O DIREITO DE PROPRIEDADE EM LOCKE

May 30, 2017 | Autor: Maurício Schiehl | Categoria: John Locke, Liberalismo, Valor, Dinheiro, Propriedade, Lei Natural
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O DIREITO DE PROPRIEDADE EM LOCKE Maurício Francisco Schiehli RESUMO O presente artigo visa recriar, interpretar e discutir a argumentação de Locke sobre o direito de propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo. Para tal, ter-se-á em um primeiro momento a argumentação da passagem da propriedade em comum para a propriedade privada a partir do trabalho, respondendo as objeções do consentimento e do desperdício, e mostrando que esta é possível sem prejuízo a nenhum dos indivíduos no estado de natureza; em um segundo momento, a apropriação da terra, também pelo trabalho, e também sem prejuízo de nenhum dos homens; para então analisar uma possível proto-teoria do valor-trabalho em Locke e como a criação do dinheiro deu origem à desigualdade e ao acúmulo. A partir de todas estas considerações, conclui-se que a argumentação de Locke sobre a propriedade visa antes de tudo atender às necessidades à subsistência e aos confortos da vida, e não fundamenta, de nenhuma maneira, a propriedade privada absoluta e ilimitada. Palavras-chave: Locke, propriedade privada, valor, dinheiro O pensamento político de Locke é, até os dias atuais, revisitado e rediscutido, principalmente por seus argumentos que sustentam a propriedade privada, que é, por sinal, um dos três pilares de sua filosofia política, junto a liberdade e a vida. Para dar-lhe o devido e correto princípio, Locke dedicou-lhe um dos capítulos do Segundo Tratado sobre o Governo. A propriedade em Locke difere-se de Hobbes e de alguns outros contratualistas porque é definida ainda no estado de natureza, um estado anterior à sociedade civil, de total liberdade, e em que estão naturalmente todos os homens ii. Se surge no estado de natureza, só pode ser dada, de algum modo, através das leis naturais. O objetivo deste estudo é recriar, interpretar e discutir, passo a passo, toda a argumentação de Locke no seu capítulo V (Da propriedade) do Segundo Tratado sobre o governo, que parte do direito à

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vida e vai até a criação do dinheiro e o consentimento da desigualdade iii. O Segundo Tratado Sobre o Governo sucede O Primeiro Tratado sobre o Governo, em que Locke discute o direito divino dos reis de governar. Escreve esse texto tendo em vista um inimigo claro, deixado evidente logo no primeiro parágrafo: “A escravidão é uma condição humana tão vil e deplorável, tão diametralmente oposta ao temperamento generoso e à coragem de nossa Nação, que é difícil conceber que um inglês, muito menos um fidalgoiv, tomasse a sua defesa. E, na verdade, considero o Patriarcha, do Sr. Robert Filmer, bem como qualquer outro tratado que pretendesse persuadir todos os homens de que eles são escravos, e que assim devem sê-lo, como um exercício de engenho semelhante ao daquele que escreveu o Encômio de Nerov, e não como discurso sério e que a tal se pretenda, […]” (LOCKE, 2005, p. 203)

O Primeiro Tratado sobre o Governo é uma total refutação da obra Patriarca (1680) de Robert Filmer, que nela defendia a monarquia absoluta baseada no direito dado por Deus aos reis de governar. Filmer usa da Bíblia para fundamentar seus princípios, algo que Locke também fará, mas através de outros princípios. Afinal, se as leis da natureza sempre tiveram validade, também teriam no início do mundo. No Segundo Tratado é que Locke irá de fato esmiuçar e detalhar sua visão própria dos princípios políticos. Após considerações sobre a sua visão do estado de natureza, do estado de guerra e da escravidão, Locke passa então à propriedade. Sua missão é fundamentar a propriedade privada sem nenhum contrato ainda no estado de natureza, e também sem exigir qualquer tipo de consentimento. Passagem da propriedade coletiva para a propriedade individual O primeiro princípio necessário para fundamentar propriedade em Locke é a lei natural da autopreservação: “seja que consideremos a razão natural, que nos diz

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terem os homens, uma vez nascidos, direito à própria preservação, e, consequentemente, à comida e à bebida e a tudo quanto natureza lhes fornece para a subsistência […]vi” (LOCKE, 1978, p. 45). Antes de individualizar a propriedade, Locke se viu na necessidade de buscar na Bíblia a fundamentação da propriedade coletiva anterior à propriedade privada. Pois, se a toda a terra tivesse desde seu início um proprietário, toda a argumentação de Locke estaria equivocada. Achou nas palavras do Rei Davi, em um de seus salmos, que Deus deu a terra aos filhos dos homensvii, de maneira que não, a início, individualizou a propriedade a um único de seus filhos. No mesmo parágrafo, ele já dá o objetivo de sua dissertação: “[…] mostrar de que maneira os homens podem vir a ter uma

propriedade em diversas partes daquilo que Deus deu em comum à humanidade, e isso sem nenhum pacto expresso por parte de todos os membros da comunidade.” (LOCKE, 2005, p. 406). Não apenas Locke deseja mostrar como foi possível passar da propriedade coletiva para a propriedade privada, mas também mostra que esta é possível sem contratos, e ainda responder a objeção de Filmer de que essa só se daria com um consentimento universalviii. O próximo passo de Locke é mostrar a necessidade de um domínio exclusivo e individual por parte dos indivíduos sobre parte dos frutos da terra. Este se dá na própria lei natural da autopreservação, i. e., o indivíduo privatiza alguma caça ou outro fruto da natureza com o propósito de dar-lhe sustento a sua vida. É esta apropriação que permite aos indivíduos se autopreservarem, que um fruto da Terra seja benéfico a cada um dos homens individualmente. De outro modo, alguém sempre poderia reclamar o direito sobre algo que alguém já utilizou, como se alguém exigisse a caça de um caçador depois dele tê-la caçado e comido. Sem a apropriação, a vida não seria possível. Tendo já determinadas a lei natural que dá aos homens o direito e usarem-se

