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O STF, o elefante e a formiga: o nascimento do "argumento supremo" – Por Tiago Gagliano Pinto Alberto
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Por Tiago Gagliano Pinto Alberto – 09/05/2017
Qual será a sensação de um elefante ao esmagar uma formiga? Será que se entristece; regozija-se; ou simplesmente ignora? Será que percebe ao menos que existe uma formiga abaixo dos seus pés? Talvez até possa fazer um escárnio da pequenez da formiga, diante de seu tamanho corpulento. Talvez até possa se julgar inalcançável em quaisquer aspectos, incapaz que se revela a diminuta formiga de representar algum perigo ou ameaça ao elefante. Talvez, inclusive, reconheça-se tão fora do mesmo ambiente natural em que a formiga também ocupa, que se julgue senhor da vida dela, capaz de decidir se permitirá que viva um pouco mais, embora saiba que a morte é certa; se haverá piedade, desviando a sua enorme pata; ou se a esmaga desde logo, rindo-se da conduta assumida e criticando a formiga por estar apenas carregando as suas folhas, trabalhando em prol de todo o formigueiro. Tudo isso, evidentemente, de uma forma discricionária e absolutamente insindicável, como sói ser o comportamento do grande elefante em face da minúscula formiga…
Na semana que passou, assistimos à formatação real desta pequena paródia por oportunidade do julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do processo que resultou na liberação do Réu José Dirceu. Na parte que interessa a esta coluna, especificamente o voto do Ministro Gilmar Mendes, houve, a título de reafirmação da pacífica (sic) jurisprudência da casa – curiosamente combatida por dois Ministros – a verborrágica menção a que os agentes públicos que atuam no caso o fazem de maneira quase juvenil e que isso não poderia ser tolerado pelo Supremo, porque, afinal, eles "são Supremos". Tal qual o elefante, esmagou-se a formiga com o só argumento do tamanho.
Essa afirmativa lançada pelo Ministro pode ser analisada sob diversos aspectos. Fosse o caso de fazê-lo sob o ponto de vista da argumentação racional (aquela que prega que os argumentos podem e devem ser apresentados de uma forma sindicável ao destinatário do ato decisório), diria simplesmente que se trata de algo defeituoso, na forma e conteúdo. Na forma, porque não ostenta qualquer traço de argumento; trata-se, quando muito, de uma rebarbativa afirmação de ego; no conteúdo, porque, igualmente, não tem nada de coisa alguma: não é jurídico, político, social, antropológico, econômico ou qualquer outro traço que se possa pensar a título de racionalidade; de novo, trata-se de mera exaltação do eu, em ambiente deveras pouco propício a isso e, pior, com acentuada carga decisória.
Na mesma linha, em sendo o caso de analisar o argumento sob o ponto de vista da formatação do juiz, talvez com Duncan Kennedy tenhamos um bom grau de esclarecimento, ao descrever, em seu livro "Izquiera y derecho. Ensayos de teoria jurídica crítica", a figura do juiz bipolar, isto é, aquele que "pode inclinar-se de um lado ao outro em determinado campo jurídico"[1]. Ora, parece ter sido isso o que ocorreu à luz de outros julgamentos verificados no mesmo dia e órgão judicante, porém com resultados diversos, como se propagou amplamente em redes sociais justamente pelos juvenis agentes públicos que também trabalham no caso[2].
Ainda, poderia o "argumento supremo"[3] lançado no caso representar a ocorrência da vetusta afirmação de Roscoe Pound no sentido de que uma coisa é o direito nos livros, outra na vida real. Isso porque são evidentemente conhecidas as obras jurídicas do Ministro Gilmar Mendes e não consta em quaisquer delas a afirmação do "argumento supremo".
Também, entre muitas outras abordagens, seria viável analisá-lo sob o ponto de vista do senso comum (já que o conhecido "senso incomum" certamente não perderá a oportunidade de criticá-lo; e, pior, agora com razão), invocando algo como a legitimidade para decidir (ou errar) por último. Neste caso, a sociedade, enquanto formiga, simplesmente cederia à vontade do elefante, autorizando que sua sorte fosse efetivamente decidida por entidades que se apartam de quaisquer formas de relação interna e externa com o outro, pondo-se como parâmetro supremo de conduta a ser observada pelos demais; daí para ser esmagado, no caso de discordância, é um pulo.
