações com grupos terroristas foi utilizado para dar sustentação a ordens de despejos, muitas das quais foram executadas com excesso de força pela polícia.” Como vocês veem, nem tudo criminaliza nosso povo. Coragem, gente!

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Criminalização dos Movimentos Sociais e Produção de Subjetividades Vera Vital Brasil28 Antes de tudo, gostaria de dizer que o motivo de ter aceitado o desafio de participar desta mesa sobre a Criminalização dos Movimentos Sociais no VI Seminário Nacional de Direitos Humanos, Nenhuma forma de violência vale a pena, organizado pelo CFP, foi o fato de que este tema me mobiliza pessoalmente, e é fonte de preocupação entre as que se somam as forças sociais ativas no campo dos direitos humanos ao valorizar a existência deste instrumento de luta para os processos de mutação social e política. Precisamos, portanto, avançar neste debate considerando seus mais diversos enfoques, como os que estão sendo apresentados nesta mesa por meus companheiros e minhas companheiras, visando a encontrar caminhos que possam contribuir para romper com as práticas repressivas do Estado, que se manifestam de forma naturalizada, desde nossa constituição como sociedade, impondo-se há séculos em nosso país. Faço parte de uma equipe clínica que atende pessoas afetadas pela violência de Estado no passado recente, durante o período ditatorial, e nos dias atuais, equipe vinculada a um movimento social, o Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro. A experiência deste trabalho clínico, apoiado exclusivamente por agências internacionais, como a Organização das Nações Unidas, a Comissão Europeia e outras, se desdobrou ao longo dos quase vinte anos de existência em atividades de atenção aos afetados e de formação de profissionais do campo da Saúde e da Justiça para o atendimento a este público portador de danos específicos. Danos específicos por serem resultantes da ação violenta do Estado, que, apesar de ter como definição a proteção dos direitos de cidadania, de ter sido signatário de várias convenções internacionais de defesa dos Direitos Humanos, mantém-se violador desses direitos. Nessa função precípua de proteção da cidadania, ignorada e invertida, e que dá lugar a uma política de Estado repressiva, a prática da criminalização 28 Psicóloga clínico-institucional, membro da Equipe Clinica Tortura Nunca Mais/RJ e do Fórum de Reparação e Memória do RJ.

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de certos grupos sociais, por motivos políticos, étnicos ou religiosos, insere-se no cenário de acordo com as demandas do poder em um contexto histórico, como um componente insidioso e persistente ao longo da história. Na impossibilidade de uma abordagem mais ampliada no tempo, faço aqui um recorte dos acontecimentos da segunda metade do século XX até os dias atuais, mais especificamente da década de 1960 do século XX aos dias atuais, período marcado por produções de subjetividades com as quais tenho me encontrado no dia a dia da clínica. Em uma prática clínica que não se esquiva de considerar as dimensões históricosociais, culturais e políticas como produções ativas na constituição das subjetividades, interessa saber qual a proveniência das formações subjetivas: de onde vêm, como vêm, para que vêm? Assim, se formulam perguntas que têm atravessado constantemente nossa prática: o que haveria do passado no presente? Os efeitos de criminalização dos que participaram da luta pela resistência ao regime ditatorial militar se desdobram nos dias atuais? Quais foram os setores sociais atingidos pela criminalização no passado e quais são os atuais? Que efeitos de subjetivação são produzidos nos afetados e no conjunto da sociedade? Do passado ao presente Tenho como intenção evidenciar a existência e a força dos movimentos sociais anteriores ao golpe militar de 1964, acontecimento histórico pouco considerado nos debates atuais. Em certa medida, esquecido não só pela distância no tempo, como por um processo ativo de esquecimento que se seguiu ao período ditatorial, e que se manifesta nos dias atuais com o desconhecimento de grande parte de nossa população sobre o ocorrido naquele período. Em nosso passado recente, nos idos anos 1960, as lutas populares na América Latina ganharam intensidade e visibilidade no espaço social e político; com seu obstinado descontentamento, sua oposição crítica, suas denúncias, mostraram sua força de reivindicação e contestação, engendraram novas formas organizativas. Fervilhavam ações produzidas pelos movimentos sociais que se enraizaram em todo o corpo social. Essa explosão de movimentos sociais se dá no final de um ciclo expansivo do capital, quando os direitos sociais já conquistados passaram a ser 124