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da Terra, e a necessidade de apropriação desta, Locke pode então lançar-se do critério de justificação da propriedade exterior: o trabalho. “Propriedade exterior” pois Locke já tem como pressuposto de que todos tem propriedade sobre sua própria pessoa. A propriedade em sua própria pessoa implica em uma propriedade sobre o agir do indivíduo no mundo, porém, essa ação do indivíduo sobre um objeto modifica o objeto, de maneira que algo seu a ele é acrescentado. A mistura de algo seu ao objeto pelo trabalho, movido pelo direito de subsistência, anexou a propriedade do objeto ao indivíduo. A partir deste momento, ele deixa de ser propriedade comum a todos e passa a ser exclusivo do indivíduo. Para maior clareza neste ponto, iremos às palavras do próprio Locke: “Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua propriedade. Sendo por ele retirada do estado comum que a natureza a deixou, a ela agregou, com esse trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais homens.” (Locke, 2005, p. 407-409)

Então o objeto que estava em direito comum a todos, mas passou pelo trabalho de alguém, teve a ele acrescentado algo que não era naturalmente seu. Este “algo” exclui o direito dos outros indivíduos sobre o objeto. Quando se trabalhou em algo, os outros indivíduos perderam o direito comum a todos sobre aquela coisa, e aquilo é de propriedade do indivíduo que trabalhou. Pois, como é evidente, o trabalho do indivíduo é de sua propriedade, e assim também será o resultado de seu trabalho. O trabalho sobre o que era comum a todos separou aquilo de todo resto, e anexou aquilo ao trabalho do indivíduo, instituindo propriedade sobre aquilo. Locke possui, porém, uma ressalva: “Por ser esse trabalho propriedade

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inquestionável do trabalhador, homem nenhum pode ter direito àquilo que esse

trabalho foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante e de igual qualidade deixada em comum para os demais” (LOCKE, 2005, p. 409). Então o seu fundamento da propriedade não se realizaria se não houvesse o suficiente para todos. Isso não será um problema, pois, como Locke dirá mais a frente, não apenas há de suficiente para todos como há em abundância. Locke então demonstra como sua argumentação não é atingida pela objeção do consentimento universal de Filmer, pelo contrário, o trabalho motivado pela autopreservação faz com que os indivíduos possam apropriar-se dos frutos da terra sem precisar do consentimento de terceiros. Se fosse necessário um consentimento para a apropriação, todos morreriam de fome, ainda que a natureza os fornecesse tanto quanto precisam. Sem a apropriação, a propriedade comum a todos não teria sentido. Enquanto algo é comum a todos, o indivíduo pode dele retirar o quanto lhe for preciso, desde que isso não gere prejuízo a terceiros, mas não precisa contatar terceiros para acordar sobre a propriedade, pois já tem no trabalho o que exclui dos outros o direito sobre o objeto trabalhado. Utilizando-se do exemplo da pesca e da caça da lebre, Locke afirma que esta lei continua em vigor mesmo nas sociedades civis. Locke passa agora a responder a objeção de que seu princípio levaria a que cada um pudesse tomar da natureza o quanto quisesse, dela esbanjando a seu próprio critério. A isso, Locke responde que a mesma lei da natureza que permite a apropriação limita-a igualmente a todos. Se a lei da natureza determina que podemos usar de todos meios necessários para nossa subsistência, usar de outro modo que além dos benefícios à própria vida significa ferir o direito de outros sobre aquilo. Locke diz muito bem que “Tanto quanto qualquer pessoa possa fazer uso de qualquer vantagem da vida antes que se estrague, disso pode, por seu trabalho, fixar

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a propriedade. O que quer que esteja além disso excede a sua parte e pertence aos outros” (LOCKE, 2005, p. 412). Podendo apenas utilizar-se da natureza para o direito a autopreservação e as conveniências da vida, dela mal utilizar seria desrespeitar o direito que outros tem sobre ela. O indivíduo que colhesse de uma macieira mais maçãs do que precisava, e as maçãs estragassem, desrespeitaria o direito de outros sobre as maçãs. Esse argumento, no entanto, pressupõe que haja para todos em abundância, de modo que o indivíduo que retirasse apenas o suficiente para si não prejudicasse os outros. Locke encontra sua prova na Bíblia, no que ele cita como “Deus deu-nos de tudo em abundância”ix. E ainda, considerando a abundância, não haveriam maiores controvérsias quanto a propriedade. Um exemplo de Locke da pessoa que retira água da fonte em um jarro pode ser usado para ilustrar bem todos os passos dados até aqui. O indivíduo tem, pela lei natural, o direito de usar da natureza para a própria subsistência. Assim, quando tem sede, anda do local onde reside por alguns quilômetros até a fonte de água, e traz num recipiente água para si próprio. A água da fonte é comum a todos, algo a que todos têm direito, mas a água no recipiente é de propriedade exclusiva do indivíduo que teve o trabalho de ir até a fonte e lá a colocar, e nenhum outro homem tem direitos sobre a água no recipiente. Se a água no recipiente for objeto de disputa com outra pessoa, o indivíduo que dela retirou da fonte poderá argumentar que a água é dele porque teve o trabalho de lá buscar, e poderá orientar o outro indivíduo a, pelo próprio trabalho, buscar a água na mesma fonte, cujo direito ainda lhe é comum, e do qual não foi prejudicado pelo outro. Propriedade da terra O início do §32 do Segundo Tratado sobre o Governo já demarca o próximo ponto de discussão: a propriedade da terra. Este tipo de propriedade não

