O machismo no imaginário marialva: A Cartilha de José Cardoso Pires

Share Embed


Descrição do Produto

Corso di Laurea in Lingue, civiltà e scienze del linguaggio Tesi di Laurea

O machismo no imaginário marialva A Cartilha de José Cardoso Pires

Relatore Ch. Prof. Vanessa Castagna Laureando Eugenio Lucotti Matricola 835880 Anno Accademico 2013 / 2014

Índice

Introdução

p. 3

1. O machismo delineado na Cartilha do Marialva

p. 4

1.1. José Cardoso Pires e a situação histórica portuguesa

p. 4

1.2. A Cartilha do Marialva

p. 5

1.3. O fenómeno do machismo

p. 9

2. Tradução de excertos escolhidos da Cartilha do Marialva

p. 13

2.1. Il marialva e il libertino: due modelli opposti

p. 13

2.2. Il “Sillabario del marialva”: la Carta de Guia de Casados

p. 19

2.3. Disparità tra sessi

p. 24

2.4. Al di là degli stereotipi: la marchesa di Alorna

p. 26

2.5. Marialvismo in letteratura: Almeida Garrett

p. 29

2.6. Marialvismo in letteratura: Eça de Queirós

p. 30

2.7. Attualità del marialvismo

p. 34

3. Comentário à tradução

p. 37

4. Conclusões

p. 43

Bibliografia

p. 45

2

Introdução Alvo deste trabalho será analisar a representação do machismo na mentalidade dos marialvas e as suas concretizações, a partir da leitura da Cartilha do Marialva de José Cardoso Pires. Desta obra serão traduzidos para o italiano alguns trechos que dizem respeito ao assunto referido, que usaremos para tentarmos identificar os traços primários desta atitude tais como são representados pelo escritor português. Juntamente à análise do tema, e para que esta se torne mais exaustiva, não deixaremos de indicar algumas informações fundamentais sobre a própria obra e o seu autor; além disso, a tradução dos trechos da Cartilha do Marialva será acompanhada por um comentário que se focalizará sobre as dificuldades tradutórias encontradas e sobre as estratégias escolhidas para ultrapassá-las. De modo geral, a temática será considerada em relação ao ponto de vista do autor: o trabalho não quer fornecer uma explicação da origem ou das causas do machismo como comportamento antropológico, nem sequer está interessado em reler a obra (ou partes da obra) de José Cardoso Pires à luz de alguma teoria concebida pelos estudos de género. Visa, antes, destacar a maneira de Cardoso Pires refletir sobre o machismo como mentalidade e fenómeno social, transferindo a análise ao nível de crítica à sociedade portuguesa da sua época. Interessa-nos efetivamente o machismo como indicador de desequilíbrio e injustiça social, tomado portanto como forma mentis intrinsecamente negativa por postular a priori uma desigualdade substancial, uma relação hierárquica entre dois grupos de indivíduos (evidentemente, os de sexo masculino e os de sexo feminino). Em virtude de tudo isso, para fundamentar a nossa exposição, julgamos importante nunca deixar de lado um discurso sobre o período histórico em que a Cartilha do Marialva e os romances cardoseanos se inscrevem. O escritor nunca está desligado do mundo que o rodeia e muito menos o estava José Cardoso Pires, cuja obra a crítica incluiu entre as fileiras do Neorrealismo, portanto cremos imprescindível uma análise do fenómeno do machismo que se refira à peculiar situação histórica de Portugal durante o período em que o autor escrevia e revia as suas obras. Consequentemente o nosso trabalho precisará de refletir, ainda que rapidamente, sobre a ditadura salazarista, sendo o ideal machista, como o mesmo autor não deixa de assinalar na Cartilha do Marialva, também uma manifestação a nível de comportamento interpessoal daquela mentalidade autoritária que subjaz a todas as formas de organização política repressivas.

3

1. O machismo delineado na Cartilha do Marialva

1.1. José Cardoso Pires e a situação histórica portuguesa Para uma melhor compreensão da Cartilha do Marialva dentro do complexo da obra de José Cardoso Pires e dos temas que pretendemos desenvolver neste trabalho, não podemos deixar de sublinhar a situação sociopolítica e cultural de Portugal nos anos em que o autor escreve, e emenda, o seu ensaio. Uma primeira orientação é-nos dada pelo próprio autor dentro de um longo parágrafo no começo do capítulo quarto, quando ele afirma que Ao passo que nas Grandes Europas a tradição cultural há muito tinha ultrapassado a fase da reacção feudal contra a Revolução Francesa [...], em Portugal o irracionalismo esbracejava, e esbraceja, em sacudidelas atordoadas. Perante a marginalização internacional proclama-se “orgulhosamente só”; apontado como imperialista colonial, muda a palavra “colónia” por “província ultramarina” e julga-se justificado; à guerra chama “operação de policiamento”, ao colaboracionismo “neutralidade colaborante” – e assim, de nomenclatura em nomenclatura, estrebucha e esbraceja, procurando ganhar tempo, na esperança messianista de que alguma salvação os anos lhe hão-de trazer.

1

Destacam-se principalmente aqui o afastamento cultural de Portugal em relação a outros países com os quais há séculos entretém profundas relações, e a manipulação da linguagem pelas altas esferas do poder na dupla tentativa de justificar-se perante as potências estrangeiras e convencer a população da força da nação. Mas é também representada a ideia de um país à espera, que procura ganhar tempo antes de uma catástrofe que é percebida como próxima. O que nos interessa procurar acima de tudo neste quadro é uma imagem da situação social portuguesa. Atemo-nos neste sentido à figuração acenada por Eunice Cabral ao longo do seu estudo sobre as representações do mundo social na ficção de José Cardoso Pires, figuração que lhe serve para criar uma análise comportamental das personagens romanescas do autor, nomeadamente as d’O Anjo Ancorado e d’O Delfim. A autora sublinha primeiramente a importância da data de 1945: a que chama de «geração de 45»2, ou seja a juventude culta daqueles anos, estava convencida de que o «carácter provisório do mundo»3 do pós-guerra iria trazer a Portugal uma mudança necessária em sentido de direitos políticos e sociais; estas expectativas foram desiludidas consequentemente ao próprio 1

a

J. Cardoso Pires, Cartilha do Marialva, 8. ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999, p. 89. E. Cabral, José Cardoso Pires: Representações do mundo social na ficção (1958-82), Lisboa, Edições Cosmos, 1999, p.50. 3 Ibidem, p. 54. 2

4

enquadramento de Portugal dentro do bloco hegemónico dos Estados Unidos, o que inviabilizou «a expectativa de uma revolução em Portugal na sua acepção mais radical, ou seja a de inspiração marxista»4. Na nova configuração mundial, quem até aquela altura tinha combatido os fascismos encontra no autoritarismo português um aliado na luta contra a difusão do socialismo dentro da sua área de influência. A sociedade portuguesa configurar-se-ia, portanto, a partir deste marco histórico, em constante afastamento das outras do bloco capitalista, nomeadamente a inglesa e a francesa, isto acontecendo em virtude das mudanças que no resto da Europa, em países com que Portugal mantinha boas relações, determinam uma evolução sociocultural que atingirá o seu cume nos grandes movimentos de 1968. Em Portugal, ao contrário, o estado autoritário conseguia dissuadir qualquer forma massiva de promoção e emancipação social, assim «A revolução sociocultural, que se deu no mundo ocidental nos finais dos anos 50, [...] na Europa, corresponde historicamente à Libertação [...]. Em Portugal, corresponde à desilusão da expectativa de uma Democracia, pois o regime totalitário português não se altera substancialmente»5. É dentro deste contexto que a Cartilha do Marialva e a maior parte da obra ficcional de José Cardoso Pires ganham forma. O escritor, que nasceu em 1925 e por isso sofreu a ingerência da ditadura salazarista também durante o período da sua educação, teve de enfrentar a repressão da PIDE já em 1952, em relação à coletânea de contos Histórias de Amor6. Mas os anos em que se estreia e escreve as suas primeiras obras, incluindo os primeiros romances e a Cartilha do Marialva, também são marcados pela presença em literatura do movimento neorrealista que, segundo a interpretação de Eunice Cabral de uma afirmação feita por Augusto Abelaira, «constituiu sobretudo, nas décadas de 50 e de 60, um projecto cultural antifascista»7. A leitura dos autores americanos, nomeadamente de Hemingway, e a influência que tinha naquela época o cinema (principalmente o de Hollywood) contribuem para definir o espaço cultural em que Cardoso Pires começou a dar os seus primeiros passos na atividade de escritor.

1.2. A Cartilha do Marialva A Cartilha do Marialva ou das negações libertinas constitui-se, estilisticamente, como um ensaio na obra de um romancista, portanto como uma espécie de exceção à regra. Os textos que até agora desenvolveram um trabalho de crítica literária sobre José Cardoso 4

Ibidem, p. 33. Ibidem, p. 61. 6 Cfr. M.L. Lepecki, Ideologia e Imaginário. Ensaio sobre José Cardoso Pires, Lisboa, Moraes Editores, 1977, p. 189. 7 E. Cabral, op. cit., p. 37. 5

5

Pires tomaram em consideração a Cartilha do Marialva só na medida em que este texto podia demonstrar-se útil à compreensão de alguns aspetos dos romances, nomeadamente a caracterização das personagens. Nunca foi, portanto, analisada como uma obra dotada de autonomia e de uma significação que transcende a produção ficcional do autor. O ensaio foi emendado e modificado várias vezes num prazo temporal que vai desde 1960, ano da sua primeira publicação, a 1989, quando foi revista pelo autor pela última vez. Ao longo destes quase trinta anos, durante os quais houve a queda do Estado Novo em 1974

e consequentemente a abolição da censura, foram incluídos e eliminados vários

parágrafos e o texto foi enriquecido com anotações do autor. O nosso trabalho usa como texto de referência a oitava edição da obra, que por sua vez toma por base o texto da sétima edição, a última revista por Cardoso Pires e publicada em 19898. A obra está dividida em quatro capítulos, onde à apresentação de dois tipos de homem, o marialva e o libertino, se segue a análise dos seus comportamentos e das suas coordenadas culturais. A reflexão sobre os papéis que estes desempenharam e desempenham na sociedade portuguesa é conduzida através de exemplos que remetem tanto para épocas passadas como para o presente mais próximo e é completada por uma dissertação sobre algumas características de certas obras da literatura portuguesa que dizem respeito aos assuntos tocados. As numerosas intervenções onde o autor se detém para aprofundar certos pontos da sua dissertação tornam o texto pouco fluido; desta maneira, porém, ganha mais profundidade de análise. Salientando a visão marxista de José Cardoso Pires, Maria Lúcia Lepecki afirma no seu Ensaio sobre o autor que na sua obra os sentidos são sempre resultantes de antagonismos e conflitualidades existentes entre as personagens, que agem dentro de vários espaços (ou campos semânticos), heterogéneos e contíguos, do universo ficcional. Há portanto uma dialética interna à obra: quando uma personagem ultrapassa o limite que separa um espaço do outro, invadindo o espaço que não lhe pertence, dá-se o contraste e, consequentemente, a ação. De tal maneira, a estudiosa conclui que «toda a ficção de Cardoso Pires, durante todo o tempo, conta quase exclusivamente situações conflituosas»9. A Cartilha do Marialva pode ser incluída dentro desta lógica de conflitualidade dinâmica por conter também vários níveis de oposição espacial. Apesar de ser considerada um ensaio e não uma obra narrativa, apresenta um movimento interno que se desenvolve a partir de vários contrastes. Nela

representa-se

primeiramente

a

grande

oposição

entre

duas

tipologias

comportamentais, dois protótipos humanos delineados por Cardoso Pires e que encarnam diferentes visões do mundo. A este propósito, Eunice Cabral fala de uma unidade formada por este ensaio, o romance O Anjo Ancorado e o Prefácio à Cabra Cega de Vailland 8 9

Cfr. “Nota do editor”, in J. Cardoso Pires, op. cit., p. 8. M.L. Lepecki, op. cit. p. 51.

6

«quanto à constituição do que poderíamos chamar um homem ideal segundo José Cardoso Pires»10, numa perspetiva que obviamente tem como alvo a análise das personagens romanescas. Na Cartilha do Marialva, seguindo o discurso da estudiosa, ter-se-ia a alusão «ao homem ideal tendo em conta várias coordenadas do contexto português»11, representado pela figura do libertino, homem «moderno», que tem as suas raízes no iluminismo e nos goliardos da Idade Média; é este um homem «do seu tempo, do mundo contemporâneo [...], um homem citadino, informado de que se passa no mundo, na tradição do Iluminismo racionalista europeu»12. Por outro lado há o marialva, o provinciano, o «antilibertino português, privilegiado em nome da razão de Casa e Sangue, cuja configuração social e intelectual se define [...] no decorrer do século XVIII»13, como o autor esclarece logo no princípio do ensaio, entre a epígrafe e o primeiro capítulo. Esta grande oposição estabelece o patamar sobre que se desenvolvem todos os outros contrastes que caracterizam a obra. Com efeito, a primeira informação que se recebe sobre o sujeito e objeto da obra, o marialva, provém de uma antítese: ele é o antilibertino, uma negação portanto do primeiro termo da oposição. A referência citada ao século XVIII alerta-nos que história, continuidades e descontinuidades, convergência ou divergência entre as várias épocas desempenham um papel fundamental dentro do sentido geral do texto. A Cartilha do Marialva vive de constantes paralelos entre presente e passado e entre as épocas passadas que se espelham no tempo presente. Assim, o marialva é caracterizado por uma visão extremamente conservadora, até feudal, da vida coletiva, enraizada numa mentalidade medieval, embora ele se tenha configurado por si, como diz o texto antes referido, no século XVIII, talvez como reação à cultura iluminista daquele século. Para ele, na sociedade devem permanecer as rígidas divisões entre camadas sociais, entre castas, tal como acontecia na Idade Média; as suas relações interpessoais são comparadas às relações de vassalagem. O marialva é inclusivamente quem incentiva a difusão de superstições, crenças messiânicas e irracionalidades de qualquer género. O libertino, pelo contrário, é o homem que vem do século das Luzes e traz a sua modalidade de conhecimento baseada no raciocínio e numa atitude analítica perante o mundo e si mesmo. Constitui-se como o desmistificador, o desmascarador de mitos e superstições. As duas mentalidades contrapostas definem-se, portanto, pela continuidade de ideias e convicções opostas e desenvolvidas em determinados períodos da história, que pela sua irredutibilidade não podiam deixar de se combater. Esta discrepância ganha uma importância ainda maior se considerarmos que ao longo de todo o texto da Cartilha do Marialva há comparações entre um tempo passado e o presente, que destacam quase 10

E. Cabral, op. cit., p. 47. Ibidem. 12 ibidem, p.48. 13 J. Cardoso Pires, op. cit., p. 13. 11

7

sempre o permanecer na cultura atual de traços ligados à mentalidade marialva, representada como irracional, conservadora e repressiva justamente em virtude das referências ao feudalismo. As numerosas anotações e emendas feitas por José Cardoso Pires principalmente entre colchetes enriquecem o corpo do texto de muitos acontecimentos exemplificadores tirados do dia a dia daquela época. A possibilidade para o escritor de poder finalmente evitar as preocupações da censura traduziu-se, através das emendas (também referidas a acontecimentos ocorridos depois da primeira publicação da Cartilha do Marialva), em um fortalecimento destas comparações acima mencionadas, o que inclusivamente torna o texto muito mais atual e significativamente menos ligado à dimensão do passado histórico: [Primeira ilustração às Ordenações de D. Francisco Manuel: Em 22 de Janeiro de 1965 faleceu D. Leocádia da Conceição Lacerda de Queirós, a última internada do Recolhimento de Ferro - «instituição de clima rigidamente conventual, onde», informa o Diário de Notícias, «eram sepultadas vivas senhoras a quem as chamas de amor arrastaram para um caminho de desespero» (...)]