colocados em questão, e o cenário apontava para uma interrupção na ampliação desses direitos. A força reivindicativa dos sindicatos pelo pleno emprego, a luta pela reforma agrária, pela ampliação de vagas e por melhores condições de ensino foram concomitantes à diminuição do ritmo de crescimento econômico. Ainda que se apresentassem diferentes posições no plano político dos partidos e dos movimentos sociais, uma dimensão da vida pública, a solidariedade, marcou o espaço das lutas em cada país e no nível internacional. A experiência coletiva se encontrava fortalecida. Vários são os exemplos dessas manifestações coletivas, entre eles, os fortes laços de solidariedade que sustentaram a luta de resistência do povo vietnamita contra o poderio militar norteamericano, apoio que arregimentou forças políticas na América Latina e no mundo. Entretanto, a resposta dos Estados a essa efervescência política foi brutal. Em 1964, com o golpe militar em nosso país, os movimentos nas cidades e no campo foram sendo atacados, desarticulados e algumas diretorias das organizações, ocupadas por pessoas afinadas com o poder. Os movimentos e suas lideranças foram acusados de ser instrumentos de ideais alienígenas, estranhos à cultura nacional, orientados por concepções marxistas, “comunistas” e, portanto, indesejáveis à lógica da ordem que se impunha a ferro e fogo. Essa acusação, apoiada e irradiada pelos meios de comunicação – que, por sua vez, eram controlados pelas elites governantes – foi uma das estratégias eficazes para a deslegitimação pública dos anseios dos movimentos sociais que lutavam pela ampliação de direitos. O golpe civil-militar de 1964 teve como objetivo a implantação de um projeto político; sua força repressiva voltou-se contra o movimento social, contra as forças organizadas da sociedade, contra o pensamento crítico que se evidenciava nas universidades, nas artes, na cultura em geral. Foi uma reação à ascensão de setores populares que lutavam pelas “reformas de base” e a elite nacional associada ao capital transnacional se viu ameaçada em seus interesses por esse movimento. Um projeto de dominação se impôs brutalmente em todos os setores da vida nacional. Se no início do período ditatorial, as organizações sociais estudantis, sindicais, associativas, resistindo à tentativa de desmantelamento criaram novas formas de organização – como as 125

comissões de fábricas, responsáveis pela paralisação de trabalhadores em grandes centros urbanos, as manifestações estudantis em pequena e em grande escalas, a criação de partidos clandestinos e ações políticas–, a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI5), em dezembro de 1968, deu lugar a outra e mais violenta estratégia de poder que se impôs à sociedade. A força repressiva estatal se intensificou apoiada nas leis de exceção e sustentada pela doutrina de segurança nacional. Todas as brechas institucionais existentes foram fechadas. Implantou-se o Estado de Exceção: as atividades do Congresso Nacional foram suspensas, o governo federal passou a governar por decretos. O terrorismo estatal se instalou como forma de gestão da vida. O ataque repressivo às forças sociais que se opunham a essa forma autoritária de governo levou à clandestinidade milhares de pessoas, lideranças e ativistas dos movimentos foram afastados e destituídos de suas funções, demitidos de seus trabalhos, expulsos de seus bairros ou cidades. Outros, perseguidos, presos e torturados; muitos foram mortos ou desapareceram. O exílio foi para muitos um recurso à sobrevivência física. A insegurança, a desconfiança e a suspeição se impuseram como modos de funcionamento nas relações sociais. O medo se irradiou na sociedade. O projeto autoritário se implantou para dar entrada às novas modalidades do capital, apesar da resistência dos movimentos e das denúncias internacionais sobre as violações, atrocidades e arbitrariedades durante o terrorismo de Estado. O silenciamento sobre as lutas de resistência ao regime ditatorial e sobre as bárbaras violações dos Direitos Humanos perpetradas nos movimentos de oposição foi outra importante estratégia processada de forma eficaz e competente pelo Estado que apresenta desdobramentos nos dias atuais. Até hoje vigora o silêncio do Estado sobre o destino dos desaparecidos, sobre o conteúdo dos arquivos militares da ditadura. A estratégia de dominação, marcada pelo terrorismo de Estado que se deu no Brasil e em vários países da América Latina, além do desmonte das organizações sociais e dos partidos políticos, teve como objetivo eliminar fisicamente e simbolicamente os opositores. Tendo como suporte a doutrina de segurança nacional, instalou-se um processo de descaracterização dos movimentos sociais, acusando-os de comunistas, de subversão à ordem, alçando-os à condição de ameaça à segurança 126