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se afasta, de modo algum, do critério até aqui utilizado. É o trabalho que dá à propriedade da terra ao indivíduo: “A extensão de terra que um homem pode arar, plantar, melhorar e cultivar e os produtos dela que é capaz de usar constituem sua

propriedade.” (LOCKE, 2005, p. 412-213). As mesmas objeções que foram postas contra as outras propriedades têm também necessidade de resposta na propriedade da terra. Novamente Locke responde a objeção do consentimento universal, de forma próxima a anterior, mas dessa vez acrescenta uma ordem divina. Deus teria ordenado que o homem trabalhasse e dominasse a terra, melhorando-a para benefício da vidax. Essa ordem divina também serve para responder porque, afinal, o homem deveria cultivar a terra e não apenas aproveitar-se do que naturalmente a ele tinha-se a disposição. Segundo Locke, ao ordenar o cultivo, Deus ordenou também que os indivíduos se apropriassem das terras necessárias a este fim. “E a condição humana, que requer trabalho e materiais com os quais trabalhar introduz necessariamente a propriedade particularxi” (LOCKE, 2005, p. 415) O consentimento não é necessário, primeiramente, porque há terra para todos sem prejuízo de ninguém. E para a terra, pressupondo a abundância dada por Deus, há a mesma ressalva que para as outras coisas: “[…]aquele que deixa para outro tanto quanto este possa usar faz como se não houvesse tomado absolutamente nada”, muito bem exemplificado no mesmo parágrafo: “Ninguém poderia julgar-se prejudicado pelo fato de outro homem beber, mesmo que tenha tomado um bom gole, se houvesse todo um rio da mesma água sobrando para saciar sua sede. E o caso da terra e da água, quando há bastante de ambos, é perfeitamente o mesmo.”(LOCKE, 2005, p. 413). Os indivíduos apropriam-se da terra de acordo com o seu próprio uso e na medida de seu trabalho. Havendo terras para trabalhar, não deveriam existir queixas, e usar de uma terra já trabalhada seria o mesmo que se apropriar do esforço alheio.

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Também nenhum indivíduo poderia apropriar-se da terra o tanto quanto quiser, pois nenhum indivíduo pode tanto trabalhar. Há uma medida no que o indivíduo consegue trabalhar que é justamente a extensão de sua propriedade, de modo que todos conseguem apenas uma posse moderada das terras, não prejudicando a terceiros de nenhuma maneira. O critério de propriedade pelo trabalho daria terra a todas as pessoas do mundo e ainda restaria, não fosse a invenção do dinheiro e o acordo que deu valor a terra, e que introduziu, por consentimento, a desigualdade entre as propriedades. Outra consideração de Locke a se acrescentar é que a privatização da terra causa necessariamente um aumento na produtividade. Locke usa como exemplo a diferença de produção entre as florestas deixadas ao trato da natureza na América e as terras cultivadas de Devonshirexii, dos quais se percebem uma óbvia diferença de produtividade, em que mil acres da terra inculta da América produziriam o mesmo que dez acres de terra cultivada na Inglaterra. Assim como nas outras propriedades, a terra também não está disposta ao mal uso dos indivíduos. Se uma terra apropriada estivesse em condições de abandono, o indivíduo que a apropriou desrespeitou o direito de outros sobre essa terra. Se é o trabalho a medida da propriedade da terra, a falta dele em uma terra apropriada faz o indivíduo perder seu direito sobre ela, e essa terra deve ser passada a um terceiro que dela possa fazer proveito de seu trabalho. Para evitar um desentendimento, Locke faz uma importante distinção entre a propriedade comum no estado de natureza e a propriedade comum submetida as leis de um estado civil. Afinal, o que impediria um inglês contemporâneo de Locke de ir a uma praça pública e de lá apropriar-se por seu trabalho? Não poderia, pois, por pacto, foi lhe conferida uma legislação que a deixou em comum a todos, não podendo ser tirada deste estado enquanto o pacto estiver em vigor.

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A estratégia de Locke de fundamentar seu princípio na bíblia passou, nesse momento, por uma retomada histórica na própria Bíblia. O que fica evidente no § 38, pela forma como se dá a continuidade ao argumento histórico, é que ele se deu através de uma leitura atenta do Gênesis. Ele parece se delimitar em antes e depois de Abraão. Começa por: “Portanto, no princípio, Caim poderia tomar tanto solo quanto pudesse arar, torná-lo propriedade sua e, mesmo assim, deixar bastante para alimentar as ovelhas de Abel; uns poucos acres serviriam para as posses de ambosxiii.”, admitindo assim que, no início, ambos trabalhavam, anexando a si propriedades sem causar prejuízo a nenhum deles; “À medida, porém, que aumentavam as famíliasxiv e o esforço fazia crescer as reservas destas, suas posses cresciam com suas necessidades.”, de modo que a humanidade passou a ocupar maiores quantidades de terra, ainda sem prejuízo de nenhum deles; “Contudo, isso se dava sem haver nenhuma propriedade fixa do solo de que se utilizavam,” e não era necessário, pois os homens poderiam se utilizar da terra de acordo com as suas necessidades, e, se quisessem, mudar para outra terra, deixando a terra anterior livre para que outro que quisesse utilizá-la pudesse nela trabalhar; “[…] até que se uniram, assentaram-se em conjuntoxv e construíram cidadesxvi; então, mediante consentimento, vieram com o tempo, a fixar os limites de seus diferentes territórios e a concordar acerca dos limites entre eles e os vizinhos xvii,” pois, exigindo-se uma maior quantidade de terras, os homens tiveram de viver em espaços cada vez mais distantes, tornando necessária a formação de novas comunidades xviii, das quais são necessárias divisas para delimitar suas propriedades; “[…] e, por meio de leis em seu próprio seio, fixaram as propriedades dos que viviam na mesma sociedade xix.”, já que, a partir da formação da sociedade política, as pessoas renunciaram ao poder natural e submeteram-se às leis, sendo que estas agora lhes determinaram a propriedadexx. (LOCKE, 2005, p. 419).