14

Estas linhas, com efeito, referem-se a um acontecimento datado em 1965, e que constitui uma ilustração para as regras ditadas por D. Francisco Manuel de Melo, personagem histórica portuguesa do século XVII. A conflitualidade mais relevante, todavia, e que justifica o nosso trabalho é a que se dá dentro do mesmo espaço da mentalidade marialva. No Ensaio de Lepecki, efetivamente, a autora dá muita relevância aos antagonismos que existem na obra de José Cardoso Pires não só entre os espaços separados pelo «eixo do trabalho», mas também e sobretudo aos que se dão internamente, ou seja entre as personagens que pertencem ao mesmo espaço. Lepecki define o território de atuação destes antagonismos internos como os «subespaços» que se criam dentro dos dois «macroespaços» principais, o da burguesia e o do proletariado, separados pelo «eixo do trabalho»15. De acordo com esta visão marxista, destacamos na especificidade da Cartilha do Marialva a oposição entre o homem e a mulher, oposição que se configura, conforme o «subespaço» onde se encontra, como relação hierárquica, subalternidade de um termo (a mulher) ao outro (o homem). Este tipo de conflitualidade inscreve-se como corolário do mais amplo fenómeno do machismo, cultura e atitude que determinam não somente a soberania do homem sobre a mulher mas também o modo de os homens se relacionarem entre eles. O machismo, por sua vez é uma das características fundamentais do marialvismo, tão importante que a este aspeto Cardoso Pires dedica a maior parte da Cartilha do Marialva. Mas o próprio marialvismo parece ser, na 14 15

Ibidem, p. 70. M.L. Lepecki, op. cit., pp. 55-56.

8

opinião de Lepecki, «mero sintoma da violência congénita da burguesia»16 e, a propósito de uma análise sobre as relações entre as personagens d’O Delfim, «não é [... ]o aspecto principal do reflexo burguês pel’O Delfim proposto»17. Estamos portanto perante um fenómeno que por uma das maiores estudiosas da obra do autor foi considerado de secundária importância, mas que, por outro lado, muito diz respeito à vida da sociedade portuguesa contemporânea a ele.

1.3. O fenómeno do machismo Ora, como nós não consideramos a Cartilha do Marialva com a finalidade de melhor compreender as outras obras do autor mas em si, na sua autonomia, como uma reflexão de Cardoso Pires sobre um conjunto de fenómenos e questões da atualidade, destacamos o espaço do machismo e o antagonismo homem-mulher como pontos centrais da análise. Dum lado, ao apresentar uma longa comparação entre as normas contidas na Carta de Guia de Casados, de 1651, e acontecimentos contemporâneos, o autor deixa-nos entender de uma maneira bastante clara que durante trezentos anos a mentalidade machista continuou no mesmo traçado; do outro, o ensaio remete constantemente ao relacionamento entre autoridade pública e privada: Uma vez que a sociedade imponha ao cidadão profundas limitações de interesses cívicos, culturais e políticos, isto é, que o destituía de autoridade e de cidadania, recusando-lhe possibilidades de afirmação e de promoção na vida colectiva, ele procurará compensar-se a níveis pessoais, mais imediatos, de comportamento.

18

A escolha dos excertos da obra que mais adiante serão apresentados em tradução italiana seguiu esta orientação e concentrou-se no terceiro e no quarto capítulo. Trata-se da parte do ensaio onde Cardoso Pires delineia com eloquência os traços comportamentais do machismo marialva, demonstrando inclusivamente, através de uma rápida e penetrante reflexão sobre alguns clássicos da literatura portuguesa dos últimos dois séculos, a permanência teimosa de tais preconceitos até nas esferas mais cultas da sociedade19. De um lado é importante destacar o perfil que se dá da maneira de o marialva interagir com as outras pessoas, sejam elas consideradas de menor ou igual dignidade; do outro lado, através deste estudo, chega-se a perceber uma interconexão entre a autoridade doméstica, a nível de comportamento pessoal, e o autoritarismo de uma sociedade, a do Portugal salazarista, que é tomada como alvo das críticas pelo autor. Neste trabalho, nós 16

ibidem, p. 128. Ibidem, p. 69. 18 J.Cardoso Pires, op. cit., p. 50. 19 Cfr. ibidem, p. 91. 17

9

deter-nos-emos prevalentemente nas atitudes do marialva perante os outros: a sua maneira de conceber a sociedade pressupõe uma natural hierarquização desta, que se divide em seres superiores e inferiores. Os seres inferiores por excelência são nesta perspetiva, evidentemente, as mulheres e os criados, com quem o marialva estabelece um relacionamento de tipo patriarcal, onde é ao mesmo tempo o protetor e a autoridade. A mulher é considerada na sua dupla aceção de «ser fraco por natureza» e de «ser inferior por natureza»20, convencimento que leva o marialva a seguir à letra as indicações contidas na Carta de Guia de Casados, verdadeira cartilha do marialvismo que durante três séculos definiu as regras comportamentais, a moral da camada mais conservadora, reacionária e rural de Portugal. Quanto aos criados, Cardoso Pires evidencia de uma forma muito clara a atitude de proteção-prevaricação: O servo, na lei marialva, é um familiar menor; a regra de justiça e as relações de trabalho repousam grandemente no compromisso afectivo, no enaltecimento da honra e da dedicação; o direito do senhor demonstra-se por expressões emotivas tendentes à divinzação da Casa e do Braço protector do chefe.

21

Aqui é definido não só o relacionamento que há entre o marialva e os seus servos, mas também a própria ideia de família que ele tem. Os servos são os familiares menores, são incluídos portanto no universo da família e devem seguir as regras que nela existem. Mas da mesma maneira transparece que os próprios familiares são postos ao mesmo nível dos servos, com um papel de subalternidade face ao pater-familias, verdadeiro soberano absoluto no microrreino do lar. Com efeito, a esposa é «esposa do lar, à qual se limitam os horizontes num círculo determinado de relações e se fornece uma interpretação da complexa imagem do mundo filtrada através da experiência (exclusiva) do marido»22 e os filhos são tratados, embora sempre com a distância da relação entre monarca e súbditos, de maneiras diferentes conforme o seu sexo23. Além disso, é representado no ensaio como o marialva alastra a sua dominação até na intimidade da cama de casal: «o marialva jamais pode aceitar a igualdade em soberania dos amantes»24. Exemplos da atualidade desta conceção geral da mulher não faltam. Cardoso Pires a este respeito apresenta acontecimentos significativos que confirmam tanto a difusão desta atitude no Portugal do seu tempo como a aceitação oficial da mesma. É importante sublinhar que estas anotações tocam fontes qualitativamente muito diferenciadas, desde circulares internas de complexos industriais até escritos públicos de Salazar, passando também por relatos jornalísticos e

20

Cfr. ibidem, p.57. Ibidem, p. 66. 22 Ibidem, p. 60. 23 Cfr. ibidem, p. 67. 24 Ibidem, p. 49. 21

10

comentários a normas jurídicas. O autor foi buscar confirmações para sustentamento das suas opiniões em vários níveis da divulgação de informações. Destacamos a exortação de Salazar a deixar «o homem a lutar com a vida no exterior, na rua [...] e a mulher a defender a criança, a trazê-la nos braços, no interior da casa»25 e o relato do Diário de Lisboa a propósito do lavrador alentejano que «pai de quatro filhas, reuniu mais de quatrocentas pessoas na sua herdade para festejar o nascimento do primeiro varão»26. Repare-se como a matéria é exposta na sua (presumível) normalidade e como um hábito privado, doméstico, é louvado e confirmado na sua legitimidade pela autoridade política. Até agora referimos a articulação do machismo representado na Cartilha do Marialva em relação aos tipos de pessoas que são percebidas pelo marialva como súbditos, seres inferiores por natureza que devem subjazer à sua autoridade. Vale a pena, porém, determonos também na descrição daquelas dinâmicas que há entre os próprios expoentes do marialvismo, que se relacionam como pertencentes à mesma casta, como seres de igual grau hierárquico. Não podendo eles impor a sua soberania um ao outro, por razões de mantimento da ordem e da paz entre as famílias poderosas, o relacionamento que têm toma a forma de uma competição em que o caráter primário será a exibição, a ostentação dos seus traços viris, um «comportamento paternalista reduzido a virtudes elementares (bravura, competição animal, justiça instintiva, etc.)».27 Ao longo da dissertação sobre estas ostentações do machismo, a certa altura o discurso de José Cardoso Pires detém-se no ponto crucial do adultério. O marialva, diz-se, é «machista, primo – sujeito portanto à tentação de aventuras fáceis»28; evidentemente ele não pode realizar estas aventuras extraconjugais com esposas ou filhas dos seus pares em grau, para preservar a paz na sua casta e, aspeto que aqui nos interessa mais e que a este se entrelaça, porque tocando a esposa e a filha de um outro marialva, tocaria a sua propriedade, invadiria portanto a sua área de soberania e cometeria, afinal, um ato de prevaricação. Deve ter, portanto, relações amorosas fora do casamento só com mulheres pertencentes a camadas sociais mais baixas, relações que não são consideradas perigosas mas que determinam uma dupla prevaricação, a do homem sobre a mulher e a do senhor sobre o plebeu. A aventura amorosa fica assim legitimada porque, afinal de contas, com estas feições faz parte do regulamento marialva. A situação torna-se muito diferente se quem comete o adultério for a mulher, a «esposa do lar» do marialva. Ou melhor, um adultério pode só ser cometido por uma mulher. Cardoso Pires denuncia aqui o ato de apropriação linguística do marialva: «O machismo [...]

25

Ibidem, p. 61. Ibidem, p. 70. 27 Ibidem, p. 49. 28 Ibidem, p. 68. 26

11

tem um dicionário muito próprio. Adultério é toda a infidelidade da mulher. E só.»29; um pouco mais adiante fornece uma explicação das verdadeiras motivações que tornam a infidelidade da mulher um crime inadmissível, pois fica agravada «por exprimir um acto de rebeldia, [...] uma quebra de certa disciplina ou [...] uma inversão de direitos em que o marialva estabelecia tacitamente a sua superioridade»30. Consequentemente, no ideário machista do marialva não importa tanto condenar o ato de a mulher cometer adultério como uma infidelidade afetiva, mas sim como uma verdadeira insubordinação frente à autoridade patriarcal, como uma perigosa subversão da ordem estabelecida há séculos que supõe a natural superioridade e soberania do macho. Em virtude do risco de esta subversão ocorrer, possível e provável, já que, como evidenciámos, a mulher na opinião do marialva é «fraca por natureza», o homem deve tomar os seus cuidados, deve «prevenir e defender a mulher fraca»31 conforme os preceitos contidos na Carta de Guia dos Casados. Cabe ao homem, enfim, mais uma vez exercer as suas funções de protetor e repressor. O perigo é sublinhado, informa-nos Cardoso Pires, também por Eça de Queirós na sua obra Uma Campanha Alegre32, a evidenciar como tais preconceitos são enraizados no tempo (demonstra-se que, relativamente a este assunto, não há soluções de continuidade entre o pensamento de D. Francisco Manuel de Melo e o de Eça de Queirós) e alcançam uma legitimação cultural por serem declarados nada menos que pelo maior expoente do realismo português, que, paradoxalmente, em uma obra anterior tinha denunciado a limitação do papel feminino na sociedade portuguesa33. Esta última questão destacada levanta também o problema de certos estereótipos machistas existirem a nível subliminal até nas ideias de quem aparentemente traz uma visão inovadora no seu contexto sociocultural, o que por conseguinte demonstra toda a atualidade e a difusão do marialvismo. De resto destacar dum lado a continuidade e a evolução no tempo de um imaginário que bem poderíamos definir feudal, e do outro o seu enraizamento em todas as camadas da elite da sociedade portuguesa (pois Cardoso Pires no ensaio não se focaliza no proletariado) é alvo de toda a Cartilha do Marialva e particularmente dos dois capítulos finais, de que extraímos os excertos traduzidos.