e à governabilidade do país e, consequentemente, criminalizando seus agentes. A versão oficial da história assim se impôs, e um novo modelo de gestão do capital passou a reger as relações. Hoje, vivemos um momento histórico em que está em curso a dinâmica dos processos de globalização em um mundo de políticas neoliberais. A desigualdade econômica se aprofundou, a miséria de alastrou em todo o mundo como uma chaga ameaçadora da segurança dos países e setores mais ricos. No Brasil, ainda que sejam identificados avanços no campo do que se reconhece como Estado de Direito, há segmentos sociais vivendo sob a égide do antigo Estado de Exceção. São os pobres, que na verdade nunca deixaram de ser maltratados, excluídos socialmente e fortemente reprimidos. Hoje, em um quadro em que a desigualdade impera, constituem o alvo privilegiado da ação repressiva do Estado. Para a opressão localizada nesse setor social, estão postos mecanismos que favorecem a deslegitimação das ações de sujeitos sociais que lutam por melhores condições de trabalho, de vida de moradia, atingidos pelo preconceito, pela discriminação e pela criminalização. Estudos realizados nos últimos anos têm comprovado que jovens pobres e negros – uma vez atribuída a imagem de periculosidade, de ameaça à segurança pública – têm sido alvo frequente de assassinatos à queima-roupa, de execuções extrajudiciais por policiais que justificam legalmente esses assassinatos por meio de um dispositivo: o auto de resistência. Ou seja, o paradigma de segurança ainda é o repressivo, a lógica é a da ordem e da disciplina, do “choque de ordem”, como a política amplamente difundida no Rio de Janeiro. Hoje, prevalece nos cenários nacional e internacional aquilo de forma generalizada se entende por obsessão por segurança pública, em prejuízo ao respeito aos direitos humanos. A segurança pública não deveria estar em competição, em confronto – tal como vem acontecendo – com os direitos humanos, mas ser um dos componentes do vasto campo dos direitos humanos. A garantia dos direitos econômicos, sociais, civis e culturais deveria ser a referência básica e fundamental sustentada pelo Estado para a convivência na sociedade. No entanto, o que se verifica é uma inversão entre esses dois termos. O que predomina no mundo hoje é a ideia da urgência e do inesgotável investimento financeiro na segurança, que se faz no âmbito privado com a criação de forças de 127

segurança privada e pela repressão estatal, por meio de suas forças policiais, que acabam por alimentar, em um ciclo sem fim, a indústria das armas. Uma prática que se institucionalizou na ditadura militar, a da tortura, permanece hoje atingindo os segmentos pobres. A polícia faz uso generalizado e sistematizado da tortura nas prisões e nas ruas, com assassinatos de ativistas rurais e de defensores de direitos humanos, com a criminalização dos movimentos sociais. Qual é o efeito dessa estratégia de criminalização que está em franco vigor? A criminalização visa a calar aqueles que se organizam, intimidá-los, impedi-los de levar a cabo suas lutas, quebrar a força do movimento, submetê-los à tirania da passividade social, do assujeitamento, da pulverização das forças do coletivo, incentivando o isolamento e fortalecendo o individualismo. Visa, portanto, à despolitização das lutas sociais. Em nosso país temos vários exemplos de ataques aos movimentos sociais29, mas me limitarei aqui a abordar um deles, que recentemente ganhou enorme visibilidade na mídia, pelas acusações sofridas, um caso paradigmático que nos permite examinar e localizar no tempo os dispositivos acionados nesse processo de criminalização. É notória e preocupante a maneira como o Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul tem tratado o Movimento dos Sem Terra (MST). Em dezembro de 2007, o Conselho Superior do Ministério Público daquele estado designou promotores de justiça para o ajuizamento de ações e outras medidas judiciais para a desocupação de assentamentos do MST. Entre essas ações, a de impedir as marchas, passeatas e outras formas de deslocamentos dos trabalhadores sem-terra; de investigar os integrantes de acampamentos e lideranças pela prática de crime organizado; de intervir nas escolas localizadas em acampamentos por causa da linha pedagógica considerada marxista oferecida aos estudantes. O Ministério Público do Rio Grande do Sul qualificou o MST como “crime organizado”, “Estado-paralelo com nítida inspiração leninista”, e de “caráter paramilitar”. 29 O GTNM/RJ há cerca de dois anos recebeu uma sentença por ter feito uma grave denúncia de torturas em seu site; denúncia feita por um jovem e torturas perpetradas por policiais. A entidade foi condenada a pagar 45 mil reais a quatro policiais federais. Foi, sem dúvida, um ataque a um movimento que se define contra qualquer tipo de tortura e a denuncia publicamente.

