O que é bom e o que poderia ser melhor – Propostas para a Reforma Política

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O que é bom e o que poderia ser melhor – Propostas para a Reforma Política Andre Martins Bogossian LL.M candidate na Harvard Law School (2015-2016). Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. Graduado pela Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Visiting Research Fellow na Brown University (EUA). Advogado. Pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). E-mail: .

Alexandre Corrêa De Luca Mestrando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). E-mail: .

Resumo: Após inúmeras sucessões constitucionais, a república brasileira parece ter adquirido estabilidade institucional democrática com um sentimento de patriotismo constitucional gerado pela Constituição de 1988. Entretanto, ainda há muito que avançar em termos de autogoverno e soberania popular, o que se vê ao notar a severa crise de legitimidade que decorre de diversos fatores como a corrupção sistêmica e a ineficiência das instituições políticas em atender o interesse público e prover políticas públicas satisfatórias. O presente artigo se propõe a debater medidas que não estão sendo debatidas no contexto das propostas de Reforma Política, mas que já foram apresentadas sob a forma de Proposta de Emenda Constitucional: o voto destituinte e a candidatura independente. Com a utilização do método de revisão bibliográfica e documental, pretende-se avaliar criticamente os institutos e argumentar pela sua desejabilidade no presente contexto. Palavras-chave: Democracia. Reforma política. Voto destituinte. Candidatura independente. Sumário: 1 Introdução – 2 O que é bom: o triunfo da Constituição de 1988 e o surgimento de um patriotismo constitucional – 3 Revogação popular de mandatos: o voto destituinte – 4 Candidaturas avulsas – 5 Conclusão: o que é bom e o que tem que melhorar – Referências

1 Introdução A história brasileira é rica em sucessões constitucionais. Ao longo de quase duzentos anos, foram pelo menos seis as constituições que em um curto espaço de tempo nasceram e morreram. Nesse sentido, a história constitucional brasileira é uma história de suas crises e qualquer tentativa de busca de sentido deve ser pensada na continuidade de seus fracassos e dos seus elementos de fragilidade. No entanto, o mais surpreendente em todas essas rupturas não é sua quantidade, mas o fato que em cada uma dessas houve pouca mobilização em torno da manutenção da institucionalidade constitucional. Não havia um forte e difuso sentimento político

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de lealdade e defesa das cartas, um sentimento constitucional (LOEWENSTEIN, 1970, p. 200). Esta situação foi alterada com a promulgação da Constituição de 1988 e o surgimento de um patriotismo constitucional (BUNCHAFT, 2007, p. 178). Contudo, apesar da consolidação das instituições democráticas nas últimas décadas, fruto da estabilidade institucional proporcionada pela Carta Cidadã, ainda há muito que avançar em termos de autogoverno e soberania popular. Há uma inegável crise de representatividade que assola as instâncias políticas e uma insatisfação popular crescente, que demanda uma resposta certeira dos Poderes Constituídos. O presente artigo se propõe a analisar medidas que não estão sendo debatidas no contexto das propostas predominantes de Reforma Política, mas que já foram apresentadas sob a forma de Proposta de Emenda Constitucional (PEC): o voto destituinte e a candidatura independente. Com a utilização do método de revisão bibliográfica e documental, pretende-se avaliar criticamente os institutos e argumentar pela sua desejabilidade no contexto atual. Na seção 2, exibe-se um breve balanço do triunfo da Constituição de 1988 como instrumento de estabilidade institucional democrática e de geração de um sentimento de patriotismo constitucional. Ainda, apresenta-se o panorama de crise de representatividade que assola as instituições políticas no país, atribuindo-se de modo não exaustivo algumas causas para tal fenômeno, como a corrupção e a incapacidade de as instâncias representativas atenderem o interesse público com a formulação e implementação de políticas públicas de qualidade. Ao fim da seção, são expostas, em linhas gerais, as principais propostas de Reforma Política, apoiadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). A terceira seção aborda o voto destituinte, iniciando-se pela explicitação de seu conceito, sua diferença para institutos correlatos e suas formas de aplicação. O estudo prossegue com a exposição de sua aplicação no direito estrangeiro e em orde­namentos estaduais brasileiros passados, com destaque para o chamado recall, de origem norte-americana e que chegou a ser previsto em alguns estados brasileiros sob a égide da Constituição de 1891. A seguir, são colocadas em pauta as Propostas de Emenda Constitucional que tratam do tema (PECs nºs 80/03, 82/03 e 73/05) e por fim é feita uma avaliação dos argumentos contrários e favoráveis a sua adoção. A quarta seção trata da candidatura independente, trazida para o atual debate sobre reforma política por meio do Projeto de Emenda à Constituição nº 06/15, atualmente em tramitação no Senado Federal. Após breves considerações acerca de seu conteúdo e do contexto de sua elaboração, será feita uma análise dos principais argumentos a favor e contra a adoção da candidatura independente no Brasil. Conclui-se, enfim, com breves comentários a respeito da premente necessidade de uma Reforma Política que venha realmente propiciar ganhos em autogoverno,

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reformas que privilegiem a participação cidadã como instrumento de exercício direto da soberania popular e saudável complemento ao sistema representativo, conforme preconizado pelo próprio artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.

2  O que é bom: o triunfo da Constituição de 1988 e o surgimento de um patriotismo constitucional Apesar da descrença de seus críticos, a Constituição de 1988, que culminou o processo de redemocratização, parece ter tido um inesperado sucesso quando comparada com suas antecessoras. Como lembra Antonio Cavalcanti Maia (2005, p. 28), a Constituição de 1988 representa motivo de orgulho; ela possui uma grande valia simbólica, pois possibilitou uma transição exemplar dos governos autoritários para o regime democrático. Ela permitiu ao país iniciar uma vida democrática madura, absorvendo inú­ meras crises que em outras épocas poderiam muito bem ter sido resolvidas com saídas anti-institucionais (como, por exemplo, a morte de Tancredo Neves e o caso do impeachment de Fernando Collor); permitiu experimentar, pela primeira vez, um processo democrático maduro capaz de, entre outras coisas, eleger um candidato popular de esquerda do Partido dos Trabalhadores; ver o amadurecimento institucional com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de integrantes do mais alto escalão deste mesmo governo popular de esquerda e sua base aliada (tanto no chamado processo do Mensalão quanto nas ações que se avizinham decorrentes dos recentes escândalos de corrupção na Petrobras); e ainda presenciar a tomada das ruas pela população em massa em uma série de protestos, com as mais difusas reivindicações (e, portanto, abrangendo as mais diversas visões de mundo). Esta mudança política, algo sem precedentes em nosso país, não encontra, salvo engano, paralelo na história da América do Sul. Nascida em um contexto de redemocratização no qual o país buscava cortar as amarras com cerca de duas décadas de autoritarismo aberto, a Constituição de 1988 foi desde o início alvo de ataques constantes, seja por parte de grupos conservadores incomodados com um suposto teor socialista de seu texto, a grupos de esquerda que não a consideravam suficientemente progressista. Ainda sim, ela não apenas foi capaz de sobreviver às diversas mudanças e crises pelas quais o país passou ao longo dos seus vinte e cinco anos de vida, como permitiu uma modernização e inclusão social sem colocar em risco a democracia. Segundo Menelick de Carvalho Netto (apud OLIVEIRA, 2006, p. 60), seu sucesso já estava escrito na própria qualidade dos trabalhos constituintes, que permitiram uma participação popular em sua confecção absolutamente sem precedentes em toda a história brasileira:

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Na verdade, a grande legitimidade que caracteriza a Constituição de 1988 decorreu de uma via inesperada e, até o momento da eleição da Assembleia Constituinte, bastante implausível. Com a morte do Presi­den­ te eleito, Tancredo Neves, e a posse como Presidente do Vice Presi­dente eleito, José Sarney, as forças populares mobilizadas pela campanha das “Diretas já” voltaram a sua atenção e interesse de maneira decisiva para os trabalhos constituintes, então em fase inicial, pois a de organização ou definição do processo havia acabado de se encerrar. Como resul­ tado des­sa renovada atenção, o tradicional processo constituinte préordenado, contra todas as previsões, subitamente não mais pode ser reali­zado em razão da enorme mobilização e pressão populares que se segui­ram, determinando a queda da denominada comissão de notáveis – a comissão encarregada da elaboração do anteprojeto inicial – e a ado­ção de uma participativa metodologia de montagem do anteprojeto a partir da coleta de sugestões populares. Canais de participação dire­ta e indireta da sociedade civil organizada terminaram encontrando signi­ fi­cativa acolhida no regimento revisto do processo constituinte; o des­ pertar do interesse de todos alimentou e fomentou o aprofundamento dos debates, acompanhados por todo o país todas as noites através da tele­visão. Foi desse processo, profundamente democrático, que a Consti­tuição hauriu sua legitimidade original, resultando numa autêntica manifes­tação de poder constituinte, em razão do processo adotado.

Neste sentido, a Constituição Brasileira pode, sim, ser considerada tão exitosa quanto a Lei Fundamental Alemã, que originou a formulação habermasiana de patrio­ tismo constitucional (CITTADINO, 2007, p. 60). Se, no caso europeu, o patrio­tismo significou uma ruptura definitiva com um passado de totalitarismo e intolerância que culminou nas monstruosidades levadas a cabo durante o holocausto, a adesão popular à Constituição brasileira significou um ponto final em um passado de instabilidade política e desrespeito pela ordem democrática na qual a grande maioria da população era quase sempre a maior prejudicada. A lembrança da violação substancial de liberdades e direitos constitucionais perpetuada ao longo da história política do país serviu com uma força capaz de manter acesa a vontade constitucional da imensa maioria do povo brasileiro. Isso não significa, por óbvio, que a Constituição tenha sido realizada plenamente. Sua força e significado não se esgotam na concretização de certas metas ou fins específicos, mas são um projeto aberto, a ser construído paulatinamente de acordo com os desafios colocados pelo mundo real. Seu sucesso está em sua capacidade de servir como referência moral e elemento mobilizador para uma mudança de mundo, convertendo-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social (HESSE, 2009, p. 132). Ainda que muitos problemas sérios permaneçam entranhados na sociedade brasileira, isso não deve ser encarado como um sinal de fraqueza da Constituição ou de sua falta de efetividade, mas como um chamado ao patriotismo constitucional. A realidade é um sinal aceso a lembrar que a Constituição

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não possui poderes mágicos e o Direito não pode mudar o mundo sozinho, mas que a concretização dos valores e princípios constitucionais depende da vontade individual de cada cidadão. A democracia precisa e só tem a ganhar com essa pluralidade de visões de mundo. O patriotismo constitucional brasileiro, ao fundar uma identidade coletiva baseada no respeito por princípios de justiça que perpassam todas essas diversas visões de mundo, permite uma discussão respeitosa e contínua entre elas, onde o presente é debatido e alternativas de futuro são pensadas, reforçando a integração social e mantendo a diversidade cultural brasileira. Ao mesmo tempo, então, que o cidadão luta por sua Constituição, ele contribui para a criação desse sentimento democrático na sociedade. Por isso, a prática constitucional não pode ser delegada a um corpo elitista e contramajoritário, mas à soberania popular (BUNCHAFT, 2007, p. 187). Mais que um exercício meramente representativo da soberania, ela exige o engajamento contínuo e direto da população, o que só se torna possível se as vias de participação democrática estiverem desobstruídas e abertas a todos. Ao invés de ouvir a última palavra, o cidadão deve ser chamado a se fazer ouvir. É sob este enfoque que deve ser escrutinizada a democracia brasileira, três décadas após a redemocratização. É preciso reconhecer as conquistas do passado recente sem perder de vista os problemas do presente e as possibilidades do futuro.

2.1  O que poderia ser melhor: a crise de representatividade e as propostas de reforma política Apesar de todas as conquistas ocorridas desde a promulgação da Constituição de 1988, não se pode negar que ainda há muito para avançar no que diz respeito ao aprofundamento de um ambiente democrático no sentido mais pleno do termo. Por mais que tenha ocorrido a consolidação do espírito democrático em torno e por conta da Carta Cidadã, é preciso reconhecer que há muito ainda a percorrer nos caminhos para o real exercício do poder soberano pelo povo, nos termos do próprio artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal. É notável a crise de representatividade que assola as instâncias que exercem indiretamente o poder popular. Se é possível verificar uma amorfia partidária desde os tempos imperiais1 (BENEVIDES, 1991, p. 24), este fenômeno certamente se desenvolveu ao longo do século XX, principalmente após a explosão de legendas com a redemocratização. Até o fechamento deste trabalho são 32 (trinta e dois)

“Nada mais parecido com um ‘saquarema’ do que um ‘luzia’ no poder”. A frase irônica atribuída ao político pernambucano Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti de Albuquerque demonstra que o descrédito das instâncias representativas não é fenômeno novo no Brasil, mas perdura, no mínimo, desde o Segundo Reinado.

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os partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral,2 dois com registro solicitado à espera de julgamento do TSE (NOVO e Rede Sustentabilidade)3 e diversos outros prestes a pleitear o registro, mesmo diante da promulgação da Lei nº 13.107/2015, que objetiva impedir a fusão de partidos recém-criados e, assim, desincentivar a cria­ ção de partidos “de aluguel” como meio de burla do sistema de fidelidade partidária. O presidencialismo brasileiro, dito de bicoalizão (POWER, 2010), é baseado em um sistema partidário extremamente fragmentado e sem fortes clivagens ideológicas entre as agremiações partidárias, que tendem a se agrupar em dois polos por uma lógica política meramente oportunista de governo-oposição, não sendo o alinhamento ideológico um fator determinante nesta dinâmica. É o que explica, por exemplo, a aliança do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) com partidos tradicionalmente vinculados a setores mais conservadores, como o Partido Progressista (PP) de Paulo Maluf, Francisco Dornelles e Jair Bolsonaro e o Partido da República (PR), resultado da fusão entre o Partido Liberal (PL) e o Partido da Reedificação da Ordem Nacional (PRONA). Este arranjo tem entre suas consequências uma corrupção sistêmica, que permeia todos os níveis das instituições governamentais no país, e que de tão difun­ dida nos meios políticos sequer escandaliza a população. O julgamento da Ação Penal nº 470 – que condenou diversos agentes públicos e privados envolvidos em um esquema de compra de apoio parlamentar – foi um verdadeiro marco na história republicana brasileira, mas as inúmeras investigações da Polícia Federal (entre elas as operações Lava Jato e Zelotes), além dos diversos casos em nível regional e local mostram que a corrupção nas instituições políticas continua a ser um problema alarmante no Brasil. Outro aspecto da crise de legitimidade do Congresso Nacional é fruto da ineficiência do Poder Legislativo, decorrente em parte da dificuldade em se elaborar e votar projetos de lei e emendas constitucionais. Isto não decorre apenas de uma crise momentânea, mas de um modelo institucional que dificulta que o Congresso seja capaz de elaborar sua própria pauta, posto que o Poder Executivo usa extensivamente de suas competências legislativas impróprias por meio de medidas provisórias, que sobrestam a pauta deliberativa enquanto não forem apreciadas (MENDES, 2009, p. 23). Mesmo quando o Congresso consegue estabelecer sua agenda, esta não costuma refletir as demandas populares, mas atender a interesses de grupos de pressão específicos, dos próprios congressistas ou ainda questões de pouca rele­ vância (BENEVIDES, 1991, p. 87 e 101) se comparadas às que são deixadas de lado, e que costumam desaguar no Poder Judiciário, mais especificamente no Supremo Tribunal Federal (LEITE, 2014).