De fato, o Brasil não é mesmo para amadores. Enquanto em diversos outros países os limites das estratégias decisórias são discutidos no processo; no Brasil, discutem-se estratégias para o processo, ao ponto de se sentir a necessidade de afetar ao Plenário o julgamento de casos para os quais outro órgão já teria competência para decidir. Nada melhor, afinal, do que ter mais "entidades Supremas" lançando "argumentos supremos" a respeito; ou, quem sabe, essa possa a ser a tábua de salvação da Corte, que se redirecione ao jurídico e deixe o subjetivo, íntimo e egocêntrico de lado.
Essa não é uma crítica geral à Corte. Há, evidentemente, representantes do bom direito, do jurídico, da alteridade e dos valores constitucionais. Mas, se a subjetividade se impregnar no tecido decisório, se a alteridade ceder espaço ao enaltecimento individual; se o fato de servir ao público (enquanto servidor público) for apequenado em vista do surgimento da figura-modelo, estaremos revivendo fases do desenvolvimento social para as quais não temos nem boas recordações, nem interessantes consequências.
Bernd Rüthers, em "Direito degenerado. Teoria jurídica e juristas de Câmara no Terceiro Reich", recorda-nos que o regime nacional-socialista encontrou no direito um excelente aliado, justamente pelo fato de que a ideologia e a subjetividade foram impregnadas nos atos decisórios de quem comandava o sistema e era legitimado pelos demais Poderes. Pouco em termos de legislação – e nada na então vigente Constituição de Weimar – foi modificado para que o direito e o país adotassem a vertente comportamental que resultou no conhecido holocausto. Tudo, claro, legitimado por juristas do quilate de Theodor Maunz, Carl Schmitt, Karl Larenz, entre outros[4].
Se a ideologia foi a principal responsável pelo que ocorreu no Terceiro Reich e, em seu cerne, encontra-se a subjetividade, as insindicáveis opiniões e decisões, a força do "eu" obtida a partir do alheamento do outro, não se pode compreender e autorizar, como que legitimando, que simplesmente esta autoridade despida de embasamento material possa vir à tona.
Uma alternativa a isto talvez pudesse ser a aplicação de alguma vertente das conhecidas "backlash theories", que se caracterizam como "intensa e vigorosa" reação do público contra posicionamento adotado pelo judiciário, objetivando remover sua força impositiva ante a inadmissibilidade de seus efeitos no seio social[5]. Uma outra talvez fosse levar essa questão à Corte Interamericana de Direitos Humanos, ou, ao menos, discuti-la no âmbito do próprio STF, quem sabe tentando conscientizar tantos quanto possível da absoluta impossibilidade de utilização do "argumento supremo", sob pena de derrocada da Corte em sua legitimidade argumentativa, com consequente desacoplamento ao Estado Democrático de Direito e alheamento da sociedade.
Enquanto nada disso ocorre, continuamos a ser as formigas, frágeis e indefesas frente à enorme pata do pesado elefante, que, rindo-se e regozijando-se, escolherá o nosso destino da suprema maneira que entender. Você, que leu este texto, orgulhe-se de ser esmagado: o guardião da Constituição lhe garante este direito.
Abraços a todos. Compartilhem a paz.

Notas e Referências:
[1] KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Ensayos de teoria jurídica crítica. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2013, p. 43.
[2] http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/deltan-dallagnol-diz-que-decisao-de-soltar-jose-dirceu-e-incoerente.ghtml. Acesso em 07 de maio de 2017.
[3] Esta é apenas uma denominação jocosa, evidentemente. Não existe tal sorte de argumento; ou, quem sabe, ele agora tenha nascido…
[4] RÜTHERS, Bernd. Derecho degenerado. Teoría jurídica y juristas de cámara en el Tercer Reich. Traducción de Juan Antonio García Amado. Madrid: Marcial Pons, 2016.
[5] BASSOK, Or. The two countermajoritarian difficulties. Texto disponível na íntegra em Acesso em 07 de maio de 2017.

Confira a obra de Tiago Gagliano Pinto Alberto publicada pela Editora Empório do Direito:



Tiago Gagliano Pinto Alberto é Pós-doutor pela Universidad de León/ES. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.

Imagem Ilustrativa do Post: Supremo Tribunal Federal // Foto de: Luciana Herberts // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/127844674@N04/29469489990
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