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Formulações extemporâneas como o velho e desgastado jargão, amplamente usado no passado ditatorial, “quem protesta é comunista”, é resgatado para fundamentar peças jurídicas de acusação no Estado de Direito, em que a liberdade de expressão e de organização supostamente estaria em curso. Ou seja, com expedientes característicos do Estado de Exceção, com base na Lei de Segurança Nacional, o Ministério Público do Rio Grande do Sul apresentou denúncia contra oito lideranças de assentamentos do MST, como incursos nos crimes relacionados à “mudança do regime vigente ou do Estado de Direito”. A denúncia foi aceita pelo juiz federal Felipe Veit Leal, em 11 de abril de 2008. É bom lembrar que a Lei de Segurança Nacional foi promulgada em plena ditadura militar no Brasil (1964-1985)30. Essa lei define os crimes contra a segurança nacional, contra a ordem política e social e estabelece seu processo e julgamento. Os tipos penais nela previstos criminalizavam condutas consideradas contrárias ao regime ditatorial, como, por exemplo, a formação de associações ou grupamentos que lutassem pela derrubada do regime militar, espionagem contra o governo, propaganda para alteração da ordem política vigente etc. Tanto a decisão do Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul como a denúncia que tramita na Justiça Federal contra oito lideranças representam grave violação às liberdades fundamentais de associação, reunião e expressão dos indivíduos. Além disso, usam linguagem do discurso anticomunista, típico do período da ditadura militar, para criminalizar os integrantes do MST. Qual a lógica, portanto, posta em funcionamento ao criminalizar os trabalhadores sem-terra? A lógica que está em curso é: ao acusar o MST de criminoso, se está afirmando que sua atividade, ou sua existência, coincide com um crime. Trata-se da tentativa de destituição de seu valor social e político. Pois bem, se o MST é caso de polícia e de “justiça”, não é possível considerá-lo agente político legítimo, cuja expressão político-social deve ser reconhecida e respeitada. Além disso, ao criminalizar o movimento, ao apenar suas lideranças, fortalece-se o que se conhece por Estado Penal – uma dimensão cuja existência é 30 A primeira versão da Lei de Segurança Nacional data de 1967, transforma em legislação a doutrina da segurança nacional, fundamento do golpe de Estado. Foram feitas uma segunda versão, em 1969, e a terceira e última, em 14 de dezembro de 1983.

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irrefutável, efeito da atual ordem social mundial31 –, levando lideranças do MST para a prisão. A partir daí, poder-se supor que a democracia se realiza de forma “saudável”. Não se pode esquecer que a criminalização do MST vai além do movimento e atinge suas causas e reivindicações. O reconhecimento do direito à terra como um direito humano e a reforma agrária deixam de ser propostas políticas para se tornar, por extensão, atividades associadas à criminalidade. Despolitiza-se o cotidiano das lutas pelo direito à terra. Hoje a criminalização dos movimentos sociais visa à deslegitimização da luta, das forças político-sociais, de esvaziamento da política, do isolamento, tal qual como engendrado no passado. Diante do impedimento à convivência ativa das lutas políticas, prevalece a política do isolamento, que tem como instituições a prisão, o manicômio. Instalam-se o medo e o silêncio, condições que favorecem a ruptura dos vínculos sociais, produzindo o apagamento subjetivo, o adoecimento e, muitas vezes, a morte. Há de fato verdadeira inversão de valores: os movimentos que lutam por melhores condições de vida e, por extensão, denunciam nessa luta a injustiça social são responsabilizados pelo Estado, que acaba por manter a injustiça social. Como quebrar esse ciclo? Do presente ao passado e à justiça Além do direito à liberdade de manifestação, direito à vida, a uma vida digna, eixos centrais do conceito de direitos humanos, é necessária uma vida sem medo. Medo no qual a sociedade hoje se vê mergulhada, perante essa produção incessante e inesgotável, que dá sustentação a um Estado que abandonou sua função de regulamentação social e se reduziu a um Estado policial para dar livre curso ao capital. O esforço em recuperar componentes que caracterizaram a violência de Estado em nosso passado recente, e que ainda marcam o modo como ela se faz no presente, não é gratuito; faz-se em uma aposta de que é no movimento de construção de memória, de recuperação do ocorrido, de busca de sentido, que podemos avançar no presente e apontar para 31 O Brasil é hoje um dos países com a maior população carcerária do mundo. As prisões são uma versão do apartheid social, legitimado pelo sistema de Justiça penal, seletivo, que criminaliza a população empobrecida, encarcerada prioritariamente por crimes contra a propriedade. O aumento dessa população se dá a partir dos anos 1990, quando da criação do Estado Mínimo em relação às políticas sociais, resultado das políticas neoliberais.

