O CORPO FEMININO COMO DISCURSO NA PERFORMANCE LOVELY BABIES, DE MÁRCIA X

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O CORPO FEMININO COMO DISCURSO NA PERFORMANCE LOVELY BABIES, DE MÁRCIA X. Lucas Men Benatti (UEM)

Considerações iniciais Este estudo apresenta algumas teorizações desenvolvidas ao longo do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq-FA-UEM) “O corpo feminino como discurso na performance Lovely Babies, de Márcia X.”, orientado pela profa. Dra. Renata Marcelle Lara. Norteado pela Análise de Discurso de vertente francesa praticada por Michel Pêcheux, enfocamos neste resumo questões pertinentes à problemática de como o corpo feminino é discursivizado e significa na performance Lovely Babies, de Márcia X. Lovely Babies, performance a ser analisada, considerando o funcionamento discursivo sobre/do corpo feminino, foi executada em 1993, no Espaço Cultural Sérgio Porto (RJ). Márcia X. transforma na performance, bonecos infantis que foram originalmente projetados para engatinhar em objetos eróticos ao colocá-los em posições sexuais. Segundo a artista, em texto de sua autoria, publicado em seu site (2014), sobre Lovely Babies, na ocasião, os bonecos são usados para simular a presença de pênis e seios em seu corpo, e sugerem a realização de um parto, por meio do qual a cabeça de um boneco é arrancada e, na sequência, atirada ao público. O vídeo que compõe o material de análise desta pesquisa é um registro feito pelo artista plástico e performer Aimberê Cesar, amigo de Márcia X. O vídeo tem aproximadamente cinco minutos de duração e foi editado e remasterizado pelo próprio Aimberê, em 2005, estando disponível no site oficial de X.1Orientados pelo dispositivo teórico e metodológico da AD, partimos da seguinte pergunta de análise: Como o corpo feminino é discursivizado e significa na performance Lovely Babies, de Márcia X.? Em 1

Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxObra.asp?sMenu=2&sObra=47 . Acesso em: 27out. 2014.

nossa análise, partimos a princípio, de regularidades visuais/conteúdistas a respeito de como era apresentado e significado o corpo feminino na performance para construção e estruturação dos recortes discursivos desta pesquisa. Observamos, considerando as condições de produção em que se dava a performance, a emergência enquanto regularidade estruturante na construção do corpus, que versa sobre os discursos que significam o corpo feminino, o jogo dos lugares não possíveis do imaginário social do ser e significar mulher, que de um modo geral, em nossa cultura é regido por um sentimento religioso, e que são colocados ao mesmo tempo funcionando no mesmo lugar. Considerando esse jogo que deixa advir essa multiplicidade e que transita por mais de um espaço e posição ao mesmo tempo, apresentamos algumas marcas dessa regularidade nos efeitos de sentido produzidos pela artista na performance. São eles: a mulher materna; a mulher sexualizada; a mulher materna e sexualizada e o imbricamento do feminino com o masculino.

Percurso de análise Márcia X. inicia sua performance vestida apenas com uma espécie de camisola branca e uma peça íntima que demonstra certo volume fálico, a artista sozinha em um palco negro e caminha exibindo seu corpo, os seios nus e a forma fálica ereta. Ao pronunciar a frase “Inveja úteros”, a artista, seguidamente, retira de dentro de sua peça íntima um boneco vestido como um bebê. Márcia X. toma o boneco em seus braços e, com gestos de quem nina uma criança, recebe palmas da plateia. Logo na abertura de sua performance, os efeitos produzidos pelas ações de Márcia X. desestabilizam conceitos, modos de identificação, que são relacionados em nossa sociedade, à mulher. Ao exibir, no local de seu sexo, um volume fálico não esperado, através da peça íntima que usava, a artista desliza os sentidos relacionados à aparência e ao corpo biológico que se espera ter de uma mulher. A presença do volume fálico também possibilitaria, por hipótese, o deslizamento da naturalização da heterossexualidade e do corpo feminino biológico, possibilitando uma abertura do simbólico e material do masculino no feminino. O corpo da artista se coloca como um corpo feminino em que ela dá a ver uma relação com o masculino, porém, essa relação não é passiva e tenciona certezas estabelecidas a respeito do que significa ser homem e do que significa ser mulher, em questões que perpassam o biológico, o cultural e o psicológico.