29

Ibidem, p. 59. Ibidem, p. 60. 31 Ibidem, p. 59. 32 Ibidem, p. 101. 33 Ibidem, pp. 97-98. 30

12

2. Tradução de excertos escolhidos da Cartilha do Marialva

2.1. Il marialva e il libertino: due modelli opposti

CAPITOLO TERZO

Marialva, marialvismo. Nel 1876, un opuscolo di Lisbona (ed. Lallemant Frères, Typ.) utilizza l’espressione per la prima volta, conferendole un contenuto sociologico: Os Marialvas di Braz Fogaça, cronista cittadino. Il libello indica “questa mezza dozzina di titolati che ancora ci ritroviamo come reliquie della nostra vecchia aristocrazia” ed è una descrizione incendiaria delle avventure dei seguaci di Michele I e dei menestrelli che animavano il paesaggio locale sotto la protezione delle caste. La definizione risulta qui incompleta, accordata al gusto del fait divers del tempo, ma rende, rozzamente delineati, i tratti fondamentali dell’autoritarismo originario e dell’alienazione anticulturale che in quel periodo, epoca di Antero e delle Conferenze del Casinò, erano sbandierati come risposta disperata alle idee di un Portogallo europeizzato. Gli stessi indizi, tutto sommato, che José Bacelar riscontrerà molto più avanti, nel 1939, in piena attualità e con un significato di comportamento irrazionalista. “Ciò che oggi regna, nonostante tutto, nella classe dominante è una specie di ‘marialvismo’, ossia il profondo sdegno per tutte le cose dello spirito, ritenute manifestazione o segnale sia di plebeismo, o meglio, di borghesismo impertinente e privo di gusto, sia di una generale perdita di virilità che è necessario disprezzare e ridicolizzare.” – Seara Nova, n° 611

Mi trattengo qui, sul “ridicolizzare e reprimere”: il grido muera la inteligencia è lungi dall’essere stato una novità introdotta dai marialvas più estremisti come pure dal valere da loro ultima parola nel ventesimo secolo, attraverso la voce dei fascisti di Franco. In realtà, arti e cultura – “pilastri della follia”, come li definì il poeta consacrato Francisco Manuel de Melo – sono, per la mentalità d’antica stirpe, trivialità celate o arroganza nei confronti della tradizione. La formazione “portoghese” di un’Università fortemente impregnata di spirito aristotelico, in una disputa insostenibile con le influenze della tecnica, denota ancora oggi quest’attitudine reazionaria. Così come, su un piano superiore, più “aggiornato”, la Cultura, purché trattata come erudizione, e l’Intelligenza, intesa come un’utopia eretica dell’Albero di Tutto lo Scibile (António Sardinha), sono garanzie correnti del marialvismo dei giorni nostri. 13

È da otto secoli che la formula goliardica “l’esilio dell’uomo è l’ignoranza, la scienza la sua patria” continua a essere sospetta alla mentalità provinciale. Per ragioni opposte, letture e viaggi, mezzi per acquisire esperienza, sono i malefici della civiltà cui il marialva attribuisce il disordine sociale. Li attacca, come sempre, nei termini di una scomunica primitiva, religiosa o nazionalista. Esterofilo, dice allora dello statista dalle idee innovative. Ebreo, definisce colui che ha viaggiato molto. “Tutti i portoghesi che per curiosità vanno a visitare i paesi stranieri qui vengono presi per degli ebrei”, scriveva Luís da Cunha. Ebreo: uomo impuro. Esterofilo: uno che ha sperimentato altri usi, altre dottrine. Dunque, rivale di cui diffidare. C’è dongiovannismo e dongiovannismo. All’interno della galleria mitologica inaugurata da Molina si tende a introdurre alcuni ibridi libertini, molte e variegate degenerazioni marialva, casi di impotenza repressa (Marañón) e questo o quel prodotto di bulimia sessuale (Guerra Junqueiro). La confusione è frequente. Il Don Giovanni viene equiparato al libertino, il libertino al donnaiolo o all’homme à femmes. Un luogo comune in cui si mescolano tre figure indipendenti, tre comportamenti e, evidentemente, tre tipi di morale differenziati. In una fusione di archetipi così arbitraria come questa, la presenza ancora più sconcertante è quella dell’homme à femmes (altresì detto coureur à femmes) a causa delle linee fondamentali della sua configurazione. "Un perfetto idiota che non sa nulla e che è solamente stato con molte donne”, lo definì Henry Miller ne Il mondo del sesso; alla fin fine, un avventuriero limitato che deve il suo profilo sociale e culturale al tradizionalismo maschilista che la società ancora contempla. Lo troviamo nel suo stato di natura nella confusione della vita bohémienne come una caricatura della destrezza o, dotato di maggiore scaltrezza, nella letteratura di sapore libertino. Ma non è tanto come sottoprodotto marialva, palesemente screditato, che oggi è importante considerarlo; importa piuttosto ciò che di lui rimane – gli echi e gli indizi della sua natura che ancora vengono riflessi da certe sublimazioni dei nostri giorni. Nella cronaca cittadina, per esempio. Nell’erotismo legittimato (in Max Ernst, tra gli altri). Nel romanzo e nella poesia di alcuni autori portoghesi contemporanei che, sebbene impegnati sul tema della condizione femminile, eleggendo la Donna come personaggio principale e affrontando apertamente la conflittualità sessuale, finiscono per denunciare il peso di un inconscio maschilista, sedimentato a causa dell’impotenza sociale risultante da secoli e secoli di regimi oppressivi e di cattolicesimo totalitario. Dal canto suo, la vicinanza tra il Don Giovanni e il libertino non suscita invece stranezza né repulsione. Libertinaggi dongiovanneschi e dongiovannismi libertini si succedono, su vari livelli, in varianti letterarie da cui difficilmente possono scaturire contraffazioni di bassa qualità. Perché? Perché provengono da due mentalità che si oppongono al “vecchio ordine”. 14

E questo è quanto. Un Don Giovanni che trasfigura se stesso tendendo sia al divino che al demoniaco marcia a un ritmo impregnato di analisi e distruzione che non può lasciare indifferente nemmeno il più altezzoso dei libertini. Chiamare questo ritmo dialettica di una volontà o chiamarlo procedere per angoscia, come nel Johannes di Kierkegaard, è di scarsa rilevanza. Un Monsieur Valmont, di Laclos, che si indigna contro tutti coloro che “sans raisonner suivent tout bêtement l’instinct” continua a vedere nel Don Giovanni l’uomo che volontariamente impone una direzione al suo destino; e la sua compagnia non lo imbarazza. La compagnia del marialva, invece, sì. Per un libertino, individuo al contempo riflessivo e temerario, nulla può essere più odioso delle facili soddisfazioni di cui si alimenta sistematicamente il conquistatore marialva. Persino nel Don Giovanni visto da Taine, persino in questo, “la sensualità è di importanza secondaria” e il resto poco conta. Ciò che conta è l’indipendenza di una Mme Merteuil quando con alterigia dichiara “Je suis mon ouvrage” e non il piacere fisico di per sé, che nelle pratiche libertine è “un mezzo, mai una necessità, e giammai può essere un fine” (Jean-Jaques Salomon). Pertanto, avventure senza obiettivo sociale o eroismi galanti sono accidenti di minor conto, ipocrisie di ars gratia ars che gli spiriti forti ripudiano insistentemente. Vivere a occhi aperti, contemplandosi, questa è la grande passione del libertino, la passione dello “stile rigoroso”. Un esempio (L’Amour est à reinventer, riv. La Nef nr. 69-70): “L’amplesso, quando gli amanti si trovano in un rapporto d’uguaglianza, è una cerimonia solenne […]. Come il dramma, la danza, gli schemi calcistici, la sinfonia o la poesia lirica, l’opera di crudeltà dovrà arrivare un giorno ad avere le sue norme, i suoi barocchi e i suoi classici.”

S’intenda “opera di crudeltà” secondo il senso proprio, elevato, che le attribuisce l’Homo eroticus. Non come sadismo, o come esibizione di violenza animale – esclusivamente come prova applicata di rigore dell’uomo che perfeziona la sua natura, esercitandosi in compagnia, addestrando gli istinti. Il machismo o esibizione “virile”, questo sì che è soggezione cieca alla “voce del sangue”, attributo del marialva, e il marialva, mai potrebbe accettare l’uguaglianza nel rapporto tra amanti. Un damerino della Lisbona di Giovanni V, che dalla strada corteggiava con cenni d’intesa, come era d’uso, l’amata chiusa in casa, o il conquistatore di quartiere dei nostri giorni, che spoglia con gli occhi la femmina che gli passa davanti, rappresentano pubblicamente la punta dell’iceberg del machismo con la garanzia della “donna fragile per natura”, ossia secondo il codice delle inferiorità sociali della donna.

[Esibizionismo marialva: Nel suo couté a Lisbona, nel 1959, F. riproduceva in certe riunioni tra amici i nastri magnetici di un registratore che aveva montato in segreto nell’alcova dove riceveva le amanti. 15

Un altro esempio? Eça de Queirós. I commenti finali del Cugino Basilio e del Visconte Reinaldo, a proposito della “povera Luisa che si trovava in quell’orribile vortice di piaceri”, valgono come un sigillo ufficiale del machismo nell’espressione letteraria.]

Come configurazione estrema di un comportamento paternalistico ridotto a virtù elementari (arditezza, competizione animale, giustizia istintiva, ecc.), il machismo si costruisce una mitologia in cui sventolare i propri gagliardetti di vittoria*. In un museo della virilità essenziale troverebbero

posto

molti

amuleti

di

falso

erotismo,

tatuaggi,

svariati

accessori

commercializzati, e, nel salone d’onore, un tributo ai grandi paladini, senza dimenticare Attila, il Grande, e il Duca d’Orléans, che si vantava di aver amato dodici volte nella stessa notte Mlle. Deschamps e che, in onore delle sue gesta, iniziò a usare il numero dodici inciso sui bottoni delle sue vesti e sulla sella dei cavalli (Cabanés, Erotikon). Nei paesi civilmente meno evoluti e in special modo nelle società repressive, l’ossessione sessuale può diventare una sublimazione del desiderio di autorità o in un compenso di libertà o di affermazione sociale trasferito sul piano individuale. Una volta che la società impone al cittadino profonde limitazioni di carattere sociale, culturale e politico, ossia quando lo destituisce di autorità e cittadinanza, rifiutandogli le possibilità di affermazione e promozione nella vita collettiva, egli cercherà di riscattarsi a livello personale, più immediato, sul piano del comportamento. [Consuelo, una delle testimoni della celebre indagine sociologica di Oscar Lewis, The children of Sánchez, confessa: “…così, per mia grande sventura, venni a conoscenza per la prima volta dell’amarezza di questo maledetto machismo [sic] messicano. Come un numero infinito di donne messicane fui coinvolta in questo gioco crudele in cui l’uomo ha tutti i vantaggi. Non c’è nulla di nobile né di generoso o di valoroso in questo comportamento, perché tutto è ottenuto a costo della perdita di libertà da parte della donna. È un atteggiamento selvaggio, di egoismo e di codardia avvolta da parole persuasive.” E Xavier Pommeret, Mexique, Editions du Seuil, 1964, risaltando un altro aspetto di questo emblema mitico: “Il messicano soffre di un autentico machismo che lo spinge ad agire in maniera feroce secondo dei pregiudizi di virilità e violenza. Gli autisti si abbandonano a gare di velocità folli e temerarie, senza cedere il passo a nessuno poiché si considererebbero per questo ‘meno uomini’ di colui che li superasse.]

*

“Molto uomo…”, espressione corrente del gergo di Lisbona, divenne, per antifrasi, un’immagine spregiativa del machismo, ironizzando sugli ambienti da cabaret da cui è venuto.

16

Ancora a proposito del machismo marialva, un barista di Lisbona racconta il caso di un giovane ereditiere, da tempo cliente affezionato, ex universitario, ventitré o venticinque anni. A quanto pare, uno dei passatempi del giovane in questione era dominare “di cattiveria” (secondo il linguaggio locale), e in presenza di tre o quattro amici, una delle frequentatrici abituali. All’inizio, l’assedio amoroso: seducenti conversazioni familiari – i figli prima di tutto, ecc., le esigenze di una vita decente, vantaggi e svantaggi della donna indipendente, ecc., brevi indicazioni sulla geografia segreta del cabaret, ecc., ecc. A un certo punto l’assedio si stringeva e l’assalto decisivo non tardava: esigeva dalla ragazza un piccolo pegno di fiducia, un prestito simbolico o qualcosa del genere. Denaro. Così, senza troppi complimenti. Gli amici, divertiti, assistevano allo spettacolo. Resistenza di questa a lasciarsi spennare, insistenza da parte di quell’altro. Tattiche dozzinali e colpi da rude prevaricatore. Ora arrogante, più in là minaccioso e, gradualmente, mettendo in gioco le classiche torture degli amanti di professione. Ne consegue che, dopo aver combattuto molto, la spuntava. Sebbene tra amici, quindi in condizioni disastrose per l’intimità che richiedono queste manovre, il giovane e navigato cliente riusciva ad avere la meglio. E avendo la meglio si spingeva più in là. Ricevuta dalla ragazza la quantità che aveva richiesto, si negava di accompagnarla e la disilludeva da qualsiasi retribuzione amorosa. Che facesse uno scandalo, se le pareva. Ed ora, il nostro barista conclude in bellezza la storia marialva: - In sostanza, il denaro che la ragazza gli aveva dato non apparteneva a lei, ma a lui. Ogni volta che questo soggetto decideva di “fare lo splendido” per (ammaliare) gli amici, veniva qui e infilava una banconota da cinquecento sotto al bicchiere dei dadi. Oppure mi avvisava per telefono in modo tale che preparassi io lo scherzo. È chiaro che il denaro andava direttamente nel borsellino della prostituta e dalla prostituta ritornava di nuovo a lui, dopo tutta la commedia che ho raccontato… Disuguaglianza nel rapporto sentimentale, stravaganza e facilità. Tre capisaldi della fede del regolamento marialva al capitolo, per loro ossessivo, della loro condizione privilegiata da maschi. D. Francisco de Portugal, il portoghese del 1600 che compose l’Arte de Galanteria, contraddiceva la Carta de Guia de Casados, opera tipicamente marialva, quando diceva: “Questa storia della facilità non trova nessuna giustificazione sacra; nulla difende l’indifendibile, né può essere conquistato da un animo generoso ciò che non costi nessuno sforzo. Le difficoltà sono ambite per onore, le cose per vizio.”

E più avanti questa dichiarazione esemplare, in cui si propone già un’attitudine meditata, sebbene platonica, per quel che riguarda le convenzioni e le relazioni sentimentali: 17

“Non sarà mai un perfetto seduttore colui che si lascia guidare dal destino o dagli affetti, bensì colui che si prepara con lo spirito. C’è molta differenza tra lo scegliere secondo la luce della ragione o il seguire le tenebre della follia. Bisogna sempre cercare la dama più accorta che sappia cercare le occasioni perché la si conosca e sottrarle allo stolto in modo tale che questo la ignori. Non abbia fretta di agire. Ponderi lentamente gli errori e le coincidenze…”

Vale la pena di ripetere i buoni avvertimenti di Valmont e tutto il Casanova perché gli statuti di galanteria di D. Francisco de Portugal siano ricordati come un ingenuo compendio di geometria sentimentale, opposta alla mentalità provinciale, che pone come primo teorema il disfarsi da parte del seduttore delle distrazioni rustiche. Un’elementare geometria a due dimensioni, siamo d’accordo. Ma una geometria in cui già non manca l’elaborazione razionale le cui forme superiori, arricchite di nuove inquadrature, saranno studiate e applicate da ogni voluptueux qui raisonne. Riflettere, dunque, esercitare lo spirito, plasmarsi. Riflettere nella disgrazia come nella gloria. Suor Mariana: “Mi distesi sul letto e mi misi a tramare mille riflessioni.” Quando rileggo questo monumentale testamento sull’arte di amare in cinque lettere, quasi contemporaneo dell’Arte de Galanteria ma infinitamente superiore ad essa, quando lo paragono alla maggior parte della nostra letteratura, così di rado libera dalla presenza marialva, mi viene in mente Tourvel che seduce Mme Valmont, Casanova che discorre con Henriette. L’argomentazione che elabora l’intuizione. “Rimpiango, soltanto per amor tuo, i piaceri infiniti che perdesti. Sarebbe assolutamente forzoso che tu non li sfruttassi?” – Lettera terza. “Sono lusingata di averti ridotto alla condizione di non poter avere mai più piaceri perfetti senza di me…” – Lettera quarta. “Sono persuasa che incontrerò in Portogallo un amante più fedele e più garbato. Ma ahimè!, chi mai potrà darmi amore?” – Lettera quinta.