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o futuro. É levar em conta as palavras de Reyes Mate quando afirma que não há justiça sem memória da injustiça. Memória a ser construída pelos que participaram daquele momento histórico e que são testemunhas da injustiça por terem sido criminalizados por seus atos na luta por melhores condições de vida, de uma sociedade mais justa, por terem sofrido consequências variadas, desde o preconceito à exclusão social, do desemprego às perseguições e ao isolamento a que foram lançados de forma drástica. Construção de memória para que a sociedade possa reconhecer a importância e o papel decisivo dos movimentos sociais na construção futura de uma sociedade plural, democrática e justa. Para que a verdade e a justiça sejam o norte para a construção de uma sociedade futura. Os movimentos sociais funcionam como catalisadores das mudanças, tensionam as relações, têm a potência de impulsionar rupturas. Cumprem, portanto, papel transformador, civilizatório na sociedade. Sua criminalização opera um movimento de deslegitimação dos sujeitos coletivos. No Fórum Social Mundial deste ano de 2009, em Belém do Pará, o debate sobre a criminalização dos movimentos sociais suscitou questões que nos ajudam a pensar alguns caminhos possíveis para romper a lógica que está em curso. Lançada a pergunta sobre por que a sociedade civil não vai ao Poder Judiciário para ter atuação política de controle da atividade desses funcionários públicos – sendo esta uma esfera de poder estatal fundamental –,outra pergunta invertida, lançada por Boaventura de Sousa Santos, se faz: por que o Judiciário não vai até a sociedade civil? Seria possível esse encontro? Haveria possibilidade de convívio político entre as instâncias do movimento organizado e do poder Judiciário? Do ponto de vista histórico são os setores dominantes da sociedade civil que se utilizam do poder Judiciário, e não a sociedade civil das classes populares, que têm diariamente seus direitos impunemente violados. A desconfiança em relação à Justiça não é mera crispação existencial. Forja-se na história da humanidade que sofre injustiça. E é ilustrativo o afastamento profundo entre sociedade civil e poder estatal nas ditaduras. Como reconstituir essas relações num projeto de democratização? Seria possível romper com o abismo que separa instâncias estatais e sociedade civil, entre o Judiciário e movimentos organizados? É o que aponta Mary 131

Robinson na conferência Concretizando nossos compromissos. Diz ela: “ sistemas nacionais devem ser complementados por um espaço de atuação da sociedade civil e dos defensores de direitos humanos tanto quanto pela garantia de que entre tais sistemas formais e institucionalizados de defesa e promoção dos direitos humanos e tais atores da sociedade configure-se verdadeira e efetiva dinâmica de relacionamento.” As forças instituintes, forças de criação, de invenção de alteridade não são exclusivas dos movimentos sociais. Elas habitam tanto as instituições em nível do Estado como da sociedade civil, ambas atravessadas por forças de produção e reprodução. A permeabilidade entre essas duas dimensões da vida em sociedade, a porosidade às propostas vindas de ambas as direções dependerá das políticas que se construam a partir da tensão entre essas partes. Políticas públicas construídas a partir do encontro das organizações sociais não governamentais, e governamentais, movimentos da sociedade civil como nova forma de exercício de poder. A renúncia a esse esforço de construção ou o impedimento a ele, por vezes provocado pela criminalização dos movimentos sociais, altera desfavoravelmente o processo de democratização e conserva o abismo que ora se pode verificar em uma perspectiva do Estado que ainda não abdicou do modelo policial e mantém como forte aliado o poder Judiciário.

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Gilson Cardoso 32 O tema da criminalização dos movimentos sociais me chama e me remete a uma questão muito séria, que é a criminalização da pobreza no Brasil. Se existe criminalização dos movimentos sociais, se existe perseguição a defensores, a lideranças, a pessoas que às vezes achamos que nem lideranças são, se existe tortura contra essas pessoas, se existem prisões arbitrárias, se existem assassinatos é porque existe a criminalização da pobreza, é porque as forças conservadoras acham que os pobres e os negros neste país são de fato criminosas em potencial. Eu considero esse episódio do Rio Grande do Sul, da fazenda Coqueiros de Carazinho uma ação muito grave, um atentado à democracia brasileira, não foi agora, mas é como se tivesse sido ontem, e isso está em curso. Considero essa ação da Brigada Militar do Rio Grande do Sul inconstitucional, porque não é papel da brigada fazer relatório contra o movimento social e entregar ao Ministério Público (MP), que atuou inconstitucionalmente, também, não é papel do MP receber relatório secreto de uma brigada sem conceder direito de defesa. Ali, sinto muito, há vários companheiros do Ministério Público e conhecemos e que muitas vezes estão conosco, mas dessa vez a coisa foi muito séria, porque passa, de fato, de coibir movimento social como o MST. E não é só contra o MST. O MST é uma forma que as forças conservadoras acham para derrubar de vez todos os movimentos. Esse jogo é um jogo pesado, as forças são muito fortes e elas estão dentro do aparelho do Estado e estão na sociedade, desde o poder Executivo, passando pelo Legislativo. E a questão do Judiciário é impressionante: como existe ainda uma instância tão poderosa, intocável, como o poder Judiciário, que, inclusive, em várias ações perpetuadas por seus representantes não quer nem saber da Constituição ou das leis. Essa luta contra a criminalização dos movimentos sociais e de seus defensores, de suas lideranças, é do Conselho Federal de Psicologia, é do Grupo Tortura Nunca Mais, é do MST, é do movimento de moradia, é do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), do qual eu faço parte. Só sairemos – e, costumo dizer, continuamos numa determinada defensiva – se estivermos juntos e dissermos bem claramente que essa 32 Em 2009, era coordenador Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos.