Fonte: . Acesso em: 20 maio 2015. e , respectivamente.

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Não é outro o destino de muitas políticas públicas que, por diversos fatores (desde a cumulação descoordenada de competências materiais até a má gestão financeira por parte do Poder Executivo em diversas esferas), são em última instância postas em prática somente mediante decisão do Poder Judiciário. Este estado geral de coisas – fisiologismo político, corrupção sistêmica, ine­ ficiência na elaboração e implementação de políticas públicas de qualidade – ajuda a explicar a mobilização popular de massa (para além das manifestações tradi­ cionalmente partidárias ou regionais) em torno de um conjunto difuso de pautas, que tinham como fio condutor um sentimento geral de insatisfação com as instituições democráticas. Em meio aos protestos de 2013, o assunto Reforma Política reapareceu na ordem do dia. Um dos pontos colocados pelo Governo Federal como resposta aos protestos foi a convocação de uma constituinte exclusiva, por plebiscito,4 para decidir apenas questões afetas ao sistema político. Entre os principais pontos, que já cons­ tavam da pauta do PT,5 figuram (i) o voto em lista fechada, preordenada pelo partido; (ii) mecanismos que garantam “um aumento real da presença das mulheres em todas as instâncias da política nacional”; (iii) financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais.6 O projeto teve sua constitucionalidade muito ques­tionada, por alegadamente representar um meio de burla ao procedimento de emenda constitucional e desafiar a teoria constitucional ao propor um Poder Constituinte Originário descaracterizado de sua natureza e elementos fundamentais.7 Com o arrefecimento do projeto petista de Reforma Política abriu-se espaço para uma proposta rival, encabeçada pelo PMDB. A contínua perda de força política do governo vem desde as violentas eleições presidenciais de 2014 até o atual momento de crise econômica, sempre com a sombra dos escândalos de corrupção sob a mira de investigações da Polícia Federal como a Operação Lava Jato. A eleição em 2014 de um Congresso dito conservador contribui para que as tensões e golpes desferidos entre governo e parlamento sejam mais danosas ao primeiro. A proposta do PMDB está ancorada em dois pontos principais: (i) a constitucionalização do financia­ mento privado de campanhas;8 e (ii) o chamado “distritão”, transformando a eleição Para mais informações, conferir . A PEC nº 384, de 2009, já previa a realização das eleições para a constituinte exclusiva juntamente com as eleições ordinárias de outubro de 2010 e instalação no dia 15 de janeiro de 2011. 6 . 7 Vide os relatos presentes no Estudo da Consultora Legislativa da Câmara dos Deputados “(Im)Possibilidade jurídica de uma Constituinte Exclusiva para tratar de Reforma Política”. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2015. 8 A reafirmação do financiamento privado na PEC nº 352/13 viria para prevalecer sobre a decisão pela inconstitucionalidade de tal modelo de financiamento pelo STF na ADI nº 4.650, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Apesar de já haver maioria formada decidindo pela inconstitucionalidade, os sucessivos pedidos de vista do Ministro Gilmar Mendes vêm protelando a conclusão do processo. 4 5

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para Deputado Federal de proporcional em majoritária, na qual seriam eleitos os deputados mais votados de cada estado, e não mais segundo o coeficiente eleitoral de cada partido. Outras alterações, ainda sem consenso dentro do próprio partido, envolveriam a unificação do calendário eleitoral e consequente a coincidência de mandatos e o fim da reeleição.9 Nenhuma das propostas analisadas sequer pretende promover a ampliação dos mecanismos de participação popular. Só uma prática democrática constante e profunda pode levar ao aperfeiçoamento de uma cultura de democracia. Assim, é neces­ sário o aprimoramento dos mecanismos institucionalizados, para que se permita ao povo influenciar mais diretamente os seus próprios destinos. Os dois insti­tutos que serão expostos a seguir contribuem para este ideal de autogoverno, motivo pelo qual se propõe a sua consideração nos debates sobre Reforma Política.

3  Revogação popular de mandatos: o voto destituinte Desde suas origens na tradição das revoluções liberais o constitucionalismo tenta lidar com a problemática do controle do poder e, quando este se mostra ilegítimo, da resistência ao seu exercício indevido. Locke ([1690] 2011, p. 131) já tratava da possibilidade de que o governante que “exceda em autoridade o poder que a lei lhe conferiu, e lance mão da força de que dispõe para fazer ao súdito o que a lei não lhe permite, deixa de ser magistrado e, já sem autoridade, poderá sofrer oposição”. Este direito de oposição ao representante que governa com tirania, “seja um ou muitos que assim agem”, costuma ser institucionalizado por diversos meios nas cartas constitucionais. Carece o texto constitucional de um mecanismo que permita ao próprio titular do poder político destituir seu(s) representante(s) quando este(s) por qualquer motivo frustre(m) a representação. É pressuposto essencial a toda relação de repre­ sentação, fundada na confiança que, uma vez desaparecida, os poderes e respon­sabilidades confiados ao mandatário possam ser revogados mediante uma mani­festação inequívoca de vontade do mandante. Trata-se do chamado direito de revogação, voto destituinte ou revogação popular de mandatos. Seria um “direito ao arrependimento eleitoral” por parte da população, que, insatisfeita com o exercício de mandato eletivo por parte de um ou da totalidade de seus representantes, opta por revogar o mandato individual ou de todos estes. Paulo Bonavides (2000, p. 291) fala de um direito de revogação manifestado em duas modalidades, individual e coletiva. No primeiro caso, fala-se do instituto mais conhecido como recall, oriundo do direito norte-americano; no último caso está-se a tratar do direito de revogação coletiva,