Nemmeno una riga, nel corso di questa esposizione intelligente e sventurata, che possa ricordare la classica peccatrice pentita all’atto di “destarsi” istantaneamente dai “filtri ingannevoli dell’amore”. Nulla. L’eroina cerca qui di esaminarsi, convincere ancora con un breve gioco di crudeltà sentimentali. Signora del XVII secolo, e per di più monaca, Mariana Alcoforado seppe misurare lo spettacolo della sua disavventura. I romanzi marialva terminano con la coscienza repentina dell’errore. La donna ingannata si ritira in convento, ritorna al focolare domestico, si vota all’espiazione delle proprie colpe, alla morte civile oppure sceglie il suicidio. O si abbandona alla pazzia, o alla tisi, mortificata dai rimorsi. 18

Suor Mariana non fa nulla di tutto ciò. Non abbozza un “mea culpa” per l’esperienza meravigliosa che la vita le ha offerto; non ripudia le fatalità, non si rassegna. Semplicemente, comprende. Vivere a occhi aperti, morire a occhi aperti… Mi ricorda Don Giovanni che trascina su di sé il sudario con le ultime parole: “adesso penserò alla mia morte.” E Suor Mariana: pentita in punto di morte? Morte in stato di grazia? No: “Una morte straordinaria!” – Lettera terza.

2.2. Il “sillabario del marialva”: la Carta de Guia de Casados

Provinciale, D. Francisco Manuel? Lui, che sosteneva con tutta la sua eloquenza che “un uomo, se trascorresse ventiquattro ore fuori da Lisbona si convertirebbe in un animale”? Esatto, provinciale. Provinciale in quanto cortigiano ideologicamente provinciale – un discreto. È nei palazzi del Regno che s’installano i rappresentanti della campagna nella lotta contro la città, non nei querceti. Lo si legga e ci si mediti su. A dirla tutta, non c’è nulla di più trasparente nella prosa di questo discreto (in mancanza della bonne compagnie, la corte di Giovanni IV godeva della compagnia – marialva – dei “discreti”, fedelissimi all’ordine assolutistico), nulla di più trasparente del suo stile espositivo personale, farcito di pratiche e annotazioni familiari, caratteristico dei testamenti antichi in cui la trasmissione dei beni materiali si unisce ai buoni consigli di chi ha vissuto in questo mondo ed è in grado di dispensare avvertimenti. Per quanto riguarda la forma, un intrattenimento privato, un discorrere testamentario; per quanto riguarda il contenuto e l’attenzione a unità e sequenzialità, una specie di delega pubblica ai garanti del “focolare portoghese alla vecchia maniera”. Tale è la Carta de Guia de casados, componimento gustoso e trasversale di pugno di un aristocratico marialva cliente dell’Accademia dei Generosi. All’inizio, un’annotazione del tipografo che smentisce di per sé l’indirizzo privato e l’innocenza ricreativa con cui apparentemente fu concepita: “Questo libro, scritto a mano d’un fiato, potrà anche essere da alcune persone oggetto di calunnie per la sua presunta severità contro la libertà delle donne…”

Si capisce. Il tono generale del componimento si intuisce dalla cautela necessaria (ogni riferimento a personaggi della vita reale…). Il resto lo vedremo subito.

19

i – “Dio le creò deboli…” “Dio le creò deboli, che siano deboli”, decreta la Carta de Guia de Casados, riferendosi alle donne. “Se avessi la certezza che il loro cuore fosse sempre intrepido, lo tollererei di buon grado. Ma, nel dubbio, ben venga che abbiano paura di un topo, che svengano alla vista di una spada sguainata, che un tuono sia per loro il giorno del giudizio.”

Superlativo. Donna, oh debole creatura, oh tentazione fatale… Rimane registrata nell’ordinamento marialva la regola consaputa dell’inferiorità naturale della donna, l’essere debole per natura. L’ispirazione per un simile concetto è lampante. Sotto le vesti di un ottimo matrimonio secondo la “linea 1650”, l’eroina dell’intelligente patriarca D. Francisco Manuel si presenta nella sua interezza come la donna fragile, l’essere impuro, lo strumento del Diavolo del Medioevo.

[Sexus infirmus, fonte di maledizioni: In alcuni dei nostri centri rurali persiste la superstizione secondo cui la donna durante il periodo mestruale non deve partecipare alla preparazione del vino né impastare il pane per non correre il rischio di arrestarne la fermentazione. La profanazione del pane e del vino dimostra che, persino nelle faccende domestiche, la donna è condizionata dalla sua natura impura; essa è l’ “essere difettoso” di cui parla San Tommaso, potenzialmente capace di profanare i due rituali sacralizzati. Inoltre in alcune regioni dell’Alentejo la stessa proibizione è estesa ad altre mansioni, come lo sgozzamento dei maiali o la produzione dei formaggi.] ii – “A certi uomini sposati che si assentano da casa per viaggiare…” Chiaro. Donna fragile, uomo attento. Le “disgrazie del marialva”, che in fin dei conti sono l’insegnamento delle illustrazioni di João Abel Manta alla Carta de Guia de Casados, si dimostrano in questo punto ancora incisive e sintomatiche. Anziché uno, due personaggi: lo scrittore, conservatore discreto, e l’elemento extra, protagonista di esclusiva responsabilità dell’illustratore – un demonio dai modi infantili che fa le linguacce di fronte allo scenario grave della quiete di provincia e che, cosa tremenda, fa spuntare due dita da dietro la testa insinuando allegorie poco gradevoli nei confronti di mariti persuasi del loro ruolo di rilievo. Minuscola figura, appena sconveniente nella gabbia del testo, ciononostante di potenza incommensurabile, questo mostro degli incubi marialva (“Il sonno della Ragione genera mostri” – Goya) ha la somma capacità di essere opportuno, intelligente e fantasioso, e 20

giocatore abile nello sfruttare a proprio vantaggio il ridicolo. Una presenza libertina, a dirla tutta, nella pacata sensatezza dei concetti di D. Francisco Manuel de Melo. Il marialva, inevitabilmente, vive costantemente all’erta di fronte alle marachelle di questo diavoletto domestico. Sopra cotanta autorità, cotanta spavalderia mondana, cotanto buon senso domestico, eccolo lì che spia. E in che modo. Alzando due dita come chi fa le corna. È evidente che cose di tale importanza non potevano passare sotto silenzio, e la Carta de Guia de Casados è molto chiara su questo argomento. Si legge: “Che il marito subisca tutto dalla moglie meno che le offese; e la moglie dal marito offese e tutto.”

Tradotto in lingua forense: ius utendi et abutendi – il diritto di usare e abusare, semplicemente. Il maschilismo, fondato sulla fedeltà della sposa e sulla sovranità del pater familias, ha un vocabolario del tutto adeguato. Adulterio è soltanto l’infedeltà della moglie. E basta. Ma non si sa mai. Nel dubbio – “nel dubbio”, questa espressione tanto cara a D. Francisco Manuel – nel dubbio resti assodato che compete all’uomo prevenire e difendere la fragile donna. Attenzione ai domestici, attenzione alle pettegole. In casa, austerità, sorveglianza, limitazioni. In pubblico, attenzione, sobrietà. “Non posso fare a meno di dire due parole a certi uomini sposati che si assentano da casa per viaggiare lasciando e a volte proprio abbandonando le proprie giovani mogli”, anticipa la Carta de Guia de Casados.

Il demonio libertino ride di questo consiglio? Non importa, il marialva ha già in pugno un altro rimedio. Un altro, un altro e un altro ancora. Ciò che non gli manca è la dottrina. Cose come questa: “Ci sono uomini che mostrano con disinvoltura la propria moglie agli amici. Si suppone che questo costume rispecchi una certa semplicità d’animo e sia in voga all’estero, tuttavia deve ancora arrivare il giorno che anche uno soltanto di noi voglia essere un tale sempliciotto.”

Tutto previsto, tutto calcolato. Ma il diavoletto è ancora lì che gira. Si apre il regolamento marialva di D. Francisco Manuel de Melo e, sul frontespizio, eccolo lì, lui, il Diavolo. Come un ex libris. Consultando il testo non ce se ne libera: lo si vede saltellare di pari passo, scorrazzando tra discorsi e sentenze, facendo capolino dalle vignette, montando a cavalcioni sui paragrafi, sull’intestazione della pagina, ai margini, a piè di pagina, qui più grande, lì più piccino. E, accidenti, sempre con quelle dita che spuntano da dietro la testa come lo immaginò João Abel. 21

(Corollario al principio dell’inferiorità naturale della donna: l’adulterio commesso dalla sposa non costituisce solamente la violazione di un accordo morale e sentimentale e di una legge religiosa. È essenzialmente molto più grave poiché esprime un atto di ribellione, considerato come la rottura di una certa disciplina o come un’inversione dei diritti secondo i quali il marialva stabiliva tacitamente la propria superiorità.) iii – “All’uomo la piazza, alla donna la casa.” O: “alla moglie arca, al marito barca”, altra citazione dalla Carta de Guia de Casados. Disuguaglianza sociale della donna. Limitare le relazioni del servo della gleba, riducendole alla “sfera familiare” entro i confini della proprietà, fare in modo che evitino i contatti con gli operai industriali che reclamano salari più alti e sono culturalmente più all’avanguardia, questa è la difesa dell’ordine rustico, patriarcale. Contemporaneamente, la consacrazione della “moglie custode del focolare”, i cui orizzonti vengono limitati a un circolo determinato di relazioni, e a cui è fornita un’interpretazione della complessa immagine del mondo filtrata attraverso l’esperienza (esclusiva) del marito, è il supporto del prestigio familiare del marialva. Alla moglie arca… ma, dettaglio essenziale, “conviene notare bene che il potere domestico, pur conferendole ampi poteri in casa, non arriva a scavalcare l’amministrazione del marito.” – Corso di Diritto Familiare, Prof. Gomes da Silva, 1960. A ben guardare, la teoria dell’esimio giurista viene da lontano e non porta con sé grandi novità. Trecento anni prima, nel 1651, già il dotto D. Francisco Manuel aveva posto la questione in termini più semplici. Dominava la conoscenza della tradizione, possedeva l’esperienza di un rispettabile conservatore e, in quanto tale, si dimostrava severo e preciso nella composizione della scena familiare. Attenzione, dunque. “Che la moglie canti per suo marito e per i suoi figli sembra lecito, e lo sarebbe che danzi in determinati momenti nei suoi appartamenti”, autorizza la Carta de Guia de Casados, “ma non si impiccino le donne negli affari e nelle faccende da uomini, confidando che anche loro abbiano dell’intelletto come noi e che l’anima non sia né maschile né femminile, come qualcuna adduce in loro favore.”

Su questo aspetto, indispensabile per l’immaginario provinciale, gli esempi abbondano. Un vecchio proverbio portoghese riferiva sulla funzione della donna in società: “che l’uomo odori di polvere da sparo, che la donna odori d’incenso.” L’eroina marialva, designata come “sposa e madre”, è l’archetipo della “donna delle tre K” del nazionalsocialismo (Kinder, Küche, Kirche – figli, cucina, chiesa). Nella versione lusitana il modello fu riprodotto dalla mano di 22

Salazar in persona, e figura come autorevole introduzione allo “Statuto dell’Opera delle Madri per l’Educazione Nazionale”. Così: “Tra le mura domestiche, è chiaro, la donna non è una schiava. Dev’essere coccolata, amata e rispettata perché la sua missione di madre, di educatrice dei suoi figli, non è inferiore a quella dell’uomo. Nei paesi e nei luoghi dove la donna sposata entra in concorrenza con il lavoro dell’uomo, nelle fabbriche, nelle officine, negli uffici, nelle professioni liberali, l’istituzione della famiglia, per la quale ci battiamo affinché resti pietra angolare di una società bene organizzata, rischia il collasso. Lasciamo, dunque, l’uomo a lottare con il mondo esterno, per strada […] e la donna a difendere il suo bambino, a prenderlo tra le proprie braccia, dentro casa.” iv – “I migliori libri sono il cuscino e il telaio.” Cortigiano animalesco (“In queste case non si legge un libro, questa gente non legge mai”, commenta Beckford nel Diario, riferendosi all’alta borghesia portoghese del suo tempo), che mangia (“due dozzine di pernici durante un solo pasto”, idem) tra due secchi per rimettere ciò che lo stomaco non gli consente di ingurgitare, che sbadiglia a messa e durante il responsorio, il marialva fa sfoggio della sua mentalità terra a terra come reazione alla raffinatezza intellettuale del borghese o dell’aristocratico illuminato. Là dove lo vediamo è un uomo di muscoli, padrone delle sue parole. Mettiamolo in piazza, con stivali e speroni, pantaloni attillati sul didietro, cappello sulle ventitré: un gallo. Osserviamolo durante l’alto ufficio della protezione del focolare: un uomo onesto. Sembra rettissimo sulla sedia chiodata, spada alla cintura e, impetuoso, in posa per i posteri: “Speriamo che le donne non sappiano nulla di guerre né di stati, e nemmeno che ne vadano in cerca. Mi infastidiscono queste che si immischiano in politica, quelle altre che si vantano di capire qualcosa di poesia e masticano una qualche lingua straniera.”

Come si è detto: politica del cuscino e del telaio.

[Disuguaglianza culturale:

In una Circolare Interna del grande complesso industriale CUF venne pubblicato, nel dicembre del ’63, il bando per concorrere ad alcune borse di studio per la formazione tecnica destinate ai figli degli operai dell’impresa. Destinando questo beneficio soltanto ai figli maschi l’amministrazione “agiva intenzionalmente, poiché, non ammettendo la Compagnia personale femminile tra i suoi quadri tecnici, non sussisteva alcun interesse nel promuovere la formazione delle ragazze”. 23

Dal canto suo, Álvaro Ribeiro, Escola Formal, 1959 si spinge ancora più in là; propone persino strumenti d’insegnamento differenziati: “Stabilendo il testo unico per entrambi i sessi, la scuola tende a forzare le differenze spontanee che totalmente o parzialmente separano i sessi…” E Salazar, sotto lo pseudonimo “Alves da Silva”, sul giornale Imparcial, 1913, diretto da M. Gonçalves Cerejeira, futuro cardinale patriarca: “All’interno della scuola non tutti devono essere trattati allo stesso modo. E non dobbiamo temere di offendere così la giustizia. No, la si rispetta ancora di più e si opera la carità.”]