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luta é nossa, de todos os movimentos, de todas aquelas pessoas que de fato lutam por justiça social neste país. Lutar por democracia no Brasil é lutar por todos os direitos humanos de todos e de todas, pois não estamos mais em um Brasil Colônia. No entanto, não podemos esquecer-nos da luta dos negros, dos índios, que foram perseguidos, que foram dizimados, foram torturados, isso vem de muito longe. E jamais esquecer o período da ditadura militar, como a que o pessoal do Grupo Tortura Nunca Mais está dizendo, não devemos esquecer, porque só estamos aqui hoje discutindo essa temática em consequência da luta dessas pessoas, que também foram perseguidas, torturadas, que lutaram por democracia neste país – muitas estão desaparecidas. Temos de dizer que essa luta contra a criminalização dos movimentos sociais tem de estar ligada ao direito à verdade e à memória no país. Não nos qualificamos e não qualificamos aqueles que não sabem o que aconteceu naquela época, isso é um papel nosso de que não podemos abrir mão. Está também em nossa agenda a luta contra a tortura neste país. O Brasil escolheu um modelo de desenvolvimento que prioriza os grandes projetos, o grande capital multinacional, prioriza o agronegócio, o álcool combustível. Esse modelo de desenvolvimento evidentemente impacta negativamente as populações vulneráveis, e eu posso citar o exemplo da população indígena, da população quilombola e dos ribeirinhos. Esse modelo de desenvolvimento acirra um violento conflito agrário e também tem irradiações nos grandes centros urbanos. Não é só no Rio de Janeiro, onde moro, mas é também nos outros grandes centros: Belo Horizonte, Salvador, Brasília – a violência do DF é escondida pela mídia. Eu diria que os governos dessas grandes cidades escolheram um projeto de segurança pública completamente equivocado, que vitimiza jovens, negros, populações pobres nos bairros populares e nas favelas. Há uma discussão quanto ao Brasil viver uma dicotomia. Existem avanços com relação à democracia e aos direitos humanos, evidentemente, senão nós não estaríamos aqui. Entretanto, temos de ter certo cuidado com isso, porque há locais a que a democracia não chegou, e é obrigação nossa, que usufruímos dessa democracia pela qual tantos companheiros lutaram e tombaram, dizer – e lutar – que a várias partes deste país 134

a democracia não chegou – muito pelo contrário: o que existe nesses grandes aglomerados de populações pobres é a barbárie. Eu considero sinceramente que a eleição de um presidente como o Lula é um avanço – assim como outras eleições estaduais que ocorreram. No entanto, é impressionante que, com todos esses avanços que temos hoje, existam vários companheiros nossos, hoje, nos poderes estaduais que, para mim, também estão equivocados, porque usam da força policial para agredir, para violentar, para torturar e matar. Mas é muito difícil para quem convive com violações tão violentas como aquelas pelas quais os jovens das favelas passam hoje. Há tortura antes de matar, e, em cada operação policial nessas favelas, entre cinco e dez jovens de catorze a vinte anos são barbaramente torturados e mortos. E todo mundo sabe disso, não é segredo, não acredito que as pessoas não saibam que as forças policiais trabalham dessa forma nos centros urbanos deste país. Essa questão da mídia é séria, porque ela esconde, fomenta outro lado. Em dezembro acontecerá a Conferência de Comunicação – não sei como é que faríamos para participar dessa que é a primeira Conferência de Comunicação. Eu tenho informações de que ela está sendo mal conduzida e que os movimentos sociais estão sendo atropelados, colocados à margem. Outra Conferência que vai acontecer em agosto é a de Segurança Pública. Na última semana, em todo o território brasileiro, houve várias ações contra as populações indígenas. Cito os exemplos de Pernambuco, com a questão do xucurus, que é grave, são prisões, são perseguições; na Bahia e no Mato Grosso do Sul, os tupinambás. Uma coisa muito presente: o Brasil ainda passa por um momento de democracia capenga e cabe a nós sair desta mesa, que também é um lugar importante, e ir à luta, porque o bicho é muito grande, a coisa é muito séria neste país. É preciso lutar também por uma questão, um modelo de desenvolvimento no qual os direitos humanos sejam condição, em que o ser humano seja o centro e a economia não seja vista como um fim em si mesma, senão estaríamos de braços atados nessa luta. Quero dizer que a saída também seria a luta pela valorização desses defensores, desses movimentos, de todas essas lideranças que estão passando por isso.