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de origem suíça (abberufungsrecht), e que confere à coletividade a prerrogativa de postular a renovação de todo o colegiado legislativo, pelas mesmas razões (BEÇAK, 2013, p. 14). O voto destituinte é instrumento de “controle político, baseado na participação popular municiada de legitimidade” (AIETA, 2006, p. 162), uma “arma democrática para o povo” (AIETA, 2006, p. 181). A premissa básica é que se as pessoas podem ser eleitas por motivos não relacionados à capacidade para exercer a função pública, eles também podem ser destituídos por uma série de motivos, e baseia-se no direito dos eleitores de controlar suas autoridades eleitas (CRONIN, 1999, p. 130). O voto destituinte difere do impeachment, que (i) não é realizado diretamente pelo povo, mas por meio de seus representantes; (ii) não se aplica ao próprio Poder Legislativo; e (iii) somente é cabível caso haja acusação criminal ou comprovação de má conduta. Os instrumentos destituintes (i) são convocados e decididos pelo povo; (ii) são aplicáveis a todos os mandatos eletivos; e (iii) permitem a revogação dos mandatos de representantes simplesmente por frustrarem seus eleitores por incompetência ou por traição de suas propostas – a chamada insinceridade ou este­ lionato eleitoral. É suficiente, portanto, a simples perda da confiança ou indignação da maioria dos eleitores para que seja possível falar em recall ou revogação coletiva. É também distinto da impugnação de mandato eletivo (artigo 14, §§10 e 11 da CF/88) em sua natureza (ação de impugnação é judicial, enquanto a revogação de mandato é procedimento político) e em sua abrangência e motivação (a impugnação visa cassar um mandato obtido ilegitimamente pela própria utilização de meios inde­ vidos, enquanto o recall pode atingir qualquer mandato eletivo, regularmente obtido ou não, e independente de outros motivos que não a vontade popular) (SANTANA, 2004, p. 50-55). Diverge da cassação de mandato por conta de sua natureza: en­ quanto a cassação é sanção, a revogação do mandato é cancelamento da escolha daquele representante por decisão de quem o elegeu; é o reverso do direito de eleição (SANTANA, 2004, p. 57). Igualmente não podem ser confundidos com alguns mecanismos típicos do parlamentarismo, como (i) o poder do Chefe de Estado de dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas; ou (ii) o voto de confiança ou de desconfiança/censura, convocado pelo governo ou pela oposição, respectivamente, que ocorre apenas entre os poderes instituídos, não havendo manifestação popular. Divergem, portanto, na legitimidade para iniciar e para decidir a respeito da extinção dos mandatos. No direito comparado, o direito de revogação pode ser verificado em diversos ordenamentos, não sendo de modo algum prática incomum a democracias das mais variadas tradições e em diferentes formatos, adotando-se distintos procedi­ mentos. O recall tem origem e maior utilização nos Estados Unidos. O caso mais emblemático permitiu a eleição para Governador do Estado da Califórnia do ator

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Arnold Schwarzenegger após a destituição do político Democrata Gray Davis em 2003, e o mais recente em 2012, no estado de Wisconsin, em que o Governador Scott Walker foi mantido no cargo. Regras de revogação popular de mandatos são utilizadas também na Áustria, onde o Presidente (Chefe de Estado) pode ser removido por referendo popular convocado pelo Parlamento (artigo 60.6); na Venezuela (artigo 72 da Constituição de 1999, instituindo o chamado referendo revocatório); no Peru (artigo 31 da Constituição de 1993); na Colômbia (artigo 40.4 da Constituição de 1991); na Bolívia (Lei nº 3.850, de 2008, regulando o artigo 4º, 1, da Constituição de 2004); e na província canadense da Columbia Britânica. No Reino Unido, foi muito recentemente editado o Recall of MPs Act, de 26 de março de 2015, que define três condições alternativas pelas quais um Membro do Parlamento pode ser destituído por decisão popular mediante votação em seu distrito constituinte. Até nos ordenamentos socialistas, como da antiga União Soviética (artigo 107 da Constituição), da China (artigo 77 da Constituição) e de Cuba (artigo 85 da Constituição), é possível identificar mecanismos deste gênero. Na história brasileira, é possível encontrar exemplos de revogação popular de mandatos em algumas das nossas primeiras constituições estaduais republicanas: a de São Paulo (1891), em seu artigo 6º, §3º; a do Rio Grande do Sul (1891) em seu artigo 39; a do Estado de Goiás (1891), em seu artigo 56; e as Constituições de 1892 e 1895, em Santa Catarina. Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, o Deputado Lysâneas Maciel (PDT/RJ) propôs instituto denominado voto destituinte, com feições similares ao recall, por meio de emenda10 ao anteprojeto do relator da subcomissão dos direitos políticos, dos direitos coletivos e garantias, integrante da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. Todavia,

EMENDA ES29809-7 PLENÁRIO – FASE LEGISLATIVA: ‘B’ Autor: Lysâneas Maciel. Partido: PDT. Data: 04/ set./87. Emenda Aditiva. Acrescente, onde couber Art. Os detentores de mandatos eletivos têm o dever de prestar contas de suas atividades aos eleitores. Parágrafo Único – A qualquer tempo, no curso do mandato parlamentar, poderão ser oferecidas impugnações à Justiça Eleitoral com fundamento em abuso do poder econômico, corrupção e fraude, transgressões eleitorais esses puníveis com perda de mandato. Art. Os eleitores poderão revogar, por voto destituinte, o mandato concedido a seus representantes no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, na forma regulamentada em lei complementar. JUSTIFICATIVA – O voto destituinte pode ser definido, em sentido amplo, como a medida que confere ao eleitorado o poder de, em determinadas condições, substituir um ocupante de cargo público antes ao término normal de seu período. Trata-se de uma revogação de mandato, uma verdadeira suspensão de confiança ou uma consequente anulação de nomeação ou escolha anterior. O voto destituinte, que se pretende estabelecer no texto constitucional, refere-se exclusivamente aos detentores de mandatos eletivos, e por iniciativa exclusiva dos eleitores. A revogação proposta fundamenta-se na teoria de soberania fracionada, que fica com cada um dos membros do povo. Se o mandato eletivo é uma delegação de representação popular, deveria competir ao eleitor revogara qualquer momento tal delegação. A instituição deste novo direito é especialmente importante para nosso País, onde os abusos, a corrupção e a impunidade ameaçam a própria credibilidade do sistema democrático. Constituirá ainda, poderoso instrumento de controle dos representantes, pelo eleitorado: a mera presença desse dispositivo na Lei Maior poderá coibir certos abusos e irresponsabilidades.

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tendo sido rechaçada por repetidas vezes em diversos turnos de votações – a despeito das reiteradas tentativas de Maciel e do Deputado Domingos Leonelli (PMDB/BA) – o instituto ficou fora do texto constitucional definitivo (AIETA, 2006, p. 178-180).

3.1  As Propostas de Emenda Constitucional São três as Propostas de Emenda Constitucional que se referem ao tema: as PECs nºs 80/03; 82/03 e 73/05. A PEC nº 80/03 apenas acrescenta dois incisos (IV e V) ao artigo 14,11 sendo apenas o primeiro relativo ao instituto em estudo, e parece delegar um espaço de conformação muito grande ao legislador ordinário. Já a PEC nº 82/03 apresenta o tema sob uma forma diferenciada e ampliada, prevendo a possibilidade de um “plebiscito de confirmação de mandato dos representantes do povo eleitos em plebiscito majoritário”. Este plebiscito ocorreria na metade dos mandatos dos Chefes dos Executivos das três esferas federais (concomitante às eleições Municipais ou Estaduais/Federais, conforme o caso), bem como dos Senadores. Concomitantemente à votação da revogação do mandato ocorreria a votação de seu sucessor, que assumiria caso o número de votos pela confirmação seja inferior ao número de votos para algum dos candidatos ao cargo. A PEC nº 73/05, por sua vez, pretende acrescentar à Constituição Federal o artigo 14-A, que permitiria a convocação do referendo revocatório apenas após um ano de mandato do Presidente da República ou dos membros do Congresso Nacional. A grande diferença da proposta constante da PEC nº 73/05 consiste na possibilidade de convocação do referendo pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, mecanismo este que altera significativamente o arranjo constitucional de freios e contrapesos. No mês de setembro de 2009 foi realizada audiência pública para debater a matéria. Após idas e vindas no Senado, tendo as três PECs sido agrupadas para processamento conjunto em 2008 e depois desagrupadas em 2009, foram arquivadas ao final do ano de 2014, mas apenas a PEC nº 80/03 recebeu, até o fechamento deste trabalho, pedido de desarquivamento por parte de seu autor, o Senador Antonio Carlos Valadares. Os focos agora estão voltados para os substitutivos apresentados às PECs nºs 80/03 e 73/05. A primeira apenas explicita que o direito popular de revogação se aplica a cargos eletivos nos Poderes Executivo e Legislativo, além de acrescentar um §12 ao artigo 14, que coloca uma limitação temporal de um ano após a posse para a ocor­rência da revogação, previsão esta que também está presente na nova versão da

IV – direito de revogação, individual e coletivo; V – veto popular.