2.3. Disparità tra sessi

Per concludere, tramite M.A.: i – Il servo, per la legge marialva, è un familiare di minor importanza; la giustizia e i rapporti lavorativi si basano per lo più su di un compromesso affettivo, sull’esaltazione dell’onore e della dedizione; il diritto del signore si dimostra attraverso espressioni emotive tendenti alla divinizzazione della Casa e della Mano protettrice del capo. […] ii – Vita familiare. M.A. raramente si spinge in quelle zone della casa che considera esclusivamente “delle donne” e dove la consorte dispone di poteri assoluti. Austero con le figlie per quel che riguarda l’educazione e la vita sociale; liberale con i figli – disuguaglianza naturale della donna in società. Il maggiorascato e la sopravvivenza della legge salica sono concezioni cristallizzate del diritto di proprietà che determina la disciplina domestica decantata nella Carta de Guia de Casados. [Un architetto, Fernando Morgado, in una tesi sull’Ideale Portoghese dell’Architettura, 1961, fa dipendere il ruolo della casa dal baluardo dell’attività procreatrice: “il letto nunziale”, sostiene, “simboleggia la vera anima di tutta l’abitazione”. Basata sul sacramento del matrimonio, la casa doveva organizzarsi come “un tempio d’iniziazione” (e, per l’autore, “l’iniziazione è essenzialmente un atto maschile”) o meglio come luogo di culto (…) tramite il rituale sacro e segreto dell’amore di cui l’uomo è l’officiante”. Prendo nota dei termini: tempio, sacro, officiante… e, poco più avanti, sacerdote (“nelle celebrazioni della casa il capofamiglia è l’unico sacerdote necessario…”). Indiscutibile: maschilismo e divinizzazione della casa viaggiano sullo stesso binario.] 24

iii – Amori clandestini. Preferibilmente rapporti con plebee. Come si conviene. In questo dettaglio, ancora una volta la disuguaglianza di sovranità nell’amore. Siccome, per resistere all’evoluzione del mondo moderno, il marialva deve erigere le sue barricate sulla base del matrimonio e della deificazione dei rapporti familiari, le sue avventure amorose si realizzano, per principio, al di fuori della “cerchia” di cui fa parte. A parte questo: machista, primo – soggetto quindi alla tentazione di facili avventure; secundo, convinto seguace della disuguaglianza tra gli amanti; e, tertio, adepto della fornicazione patriarcale, con tutta la demagogia del “popolare” e del “puro”, e con ancora qualche residuo delle relazioni feudali signore-servo di cui lo jus primae noctis fungeva da garanzia sublimata – alla luce di tutto questo, è comprensibile che un influente provinciale manifesti una predilezione per le avventure plebee. […] Ai legami pericolosi, che sono quelli che mettono in discussione l’autoritarismo maschilista e lo status economico della provincia, si preferiscono i legami marginali, tollerati, dove nulla si altera. Continua, infatti, incolume il culto dell’alleanza tra casate – incolume e con tutte le protezioni necessarie, in modo da conservare una determinata distribuzione delle proprietà, e, oltretutto, perché si stabilizzino, tramite il matrimonio, gli interessi contradditori che si creano tra le persone influenti nei momenti di agitazione sociale, come per esempio quelli in cui le fazioni che spingono per una maggiore industrializzazione entrano in conflitto con la tradizione agricola e artigianale. Ho usato il termine “contradditori”. Su questo, la Carta de Guia de Casados è ancora una volta consigliere leale del provinciale: “La disuguaglianza di sangue e di finanze genera contraddizione; la contraddizione, discordia”. I marialva del passato, scegliendo per le proprie relazioni extraconiugali terreni che socialmente non potessero compromettere l’equilibrio delle famiglie, si trasformarono naturalmente in prolifici seminatori di bastardi. Le istituzioni e la morale dell’epoca – ruota degli esposti, l’atteggiamento comprensivo delle mogli – si coniugavano in modo tale da far crescere la progenie naturale nell’eldorado marialva senza crisi spirituali o economiche. D. Francisco Manuel de Melo risolve il problema nel seguente modo: “I figli naturali, nati fuori dal sacro vincolo del matrimonio, sono degni di essere conservati in assenza di figli legittimi, sebbene si debbano crescere sempre non solo fuori di casa ma addirittura lontano dal luogo in cui si vive. Le figlie in convento. Quanto ai maschi, l’India e la religione accolgono sempre di buon grado questo genere di persone.”

Testuali parole.

25

[Prima illustrazione dei precetti di D. Francisco Manuel: Il 22 gennaio 1965 morì Donna Leocádia da Conceição Lacerda de Queirós, l’ultima internata del Recolhimento do Ferro – “istituzione con un clima rigidamente conventuale, dove”, informa il Diário das Notícias, “erano praticamente sepolte vive signore che erano state condotte dal fuoco dell’amore sulla strada della perdizione”. Seconda illustrazione: la priorità dei figli maschi. “Un agricoltore dell’Alentejo, José Joaquim Tareco, proprietario terriero di Beja, padre di quattro figlie, ha riunito più di quattrocento persone nella sua tenuta per festeggiare la nascita del primo figlio maschio (…). Sono stati consumati dodici tacchini, venti capretti, quindici porcellini da latte, ventiquattro polli e cento chili di carne d’agnello. Si sono bevuti cento litri di vino, quattrocento birre e duecento bottiglie di whisky. Un’orchestra di Lisbona ha movimentato il ballo.” – Diário de Lisboa, 23 marzo 1965. Si aggiunga che, dall’altro lato, esiste una superstizione popolare secondo cui le mosche sono un cattivo presagio quando si posano su una puerpera poiché annuncerebbero la nascita di una bambina.]

2.4. Al di là degli stereotipi: la marchesa di Alorna

Le volte che riprendo in mano la Carta de Guia de Casados – e sono parecchie – è come se ai miei occhi le caratteristiche stilistiche si svigorissero ogni volta di più, ma la sua lettura, che non riesce più a coinvolgermi così a fondo come le prime volte, risulta tuttavia fonte di sempre nuove riflessioni. Il tempo portoghese – tempo in senso musicale, andamento – si svolge con un’incisività più chiara ed esplicativa per la comprensione dei giorni nostri. Il fatto è che qui c’è molta innocenza calcolata, tanti discorsi ameni e personali per nascondere un pensiero organizzato – la “scienza”, insomma, strutturata sul “caso” passeggero. E ciò, anche se eccitante, fa sorridere. La Carta de Guia de Casados si rivela, in particolar modo, una Dichiarazione delle Inferiorità della Donna (“alla quale non conviene possedere troppi capitali”, sic) e, per quanto concerne le disposizioni, una versione pratica del codice civile marialva, commentato e accresciuto di numerosi esempi a disposizione dei vecchi portoghesi del passato e del presente. Come se nella Nota dell’Editore ci fosse scritto qualcosa del genere: il lettore disincantato, lettore amico, troverà tra queste pagine non solo il famigerato “manoscritto contro le libertà delle donne”, ma anche uno spunto di riflessione sulle tante realtà e sui tanti consigli che qui vengono esposti e le cui implicazioni poggiano su un tipo di etica dominante. Questo o qualcosa di simile.

26

In modo tale che a ogni lettura la Carta de Guia de Casados si rinnova, è accattivante. Con il suo tono svagato e sagace, D. Francisco Manuel non si preoccupa di sublimare dei concetti che, col tempo, diventeranno stereotipi comunemente accettati. No. È un uomo d’onore, si sente a suo agio con il pretesto di redigere un ricettario privato e inoffensivo. E il risultato è che, con molte reverenze galanti e molta autorità scientifica, finisce per tramandarci un album di pure crudeltà, così palesi che a partire da esse è possibile arrivare a certi miti contemporanei altamente elaborati. Naturalmente, e sopra ogni cosa, un mito, qualunque mito, contiene un’alienazione, un’idea perversa di libertà. A cominciare dai dottori della legge della Bibbia fino agli statisti contemporanei, il “dossier donna” si sviluppa come panoramica di miti successivi che glorificano la sua posizione subalterna nel consorzio umano. San Tommaso, autentico dottor Freud ante litteram: “La donna è un uomo sbagliato” (anticipazione del concetto psicanalitico di complesso di castrazione); Rousseau: “Il destino della donna è avere figli” (ancora una volta un’anticipazione del concetto di Freud secondo cui “il destino è nell’anatomia”); Adlai Stevenson:

“la

partecipazione

femminile

nella

vita

moderna

dev’essere

limitata

esclusivamente alle sue funzioni di sposa e madre.” Per adesso basta. L’elenco si rinnova ma, confessiamolo, senza molta originalità. Da qualche parte, in quest’antologia di citazioni, rientrerebbe certamente la donna pudica, l’esemplare mitico di D. Francisco Manuel. Si prenda una delle sue sentenze (supponiamo che sia “All’uomo la piazza, alla donna la casa”) e si vedrà che merita un posto in quell’insieme*. Tuttavia succede che la donna al sicuro, per quanto rispetti la parola dell’illustre consigliere e per quanto il fortino domestico sia austero, abbia un vago sentore del mondo esterno. Lo intuisce. Il manuale della buona moglie le ordina di attenersi alla cultura del cuscino e del telaio ma lei, bene o male, ha sempre cercato di imparare a scrivere con la punta dell’ago. A poco a poco e quasi senza rendersene conto, il vecchio catechismo è finito nella categoria delle piacevoli reliquie; in tutta Europa il consorzio femminile ha interrotto le litanie e i giochi familiari per discutere in gruppo degli scandali dei giornali e delle parole dei politici. Nell’arco di alcuni decenni, il fascino per le femmes savantes porterà le più illuminate a sognare qualcosa che vada più in là della domus ruris, con gli occhi rivolti al convivio intellettuale dei salotti dorati… ed ecco che subito veniva abbozzato il nuovo mito (romantico) femminile: galanteria e belle lettere. Modelli da copiare: Georges Sand e Mme Staël. Contro di loro la prosa della Carta de Guia de Casados non può più nulla.

*

“Le donne portoghesi sono più schiave che spose. Raramente escono per strada (…) La gelosia dei loro mariti è tale che fanno costruire delle cappelle apposta nei loro palazzi per impedire che vadano in chiesa” – Marchese d’Argens, Lettres Juives, 1738.

27

L’eco di questo progresso femminile ha attinto timidamente la provincia portoghese d’Europa. Con ogni evidenza viene in mente il nome della marchesa di Alorna. La rivediamo nel Convento di Chelas, “guidata dalla cieca mano del fanatismo che ottempera alle leggi esecrande del (suo) destino”, a scrivere poesie erotiche sperimentando il verso libero (“ché non si debba rimpiangere la mancanza di rima”). Intenta a leggere Rousseau e gli inglesi; ricapitolando le leggi ridicole di una nobiltà altrettanto ridicola. “Ne conosco molte (di aristocratiche) che non sanno leggere né scrivere; altre sragionano con un ingrese di dubbio gusto, dicono amaità e sosdifazione e altre stupidaggini di questo genere. Parlano soltanto di farsi belle (…) Per sembrare fini si dicono l’un l’altra: Come sei sciocchina…”

Lo scenario della commedia settecentesca con la sua corte di civette è qui delineato in una mezza dozzina di righe. Il resto non è meglio. Nel criticarlo, la giovane donna nel convento di clausura già annuncia la futura Alcipe dei salotti letterari, l’altra sua faccia di donna per la quale il mondo reale si sovrappone “a quella metafisica che si rivolge inesorabilmente a ciò che non è attingibile né dimostrabile”. “Pochi giorni fa”, scriveva al padre, “mi è caduto il mondo addosso perché mi era stato detto che un frate molto dotto stava cercando le opere di Sant’Agostino per poter parlare delle comete. Risposi che se non aveva altri riferimenti ne sarebbe stato totalmente incapace, dato che mi pareva che Sant’Agostino non fosse considerato tra i migliori astronomi; che dal suo tempo ad oggi erano state elaborate cose molto interessanti per chi voleva sapere qualcosa di questo argomento e che ero persuasa che il Santo ne sapesse poco più che niente.”

La marchesa, futura avversaria di Bonaparte, accusa già in queste righe i germi di quell’audacia che la porterà a subire la vendetta del magistrato Pina Manique. Nel frattempo, ha di fronte a sé una lunga avventura politica e letteraria. La riflessione vigile (“i miei difetti non devono smettere nemmeno per un istante di essere castigati con le riflessioni che possono ridurli”) e la capacità di sistematizzare l’azione razionalmente (cfr. i piani scritti della sua cospirazione diplomatica degli intrighi e dell’insuccesso irrecuperabile). Mentre redige delle memorie sulla situazione internazionale del paese, compila allo stesso tempo dei bollettini privati destinati al suo stesso governo. A Madrid dorme con due pistole sotto il cuscino, a Lisbona suggerisce che “una donna abile e delicata considera sempre la sua stanza alla stregua di un teatro della felicità di suo marito.” Felicità coniugale, vita domestica e pubblica, cultura e impegno, tutte queste cose riflettono un ordine sociale e, necessariamente, un’ideale di donna che si discosta dal paradiso delle

28

civette, ideale che in qualche modo ha macchiato di contraddizioni un’eroina aristocratica e ribelle quale fu questa poetessa e cospiratrice. Ma a ognuno il suo, e la verità è che, prima di lei, bisogna menzionare una pioniera ormai dimenticata – Dalmira, o meglio Teresa Margarida da Silva e Orta, autrice del primo (?) romanzo femminista della letteratura portoghese, As Aventuras de Telémaco, e delle Máximas da Virtude e Formosura. Personalità all’avanguardia, influenzata dallo spirito scientifico illuministico, pagò il fio della propria indipendenza con la clausura con cui vengono castigate le muse ribelli: ripudiata dalla famiglia, diseredata e, infine, prigioniera di Pombal. “Le donne vengono private della libertà dall’ingiustizia degli uomini già alla nascita” – ecco condensato in una riga il programma di Teresa Margarida. E la cosa curiosa è che la frase non è sua: è una citazione dal fratello, Matias Aires, Cavaliere dell’Ordine di Cristo che contribuì, come lei, a demistificare l’argomento tabù.

