Novas tecnologias, Direito e disrupção

May 30, 2017 | Autor: Nadja Lirio do Valle | Categoria: Disruptive Innovation, Disruptive Technologies, Inovação, Regulação
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Novas tecnologias, Direito e disrupção
Nadja Lírio do Valle
João Luiz Gassen
Assistimos a mais um episódio da batalha jurídica travada entre o Poder Judiciário e as novas tecnologias. Na tentativa de impulsionar a produção probatória em processos penais, tribunais, carentes de instrumentos coercitivos adaptados às novas tecnologias, proferem decisões completamente desarrazoadas, cujo impacto sistêmico na macro e microeconomia é solenemente ignorado. Os recentes episódios de bloqueio ao aplicativo WhatsApp sinalizam a aproximação de um embate cuja solução não deve se concentrar nas mãos de apenas um Poder.
Tanto as determinações de suspensão dos serviços fornecidos pelo aplicativo, quanto a prisão do Vice-Presidente do Facebook evidenciam a dificuldade enfrentada pelo Poder Judiciário e pelas polícias de enfrentar os desafios postos pelas novas tecnologias utilizando-se de lógica e mecanismos há muito ultrapassados. E não estamos sozinhos neste processo de reformulação e evolução. Em casos bastante semelhantes, o FBI, nos Estados Unidos, tem encontrado resistência das empresas de tecnologia da informação, em especial da Apple. Em dois casos recentes, a gigante da tecnologia se encontrou no polo passivo de demandas que visavam exigir o fornecimento de informações criptografadas em celulares que faziam parte de investigações criminais.
Em um dos casos, envolvendo o telefone que seria de um dos envolvidos no atentado de San Bernardino, na Califórnia, o FBI conseguiu uma ordem judicial, expedida pela juíza Sheri Pym, com base no All Writs Act, de 1789, determinando que a companhia fornecesse um software ao bureau que lhe permita vencer o código de bloqueio do telefone sem o risco de ativação do sistema de segurança criptográfico que apaga todas as informações do aparelho após determinado número de tentativas malsucedidas de desbloqueio. Com isto, se instalou um embate que põe em confronto a política de privacidade da Apple, os sistemas de segurança que garantem a inviolabilidade dos aparelhos de seus usuários (garantindo a sua privacidade e a segurança de suas informações) e o interesse persecutório estatal.
Paralelamente, corria em Nova Iorque, um caso que envolvia a apreensão de um celular que estaria ligado a atividades de tráfico de drogas. Neste caso, o pedido havia se embasado no mesmo All Writs Act utilizado no caso de San Bernardino, e o magistrado entendeu que dados criptografados não são atingidos por esta norma e que impor à Apple a obrigação de cooperar violaria ao princípio da proporcionalidade, pois resultaria em imposição de ônus desproporcional e desnecessário à empresa. Por fim, o magistrado afirmou também que as novas questões envolvendo o AWA, criptografia e intrusão governamental devem ser submetidas ao Congresso, sob pena de violar-se o princípio democrático.
Percebe-se, portanto, uma tendência mundial de conflito entre o interesse persecutório estatal e as utilities de privacidade oferecidas pelas novas tecnologias.

Da incompetência do Poder Judiciário para interferir no modelo empresarial
Talvez uma das questões mais relevantes que se põem quando se analisam casos como os da Apple vs. FBI ou as decisões em face do WhatsApp no Brasil seja a competência do Judiciário para impor as restrições ou obrigações ventiladas pelas decisões.
No caso da Apple, a defesa da companhia sustentou que o fornecimento de software capaz de acessar às informações contidas no aparelho resultaria em violação à segurança dos demais usuários dos smartphones e tablets daquela empresa. Isto porque a "chave" para um sistema criptografado é informação que permite acesso a todos os dados armazenados, de modo que uma vez que esta chave seja conhecida, ou que se crie um mecanismo de burlar suas funções de segurança, o código criptográfico poderá ser vencido por qualquer um com este conhecimento – inclusive hackers.
Além disso, o atendimento à ordem judicial imporia a criação de uma nova versão do sistema operacional da Apple que burlaria diversas medidas de segurança embutidas no sistema operacional padrão instalado em seus telefones e aparelhos, o que permitiria a obtenção de informações de qualquer aparelho, sem que se fizesse necessária nova autorização judicial para tanto.
Relevante ressaltar que nos dois casos envolvendo a Apple, o FBI terminou por desistir de sua demanda, evitando assim a formação de precedente judicial contrário.
Já no caso nacional, as duas decisões pela suspensão do funcionamento do WhatsApp foram fundamentadas artigos 11, 12, 13 e 15, caput e parágrafo 4º da Lei nº 12.965/2014, o chamado Marco Civil da Internet, cuja aplicação no caso é amplamente discutida, tendo os juristas por trás da criação da legislação se manifestado diversas vezes contra a sua incidência nos termos aplicados, uma vez que isto violaria um dos principais princípios do próprio Marco, qual seja, a neutralidade de rede.
Somando-se a isso, desde 05 de abril de 2016, o WhatsApp – a exemplo dos aparelhos Apple – aprimorou seus sistemas de segurança, adotando a chamada criptografia end-to-end.
Diferentemente da quebra de sigilo telefônico, há muito utilizado pelas cortes nacionais em investigações, em que se determina à companhia telefônica que produza os registros de ligações feitas e recebidas por determinado número – informação já disponível para a empresa de telecomunicação –, nos casos em que há criptografia dos dados, a empresa prestadora do serviço e a fabricante do aparelho não têm acesso aos dados. A inviolabilidade dos dados é, em verdade, o carro chefe destes sistemas e serviços fornecidos por gigantes da tecnologia, como o armazenamento de dados "na nuvem".
Em verdade, para cumprir as decisões, a Apple e o WhatsApp teriam que aplicar seus recursos e tempo em desenvolver sistemas de burla a seus sistemas de segurança. As decisões estariam violando assim a livre iniciativa e interferindo no modelo empresarial escolhido pelas companhias, elemento fora da esfera de competência do Poder Judiciário.
Além disso, de modo geral, estas decisões não se analisarão os efeitos sistêmicos que estas imposições podem trazer em nível de proteção do cidadão comum, cujos dados restarão mais vulneráveis com a criação de "portas dos fundos" ou outros meios de acesso a aparelhos e informações criptografadas.
Por fim, decisões como a do caso WhatsApp são manifestamente desproporcionais, seja porque impõem a empresas terceiras, não integrantes do conflito, o ônus de promover o bloqueio do aplicativo; seja porque não têm em conta o efeito que terão nas atividades econômicas e empresariais que fazem uso do aplicativo, e que serão afetados pela suspensão da prestação do serviço.
É necessário que o Direito e seus operadores busquem uma operação disruptiva dos instrumentos tradicionais, reconhecendo a sua inadequação para solucionar os conflitos envolvendo novas tecnologias a partir de uma lógica tradicionalista.



Artigo publicado no site Jota em 19 de julho de 2016. Disponível em . Último acesso em 05 de setembro de 2016.



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