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PEC nº 73/05.12 Esta merece mais atenção por incorporar sugestões decorrentes da audiência pública de 2009 e apresentar uma disciplina constitucional mais elaborada que a da PEC nº 80/03. Uma grande vantagem nesta proposta está em estabelecer uma imunidade de um ano (caput do artigo 14-A), sendo apenas a partir de tal prazo possível a instauração do processo. Outra está em diferenciar os números de assinaturas necessários para instauração do processo para os diversos cargos eletivos (art. 14A, §1º, I a III). Também é louvável a preocupação do constituinte reformador em permitir aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios um espaço de conformação Art. 1º Os arts. 14 e 49 passam a vigorar com as seguintes alterações: Art. 14. .................................................................................................................................................. IV – direito de revogação de mandato individual; V – veto popular, na forma da lei. ........................................................................................................................................................ (NR) Art. 49. ................................................................................................................................................... XV – convocar plebiscito e autorizar referendo, exceto, neste caso, nas hipóteses previstas no art. 14-A. ........................................................................................................................................................ (NR) Art. 2º A Constituição Federal passa a vigorar acrescida do seguintes art. 14-A e 14-B: Art. 14-A. Transcorrido um ano da data da posse nos respectivos cargos, o Presidente da República e os membros do Congresso Nacional poderão ter seus mandatos revogados por referendo popular, conforme o disposto a seguir: §1º O referendo realizar-se-á por iniciativa popular, dirigida ao Tribunal Superior Eleitoral, firmada: I – por pelo menos três por cento do eleitorado nacional, distribuídos por pelo menos nove Estados, com não menos de dois por cento dos eleitores de cada um deles, para a revogação do mandato do Presidente da República; II – por pelo menos três por cento do eleitorado estadual respectivo, distribuídos por pelo menos nove Municípios, com não menos de dois por cento dos eleitores de cada um deles, no caso de revogação de mandato de Senador. III – por pelo menos um por cento do eleitorado estadual respectivo, distribuídos por pelo menos sete Municípios, com não menos de cinco décimos por cento dos eleitores de cada um deles, no caso de revogação de mandato de Deputado Federal. IV – O referendo para revogação do mandato do Presidente da República poderá realizar-se, também, mediante requerimento da maioria absoluta dos membros da Cãmara dos Deputados e do Senado Federal, dirigido ao Tribunal Superior Eleitoral. §2º O signatário da iniciativa popular deverá firmar nome completo, assinatura, domicílio eleitoral e número do título de eleitor. §3º Os referendos de que trata este artigo serão convocados pelo Tribunal Superior Eleitoral e serão realizados em até três meses após o recebimento da petição do referendo. §4º Nos últimos 20 dias anteriores ao referendo, as partes pró e contra a revogação do mandato terão direito de divulgação de suas teses, na forma prevista na lei para a campanha eleitoral para o cargo a ser referendado. §5º O referendo será considerado sem efeito se a soma dos votos nulos e em branco corresponder a mais da metade do total dos votos colhidos. §6º Se o resultado do referendo for contrário à revogação do mandato eletivo, não poderá ser feita nova consulta popular sobre o mesmo ocupante do cargo até o término do mandato ou o fim da legislatura em curso. §7º Se o resultado do referendo for pela revogação de mandato, dar-se-á posse, em quarenta e oito horas após a publicação oficial do resultado, ao sucessor legal do cargo em questão, convocando-se nova eleição para o cargo, no prazo máximo de três meses. Art. 14-B Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios regularão, em suas respectivas Constituições e Leis Orgânicas, o referendo de revogação dos mandatos dos respectivos Chefes do Poder Executivo e membros dos Legislativos, observadas no que couber as disposições dos artigos 14-A e 14-B.

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razoável, ordenando que sejam adotados os mecanismos, mas permitindo um espaço regulatório saudável; contudo, crê-se necessária a inclusão expressa de um prazo para a adoção de tais normas nos ordenamentos dos entes federativos, sob pena de mora legislativa que somente será sanada com recurso ao Supremo Tribunal Federal. A disposição mais polêmica da PEC nº 73/05, contudo, encontra-se na proposta de art. 14-A, §1º, IV, que dá legitimidade à maioria absoluta do Congresso Nacional para convocar a população a decidir pela manutenção ou não do Presidente. O instituto se aproximaria do voto de censura, típico do parlamentarismo, e importaria em um considerável rearranjo do desenho de harmonia e interdependência entre os Poderes. Apesar de a própria Constituição de 1988 não ter definido uma fórmula definitiva no arranjo de separação e harmonia entre os Poderes, a instituição de mais um mecanismo de freios e contrapesos pode acabar sendo usada como um instrumento de ataque na atualmente conturbada relação entre o Poder Executivo e o Congresso ao invés de ser desejavelmente pensada como um mecanismo de aprimoramento das instituições democráticas.

3.2  Argumentos favoráveis e contrários O principal argumento favorável ao direito de revogação diz respeito ao poder de fiscalização ao povo e da obrigação de seus representantes à prestação de contas periódicas de seu trabalho. Trata-se de uma excelente forma de controle do poder político e de aproximação entre representantes e representados (ÁVILA, 2009, p. 12). É instrumento de “controle político, baseado na participação popular municiada de legitimidade”, e funciona, nas palavras de Woodrow Wilson, como uma espingarda atrás da porta para lembrar aos eleitos o que deles esperam seus eleitores (AIETA, 2006, p. 162-163). Se uma das grandes vantagens da democracia é a possibilidade de substi­ tuição periódica dos agentes que não exercem adequadamente a função pública, o voto destituinte apenas reforça este aspecto positivo ao permitir que o processo de substituição ocorra mais cedo que o programado. Nesse contexto, ele pode ser entendido com uma forma de compensação dos defeitos do governo representativo e aumento da eficiência do mecanismo de autorregulação democrática, visto que é uma tentativa de tornar o governo mais representativo ao aumentar a sensibilidade das autoridades eleitas à vontade da maioria (ÁVILA, 2009, p. 89-90). O voto destituinte procura garantir a responsabilidade contínua das autoridades públicas, de tal forma que os eleitores não têm que aguardar até a próxima eleição para se livrarem de um agente público incompetente, desonesto, despreocupado ou irresponsável. Com a sua existência, as autoridades tendem a se manter alertas, honestas e preocupadas em atender o interesse público.