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Locke, na segunda parte desta retomada histórica, tentará justificar novamente seus princípios na Bíblia, porém, agora também no tempo de Abraão: “Pois vemos que na parte do mundo que foi habitada em primeiro lugar e que é portanto, provavelmente, a mais bem povoada, ainda no tempo de Abraão os homens vagavam com seus rebanhos e manadas, que eram suas posses, livremente de um lado para outro; e assim procedia Abraão num país onde era estrangeiroxxi. Logo, fica claro que pelo menos uma grande parte da terra era comum; que seus habitantes não lhe davam valor nem reivindicavam a propriedade sobre qualquer parte além daquela que usavam. Mas, quando não houve mais espaço suficiente no mesmo lugar para suas manadas se alimentarem juntas, eles separaram-se, por consentimento, tal como fizeram Abraão e Lot (Gn 13,5), e expandiram seus pastos na direção que mais lhe conveio.” xxii (LOCKE, 2005, p. 419-420)

A leitura atenta de Locke encontrou um fato interessante na Bíblia. Abraão chegou a uma terra do qual já haviam habitantes, e a Bíblia não informa nenhum tipo de conflito em relação à propriedade da terra entre eles. Para ele, isso é uma evidência de que em princípio todos tinham a terra em comum, apropriando-se apenas da parte que se exigia às suas necessidades e não tendo nenhuma forma de perturbação pelo fato de que outro indivíduo também se apropriasse de uma terra próxima para seu próprio trabalho. Além disso, a expansão do cultivo das terras pelos povos têm o seu motivo na necessidade de cada um trabalhar de acordo com suas necessidades, continuando a privatizar novas terras, pela exigência de passar da propriedade coletiva para a individual, corroborando toda a argumentação de Locke até aqui. Para reforçar ainda mais sua posição, termina esse parágrafo com mais uma citação histórica: “Pela mesma razão, Esaú afastou-se do pai e o irmão e foi plantar em Mont Seir (Gn 36,6)xxiii. (LOCKE, 2005, p. 420)”. Podemos, porém, usar também da Bíblia para questionar Locke. Ela manifesta claramente que Deus deu a terra diretamente a Abraão e seus descendentesxxiv. Deus não pediu à Abraão que ele se apropriasse da terra por seu

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próprio trabalho, simplesmente a deu. Quando os israelitas voltaram do Egito para a terra prometida, também dada por Deusxxv, expulsaram, por ordem de Deus, os povos que lá viviamxxvi, mesmo tendo abandonado a terra anteriormente, e assim deveriam ter perdido o direito de propriedade sobre as terras, enquanto que os povos que lá viviam trabalhavam nas terras e teriam nela propriedade. Porém, para tentar salvar Locke da objeção, podemos pensar que as leis naturais que levaram à propriedade são resultados da criação que objetivavam o convívio humano sem a necessidade de ser guiado por Deus. Deus guiou o povo conforme quis, mas também deu os meios para que eles se virassem sozinhos. Esses meios só teriam validade quando a ordem divina direta não estivesse presente. Talvez esse contraargumento responda ao problema, mas é também possível problematizá-lo. Ainda assim, é uma questão interessante pensar como Locke responderia essa objeção. Valor Um tópico menor, e às vezes deixado de lado nos escritos de Locke, é o valor no capítulo da propriedade do Segundo Tratado sobre o Governo. O valor tem espaço de discussão para Locke, tanto que utiliza-se de quatro parágrafos para ilustrá-loxxvii. Antes destes, ele já é citado no § 36 e no § 37, junto a criação do dinheiro, como a razão da origem da desigualdade de posses entre as pessoas. Mas é no § 40 que ele é tratado com objetividade. Para Locke “[…] é o trabalho, com efeito, que estabelece a diferença de valor de cada coisa” (LOCKE, 2005, p. 420421). A maior parte do valor da terra, para ele, provem do trabalho realizado na terra. E, ainda, praticamente tudo o que se usa na sociedade provém do trabalho e não da natureza pura não-trabalhada. Hoje, pelo atual quadro das pesquisas ambientais, parece-nos estranho pensar, como Locke, que a terra “inculta” nos rende praticamente nadaxxviii.

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Poderíamos, à luz de exemplos contemporâneos, lançar objeções a Locke, pois, em nossos dias, por mais que uma terra trabalhada e pronta para o plantio tenha mais valor do que uma com densa vegetação, isso não constitui a maior parte do valor. Em Curitiba por exemplo, em dados de 2015, as áreas agrícolas mecanizadas (sem restrições para o preparo do solo e plantio) custavam xxix, em média, R$ 37.190,00/hectare, enquanto que as mecanizáveis (áreas que precisariam de trabalho para deixar pronta ao cultivo) custavam, em média, R$ 29.752,00/hectare (DERAL, 2015)xxx, sendo então que o trabalho na terra para deixá-la pronta ao plantio seria o equivalente a 20% do valor da terra. Mas, se buscarmos uma terra em que já há plantio, como também queria Locke, talvez encontramos outra condição, apesar de também ser difícil imaginar que os produtos plantados tenham mais valor do que a terra em que estão cultivados. Mas se pensarmos que a comparação que Locke tinha em mente, evidenciada no parágrafo seguinte a esse argumento, entre as terras cultivadas da Inglaterra e as nativas da América, talvez ele tenha alguma razão. Sua evidência de que o valor é produzido majoritariamente pelo trabalho está justamente nessa comparação: “E um rei de território grande e fértil se alimenta, mora e veste-se pior que um trabalhador jornaleiro na Inglaterra” (LOCKE, 1978, p. 50). O trabalho fornece mais aos benefícios da vida dos homens que os puros dons da natureza. De certa maneira, há uma tese implícita de que a causa do nãoavanço das sociedades é a falta de trabalho. Tanto que “[…] se deve preferir a abundância de homens à vastidão dos domínios, e que a grande arte de governar consiste na ampliação das terras e no uso correto destas.” (LOCKE, 2005, p. 422). A riqueza de uma sociedade provém do esforço das pessoas, e não simplesmente da apropriação das terras. Locke usa de exemplos cotidianos, recomendando olhar a todos os produtos que usamos diariamente, e observar o quanto de trabalho de