Ao propor a inveja do útero (relação de contestação à inveja do pênis na psicanálise freudiana) e simular um parto, Márcia X. invisibiliza o masculino em seu corpo para dar lugar a um feminino que não se quer subordinado, que não é um “amenos” mas que, ao mesmo tempo, abre espaço para efeitos de sentido que apontam para um estereótipo que constitui o feminino: a mulher materna. O efeito de sentido produzido ao propor a inveja do útero é de sobreposição, contestação à concepção do corpo feminino como inferior, como mutilado e, talvez, principalmente, às construções de identidade, posição-de-sujeito que os homens tendem a construir para as mulheres, tomando a si mesmo como referência. Mas esse efeito também funciona como um modo de estabilização do corpo feminino que visualiza a maternidade enquanto representação da “verdadeira mulher” e que pesa sobre o biológico, como demonstra Swain (2000), a determinação das construções de sentido e significado para a mulher e feminino. O que acaba sendo uma visão rasa e genérica de feminino e mulher, pois ela não comporta, por exemplo, questões referentes às construções de gênero e da possibilidade de infertilidade da mulher. Apesar de Márcia X. (se)significar enquanto essa mulher-mãe representando a realização de um parto e em outros momentos tomando o boneco em seu braço, acariciando-o, discursivamente deixa entrever a polissemia, e os sentidos do ser-mãe são deslizados para dar significação e visualidade ao discurso de um corpo feminino sexualizado. Márcia X., em certo momento, simula um strip-tease retirando as roupas do boneco que a pouco ninava como uma criança em seu seio. Com o uso de mais um boneco, também encena com os dois brinquedos posições sexuais do Kama Sutra. Márcia X. assume uma posição discursiva contrária à concepção de mulher-mãe reduzida à maternidade como razão de viver. Apesar de a maternidade ser, para a imensa maioria das mulheres, como afirma Swain (2000), resultado de relações sexuais, em uma cultura cristã tradicional, a relação sexual deve ser praticada apenas para a reprodução, não havendo espaço para a exploração de prazeres e experiências sexuais. Ironicamente, Márcia X. desestabiliza esses centros simbólicos de poder e normalidade que padronizam o comportamento sexual, em especial o feminino. Em sua última ação em Lovely Babies, após representar um ato sexual com os bonecos, Márcia X. separa-os, deixando que um engatinhe em direção à plateia, enquanto que o outro é colocado para engatinhar em direção a vagina da artista que se encontra sentada ao chão, pronunciando repetidamente “Bonequinho da mamãe”. Nesta ação, visualizamos o funcionamento dessas duas posições mulher-materna/mulher-

sexualizada na performance da artista. O boneco que já foi falo retorna para “dentro” da artista. A vagina, órgão ora santo, que dá origem ao mundo (em referência direta à obra de Gustave Courbet de 1866), também é o órgão sexual, o profanado pelo que entra. Márcia X. encerra sua performance nos apresentando um jogo que comporta polarizações, dizeres, transitoriedades do que significa (t)ser um corpo feminino.

Análise comentada O transcorrer de nossa análise que almejava a visualização discursiva da representação do corpo feminino na relação com a performance capaz de apontar sentidos dessa relação mulher-corpo-performance em Lovely Babies, levou-nos à compreensão de que o corpo significado por Márcia X. é um corpo feminino polissêmico, que não se restringe e que não se encerra sobre conceitos que delimitam o feminino a uma única categorização. O corpo feminino polissêmico de Márcia X. converge, ao se colocar como um corpo artístico também, no funcionamento do Discurso Artístico (Neckel, 2004), operando no constante deslocamento e ruptura. Um corpo discursivo que está em constante jogo com as relações de força que constituem o imaginário, o simbólico que comporta o feminino. Por meio das formações imaginárias que constituem, como salienta Orlandi (2012), as diferentes posições dos sujeitos, o efeito produzido pela significação do corpo na performance de Márcia X. joga e assume diversas posições e significados, reclamando para si hora a posição de um corpo feminino materno, hora de um corpo sexualizado ou, hora até mesmo, de um corpo masculino. O efeito produzido pelo corpo feminino de Márcia X. nos possibilita observar, para além das aparências, do “óbvio” (enquanto efeito), uma pluralidade de sentidos que constituem e envolvem os dizeres da e sobre a mulher na cultura, na sociedade e na arte.

Referências NECKEL, Nádia Régia Maffi. Do discurso artístico à percepção de diferentes processos discursivos. Orientadora: Solange Leda Gallo. Dissertação (Mestre em Ciências da Linguagem) – UNISUL. PPG em Ciências da Linguagem – Florianópolis, 2004. Disponível em: < http://busca.unisul.br/pdf/73810_Nadia.pdf >. Acesso em: 20 mai 2016.

ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes, 2012. SWAIN, Tânia Navarro. A invenção do corpo feminino ou ‘a hora e a vez do nomadismo identitário?’. Textos de História. Brasília, v. 8, n.1-2, 2000. Disponível em: < http://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/view/5904 >. Acesso em: 24 jun. 2016.

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