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Além disso, o voto destituinte é também um mecanismo útil a limitar influências indevidas de interesses específicos no funcionamento das instituições demo­cráticas, independente do modelo de financiamento eleitoral que se adote. As autoridades públicas devem ser responsabilizadas pelos seus eleitores e não por aqueles que fizeram doação às campanhas eleitorais. O recall vai de encontro aos interesses específicos, o que leva as autoridades a considerarem o interesse público antes de qualquer troca de favores (ÁVILA, 2009, p. 90). Os mecanismos destituintes tam­bém têm a vantagem de funcionar como indicadores de pressão que forçam a renúncia do agente público em questão ou a instauração de outros procedimentos fiscali­ zatórios. Um exemplo ocorreu no estado americano do Arizona, em 1987, quando a campanha pela revogação do mandato do governador Evan Mechan obteve um elevado número de assinaturas, levando a uma investigação rigorosa por parte da respectiva assembleia legislativa que resultou no seu impeachment (ÁVILA, 2009, p. 98). O direito de revogação ainda gera ganhos em cidadania ao criar para a pessoa comum uma razão para manter-se informada sobre o governo durante o exercício do mandato, aumentando assim a participação política do povo. Ele aproxima o cidadão das questões públicas relevantes e serve também como um mecanismo de alívio para as tensões e sentimentos exacerbados dos eleitores (ÁVILA, 2009, p. 90). Segundo o relato de Aieta (2006, p. 184), os principais argumentos levan­ tados contra o voto destituinte na Assembleia Constituinte ainda hoje afirmam que sua instituição daria margem a uma “conspiração de suplentes”, a uma infindável “retaliação entre correntes políticas antagônicas”, ameaçando a representação das minorias, e representaria uma “ameaça ao pleno exercício do mandato parlamentar” ao ser passível de manipulações perigosas pelo poder econômico e por oligarquias regionais. Contudo, a experiência nos demais ordenamentos e a própria lógica do instituto, se bem disciplinado, mostra que todos estes temores são infundados. Contra a acusação de que haveria uma escalada de manobras (seja de su­ plentes, seja de oposicionistas ou do “poder econômico”) tentando lançar mão do instituto para fortalecer sua posição e alcançar o poder, a experiência no direito comparado mostra que as populações locais não se deixam levar por futilidades, mas somente revogam o mandato daquele representante que realmente traiu a confiança do povo. Se a legitimidade para iniciar o processo residir apenas no povo, são reduzidas as chances de direcionamento do procedimento para fins espúrios. Por exemplo, nos Estados Unidos, com inúmeros casos de procedimentos de recall, os eleitores rejeitam a utilização do recall com orientação política, usando-o para paralisar a má-conduta e deter a corrupção das autoridades públicas (ÁVILA, 2009, p. 91). A prática é resposta cabal e decisiva de que os institutos funcionam, e somente são usados em casos extremos, quando são realmente necessários (AZAMBUJA, 2008, p. 259).

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Ainda, é possível criar mecanismos que limitem as possibilidades de abuso do instituto, como, por exemplo, (i) ao impedir que o suplente assuma o lugar do agente político revogado (com a sua substituição sendo definida em votação concomitante à decisão revocatória) ou assuma apenas temporariamente (proposta que constaria do futuro art. 14-A, §7º, se aprovada a PEC nº 73/05); (ii) o estabelecimento de su­permaiorias para destituição, resguardando assim o voto da minoria; (iii) o esta­ belecimento de uma limitação temporal para o pedido de destituição (com uma imunidade de um ano, por exemplo, tal qual no futuro caput do artigo 14-A pela PEC nº 73/05); (iv) a limitação de oportunidades que o mesmo representante (ou de um número de integrantes do mesmo partido, para que se evite que uma maioria tente exterminar um determinado partido) pode ser submetido à votação revocatória durante uma legislatura (14-A, §6º, se aprovada a PEC nº 73/05); (v) a exigência de depósito de valor em caução por aqueles que iniciam o processo, a ser revertido para o erário ou ao representante em questão, caso seja mantido no cargo; ou até (vi) o balizamento das hipóteses de uso do instituto, com a apresentação de parâmetros objetivos que avaliem sua atuação à luz do programa partidário respectivo. Rebater o argumento da violação à independência dos mandatos é igualmente viável: o recall não implica a adoção do mandato imperativo, os representantes não estão vinculados de modo absoluto ao desejo de cada um de seus representantes, mas possuem um dever de atendimento do interesse público de boa-fé, de lealdade aos princípios que norteiam a atuação do seu partido e, principalmente, um dever de responsabilidade, inerente a uma moderna concepção do mandato representativo, e que necessariamente envolve a noção de “prestação de contas e fiscalização dos mandatários pelos mandantes. Sem esses ingredientes, idoneamente formulados – e dotados de um instrumental que lhes assegure eficácia – não se pode falar legitimamente em mandato” (ÁVILA, 2009, p. 73). Por fim, em alguns autores vê-se a crítica de que o recall só funcionaria com voto majoritário/distrital (AIETA, 2006, p. 176), ou em um sistema proporcional apenas em nível municipal para pequenos e médios Municípios (ÁVILA, 2009, p. 86). Isto ocorreria pelos custos elevados do procedimento e a dificuldade natural em determinar que um certo número de eleitores tivesse sido necessariamente responsável pela indicação do representante, podendo assim propor a sua cassação; afinal, para esta posição, a confirmação do mandato não poderia ser garantida pelos eleitores que não haviam sufragado o representante (AIETA, 2006, p. 176). Contra o argumento financeiro é pre­ ciso notar que a lei regulamentadora pode exigir o depósito caução de certa quantia, que será revertida para o Estado caso não se alcance maioria para efetivar o recall, como ocorre em certos procedimentos norte-americanos (DALLARI, 2011, p. 155). Isto evita ao erário as despesas decorrentes do erro ou da animosidade dos que provocaram o pleito para destituir frivolamente um representante eleito (AZAMBUJA,

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2008, p. 264). Contra a problemática da definição da parcela da população que elegeu o representante questionado e que portanto poderia revogar seu mandato, é preciso reiterar que o recall não implica uma volta ao mandato imperativo; muito pelo contrário, ele se assenta na relação de responsabilidade do agente público eleito com toda a população, com aqueles que nele votaram e também com os que não o apoiaram.

4  Candidaturas avulsas O segundo mecanismo proposto por este estudo para o aprimoramento da demo­cracia brasileira é a candidatura independente ou avulsa. Somente 9% dos países democráticos vedam a possibilidade de candidatura avulsa em qualquer uma de suas eleições. Isso significa que, enquanto 207 democracias admitem candi­ daturas independentes em pelo menos uma de suas eleições, somente 20 das atuais democracias estabelecem uma vedação total a esse tipo de candidatura.13 Apenas a título de curiosidade, o atual Presidente da República Federal da Alemanha, Joachim Gauck, foi eleito em 2012 como candidato independente. Examinam-se, agora, as propostas de introdução desse mecanismo no orde­ namento jurídico brasileiro e os argumentos favoráveis e contrários à sua adoção.

4.1  A Proposta de Emenda Constitucional Desde fevereiro de 2015 tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição nº 6 de 2015 (PEC nº 6/2015), de autoria do Senador Raguffe (PDTDF). Tal emenda suprime o inciso V do §3º do art. 14 da Constituição Federal14 e acrescenta o artigo 17-A à Carta Constitucional com a seguinte redação: Art. 17-A. A filiação a partido político é direito de todo cidadão brasileira, vedada a exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade ou requisito de qualquer espécie para o pleno exercício de direitos políticos. Parágrafo único. A candidatura avulsa deverá contar com o apoio e a assinatura de um por cento dos eleitores da circunscrição, na forma da lei, para ser registrada pela Justiça Eleitoral.

Disponível em: . Acesso em: 11 maio 2015. Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: §3º – São condições de elegibilidade, na forma da lei: V – a filiação partidária;

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Com isso, derruba-se a necessidade de filiação partidária para candidatura política e abre-se espaço para candidaturas avulsas no Brasil, colocando o país junto ao amplo rol de países democráticos que permitem candidaturas independentes em pelo menos algumas de suas eleições. Esse é o esforço mais recente feito pelo Congresso Nacional na tentativa de modificar a Constituição de maneira a admitir o registro de candidaturas avulsas, mas não é o único e nem o primeiro.15 Em 2011 a Comissão de Constituição e Jus­ tiça do Senado Federal, seguindo a relatoria do então Senador Demóstenes Torres (DEM-GO), derrubou a proposta de Emenda à Constituição nº 41/11, apresentada pelo Senador Itamar Franco (PPS-MG) à Comissão Especial de Reforma Política. Essa PEC permitia o registro de candidaturas avulsas em eleições municipais, desde que possuísse apoio e assinatura de um por cento dos eleitores daquela circunscrição.