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quantas diferentes pessoas não foi necessário para criá-lo. É difícil pensar que não houve, de certa maneira, alguma influência destes argumentos em Adam Smith, ainda mais considerando uma de suas teses centrais: “O trabalho é a medida real do valor de troca de todas as mercadorias.” (SMITH, 1974, p. 33), porém Locke, nesse momento, não chegou a tratar do valor como instrumento de troca, como fez Smith, para quem, em uma troca, “É lógico que o produto de dois dias ou duas horas de trabalho valha o dobro daquilo que normalmente só requer um dia ou uma hora de trabalho” (SMITH, 1974, p. 47). Locke dirá, no § 46, que “O ouro, prata e diamantes são coisas a que a imaginação ou um acordo atribuíram o valor, mas que o uso real e o necessário sustento da vida.”(LOCKE, 2005, p. 425). Ora, disso conclui-se que a “teoria” do valortrabalho de Locke não se aplica a todos os casos, existem valores dados de outras maneiras; e mais, que o valor em trabalho está submetido também à lei natural da autopreservação. Pois, o valor do ouro, prata e diamantes não teria em si também o trabalho de extraí-los? Mas Locke pondera que eles têm pouca utilidade à vida humana, e por isso seu valor se dá apenas no consentimento entre os homens xxxi. Se essa é a sua premissa para essa conclusão, então o valor se dá em trabalho apenas quando atende às necessidades humanas, e não é um critério absoluto de valor. Pensar que há aqui alguma espécie de antepassado de uma distinção entre valor de uso e valor de troca é arriscado, mas não impossível. A criação do dinheiro O dinheiro, assim como o valor, já havia sido citado, de alguma maneira, em § 36 e § 37, mas ele é especificamente o tópico de discussão entre § 45 e § 50. É provavelmente, apenas depois de seu capítulo sobre a escravidão, a parte mais polêmica da obra de Locke. Locke inicia o tópico com uma retomada de sua

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argumentação até ali, que será necessária para seguir em frente. A partir disso, ele pode apontar o dinheiro como resultado da curta duração dos produtos necessários à vida humana. Se lembrarmos do início de sua argumentação sobre a propriedade, tinha em mãos um problema: seu critério de propriedade pelo trabalho poderia levar alguém a tomar da natureza tanto quanto quisesse. A resposta de Locke foi que isso não aconteceria pois a lei da natureza que fundamenta o direito dos indivíduos sobre a propriedade em comum a limitaria às suas necessidades para os benefícios da vida, pois desperdiçar ou mal utilizar o que se apropriou da propriedade comum seria desrespeitar o direito dos outros indivíduos sobre aquela propriedade em comum. Porém, os produtos necessários à vida humana perecem rapidamente. A solução encontrada, para não quebrar a lei da natureza, foi trocar o excedente dos produtos perecíveis por produtos que não perecessem tão rapidamente ou que simplesmente não perecem, assim, ao mesmo tempo, mantinha-se o esforço do trabalho do indivíduo, e ele não feria o direito dos outros sobre a propriedade comum. Locke usa primeiramente do exemplo das nozes, que durariam um ano, mas evidentemente o que faz mais sentido para ser trocado é o metal. O argumento de Locke para a formação do dinheiro difere-se, por exemplo, do de Adam Smith. Para Smith a moeda nasceria na impossibilidade de trocar os produtos. O padeiro que gostaria de comprar carne teria para trocar apenas o pão, mas o carniceiro poderia já ter consigo todo o pão que necessitava, ou simplesmente não estar interessado em pão. Assim, “A fim se resolver estas situações, os homens previdentes devem ter procurado, em cada período da sociedade, depois do estabelecimento da divisão do trabalho, efetuar seus negócios de maneira a ter sempre à sua disposição, além do produto do seu próprio trabalho, uma certa quantidade de qualquer outra mercadoria facilmente negociável” (SMITH, 1974, p. 27). Smith também via outras formas de moeda anteriores ao metal do mesmo

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modo as nozes são de exemplo para Locke, como o gado, tabaco ou peles, mas o fundamento é diferente. Enquanto em Locke o metal é utilizado pela sua durabilidade e não perecibilidade, em Smith ele foi escolhido para moeda por sua praticidade. Pois seu valor (dado em trabalho, não em imaginação) é estável, e o metal pode ser dividido e fundido novamente sem prejuízos. Nessa diferença percebemos o quão astuto é o argumento de Locke sobre o dinheiro, pois não apenas o tem como consequência de seus argumentos anteriores, mas o utiliza para prosseguir em meio a novas conclusões. É interessante como Locke transformou uma objeção em uma resposta consequente e fundamento para um novo argumento. Assim nasce o dinheiro, afirma Locke, na necessidade de não ferir o direito dos outros indivíduos sobre a propriedade comum deixando estragar os produtos da terra colhidos pelo trabalho. Trocando o fruto do trabalho por uma moeda, o problema está resolvido, e, além disso, o indivíduo poderia acumular o quanto quisesse dessa moeda, e utilizá-la para adquirir novas posses. O dinheiro permitiu, através do comércio, que os individuem usufruíssem de mais benefícios à vida, pois um indivíduo isolado do comércio e sem uma moeda não teria porque aumentar suas posses. Através de um consentimento voluntário os homens, ainda antes da sociedade civil, concordaram com a desigualdade das posses, e com justiça. Este é, sem dúvidas, o argumento mais problemático de Locke, não apenas em questão de argumento, mas também de interpretação, pois diz que os indivíduos poderiam aumentar as posses, mas diz que isso acontece sem o prejuízo de ninguém, pensando, obviamente, no direito natural do indivíduo sobre os produtos da natureza. Mas o dinheiro permitiria que se apropriasse de tudo? A apropriação pelo dinheiro estaria também submetida a lei natural da autopreservação, que a limitaria? Aparecem como possíveis duas condições: a) Locke diria que os indivíduos apropriaram segundo suas necessidades, e o excedente foi usado como