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Ela Wiecko de Castilho33 Vale a pena recordar o momento histórico dos anos 1960. Vivenciei nesses anos o Movimento Estudantil, com a repressão e com o envolvimento que tínhamos, no objetivo de construir uma sociedade mais justa. Nos anos 60 não falávamos em criminalização dos movimentos sociais. Não existia essa categoria. Usava-se a expressão Movimento Estudantil, mas não no sentido de movimento social. Também não se usava a palavra criminalização, até porque o conceito surgiu justamente nos anos 1960, no bojo de estudos antropológicos e sociológicos que resultaram no chamado paradigma criminológico da reação social, que nega uma ontologia do crime. O crime não existe em si, é uma construção social. Assim, não existe “o” criminoso, as pessoas é que são criminalizadas, por meio de processos de criminalização. Nos anos 1960 falávamos em repressão. Todavia, a questão de fundo é a mesma. Os movimentos que existiam nos anos 1960, tal como hoje, queriam uma mudança na estrutura da sociedade, uma sociedade mais justa, mais solidária, enfim, aquilo que se busca nas discussões do Fórum Social Mundial: “um outro mundo é possível”. Ao comparar as palavras repressão e criminalização, penso que esta última tem significado mais forte. É uma palavra que, de um lado, amplia o sentido da repressão como resposta, revide, para incorporar o sentido de uma estratégia planejada dos órgãos estatais, em contraposição aos movimentos sociais, que buscam concretizar uma sociedade mais justa. De outro lado, porém, é uma palavra que sugere resposta restrita a sanções de natureza penal. Realmente, isso acontece, mas não é só isso. Integrantes dos movimentos sociais têm sido qualificados como criminosos, no sentido de ser acusados de cometimento de crimes, como injúria, crime contra a segurança nacional, incitação ao crime, apologia ao crime, esbulho possessório, quadrilha, ou seja, condutas definidas no código penal ou em leis especiais. A estratégia estatal se vale de outros instrumentos jurídicos, além do direito penal. Há pouco foi dado o exemplo de uma ação judicial de indenização para pagamento por danos morais. No caso do MST, o Ministério Público propôs uma ação judicial para a dissolução da sua organização. 33 Subprocuradora-Geral da República - Ministério Público Federal.

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Todos os ramos dos direito preveem instrumentos para sanção. Por exemplo, o direito administrativo oferece a possibilidade de instauração de processos disciplinares contra servidores públicos que apoiam os Movimentos Sociais. É um arsenal muito grande e diversificado de instrumentos ou mecanismos de criminalização. A palavra criminalização “pegou” não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. No México, fala-se em criminalização dos protestos sociais. Temos de compreender seu significado na perspectiva ampla de uso de todo o arsenal que o direito fornece para se contrapor a coletividades e a indivíduos. Foi importante a fala de Gilson sobre a criminalização de defensores de direitos humanos e indígenas. Não ocorre apenas a criminalização de movimentos sociais em sentido amplo, mas também de grupos étnicos e de outros grupos que não são categorizáveis como movimentos Sociais nem como grupos étnicos. Por exemplo, uma associação, uma comunidade de bairro. Ainda, de pessoas determinadas que integram movimentos sociais e até de agentes públicos, como servidores, membros do Ministério Público e do Judiciário que, no exercício funcional, aplicam as leis de modo a assegurar a igualdade de direitos. Todos podem ser alvo de criminalização. Assim, membros do Ministério Público Federal já foram questionados por meio de representações encaminhadas ao Conselho Superior ou à Corregedoria-Geral do Ministério Público Federal porque instauraram procedimento para defesa, por exemplo, de direitos indígenas ou porque não instauraram procedimento contra indígenas que voltaram às terras de ocupação tradicional de onde foram expulsos e que foram apropriadas por fazendeiros. Membros do Ministério Público se incluem nos denominados defensores e defensoras de direitos humanos, pessoas que atuam dentro do aparelho estatal ou fora dele na implementação dos direitos fundamentais individuais e coletivos indissociáveis e indispensáveis à dignidade humana. O que está por trás da criminalização? Nós vimos que isso aconteceu nos anos 1960, nos anos 1990 e agora, no século 21, que acontece no Brasil e em todos os países. Há uma explicação para essa continuidade, ainda que apresente diferenças? A meu ver é um fenômeno decorrente do sistema capitalista. Estamos diante de uma metamorfose de um mesmo mecanismo. O capitalismo se globalizou em escala planetária, mas continua presente, continua forte, 138