4.2  Argumentos favoráveis e contrários à candidatura avulsa Não foram poucos os argumentos apresentados à época. Em primeiro lugar, a possibilidade de candidaturas avulsas levaria a uma maior fragmentação do já bastante dividido sistema político brasileiro. Além disso, em um momento em que se busca o fortalecimento dos partidos políticos brasileiros em torno de identidades programáticas, a possibilidade de candidaturas independentes seria um verdadeiro retrocesso. Ela não apenas enfraqueceria os partidos, como também estimularia o per­sonalismo atávico da cultura política brasileira. Para além desses problemas de caráter democrático, haveria ainda problemas práticos. Seria extremamente com­ plicado regulamentar os horários de televisão e rádio com candidaturas avulsas. Todos esses pontos levantados são, à primeira vista, bastante persuasivos; mas será que se sustentam? Não há dúvidas de que o quadro político brasileiro encontra-se bastante fragmentado. Um dos principais males do nosso sistema político parece ser a proli­ feração de legendas de aluguel, vazias de identidade programática e instrumentalizadas por partidos maiores. Esses partidos são procurados por indivíduos que, afastados dos partidos tradicionais, desejam participar do jogo eleitoral. Uma vez que a candidatura independente é hoje vedada no Brasil, esses partidos ideologicamente neutros e sem grandes disputas internas acabam se tornando a maneira mais fácil de participar de eleições. Sendo assim, abrir espaço para o surgimento de candidaturas independentes não seria uma maneira de, se não reverter, ao menos conter essa multiplicação

Cumpre mencionar que candidaturas avulsas eram permitidas em outros momentos da história brasileira. O Código Eleitoral de 1932, o primeiro do país, as autorizava. Somente em 1946, com a edição do Decreto Lei nº 7.586, conhecida como Lei Agamenon, que instituía um novo Código eleitoral, a indicação dos candidatos passou a ser monopólio dos partidos políticos.

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de legendas de aluguel? O indivíduo que não se vê representado ideologicamente nos partidos tradicionais ou que não desejasse defender sua candidatura contra as dificuldades impostas por uma elite partidária poderia concorrer em pleitos eleitorais sem a necessidade de recorrer a partidos de aluguel. Sem dúvida, o fato de inúmeras pessoas poderem se candidatar sem depender da filiação a grandes partidos não contém a pulverização do sistema político. Mas não é a fragmentação por si só que é um mal a ser combatido. O que é um mal a ser combatido é a fragmen­tação cau­sada pela proliferação de partidos oportunistas e sem nenhum tipo de compro­ misso programático. Nesse ponto, a candidatura autônoma poderia ser um modo relativamente simples de atacar esse problema. Bastante semelhante é a crítica de que candidaturas independentes reforça­ riam o personalismo político. De fato, já se tornou lugar-comum ressaltar o caráter personalista de nossa cultura política e foge do escopo deste trabalho se deter nesse ponto. Assim sendo, não será questionado aqui se o personalismo é ou não desejável, nem por que ele faz parte da cultura política brasileira. Assume-se desde logo que o personalismo faz, sim, parte da cultura política brasileira e que é um mal a ser atacado. Dito isso, o que será criticado é a coerência interna deste argumento contra a candidatura avulsa. Nesse sentido, é preciso ter em mente que para se criticar as candidaturas autônomas por reforçarem esse personalismo não basta afirmar que elas não tornam o sistema menos personalista, mas que elas o tornam mais personalista. Entretanto, os argumentos nesse sentido não são persuasivos o bastante. Em primeiro lugar, o argumento parece levar em consideração a ideia de que nosso sistema político atual já é excessivamente personalista. Será que a possibilidade de candidatos não filiados a partidos aumentaria esse personalismo ainda mais? Pouco provável. Como discutido mais acima, uma boa parte dos partidos políticos são vazios de conteúdo programático e de uma linha ideológica bem definida capaz de agrupar candidatos ao seu redor. Eles são veículos vazios para que candidatos sem nenhuma coerência e clareza ideológica possam participar de disputas eleitorais. Dessa maneira, o voto do eleitor depende muito mais de sua visão acerca da pessoa do candidato do que sua afinidade com as ideias e com o programa do partido. Permitir candidaturas avulsas não pioraria esse quadro. Uma situação em que eleitores votam em candidatos independentes não é pior do que uma situação em que eleitores votam em candidatos filiados a partidos fracos e completamente secundários. A afirmação de que candidaturas independentes fortalecem o personalismo em detrimento da união política em torno de programas políticos parece pressupor que uma candidatura independente é necessariamente menos ideológica e programática do que uma candidatura partidária, o que é um equívoco. Não existe nenhum motivo pelo qual devêssemos achar que candidato independente vai possuir um programa de

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ação política menos consistente do que um candidato filiado a partido. Mesmo que contingencialmente assim o fosse, essa não seria uma afirmação que dispensaria provas. Enquanto os críticos não forem capazes de apresentá-las, o argumento de que a candidatura independente aumenta o personalismo não se sustenta. Entretanto, a candidatura independente não apenas não agrava o personalismo, ela também pode até mesmo contribuir para diminuí-lo. Mais uma vez, é preciso levar em consideração que a possibilidade de candidatura autônoma diminuiria a pressão pela filiação em legendas de aluguel. Um cidadão que deseje se candidatar a cargo eletivo e não veja espaço para essa candidatura em partidos maiores e tradicionais não mais dependeria de partidos menores e vazios ideologicamente. Bastaria o apoio de uma parcela do eleitorado para que sua candidatura fosse possível, independente da filiação a qualquer partido político. A diminuição da demanda por legendas de aluguel poderia levar a uma redução do estímulo à criação destas legendas. Os partidos deixariam de ser um simples meio para a candidatura de figuras personalistas. Desse modo, a tendência seria a redução de partidos fisiológicos e manutenção e incremento de partidos com mais consistência ideológica. Ainda que pudéssemos pensar em uma situação, como a descrita pelos defensores da tese do personalismo, em que as candidaturas independentes favorecessem políticos personalistas e demagogos, haveria ainda uma linha nítida que separaria os partidos, onde a ação política se dá em torno de ideais políticos bem definidos, de políticos independentes personalistas. Seriam menos comuns situações em que políticos personalistas e centralizadores se alojariam no interior de partidos e suprimiriam sua identidade programática. Em outras palavras, seriam menos comuns situações em que a identidade pessoal desses políticos, em geral carismáticos, termina por engolir a identidade programática dos partidos a que estão filiados. No que tange aos problemas práticos relativos à adoção da candidatura avulsa, como os relativos à regulamentação dos horários de propaganda eleitoral na televisão e no rádio, esses não são muito maiores dos que os já existentes. Além disso, nas circunstâncias atuais, em que se discutem os termos de uma ampla reforma política, seria pouco proveitoso se deter adiantadamente nessas questões. Esse é um debate posterior à reforma política. Existe ainda um importante argumento a favor de candidaturas independentes que parece não ser devidamente levado em conta por seus críticos. A derrubada da necessidade de filiação partidária para candidatura eleitoral é um importante passo no aprofundamento da democracia no Brasil e reconhecimento da pluralidade de discursos e opiniões políticas. Nem sempre o cidadão vê suas bandeiras e ideais políticos refletidos nos programas e na ação dos partidos políticos tradicionais. Nem sempre o cidadão encontra espaço para participação política em partidos políticos dominados por elites e facções. Situações como essa levam a seu afastamento da