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troca para atender também apenas as suas necessidades, sendo mais convenientes aos diferentes confortos da vida; e b) Locke diria que os indivíduos apropriaram segundo suas necessidades, mas que o excedente pode ser usado como troca para acúmulo e compra de novas propriedades, que poderiam gerar mais acúmulo. Na primeira opção, poder-se-ia imaginar um pequeno agricultor que planta arroz, milho e soja. Por mais que os três sejam extremamente úteis às suas necessidades de subsistência, o agricultor poderia viver melhor se pudesse dispor também de outros produtos, como feijão ou carne. Assim, troca, pela moeda, o seu excedente pelo excedente de outro, e ambos, com isso, conseguem maiores variedades de alimentos e confortos à vida. Do mesmo modo pode fazer isso para todos os outros tipos de produtos. O acúmulo de posses é apenas o acúmulo de bens que aumentariam os confortos da própria vida e da de sua família. Na segunda opção, através do dinheiro o indivíduo poderia acumular para além de suas necessidades ou benefícios, adquirindo novas propriedades sem nenhuma limitação, e tendo assim mais lucro, dando início, já no estado de natureza, à propriedade aos moldes capitalistas. Como ainda existem terras em abundância, os indivíduos ainda poderiam apropriar-se por seu trabalho em terras mais distantes. Alguém poderia continuar o argumento daqui, é claro, não colocando-o nas palavras de Locke, dizendo que algumas pessoas preferiram viver nas comunidades, trabalhando na terra de outros, a se afastar delas e trabalhar em uma terra própria; e assim teria nascido a classe proletária, a que preferiu não se apropriar e viver nas comunidades por meio de um pacto com os donos das terras. A certa “obscuridade” com que Locke trata dos termos “desigualdade” e “acúmulo” pode ser dito de ser a causa desse problema. O que é bem claro na escrita de Locke é que todos concordaram com a desigualdade de propriedades e que os indivíduos podem acumular tanto quanto querem. Mas, aqui, ainda assim

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argumentarei em favor da primeira opção. O principal argumento que aqui trago é que Locke nunca disse nada de apropriação de terras pelo dinheiro, isto é, que a invenção do dinheiro permitiria que ele comprasse as terras de outros. Isto seria estranho de se pensar dentro da argumentação apresentada no Segundo Tratado Sobre o Governo. A apropriação ainda é pelo trabalho e, pelo que interpreto, a desigualdade de terras é medida ainda por uma desigualdade de trabalho. O que Locke estaria por dizer é que o indivíduo, podendo trocar seu excedente por moeda, poderia trabalhar mais em maiores extensões de terra, e, sem as preocupações de ferir a lei natural e os direitos dos outros, acumular para si e para seus benefícios. Ele poderia trabalhar para mais do que as necessidades básicas e imediatas, tendo o valor de seu trabalho maior duração, e poderia assim ter mais produtos, de diferentes formas e que lhe garantisse melhores condições de vida. A troca se dá apenas entre excedentes de produção, e não entre terras. Argumento aqui que o dinheiro não exclui o grande fundamento do direito de propriedade em Locke, a lei natural da autopreservação: “seja que consideremos a razão natural, que nos diz terem os homens, uma vez nascidos, direito à própria preservação, e, consequentemente, à comida e à bebida e a tudo quanto natureza lhes fornece para a subsistência […]” (LOCKE, 1978, p. 45). Se é isso que fundamento toda a argumentação até aqui, não faz nenhum sentido dizer que permitiria que um indivíduo tivesse extensos latifúndios. A desigualdade exposta por Locke nas terras estaria longe de ser a desigualdade dos tempos atuais. E o acúmulo, se dado nesse sentido, não levaria a maiores problemas, pois é sempre um acúmulo de excedentes, sejam do próprio indivíduo ou trocados pelo excedente de outros. Poderia não quer dizer, ainda, que Locke pensava exatamente dessa maneira. Talvez seu objetivo fosse conduzir à segunda opção, mas seus princípios levam necessariamente à conclusão que aqui proponho. Meu argumento final e derradeiro é que no parágrafo final do

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capítulo, logo após as conclusões do dinheiro, Locke diz: “O direito e a conveniência andavam juntos, pois o homem tinha direito a tudo em que pudesse empregar seu trabalho, e com isso não tinha a tentação de trabalhar para obter além do que pudesse usar. Isso não deixava espaço para controvérsias acerca do título nem para a violação do direito alheio. A porção que o homem toma para seu uso era facilmente visível e seria inútil, bem como desonesto, tomar demasiado, ou mais do que o necessário.” (LOCKE, 2005, p. 429. Grifo meu)

Seria realmente muito estranho, ainda mais para uma mente tão genial como a de Locke, que, argumentando de maneira diferente do que eu aqui proponho, logo após o tópico do dinheiro, ele dissesse isso e não visse nenhuma discordância com o que acabou de afirmar nos parágrafos anteriores. Logo, espera-se que isso mostre a validade da interpretação aqui defendida, e que também Locke estaria bem longe defender tudo o que a ele se atribuiu em interesses capitalistas. Discussões à parte, Locke finaliza seu capítulo e considera assim justificados todos os passos que explicam como se dá o direito de propriedade Considerações finais A partir de tudo o que aqui foi exposto, podemos estabelecer algumas considerações finais sobre o trabalho de Locke na questão da propriedade. Primeiramente, o uso da Bíblia, apesar de um óbvio estudo rigoroso e atencioso por parte de Locke, como mostrado no texto e nas notas, pode ser questionado. Como mostrado, existem passagens na bíblia que põem em cheque as doutrinas de Locke. Além da própria propriedade, o direito ao acúmulo poderia ser questionado xxxii. Enfim, um estudo sobre a relação entre as teses de Locke e a Bíblia seria muito bemvindo. O “pulo” que Locke dá do dinheiro para a desigualdade também é bem problemático. Apesar de que, se visto a partir das conclusões que aqui estabeleço, não haveriam, como ele próprio diz, grandes controvérsias. Esta “desigualdade”