2.5. Marialvismo in letteratura: Almeida Garrett

Un rapido sguardo alla nostra letteratura contemporanea potrà servire come sondaggio preliminare sullo spirito marialva di cui ancora è pervasa. Nel sebastianismo di Garrett in Frei Luís de Souza? Nel Pessoa di Mensagem? In Pascoaes? Senza dubbio. Ma ci sono altre istanze irrazionalistiche da considerare in questi e molti altri autori contemporanei, talvolta persino in quelli ritenuti più rivoluzionari. Per esempio, a proposito di alcuni lasciti medievali che si combinano nella configurazione delle loro eroine. La “donna fragile” e indifesa per natura – o la tisica, o la monaca del Romanticismo –, la bellezza vista come strumento di tentazione, sono indizi da prendere in esame. Il sapere comune avverte: “Le donne sono il Diavolo.” Peccati, li chiamò con magniloquenza uno spirito evoluto, Garrett, che molte volte è stato candidato all’elezione di Dom(inus) Johannes Portucalensis. Trascrivo l’annotazione: “I sette peccati capitali. Potrebbe essere il titolo di un volume curioso, in cui venissero raccontate le mie sette principali storie d’amore. 1 – Superbia: Isabel H.; 2 – Avarizia: Tomásia; 3 – Lussuria: Bauhia; 4 – Ira: L.a Rn.; 5 – Gola: Rosa Robinson; 6 – Invidia: Júlia Rn. e 7 – Accidia: Lady Pagte.” – Amorim, Memórias.

Ben calcolati, gli elogi alla “bella portoghese” e le apparenze di promozione sociale che Garrett le auspica hanno, per questo, un significato sospetto. La maggior parte rimanda a una galanteria tradizionale recuperata con talento, e nel complesso poggiano ancora su principî irrazionali, sia tramite un “libertinaggio di facciata”, sia rivelando una concezione di 29

naturale fatalismo (destino, fragilità, incostanza) che di conseguenza non si inserisce nelle linee di pensiero di un tribuno della libertà. “Al veder un viso grazioso/ Che importa se geme ragione?” – Odes Anacreônticas. O “agli uomini (la natura) diede la prudenza/ Alla donna non poté darla/ Le diede forme graziose...”, ecc. – Flores sem Fruto. In questo scrittore dalla prosa così affascinante i peccati minori godono di una tacita assoluzione. Ma è bene leggere con calma. Aprire, per esempio, O Toucador (“Periodico senza politica”) – il prudente sottotitolo è ben in vista e specifica che la pubblicazione aveva tratto ispirazione da una dama che voleva informarsi sulle ultime novità. Fin qua, tutto chiaro. Garrett apre una parentesi esplicativa: “Bisogna dire”, scrive in un elegante corsivo inglese, “che la signora in questione era molto brillante e che non erano novità di carattere politico quelle che richiedeva.” Testuali parole. In contraddizione col gusto libertino, che considera la donna di bonne compagnie una socia alla pari nella responsabilità civile nonché un’amante lucida, razionale e dalle strategie armoniose, Garrett divinizza la donna di società ricorrendo alle molte icone mitologiche che all’epoca erano state recuperate – Eros, Venere, Dafne, Anfitrite. Le “novità politiche” e affini sono sconvenienti, sporcano la porcellana della bellezza. “Adorabili sovrane”, le invoca, “noi bramiamo il vostro giogo, aneliamo il vostro dispotismo; la libertà ci fa orrore.” È sotto gli occhi di tutti l’amore cieco, designato anche come amore passionale, formule generali in cui si concepisce la donna come strumento della tentazione – andando oltre: del peccato. In termini di posterità, un ideale della femminilità come questo non ha molto peso. Rimane circoscritto ai modelli romantici, concede il garrettiano materialista dei giorni nostri – e avanza fino a fissarsi una volta per tutte nelle pagine dottrinarie in cui il poeta di Inferno de Amor tesse le lodi della cultura della donna. Per forza. Col tempo, le contraddizioni nella vita e nell’opera del paladino del Romanticismo portoghese favoriscono la consacrazione generale. Il fervente libertario Garrett, che lascia in ombra il poeta João Mínimo, abbaglia gli estimatori della poesia e i politici progressisti. Ma gli intellettuali reazionari, da parte loro, si inchinano di fronte all’autore di Dona Branca e dei poemi bucolici ispirati a Virgilio, via Byron, per evitare la memoria del liberale left wing che pronunciò gli audaci Discorsi Parlamentari.

2.6. Marialvismo in letteratura: Eça de Queirós

Per quanto riguarda il modello femminile, stessa cosa. [Eça de Queirós] riconosce che “in Portogallo le donne, escluse dalla vita pubblica, dall’industria, dal commercio, dalla letteratura, da quasi tutto, a causa della tradizione o delle leggi, possiedono appena un

30

piccolo mondo, o il loro elemento naturale – la famiglia e la toilette.” Più avanti, inciampa e si contraddice esaltando il modello opposto: “Per fortuna ce ne sono molte che per l’educazione severa, o per la semplicità di spirito, o per una religiosità intelligente, o per un’esistenza modesta all’inglese – vivono come sotto una campana di vetro, non sono toccate dagli eventi mondani e salvaguardano il tipo puro della donna perfetta.”

Continuo a trascrivere. Alla dama conservata sotto la campana di vetro (ma “all’inglese”, attenzione) si uniscono altre figure dell’immaginario queirosiano, come la sublimazione dell’istinto (“la donna è strana, comprende solo un lato del dovere, e quello magnificamente – il pudore”) e l’incapacità di riflessione (“la donna, a causa della semplice costituzione del suo cervello, è avversa allo studio e alla scienza”). A questo punto il tormentato Padre Amaro pregava già secondo il catechismo di Eça de Queirós quando proibiva alla beneamata “di leggere romanzi e poesie (certo, giusto, giusto), perché poi doveva farsi dotta? Che gliene importava di quello che succedeva nel mondo?” In verità, il parigino di Póvoa de Varzim e l’aristocratico secentesco della Carta dell’Ordine del Latifondo mantengono una certa alleanza per quanto riguarda la loro interpretazione ironica dei costumi “casalinghi”. Si scambiano shake-hands, come d’obbligo nelle descrizioni di realtà civilizzata di Eça de Queirós. E il glorioso romanziere, in robe de chambre di seta e fumando la sua cigarette (secondo la terminologia e lo scenario propri dei suoi romanzi), riceve il fantasma di D. Francisco Manuel de Melo, vecchio con spada alla cintura e speroni d’argento, col quale elabora opinioni su molte cose sbagliate e principalmente sulle donne. “Deboli”, afferma l’aristocratico, “le donne sono il Diavolo…” Eça de Queirós, sebbene dica di no, concorda intimamente. Amélia, senza andare troppo lontano, è il Diavolo che ha tentato il Padre Amaro (“La devozione si afflosciava come una vela a cui manca il vento, e un’orda di tentazioni lo soverchiava…”); Luísa, la debolezza della carne del Cugino Basilio che cede; la Ragazza Bionda, l’eroina ladra che nasconde dietro la sua bellezza un diavolo peccatore. E la lista non finirebbe qua. C’è molto da dire sulle donne queirosiane… “Certo” replica la voce prudente di D. Francisco. “Ma la provvidenza non perdona. È scritto lì sulla Carta de Guia de Casados: La donna onesta ha vita buona e morte buona.” Infatti, infatti. Maria, tradendo Pedro da Maia, lo spinge al suicidio; la figlia, Eduarda, paga il prezzo delle frivolezze della madre con una vita dissoluta e, quando si riprende, cade nell’incesto; Amélia muore dopo un parto clandestino (Crime do Padre Amaro); l’amante del Cugino Basilio ha una sorte simile… Non c’è dubbio, il crimine non paga – ed era da molto tempo che D. Francisco Manuel de Melo l’aveva scritto.

31

Quale crimine? L’adulterio, s’intende. Adulterio nei confronti di Dio (Padre Amaro) o in congiura con i cavalieri della civilizzazione che vengono dalla Grande Europa per mettere in subbuglio una società sonnecchiante, popolata da donzelle che leggono romanzi. La donna fragile, o la donna-tentazione o la donna-peccato sono creature destinate a cedere alla carne e al Diavolo. In questo senso, del resto, la Carta de Guia de Casados era già stata più che profetica: “Ci sono uomini che mostrano con disinvoltura la propria moglie agli amici. Si suppone che questo costume rispecchi una certa semplicità d’animo e sia in voga all’estero, tuttavia deve ancora arrivare il giorno che anche uno soltanto di noi voglia essere un tale sempliciotto.” Il Pedro da Maia di Eça de Queirós, ignorava questo consiglio? Ebbene, si è ritrovato tradito da uno straniero che ospitava in casa sua. Lo stesso è capitato a Cohen: ricevendo João da Ega prepara il terreno alla capitolazione della propria moglie. È comprovato che il romanzo I Maia presenti questi casi ben delineati. Ma c’è dell’altro – i pericoli del viaggio, per esempio. D. Francisco Manuel de Melo aveva già avvertito che “tutti gli uomini sposati stiano molto attenti ad assentarsi per tanto tempo dalla loro casa”, ed Eça de Queirós, accennando una conferma, non tardò a provarlo: la sua eroina Maria Eduarda, dopo la partenza di Costa Gomes per il Brasile, si concede a Carlos da Maia; Luísa cede alla corte del cugino quando il marito si trova nell’Alentejo… [Joel Serrão (Temas Oitocentistas – II, 1962) evidenzia alcune formule generali del comportamento femminile all’interno del romanzo realista-naturalista. Eça de Queirós e Júlio Lourenço Pinto (in Margarida) sono chiamati in causa come rappresentanti dell’adulterio borghese; Teixeira de Queirós (Salústio Nogueira) e Malheiro Dias (O Filho das Ervas) sono gli interpreti del “degrado dell’amante di origine plebea che non poteva aspirare socialmente al matrimonio con il suo seduttore di rango più elevato” – in altri termini, il principio dell’uguaglianza di finanze e status che D. Francisco Manuel proclamava nella Carta de Guia de Casados. Riferendosi specialmente al Primo Basílio, Joel Serrão fa una diagnosi delle cause occulte della donna fragile per natura, che Eça de Queirós metteva in scena con così tanto impegno. “Le colpe maggiori”, scrive il saggista, “non ricadono su Luísa, (…) La responsabilità maggiore ricadrà sulla società cui lei appartiene, che le aveva attribuito una funzione così inconsistente che smarriva ogni riferimento soltanto per un viaggio del marito nell’Alentejo e per l’entrata in azione di un conquistatore senza scrupoli. Momentaneamente senza marito (e, pertanto, senza funzione), Luísa tenderà, si direbbe fatalmente, a compensare la sua superfluità con la superfluità del cugino che le fa la corte.” A certi uomini sposati che si assentano da casa per viaggiare – ammoniva già la Carta de Guia de Casados…] 32

Per un mistico di paese le tre tentazioni, Mondo-Diavolo-Carne, sono le sirene ingannatrici dell’adulterio. Eça de Queirós mette da parte il Diavolo, ne ride. Ma, inconsciamente, a distanza, fa il suo gioco perché accetta l’idea biblica dell’inferiorità della donna e perché, in virtù di ciò, davanti a questa non riesce a superare un atteggiamento che è ancora machista. Si noti che l’adulterio, base della sua critica e simbolo catalizzatore della decomposizione delle istituzioni dell’epoca, conta solo quando viene commesso dalla sposa. Così comandano i codici più remoti, così determina il marialvismo contemporaneo. Del resto, quante volte nell’opera di Eça de Queirós sono gli uomini a commettere adulterio? E quante volte sono le donne? E nel frattempo il problema lo preoccupa, lo costringe a redigere, oltre ai romanzi, un discorso moralizzante che persino per il gusto e l’ironia nostrana ricorda molto la Carta de Guia de Casados: “Da tempo un problema singolare sta legittimamente terrorizzando i mariti, le persone sensibili e i fabbricanti di armi proibite. Come comprenderete, ci riferiamo all’adulterio.”

Ecco la dovuta definizione che fa da incipit a questo testo di Uma Campanha Alegre. Da qui in poi il narratore indipendente la seguirà alla lettera. Mariti, persone sensibili e armaioli hanno il loro posto nella discussione; la donna è l’imputato. Pertanto, Eça de Queirós arricchisce la testimonianza con il suo insegnamento del Crime da Estrada de Sintra, commesso da un marito a difesa del legittimo onore – ma per tutto il tempo richiama alla calma il proprio pubblico illustre. In un buon stile corrente (ed elaborato, si dice) proclama: “Il marito che uccide la moglie, pensando di dare un giusto castigo al peccato, dà alla passione un risvolto poetico.” Pausa. Dopo fornisce l’esempio della contessa di Bourg che, non essendo morta per mano del marito, diventa “una specie di angelo veemente degli amori illegittimi”. “Alla porta dell’ospedale dove l’hanno ricoverata di fretta per i primi soccorsi”, ricorda l’indignato Eça de Queirós, “si accalcano di signore e signori eleganti e mondani che chiedono sue notizie, le lasciano i loro biglietti da visita e vanno nelle chiese per pregare Iddio che le risparmi la vita. Chi andrà a pregare nelle chiese o a lasciare il proprio biglietto da visita a quella donna oscura e pacata che, nel silenzio della sua casa, fa prosaicamente, sublimemente, il suo dovere?” L’esempio è commovente, le persone sensibili sono ora pronte mentalmente per la conclusione. Eça de Queirós, lapidario, la getta in due righe. Fa sue le celebri parole di Proudhon (la donna ha un solo destino – menagère o courtisane) e conclude: “Mettere la donna ad occuparsi della famiglia, ecco come crediamo in generale di evitare la dissoluzione del matrimonio.”

33

2.7. Attualità del marialvismo

Indizi di marialvismo si possono trovare quotidianamente dappertutto al giorno d’oggi – costumi, commercio e pubblicità, per esempio – in una galleria di simboli di machismo, e a volte affiorano nelle opere di scrittori attuali dalla formazione materialistica. A proposito di questo, si noti che: a) la protagonista, nella nostra letteratura realista, non ha, di regola, dei trascorsi sessuali; b) mostrare la propria bellezza significa concedersi in modo sprovveduto (anche se volontariamente); c) l’adulterio è, prima di tutto, una follia carnale; d) la protagonista è caratterizzata, nel romanzo, da sentimenti femminili, mai dalla sua intelligenza; e) si ricorre a determinate immagini di erotismo spicciolo, come ad esempio puledra, fiore di sangue, fianchi lunari, ecc. Ma tutto in virtù di un’impossibilità di fatto. L’obiettivo fondamentale dell’uomo marialva – la consacrazione metafisica di una determinata distribuzione dei diritti sociali –, non trovando in questa metà del XX secolo un humus storico che lo consolidi, non riesce a trovare nemmeno un’elaborazione dottrinaria univoca in cui integrarsi. Così, il ceto rurale si aggrappa al messianismo perché si sente trascinato verso la negazione di principî che considerava sacri, immutabili; ricorre alla Parola come risposta all’Azione (ossia, all’evidenza), vagheggia imperi che, come nubi, offuschino il paesaggio che lo ripugna e che si fa sempre più nitido. Pascoaes gli serve; i filosofi del tardo Romanticismo anche e Leonardo Coimbra, sommo sacerdote, ancora di più. Sostanzialmente, i principî obiettivi, le “regole” del ceto rurale, sono esigui ed elementari. Non hanno escogitato alcuna argomentazione filosofica che, astraendoli, li rendesse superiori, più complessi (come del resto la schiavitù), bensì sono rimasti rudimentali. Non solo vengono a galla nel comportamento del portoghese sprovveduto e disinteressato, ma, nella loro purezza originaria, si trovano anche inchiodati ai fondamenti di certe interpretazioni del mondo contemporanee. Per quanto riguarda quelle attuali, nonostante questi principî si insinuino discretamente, il metro di valutazione è la donna: a partire da essa si deducono i fatti che divinizzano il ciclo familiare, e, osservando quest’ultimo, le leggi della collettività. (Si ricordi che Nazione, nel buon lessico dei vecchi portoghesi del XX secolo, si diceva Casa…) Per questi difensori delle disuguaglianze che costituiscono l’armonia marialva, anche l’infanta o la donna pudica sono portatrici del peccato originale (limitazione teologica), condizionate dalle caratteristiche biologiche che le riducono a una funzione materna. La glorificazione delle virtù “femminili” si organizza dunque sui pilastri del peccato e dell’istinto – due chiodi fissi da cui si irradiano rispettivamente la sacralizzazione dell’autorità del Pater Familias e la sua superiorità sociale. Un idealista della “Portoghesità”, Álvaro Ribeiro, Escritores Doutrinados, 1965, schematizza questo binomio di relazioni con molta chiarezza: 34

“La donna è destinata a dedicarsi a un solo uomo, designato da un’autorità superiore o liberamente scelto, per osservargli obbedienza e sottomissione, glossando le parole del Vangelo: Ecco qui la schiava del Signore! […] All’uomo, tuttavia, è affidato un altro ruolo, o un’altra legge, secondo la quale l’amore naturale e l’amore sociale devono essere subordinati alle esigenze di un amore di tipo più elevato, divino.”