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política. Permitir a candidatura avulsa é também trazer de volta esse indivíduo para a política. É dar espaço para que ele possa se candidatar e atuar politicamente livre das inibições geradas por partidos desconectados de seus ideais. Em um momento em que o espaço que separa a política da sociedade parece aumentar a passos largos, uma mudança desse tipo é uma oportunidade singular para construir uma ponte capaz de encurtar essa distância. Mesmo que não houvesse realmente a reversão da tendência pulverizadora do quadro partidário brasileiro, mesmo que de fato aprofundasse o personalismo, essa revalorização da política já seria, por si só, importante o suficiente para justificar a adoção da candidatura avulsa. Assim, ao contrário do que afirmam seus críticos, a candidatura avulsa não agrava o quadro de fragmentação do sistema político. Pelo contrário, ela tem o poten­ cial de diminuir essa fragmentação na medida em que diminui a demanda por partidos de aluguel e com baixa substância ideológica. Com isso, também sairiam fortalecidos aqueles partidos políticos mais ideológicos que, menos reféns de inúmeros partidos fisiológicos e políticos personalistas, poderiam atuar mais com base em suas ban­ deiras e programas. Por fim, sai também fortalecido o engajamento democrático. A necessidade de filiação partidária não mais seria um empecilho a afastar o cidadão de disputas eleitorais e da vida política. A democracia não mais seria monopólio de partidos e oligarquias partidárias, mas seria também um fórum do homem comum, aquele que muitas vezes não se vê representado no quadro partidário existente ou que está pouco disposto a participar de disputas partidárias. Por tudo isso, resta evidente que, ainda que pouco debatida, a modificação no inciso V do §3º do art. 14 da Constituição Federal brasileira, abrindo a possibilidade de candidaturas independentes no Brasil, é mais um passo importante no processo de aprofundamento da democracia iniciado com a promulgação da Carta Constitucional em 1988. É mais que oportuna, portanto, a inclusão dessa proposta nos debates da reforma política por meio da PEC nº 6/15.

5  Conclusão: o que é bom e o que tem que melhorar A democracia não sobrevive apenas nas folhas de papel de uma Constituição. Ela não é um conjunto de regras imutáveis e eternas. Ela é uma prática constante e que exige engajamento não apenas de políticos profissionais e homens de Estado, mas de toda população. Como tal, ela deve ser constantemente aperfeiçoada. Mais importante, ela não deve jamais se distanciar dos anseios da população e dos pro­ blemas concretos da sociedade. Por essa razão, passados mais de trinta anos da redemocratização e mais de vinte e cinco anos da promulgação da Constituição brasileira surge a necessidade de aprumar os rumos da democracia no país. Não se trata de negar os indiscutíveis avanços e sucessos da Carta Magna, mas de pensar, a partir de agora, quais os próximos passos a serem seguidos. Se a democracia não

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é um projeto acabado – mas um processo gradual e progressivo –, cabe agora pensar qual será sua nova etapa. O que se pretendeu neste trabalho foi justamente oferecer mais uma colaboração nesse esforço. Seu norte foi a consciência da necessidade de ampliar os debates e os mecanismos de participação popular. Só uma cultura de democracia, só uma prática de democracia pode levar ao aperfeiçoamento dos mecanismos institucionalizados. Cada uma das propostas aqui debatidas representa um mecanismo importante para a tarefa da democratização brasileira e que devem ser trazidos para o debate de uma possível reforma política. Elas criam novos canais para o engajamento político popular ao mesmo tempo que limitam o poder de governantes e grupos políticos. Nesta última tarefa, é de extrema relevância o papel exercido pelo instrumento do recall. Por meio dele, os chamados representantes do povo não recebem, ainda que minimamente, parcelas do poder político supremo, mas exercem suas atribuições como delegados do povo soberano, perante o qual devem prestar contas de sua gestão. Desde que devidamente regulado para evitar abusos, possui uma extraordinária força como mecanismo de controle dos governantes, sejam eles deputados ou agentes políticos do Poder Executivo. Nos Estados Unidos, especificamente, o instituto é um mecanismo consistente de controle, e, dependendo do Estado da Federação, há previsão de sua utilização para destituição de autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, diretores de escolas e até mesmo de qualquer servidor público, mesmo que não ocupe cargo eletivo. Ele não desnatura a natureza representativa do mandato, não implica a adoção do mandato imperativo. A revogação de mandato é um direito político originário, que permite que o conjunto de cidadãos impeça que um mandatário que não cumpre a sua função a contento permaneça no poder. O parlamentar continua a ser representante do povo, mas o voto destituinte protege o povo, mandante, contra desvios do mandatário, contra o estelionato eleitoral. Com a ameaça do recall sempre presente, os representantes passariam a ter, necessariamente, uma postura mais coerente no exercício dos mandatos. No caso dos Parlamentares, o recall toma proporções maiores, pois se transforma num obstáculo para aqueles que desejam trair a confiança do eleitor, desvirtuando, por completo, a natureza ideológica dos seus mandatos. Em paralelo ao voto destituinte, a possibilidade de candidaturas independentes tem o potencial de desobstruir os canais que ligam a população à política. Nesse momento em que o descrédito dos partidos existentes leva a uma crescente desvalorização da política, permitir a candidatura sem filiação partidária é dar mais uma oportunidade para o cidadão de participar da política institucionalizada. Aquele indivíduo que rejeita os partidos tradicionais, seja por não se ver neles representado, seja por não encontrar espaço dentro deles, não mais necessitaria de legendas de aluguel, sem nenhum conteúdo ideológico, para participar de eleições e defender suas bandeiras no Executivo e no Legislativo. Na mesma linha, também o eleitor

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poderia eleger representantes capazes de defender seus princípios e valores sem as amarras criadas por partidos políticos tradicionais, pouco comprometidos com ideias e mais com seus interesses casuísticos. Não mais a democracia deveria ser refém de partidos oportunistas e sem ideias. Ainda que pouco debatidas, essas duas propostas não são distantes da reali­ dade, e o fato de já existirem Propostas de Emendas Constitucionais versando sobre elas apenas corrobora isso; nelas há um potencial para aperfeiçoar e aprofundar a democracia no Brasil. Ambas criam novos espaços para a participação democrática ao mesmo tempo que são um chamado ao cidadão para a política. É fundamental, portanto, que sejam discutidas não só por acadêmicos interessados no tema da reforma política, mas por toda a sociedade. Este trabalho foi apenas um primeiro passo nessa discussão. Que não seja o último.

What is Good and What Could be Better – Proposals for the Political Reform Abstract: After numerous constitutional successions, the Brazilian Republic has achieved an institutional democratic stability with a constitutional patriotism generated by the 1988 Constitution. However, there is still a long way to go in terms of self-government and popular sovereignty, as Brazilian democracy faces a severe legitimacy crisis due to several factors such as the systemic corruption, the inefficiency of political institutions in serving the public interest and in providing satisfactory public policies. This paper aims to discuss measures that are not being currently discussed in the Political Reform proposals, but that have already been presented in the form of Constitutional Amendment Proposals: recall and independent candidacy. Using documentary research and literature review, we intend to critically evaluate such proposals and argue for their desirability in the present context. Key words: Democracy. Political Reform. Recall. Independent candidacy.

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Rio de Janeiro, 29 de maio de 2015.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): BOGOSSIAN, Andre Martins; DE LUCA, Alexandre Corrêa. O que é bom e o que poderia ser melhor: propostas para a Reforma Política. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 9, n. 32, p. 1023-1045, maio/ago. 2015.

Recebido em: 16.07.2015 Aprovado em: 02.09.15

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