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seria algo como o dobro ou quem sabe o triplo das terras dos vizinhos, sendo esta terra submetida à medida do trabalho, o que, pode-se dizer, não seria injusto. Dentro dessa interpretação, sustento agora que seus termos foram lidos equivocadamente, e usados para justificar coisas que ele não se propôs a justificar. É importante tentarmos salvar Locke de críticas injustas que a ele são submetidas. Ainda assim, é muito difícil não criticar Locke pela maneira como ele vê a América em seu tempo. Está implícito em seu texto uma visão, hoje certamente equivocada, de que na América haveria nos nativos pouco ou quase nenhum trabalho. Sua argumentação também justificaria a exploração e colonização da América, afinal a maior parte de sua grande extensão de terra ainda estão em comum esperando para ser apropriada por qualquer um, incluindo os europeus. Porém, obviamente, os argumentos de Locke nos levariam a questionar a forma como a exploração e colonização foi feita, principalmente no Brasil e nos Estados Unidos, pois os direitos dos nativos deveriam ter sido assegurados, e o uso das terras pelos europeus não poderia causar nenhuma forma de prejuízo aos nativos americanos. O processo de criação do dinheiro funciona muito bem dentro de sua argumentação, mas geraria debates se ele o elevasse a uma tese histórica. Considero que se levarmos a argumentação de Locke não como uma tese histórica, mas como uma suposição para justificação da propriedade, não haveriam maiores problemas. Não passaria a ser uma questão de se isso de fato aconteceu ou não, mas de supor a ausência da sociedade civil para fundamentar sua necessidade e seus pressupostos. Um fato interessante da interpretação aqui desenvolvida é que se vê um Locke um tanto diferente dos jargões capitalistas, ou dos modos que seus argumentos foram usados. A tese de Locke de que uma terra deixada ao abandono devem ser passada a terceiros que nela poderiam trabalhar em muito remete à

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necessidade de uma reforma agrária, e seu argumento pode ser utilizado nesse sentido. Além disso, o seu fundamento na lei natural, com o quanto bem explicita atender as próprias necessidades aos confortos da vida dos homens e de suas famílias, parece ter em mente a defesa das pequenas propriedades e da agricultura familiar. O que ficou claro através dos argumentos aqui apresentados é que o texto de Locke, de nenhuma maneira, serve de fundamento para a propriedade privada absoluta e ilimitada. Referências BIBLIA. Português. Bíblia sagrada: Edição Pastoral. Tradução de Euclides Martins Balancin e José Luiz Gonzaga do Prado. 55 ed.. São Paulo: Paulus, 2005. DERAL, Departamento de Economia Rural. PREÇOS MÉDIOS DE TERRAS AGRÍCOLAS: detalhamento por caracteŕistica e município de 2005 a 2015 em Reais por hectare. 2015. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2016. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ____________. Segundo Tratado sobre o Governo. In: LOCKE, John. Os Pensadores – Locke. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 31-132. (Coleção Os Pensadores). Tradução de E. Jacy Monteiro ____________. SECOND TREATISE OF GOVERNMENT. 1763. Disponível em: . Acesso em 18 jun.2016. SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. In: SMITH, Adam; RICARDO, David. Os pensadores XXVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 7-245. (Coleção Os Pensadores). Tradução de Conceição Jardim Maria do Carmo Cary e Eduardo Lúcio Nogueira.

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Licenciando em Filosofia pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – [email protected] ii A maneira como Locke expressa manifesta que as leis naturais continuam em validade, de modo que os princípios que ele apresenta estariam em vigor assim que saíssemos de uma sociedade civil. iii As traduções para o português costumam ter uma numeração de parágrafos que será utilizado no decorrer do texto. iv É alguém que pertence a nobreza ou aristocracia. v “Encômios” são louvores ou elogios dirigido a alguém. Locke compara o Patriarca de Filmer com elogiar o governo tirânico de Nero, com um objetivo claro de bajular o governante. vi Sobre o direito dos homens sobre a terra e aos “animais inferiores” (nas palavras de Locke), há uma resposta satisfatória em Gn 9, 2-3: “Todos os animais da terra temerão e respeitarão vocês: as aves do céu, os répteis do solo e os peixes do mar estão no poder de vocês. Tudo o que vive e se move servirá de alimento para vocês. E a vocês entrego tudo, como já lhes havia entregue os vegetais.” vii Há um problema aqui, de acordo com as duas traduções, sobre que passagem seria essa. A tradução de Monteiro(1978) indica SL 113,24, enquanto que a de Fischer (2005) indica SL 115,61. Porém, o salmo 113 só possui nove versículos, de modo que não poderia haver um vigésimo quarto, e neste salmo não há relação com o que é dito por Locke; e o salmo 115 só possui dezoito versículos, de modo que um sexagésimo primeiro versículo se torna impossível. A consulta a um texto em domínio público, datado de 1763, mostrou “Psal. cxv. 16”, ou SL 115,16, que corretamente indicou “O céu pertence a Javé, mas a terra ele deu para os homens”. A passagem na Bíblia difere em pouco das palavras de Locke, pois ele teria dito “deu a terra aos filhos dos homens”, e, na tradução de Monteiro aparece como uma citação direta, enquanto na de Fischer e na de domínio público aparece como uma citação indireta. Porém, o que é dito por Locke pode ser acrescido no contexto dos versículos anteriores. viii A tese de que Locke objetivaria responder a objeção do consentimento universal presente em Filmer se encontra no nota 5 do § 25 da tradução de Fischer (2005) dos Dois tratados sobre o governo. ix A passagem citada no texto é I Tm 6, 17, que corresponde a “Admoeste os ricos deste mundo, para que não sejam orgulhosos e não coloquem sua esperança na incerteza das riquezas, mas em Deus, que nos dá tudo em abundância para que nos alegremos.”, que continua “Que eles façam o bem, se enriqueçam de boas obras, sejam prontos a distribuir, capazes de partilhar. Desse modo, estão acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro, a fim de obterem a verdadeira vida." (I Tm. 6,18-19). x Locke não cita em que lugar Deus teria dado essa ordem. Acredito que se trate de Gn 3, 23: “Então Javé expulsou o homem do jardim de Éden para cultivar o solo de onde fora tirado”. xi Locke parece não fazer distinção entre “propriedade particular” e “propriedade privada”. xii Devonshire é um condado no sudoeste da Inglaterra. xiii Remete a Gn 4, 2: “Depois ela também deu à luz Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo.” xiv Conforme Gn 6, 1: “Quando os homens se multiplicaram sobre a terra e geraram filhas” e,