(Si noti: il marito designato dall’alto – vale a dire imposto dai disegni della Provvidenza; la metafora “ecco qui la schiava del Signore”, dove per Signore s’intende sposo; e l’espressione “un amore di tipo più elevato, divino”. L’incoronazione mistica della figura maschile con tutti i richiami più elementari…)

Chiaramente da qui si arriva alla disuguaglianza sociale e, come ci si poteva aspettare, è la stessa anatomia femminile (Freud clamavit) che decreta il destino della donna: “Non è ancora giunta l’ora”, si legge anche in Escritores Doutrinados, “che la fanciulla sia educata ad avere una famiglia, ovvero a sposarsi, alla maternità e alla crescita dei figli.”

E un altro apostolo del “lusitanismo”, Luís Espirito Santo, in una tesi sulla famiglia per il simposio O Ideal Português, del 1962, con a capo António Quadros: “La funzione naturale della donna è la maternità (…) Ammettendo ai concorsi pubblici candidati di ambo i sessi, lo Stato dovrebbe dare la priorità a quelli di sesso maschile, e, solo qualora non vi fosse alcun partecipante, dovrebbe fare un altro appello per i candidati di sesso femminile.”

Dalla mistificazione della Donna datata 1962 risultano due figure entrambe machiste e complementari: l’uomo virile, rappresentante dell’intelligenza, e la donna rassegnata, o autorità dell’istinto materno. E anche qui il vecchio D. Francisco Manuel de Melo continua a essere attuale quando tesse le lodi delle virtù naturali (sottolineo, naturali) della donna. Eça de Queirós mise in evidenza, tra tutte, il pudore. Júlio Dinis anche. Pascoaes, idem. Sulla base di queste coincidenze letterarie si dovrà pure azzardare un’ipotesi, soprattutto se gli elogi tendono a legittimare un aspetto secondario del personaggio per una ragione di fatalismo bestiale. Non ci sarebbe nulla di nuovo, del resto. E se no, rivolgo la mia attenzione a un altro testimone: “La psicologia dell’uomo è molto speciale, la sua benevolenza è problematica. Alla madre spetta la missione di badare agli infanti [sic] e in questo la presenza del padre è assolutamente inopportuna. Può essere quello che lotta, ma mai quello che vezzeggia.”

35

Copio queste considerazioni, alla lettera, da un mucchio di articoli di giornale che ho davanti a me. Datati agosto del ’56, portano la firma di Sarah Beirão e nel frattempo mi suonano come delle disposizioni particolari, o qualcosa di simile, dettate da un discepolo del Mein Kampf alla futura “moglie delle tre K”. “Per il Führer l’unica virtù era l’austerità [...] Eva Braun non aveva alcun’ambizione intellettuale, non si interessava di politica né dissimulava la sua ignoranza in questo campo. Conseguenza della sua situazione privilegiata: doveva nascondersi per fumare o ballare, dal momento che il Führer disapprovava entrambe le attività [...] A Hitler piaceva andare in giro su macchine potenti, in compagnia di donne belle e non troppo intelligenti” – Alan Bullock, Hitler.

All’eroe della famiglia, il “lottatore” nel lessico della cronista Sarah Beirão, corrisponde nella Germania del nazionalsocialismo la compagna convenzionale della pax ruris lusitana. Ha la stessa posizione subalterna, tutto lo fa credere. Ce l’avrà. Semplicemente, per qualsiasi Obersturmführer delle SS questa situazione si proietta al di fuori dell’ambito familiare e assume una connotazione nazionalistica, di glorificazione della razza. La Hausfrau nazista, dai seni rotondi, fianchi pieni, gambe possenti, si eternizza in statue di bronzo, al sole dei parchi o negli stadi, mentre la domestica lusitana, tutta pietà, rassegnazione e tenerezza, salta fuori in formato ridotto dal cesello di Soares dos Reis o appare nelle vedute campestri dei naturalisti d’inizio secolo. In casi eccezionali entra nella storia nella sua condizione di mater dolorosa o come messaggera passiva, semplice veicolo di una decisione provvidenziale. Per esempio: “Dio ringrazia Salazar per intermezzo della Donna Portoghese della crescita del Portogallo” – Armando Carneiro, Lisboa Trabalha e Progride, ed. Gabinete de Estudos de Divulgação Social. Sottomissione, sì – ordinano i garanti della portoghesità; e ci si intenda: sottomissione al marito, responsabilizzazione in ambito domestico. Oltre a questo, prudenza e ancora prudenza sulla scia di quanto predicato da D. Francisco Manuel de Melo e da Júlio Dinis. Si difenda il modello della “donna delle tre K”, senz’altro; ma senza alcun impegno politico che la potrebbe legare alla società. Qui, nessun’avventura: “Che non vi impicciate in politica”, così si conclude l’articolo citato di Sarah Beirão, agosto del ’56. “Andate per la retta via, sempre dritte verso la felicità.”

Per quanto ci si giri intorno, è qui implicita la trilogia Vergine-Sposa-Madre, le “tre età della donna”. Basiamoci su questo. La Mater Familias (Lusitanensis sp.) non ha conosciuto l’età della Ragione.

36

3. Comentário à tradução Um trabalho de tradução nunca é algo fácil nem constitui um procedimento mecânico, de simples descodificação de alguma mensagem criptográfica, seja qual for o tamanho, a tipologia ou o registo linguístico do texto a traduzir. Nesta secção concentrar-nos-emos nas dificuldades encontradas no processo de tradução de excertos da Cartilha do Marialva para o italiano e destacaremos as estratégias usadas para enfrentá-las e ultrapassá-las. Explicaremos portanto como tentámos criar um texto que por um lado possa ser lido facilmente pelo leitor italiano, e, por o outro lado, cujo conteúdo primário não se afaste demais do original português. Obviamente, dificuldades tradutórias, problemas de transposição de uma língua para outra, surgem a vários níveis, não somente como peculiaridades linguísticas. São, antes, mais que tudo as questões culturais as mais difíceis a deslindar: a preocupação com que uma frase, ainda que traduzida com uma correspondente de estrutura sintática correta e escolhas terminológicas apropriadas, seja privada de todo o seu sentido quando se encontrar em outro idioma, constitui um problema sobre que vale a pena refletir. Destacá-lo, porém, não quer significar que se desvalorizem outros problemas que se referem diretamente ao universo linguístico e que por vezes se entrecruzam com os acima referidos, tais como a suposta intraduzibilidade de certas palavras ou expressões, a perda de parte do significado original na palavra ou expressão traduzida, as diferenças sintáticas entre os idiomas (que tornam árduo o trabalho de tradução de inteiras frases ou inteiros parágrafos) ou as normas que cada língua adota para definir os seus protótipos textuais. Para cada uma destas complicações há várias e diferenciadas maneiras de agir, que no seu conjunto determinam o texto na sua versão traduzida; não é necessário, contudo, que num trabalho tradutório a um determinado problema corresponda sempre uma única escolha: a várias alturas do texto, dificuldades que apresentam a mesma natureza podem ser ultrapassadas com vários recursos, dependendo das condições gerais que querem determinar um resultado final que seja o melhor possível. Antes de começar uma verdadeira reflexão sobre o processo que surgiu ao traduzir os excertos da Cartilha do Marialva, queremos destacar que os títulos colocados, em italiano, antes de cada excerto não aparecem nem no texto que tomámos em consideração nem em nenhuma das versões antecedentes da obra. Decidimos pô-los por uma questão puramente ligada à economia do nosso trabalho: tratando-se de uma escolha antológica de trechos e não de uma tradução de toda a Cartilha do Marialva, cremos que os títulos podem orientar melhor o leitor italiano fornecendo um enquadramento a cada trecho e uma continuidade de sentido que a simples indicação das páginas quebraria.

37

De um modo geral, a Cartilha do Marialva apresenta uma escrita bastante clara e linear, sem construções sintáticas demasiado complexas e com uma adjetivação reduzida ao indispensável. Caracteriza toda a obra a presença de períodos geralmente muito compridos com um léxico que se encontra falho de neologismos, arcaísmos ou tecnicismos, o que por si facilita o trabalho de tradução; só raras vezes palavras isoladas ou expressões levantam dificuldades tradutórias tão emaranhadas que obrigam a escolhas que necessariamente desviam do significado original a favor da sensatez do texto traduzido. Analisaremos singularmente estes casos problemáticos mais adiante. No que se refere ao conteúdo da obra, as informações são comunicadas de maneira direta, sem especiais figuras de estilo, conforme a tipologia principalmente ensaística da obra em discussão. Porém deve-se considerar também que um ensaio escrito por um autor literário conserva sempre algumas características da narração, ou apresenta os traços do trabalho de quem escreve prevalentemente obras ficcionais: o José Cardoso Pires romancista está, portanto, sempre atrás do José Cardoso Pires autor do ensaio sobre o marialvismo na sociedade portuguesa. Além disso a copiosa presença no corpo textual de citações tiradas de cartas, relatos jornalísticos, discursos públicos ou obras literárias torna o estilo em que se apresenta a Cartilha do Marialva um estilo compósito, heterogéneo, onde podem coexistir no espaço de poucas linhas exemplos de variadas tipologias textuais, tornando a tradução também um trabalho que diz respeito ao uso simultâneo das diferentes normas comunicativas nos dois idiomas. Ao tom ensaístico e formal próprio da exposição teórica dos assuntos, que em certos pontos não deixa de fornecer até indicações bibliográficas, sobrepõe-se a certas alturas um outro tom usado nas exemplificações e nas anotações e que remete a protótipos textuais diferentes, sobretudo o relato jornalístico e a crónica; aqui o autor por vezes reduz o registo linguístico e diminui a distância entre ele e o receptor recorrendo a meios como intervenções demonstrativas dirigidas ao próprio leitor («Ali onde o vemos é homem de músculo, senhor da sua palavra»34), evocação de imagens, expressões coloquiais, perguntas retóricas («Que crime? O do adultério, bem entendido.»35), expressões que se aproximam a exclamações («Claro.»36) e, principalmente, um uso constante da ironia. Esta complexidade implica que, apesar de não termos encontrado muitas expressões idiomáticas ou figuras de estilo a complicar a tradução, tivemos todavia de ter uma grande atenção nas possibilidades retóricas de ambas as línguas para mantermos na medida do possível o mesmo tom a cada vez adotado no original, sem prejudicar a compreensão e a fluidez do produto final, o texto traduzido.

34

J. Cardoso Pires, op. cit., p. 62 (itálico nosso). Ibidem, p. 99. 36 Ibidem, p. 58. 35

38

Há um largo uso, na Cartilha do Marialva, de sintagmas nominais que muitas vezes não podem ser traduzidos para o italiano mantendo a mesma estrutura gramatical. Procedeu-se nestes casos transformando-os em orações completas, acrescentando, obviamente sem alterar o sentido dos enunciados, verbos que pudessem tornar aceitável a expressão. Assim uma frase como «Don Juan o mesmo que o libertino, libertino o mesmo que garanhão» 37 teve de ser traduzida com «Il Don Giovanni viene equiparato al libertino, il libertino al donnaiolo». Entre outros exemplos ao longo do texto dos trechos traduzidos podemos destacar «Um Don Juan transfigurador»38, «Soror Mariana, nada disso»39, «jogador hábil na exploração»40, «A heroína marialva, sob a designação de “esposa e mãe”»41 e outros (itálicos nossos). Passamos agora a ver as dificuldades que ao traduzirmos encontrámos a nível lexical. Como antecipado, a linguagem da Cartilha do Marialva desconhece formas lexicais que pertencem a campos semânticos demasiado elitistas. Não é isenta, todavia, de algumas expressões que, embora em alguns casos sejam muito frequentes ou de negligenciável dificuldade a nível de compreensão, chegam a levantar problemas quando se trata de traduzi-las. Considere-se como ponto de partida da nossa análise o próprio termo principal do título da obra, a palavra Marialva. Enfrentamos logo no princípio um duplo problema de tradução: por um lado estamos diante de um termo a que não corresponde satisfatoriamente uma palavra italiana; por outro, o que por sua vez explicaria a ausência de um termo equivalente na língua italiana, o marialva e o marialvismo são conceitos fortemente ligados ao imaginário português e, portanto, quando querem ser traduzidos levantam um verdadeiro “problema cultural”. Tal como a inevitável tradução em italiano da palavra saudade com nostalgia ou de nevoeiro simplesmente com nebbia, ao traduzir marialva com qualquer outro termo ligado ao universo da aristocracia, da elite conservadora e rural, perder-se-ia grande parte do significado original. Para além disso, há em português palavras que correspondem mais exatamente às italianas patrizio, aristocratico, nobile...(como de resto existe também o termo nostalgia, com um significado em parte diferente de saudade). Tentar traduzir marialva com alguma locução complexa, incluindo substantivos, preposições e adjetivos, não nos parecia conveniente pois iria prejudicar decisivamente a fluidez do texto pela inútil repetição de uma fórmula complexa e sempre igual dentro de frases às vezes também complexas. Decidimos afinal não traduzir o termo no texto italiano e manter o original português escrevendo-o sempre em itálico. De qualquer maneira, a nossa decisão foi influenciada também pelo facto de uma definição exaustiva dos conceitos de marialva e