encontrando formas diversas, mais invasivas e radicais, de separar as pessoas e de manter as desigualdades . Percebo presente ainda, como premissa da criminalização contemporânea, a mesma concepção do direito que vigia nos anos 1960, a que Eduardo Novoa Monreal, chamava de “obstáculo à transformação social”. O Executivo, o Ministério Público, o Judiciário, a Polícia, quando adotam interpretações da lei que negam o direito à fala a indivíduos, grupos e movimentos, ou que não reconhecem o conflito social, valemse das normas jurídicas para opor obstáculos à transformação social. É uma concepção com pretensão de impor uniformidade e de excluir a diversidade e a diferença A ela se contrapõe a concepção de Boaventura Souza Santos, em Portugal, e de José Geraldo de Souza Júnior, no Brasil, que propugnam por uma interpretação jurídica que dê ensejo a emancipação social, isto é, uma interpretação emancipatória do direito, que possibilite a superação das desigualdades, sem afastar o respeito à diversidade e à diferença. Agora, uma breve reflexão acerca das possibilidades de trazer os conflitos sociais para o âmbito do Judiciário. Será que há condições de fazer valer a concepção emancipatória do direito nessa instância? Será que é viável aumentar o número de vozes dissonantes como as do Ministério Público Democrático ou da Associação dos Juízes para a Democracia? É muito difícil trabalhar com as brechas da lei, porque o direito consiste numa superestrutura de uma estrutura econômica e social, que hoje compreendemos não se limitar à desigualdade de classes, mas também de gênero e de raça. O direito tem forte tendência conservadora, existe para produzir e reproduzir o status quo. Por isso, não tenho muita esperança nessa alternativa de levar problemas sociais ao Judiciário. Sou professora da Universidade de Brasília (UnB) e na Faculdade de Direito há um espaço de luta, de construção de um pensamento emancipatório. Há um jornal que sai periodicamente, o Constituição e Democracia, que discute as demandas postas pela sociedade contemporânea. Muitos estudantes se envolvem, mas, quando terminam o curso, procuram colocações. Querem fazer concurso: concurso para promotor de justiça ou procurador da República, para juiz de direito ou juiz federal, para delegado de Polícia, para a Advocacia Pública, para a 139

Defensoria Pública, enfim, para profissões jurídicas acessíveis mediante concursos públicos. Entretanto, paradoxalmente, o concurso público, um instrumento democrático, acaba com todo o trabalho que fizemos de sensibilização para a sociedade e de ensinar uma nova interpretação das leis, porque a forma de realização do concurso público e os responsáveis pela concepção das provas fazem e pensam o inverso. Então os candidatos, para ser aprovados, precisam negar aquilo que aprenderam, dar as respostas de sempre. Alguns dizem: quando eu chegar lá, vou fazer diferente. Todavia, a estrutura que vão encontrar é tão viciada que poucos têm a obstinação de enfrentá-la. A maioria fica acomodada, e o direito continua a funcionar como obstáculo à transformação social. Observo, ainda, a forma de escolha dos integrantes dos tribunais, que não se faz por concurso público, mas por interesses políticos. Ainda que os candidatos e as candidatas possam apresentar bons currículos, o que pesa para quem tem o poder de escolha é a vantagem suposta que o escolhido ou a escolhida poderão oferecer ou o quanto irão sustentar a estrutura de poder existente. Não desejo tirar totalmente a esperança de que o Judiciário possa por freio à criminalização dos movimentos sociais, mas é preciso estar com o pé no chão, saber que temos muitas dificuldades, e que, para superá-las, imprescindível formular estratégias. Trabalho com a ideia da complexidade dos indivíduos e da sociedade. Portanto, as respostas de que precisamos devem atentar para a complexidade. Não podemos apostar todas as fichas no campo do Judiciário, temos de ter um conjunto de estratégias, além de, sem dúvida, não desistir de nossa utopia.

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Os textos desta publicação trazem as falas e diálogos ocorridos durante o VI SEMINÁRIO NACIONAL DE PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS - NENHUMA FORMA DE VIOLÊNCIA VALE A PENA, em julho de 2009, em Brasília. O seminário fez parte de campanha de mesmo nome, promovida pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia.

SAF/SUL Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 104

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