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depois do dilúvio, em Gn 9, 1: “Deus abençoou Noé e seus filhos, dizendo: 'Sejam fecundos, multipliquem-se e encham a terra'”. Sobre a formação das nações, Gn 10, 32: “Foram essas as famílias dos descendentes de Noé, conforme suas linhagens e nações. Foi a partir deles que as nações se dispersaram pela terra depois do dilúvio” Considerando, pelo §38 do Segundo Tratado sobre o Governo, algumas linhas a frente, que essa afirmação de Locke remeteria a algo anterior a Abraão, só pode fazer referência à formação de Babel em Gn 11, 2-4: “Ao emigrar do oriente, os homens encontraram uma planície no país de Senaar, e aí se estabeleceram. E disseram uns aos outros: '‘vamos fazer tijolos e cozê-los ao fogo!' Utilizaram tijolos em vez de pedras, e piche no lugar de argamassa. Disseram: ' vamos construir uma cidade e uma torre que chegue até o céu, para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela superfície da terra’.” Em Abrão, algumas gerações depois, já havia uma distinção entre as terras: “Abrão levou consigo sua mulher Sarai, seu sobrinho Ló, todos os bens que possuíam e os escravos que haviam adquirido em Harã. Partiram para a terra de Canaã e aí chegaram” (Gn 12, 5). Além disso, alguns versículos a frente há uma citação ao Egito. Pelo contexto, porém, Locke indica que já havia essa distinção muito antes de Abraão. Locke pode ter aqui tido como referência o episódio histórico de Babel, em que “[…] a cidade recebeu o nome de Babel, pois foi aí que Javé confundiu a língua de todos os habitantes da terra, e foi daí que ele os espalhou por toda a superfície da terra.” (Gn 11, 9). Porém, pareceria estranho dizer que Babel esteja no processo histórico que legitime a propriedade, já que está se buscando um exemplo cabal que seja citado como referência em outros casos de discussão sobre a propriedade. Quando alguém discutisse a propriedade da terra da América, por exemplo, ninguém exigiria um instrumento de dispersão como houve em Babel. Desta maneira, preferi a interpretação que está situada no texto Nesta citação, acredito ser pura suposição de Locke, não tendo ao que encontrar referência no Gênesis da Bíblia. Locke já adiantaria algo sobre a formação da sociedade política, que será explicado no § 87 do Segundo Tratado sobre o Governo. Sobre o fato de Abraão ser estrangeiro, ver notas 16 e 21. Isso é muito bem explicado na Bíblia: “Ló, que acompanhava Abrão, também possuía ovelhas, bois e tendas, de modo que não podiam morar juntos. Por isso, houve discussões entre os pastores de Abraão e os de Ló. Nesse tempo, os cananeus e ferezeus habitavam nessa terra. Abrão disse a Ló: ‘não haja discussões entre nós, nem no meio de nossos pastores, porque somos irmãos. A terra inteira está diante de você. Por isso lhe peço que se separe de mim. Se você for para esquerda, eu irei para a direita; se você for para a direita, eu irei para a esquerda’.” (Gn 13, 5-9). “Esaú tomou suas mulheres, filhos e filhas, todas as pessoas de sua casa, seu rebanho e todo o seu gado, e tudo o que havia adquirido na terra de Canaã, e foi para a terra de Seir, longe do seu irmão Jacó. Eles tinham muitos bens e não podiam viver juntos, e a terra em que moravam não podia manter a eles e seus rebanhos.” (Gn 36, 6-7) “Javé apareceu a Abrão e lhe disse: ‘eu darei esta terra à sua descendência’.” (Gn 12, 7) “Todo lugar que a planta dos pés de vocês pisar, eu o dei a vocês, conforme prometi a Moisés” (Js 1, 3) Os doze primeiros capítulos do livro de Josué retratam o brutal extermínio dos povos que

vivam na terra de Israel, e os nove seguintes da partilha das terras entre os israelitas vencedores. xxvii Considero que o valor é o tópico de discussão entre §40 e §43. xxviii “E o solo que produz os materiais é escasso demais para ser levado em conta em qualquer parte desse valor; pode no máximo representar uma pequena parte dele; tão pequena que, mesmo entre nós, a terra que é deixada inteiramente à natureza, que não tem melhorias como pastagem, lavoura ou plantação, é chamada, como de fato é, de ‘inculta’; e veremos que os benefícios que rende são pouco mais que nada” (LOCKE, 2005, p. 422) xxix Locke não faz distinção entre valor e preço, como muitos economistas contemporâneos fazem, de modo que usa um como se fosse o outro, então é possível utilizar do preço para contra-argumentar-lhe. xxx Os dados são do Departamento De Economia Rural (DERAL) da Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento (SEAB) do estado do Paraná xxxi Reafirma isso novamente em §50. xxxii I Tm 17-19, parte de uma passagem usada pelo próprio Locke no texto (ver nota 8), já desafia o acúmulo. A questão da “legalidade” do acúmulo dentre as leis de Deus foi um dos pontos centrais nas revoltas protestantes.

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