37

Ibidem, p. 47. Ibidem. 39 Ibidem, p. 53. 40 Ibidem, p. 58. 41 Ibidem, p. 61. 38

39

marialvismo ser fornecida por José Cardoso Pires ao longo de toda a obra. Ainda mais, o próprio Tabucchi mencionou a Cartilha do Marialva na introdução a uma edição italiana d’O Delfim usando uma tradução do título em que o termo marialva se encontra tal como é em português (Sillabario del marialva).42 Ainda a propósito da tradução de palavras específicas, dever-se-ia destacar o substantivo português machismo, também um termo recorrente e central da Cartilha do Marialva e deste trabalho, que em italiano pode ser traduzido, dependendo dos casos, com maschilismo ou com machismo, sendo este último vocábulo um empréstimo do espanhol. O termo maschilismo designa um hábito e uma mentalidade que conferem «ao homem uma posição de superioridade e de privilégio em relação à mulher»43, enquanto o machismo é definido como uma atitude de «ostentação de traços varonis, masculinos»44. A diferença entre as duas palavras parece-nos fundamental, pois uma diz respeito a uma hierarquia entre os sexos, a uma suposta superioridade de um sexo sobre o outro, falando de um tipo de relação que se dá somente entre homem e mulher; a outra se refere à ostentação de certas características, envolvendo uma atitude reconduzível ao comportamento dos machos entre si, embora exista esta mesma ostentação por parte do homem também dirigida à atenção da mulher. À luz destas considerações pareceu-nos oportuno ater-nos ao significado geral dos enunciados em que encontrámos o termo machismo no texto original, e traduzi-lo com uma das duas possibilidades em italiano conforme o contexto, não tendo para a escolha outras indicações úteis senão esse mesmo. Encontrámos uma pequena complicação também com alguns antropónimos recorrentes nos trechos tomados em consideração. Utilizaremos como exemplos a este respeito os nomes de dois autores citados frequentemente por Cardoso Pires nesta obra, D. Francisco Manuel de Melo e Eça de Queirós, além dos nomes dos dois soberanos que na nossa tradução aparecem duas vezes, D. João IV e D. João V, e que merecem pelas suas características uma breve reflexão. No que se refere aos reis de Portugal citados, a escolha foi de italianizar os nomes, embora isto tenha levantado algumas dúvidas. É praxe em italiano mencionar os soberanos estrangeiros com os seus nomes italianizados (com efeito, Elizabeth II ou Wilhelm I tornamse Elisabetta II e Guglielmo I), porém italianizar tanto os nomes como o título dos soberanos (traduzir portanto Dom João IV com Don Giovanni IV) iria criar uma inaceitável ambiguidade com um outro Don Giovanni, o que traduz o espanhol Don Juan, personagem mantida com este nome também na língua portuguesa. Inclusivamente, o título Don na língua italiana desempenha um papel totalmente diferente do que neste caso o do equivalente português,

42

A. Tabucchi, “Introduzione”, in J. Cardoso Pires, Il delfino, Milano, Feltrinelli, 1992, p. 9. “Maschilismo” def. N. Zingarelli, Vocabolario della lingua italiana, Bologna, Zanichelli, 2014 (tradução nossa). 44 “Machismo” def. Ibidem (tradução nossa). 43

40

referindo-se a membros da Igreja ou, geralmente nas áreas rurais do sul, a pessoas de alta camada social, ou anciãs. Todavia, depois de termos consultado alguns documentos em italiano que tratam de reis portugueses usando os nomes italianos correspondentes e omitindo o título de Dom, não encontrando mais nenhuma ambiguidade, decidimos conformar-nos às versões Giovanni IV e Giovanni V. O título foi de qualquer maneira mantido e não traduzido em todos os outros casos encontrados que não se referem a monarcas, como Dom Francisco de Portugal e Dom Francisco Manuel de Melo. Conservando os nomes portugueses destas pessoas, adotámos a abreviação “D.” que se encontra no texto original. No caso dos dois escritores acima referidos apresenta-se uma questão diferente. Aqui não temos dificuldades de tradução pois há décadas a língua italiana deixou de aceitar a italianização dos nomes de autores, filósofos, cientistas etc. de nacionalidade estrangeira, pelo menos no que diz respeito às línguas mais próximas. Compreende-se, por conseguinte, que no nosso trabalho Dom Francisco Manuel de Melo e Eça de Queirós mantiveram os seus nomes portugueses. Aqui o problema levanta-se porque José Cardoso Pires, na sua obra, não os cita sempre da mesma maneira. Adota às vezes as formas completas, D. Francisco Manuel de Melo e Eça de Queirós, outras vezes formas reduzidas: D. Francisco Manuel, tirando-lhe o apelido, e Eça, omitindo o segundo apelido. Abreviaturas desse género geralmente não se encontram no italiano escrito, todavia ao traduzir o nome do autor da Carta de Guia de Casados, optámos por secundar as formas usadas por Cardoso Pires, para mantermos uma maior aderência ao tom do texto original. Traduzimos, pelo contrário, Eça ou Eça de Queirós sempre com o apelido completo do escritor, pois o tratar só por Eça é uma praxe típica do português, enquanto a norma em italiano seria de manter sempre todos os apelidos: em qualquer texto onde aparecer mencionado o autor d’O Leopardo, por exemplo, este encontra-se sempre como Tomasi di Lampedusa, nunca só como Tomasi. No que se refere aos títulos das várias obras mencionadas por José Cardoso Pires nestes trechos, preferimos mantê-los todos na versão original por uma questão de homogeneidade, pois encontram-se também referências a romances, jornais ou trabalhos de pesquisa cujos títulos, além de não serem todos em português, nunca foram traduzidos para o italiano. A escolha de não traduzi-los, cremos, poderia facilitar o leitor que estiver interessado em uma eventual busca dos mesmos. Sempre num sentido de facilitação da leitura vai a decisão de manter o título da Carta de Guia de Casados na sua forma completa, mesmo naquelas circunstâncias em que o autor optou por usar a sua versão reduzida. Concluímos esta nossa breve reflexão destacando que dentro do texto o obstáculo maior à tradução e talvez também à compreensão do leitor italiano pode ser identificado na abundância de citações, referências e alusões que dizem respeito ao universo cultural português, quase totalmente desconhecido em Itália, a não ser nos meios académicos. 41

Podemos, pois, encontrar uma solução bastante satisfatória traduzindo miguelistas45 com uma locução que explica a referência aos partidários de D. Miguel I, mas o sentido de todo o enunciado poderá ser compreendido só por quem sabe, ao menos, que em Portugal se deu uma guerra civil em que uma das duas fações era liderada por este personagem que mais adiante se tornaria rei. Há todavia, para além disso, muitos outros casos do mesmo género que levantam dificuldades concretas também para o tradutor, sobretudo ao longo do capítulo quarto, onde Cardoso Pires trata de alguns nomes afamados da cultura portuguesa. Assim, na tradução da expressão «Um faceira lisboeta de D. João V, namorando, como se dizia, de estaca ou de estafermo»46 conseguimos criar uma versão que, embora não literal, mantém as informações originais, só depois de termos informado sobre este hábito. Este talvez tenha sido o ponto onde se pode ver com mais clareza quanto certas expressões bem enraizadas na cultura a que se refere o seu idioma podem dificultar o tradutor. Uma última anotação merece, finalmente, um problema que ao longo do trabalho surgiu por causa de fatores que vão além da complicação linguística e cultural. Neste caso, um erro tipográfico podia prejudicar a tradução de dois versos das Odes Anacreônticas de Almeida Garrett, citados por Cardoso Pires. No texto da nossa edição aparece «Ao ver-se um roto galante/Que importa gema a razão»47. Nestas palavras, de forma lexical e gramatical correta embora o seu sentido apresente uma notável complexidade de interpretação, o erro está na falta de um s na palavra roto, que com efeito se tornaria rosto, conferindo um sentido mais compreensível aos versos (Ao ver-se um rosto galante/Que importa gema a razão) e permitindo a sua tradução. A dificuldade esteve propriamente em perceber que havia uma palavra errada numa expressão que apesar disso se mantinha, a nível linguístico, perfeitamente correta.

45

J. Cardoso Pires, op. cit., p. 45. Ibidem, p. 49. 47 Ibidem, p. 91 (itálico nosso). 46

42

4. Conclusões

Analisámos, ao longo do nosso trabalho, como o fenómeno do machismo português é definido e representado por José Cardoso Pires na Cartilha do Marialva. Já em 1960 o autor discorre de uma maneira ao mesmo tempo irónica e crítica sobre a ideologia extremamente conservadora e o papel autoritário do marialva, homem ligado ao meio rural e à sua condição privilegiada em relação às mulheres e às camadas mais baixas da população. Não se deixa também de indicar uma profunda relação entre esta organização patriarcal do universo familiar e a estrutura autoritária e repressiva do estado, que caracterizou Portugal não só nos séculos passados, os da monarquia, mas também na época em que Cardoso Pires escreve. Esta maneira irónica e crítica de tratar do tema é sublinhada pelas intervenções do autor e pela montagem quase cinematográfica48 dos parágrafos em que se pretende dar ao leitor uma explicação direta e uma confirmação de reflexões contidas no texto do ensaio. Assim, por exemplo, os dois relatos jornalísticos a propósito da última internada do Recolhimento de Ferro e do agricultor que festeja o nascimento do seu primeiro varão são colocados imediatamente, sem serem introduzidos de forma nenhuma, como ilustrações49 depois de uma dissertação teórica de um assunto que estas notícias exemplificam. O aspeto que acabámos de destacar põe em discussão a forma ensaística da obra permitindo ao autor fazer incursões na primeira pessoa no texto, graças às quais ele pode insinuar a sua visão e as suas ideias em relação aos assuntos referidos. À representação de um mundo sobrepõese, portanto, um discurso crítico e uma espécie de julgamento, ambos conduzidos pelo próprio José Cardoso Pires; implicitamente destacam-se duas características fundamentais do marialvismo na sua opinião: o facto de ele ser inatual e de ele estar prestes a decair. A este respeito, tendo sido o texto emendado e alterado muito de uma edição para outra, uma análise comparativa das várias edições da Cartilha do Marialva poderia ser muito interessante para indagar por um lado o papel da censura do Estado Novo na história editorial desta obra, por o outro a evolução do pensamento do autor a propósito do mundo que o rodeia e as possibilidades que teve para expressar a sua visão. Um outro aspeto que precisa ser destacado é o dos planos temporais. Como se viu em certas passagens do nosso trabalho, a Cartilha do Marialva toma forma através de uma forte dialética entre tempos diferentes. O tempo passado e o presente remetem constantemente um para o outro para definir um discurso de continuidade e de enraizamento da mentalidade 48

Cfr. M. L. Lepecki, op. cit. A autora dedica grande parte do seu Ensaio a destacar o caráter cinematográfico da escrita de José Cardoso Pires. 49 Cfr. J.Cardoso Pires, op. cit., p. 70.

43

marialva na sociedade portuguesa, salientado pelas numerosas fontes fornecidas pelo autor. O futuro só aparentemente fica fora deste quadro: se tomarmos em consideração também a produção narrativa de José Cardoso Pires anterior à Revolução de 1974, sobretudo O Delfim, repara-se que na sua escrita há muitos indícios que levam a reconhecer na decadência de certa forma de organização social representada nos romances quase uma previsão das mudanças sociais (em sentido prevalentemente emancipador) que ocorrerão depois do 25 de Abril. Uma reflexão análoga neste sentido pode ser aplicada também à Cartilha do Marialva, que, como vimos acima, contém também alusões à impossibilidade de as atitudes marialvas permanecerem eternamente num mundo, o das décadas que seguem a Segunda Guerra Mundial, que se define pela sua constante mudança e pela pressão exercitada por faixas da sociedade tradicionalmente subalternas rumo ao reconhecimento dos seus direitos. Obviamente estas alusões e o facto de muitas previsões encobertas de José Cardoso Pires terem-se concretizado alguns anos depois da publicação das suas obras não devem levar a crer em alguma capacidade divinatória ou profética do autor. Muito mais tem de ser destacada, na nossa opinião, a profunda lucidez deste escritor, a sua capacidade de análise e de reflexão que se espelha nas suas obras e que o tornaria um útil instrumento para a compreensão também do mundo atual. Os conflitos e as atitudes prevaricadoras descritos na Cartilha do Marialva são atuais em qualquer contexto social e temporal, e com certeza não se resolveram depois da Revolução dos Cravos. É provável, antes, que as mesmas tensões e os mesmos hábitos, nomeadamente o machismo, sobrevivam até às grandes mudanças sociais e permaneçam enraizados de maneira mais subtil, confinados em um espaço além das aparências, onde é mais difícil reconhecê-los e combatê-los. Uma leitura crítica da Cartilha do Marialva e em geral da obra de José Cardoso Pires não nos parece, portanto, autorreferencial e delimitada ao conhecimento da visão e do mundo ficcional do autor, mas um possível ponto de partida para um discurso crítico que se refere a questões da atualidade. É o próprio autor, afinal, quem ao delinear a figura do libertino na Cartilha do Marialva sugere uma atitude lúcida e racional para enfrentar aquela mentalidade hiperconservadora, autoritária e repressiva a que chama marialvismo.

44

Bibliografia

Bibliografia ativa PIRES, José Cardoso, Cartilha do Marialva, 8.a ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999. PIRES, José Cardoso, O Anjo Ancorado, 3.a ed. revista, Lisboa, Arcádia, 1964. PIRES, José Cardoso, O Delfim, 1.a ed., Alfragide, Leya, 2010.

Bibliografia passiva CABRAL, Eunice, José Cardoso Pires: representações do mundo social na ficção 19581982, Lisboa, Edições Cosmos, 1999. LEPECKI, Maria Lúcia, Ideologia e imaginário: ensaio sobre José Cardoso Pires, Lisboa, Moraes Editores, 1977. TABUCCHI, Antonio, Introduzione in PIRES, José Cardoso, Il delfino, Milano, Feltrinelli, 1992, pp. 7-14. TORRES, Alexandre Pinheiro, Sociologia e Significado do Mundo Romanesco de José Cardoso Pires, in O Anjo Ancorado, 3.a ed. revista, Lisboa, Arcádia, 1964, pp. 151-218.

Dicionários Dicionário Editora da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico, Porto, Porto Editora, 2014. MEA, Giuseppe, O Dicionário Português. Dizionario portoghese – italiano, 2.a ed., Bologna – Porto, Zanichelli – Porto Editora, 2003. ZINGARELLI, Nicola (org.), Vocabolario della Lingua Italiana, 12.a ed., Bologna, Zanichelli, 2014.

45

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.