O REGIME DOS PRECATÓRIOS NO BRASIL E A PEC N. 152 DE 2015

May 29, 2017 | Autor: João Victor Archegas | Categoria: Direito Financeiro, Precatórios
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

DIANA DE SOUZA FERNANDES JOÃO VICTOR ARCHEGAS

O REGIME DOS PRECATÓRIOS NO BRASIL E A PEC N. 152 DE 2015.

CURITIBA 2016

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ÍNDICE

1.

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................. 3

2.

A FAZENDA PÚBLICA E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .................... 4 2.1

UM JOGO ONDE NÃO HÁ VENCEDORES ...................................................................... 6

3.

A EMENDA CONSTITUCIONAL nº 30/2000 .............................................................................. 8

4.

A EMENDA CONSTITUCIONAL nº 62/2009: A CHAMADA “EMENDA DO

CALOTE”.................................................................................................................................................................. 9 5.

A PEC N. 152 DE 2015: UM NOVO CALOTE? ....................................................................... 11

6.

CONCLUSÃO ............................................................................................................................................. 12

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................................... 14

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1. INTRODUÇÃO

É notório que o Brasil atravessa uma grave crise econômica e política. As consequências da desestruturação das instituições brasileiras são nefastas e podem ser sentidas em diversos setores da sociedade. Dentre eles, o presente artigo busca dar especial atenção aos reflexos percebidos pelo modelo constitucional de gestão dos precatórios, ou melhor, pelo modelo de pagamento das dívidas da Fazenda Pública oriundas de condenações judiciais. O regime dos precatórios no ordenamento jurídico brasileiro tem sede constitucional. As disposições acerca dos pagamentos devidos pelo Poder Público podem ser encontradas no art. 100 da nossa carta política e no art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Ainda, o constituinte previu uma segunda modalidade para a quitação destes valores, trata-se da requisição de pequeno valor (RPV), que tem sua matéria consolidada no art. 100, §3º, da CF – embora este não seja o objeto do presente trabalho. Ao primeiro olhar, ainda desatento, podemos ficar “tentados” a acreditar que trata-se de um mecanismo célere e de simples funcionamento. Afinal, basta que o poder público pague aquilo que deve, ainda que para isso ocorrer deva haver previsão orçamentária e a edição de um precatório. Realmente, o regime dos precatórios foi pensado e estruturado para assim funcionar, de maneira descomplicada e ágil, garantindo o cumprimento dos deveres da Fazenda Pública, que já foi vencida em juízo e teve a obrigação de dar quantia certa (e líquida) reconhecida por sentença transitada em julgado. O que acontece na prática, entretanto, é um confuso emaranhado de disposições normativas que vão se somando à falta de seriedade na execução das funções administrativas e orçamentárias do Estado brasileiro. Segundo Marçal Justen Filho, o problema da falta de pagamento dos precatórios é crônico e pode ser explicado pela transição histórica entre dois modelos de gestão do dinheiro público. 1 Antes da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000), o poder público estimava as receitas ao seu bel prazer, mesmo que desconectado das reais condições financeiras da administração. As receitas eram fixadas em números suficientes para dar conta das despesas a serem executadas, ainda que não houvesse dinheiro em caixa.

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JUSTEN FILHO, Marçal. Regime jurídico da liquidação das dívidas do poder publico (precatórios e requisições de pequeno valor). In: MARTINS, Ive Granda da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de direito financeiro, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2013, p.312–339.

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Após a LRF, então, o poder público se encontrou proibido de executar gastos que não tivessem prévia correspondência em seu orçamento. Entretanto, ficou facultado à administração a não realização daquelas despesas contidas em lei orçamentária. Assim sendo, mesmo que houvesse dinheiro para quitar as obrigações contraídas pela edição dos precatórios, o poder público optou, sistematicamente, por priorizar gastos em outros âmbitos de sua gestão política e econômica. Somos apresentados, como é sabido, a um desvio sistemático das verbas destinadas aos precatórios. Os precatórios foram sendo acumulados entre exercícios financeiros subsequentes, formando uma “bola de neve” que hoje parece assombrar a realidade socioeconômica brasileira. Temos um “elefante na sala” e já não é mais possível apenas tangenciar o assunto. Em diversos momentos o constituinte derivado tentou dar solução ao “imbróglio dos precatórios”.2 É o caso de duas emendas constitucionais que serão alvo de análise a seguir: a EC n. 30/2000 e a EC n. 62/2009. Ambas instituíram regimes transitórios para o pagamento dos precatórios acumulados e tiveram seus pressupostos amplamente criticados, inclusive perante o STF. O que nos leva a escrever o presente texto, no entanto, é a eminência da aprovação de um novo regime transitório previsto pela redação da PEC n. 152/2015. Iniciaremos, assim, tratando de modo mais aprofundado o tema dos precatórios, passando por discussões acerca do Estado Democrático de Direito, para então analisar criticamente o texto do Projeto de Emenda Constitucional que tramita atualmente no Congresso Nacional.

2. A FAZENDA PÚBLICA E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Ao iniciar qualquer debate sobre o regime dos precatórios é indispensável que apresentemos ao interlocutor um conceito sobre o objeto em voga. Assim, iremos nos valer da definição de Regis Fernandes de Oliveira para quem “precatório ou ofício precatório é a solicitação que o juiz da execução faz ao presidente do tribunal respectivo para que este requisite a verba necessária ao pagamento de credor de pessoa jurídica de direito público, em face de decisão judicial transitada em julgado.”3

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KANAYAMA, Rodrigo. Há solução ao imbróglio dos precatórios?. Publicado em 12/07/2016. Acessado em: 15/08/2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/rodrigokanayama/ha-solucao-ao-imbroglio-dos-precatorios 3 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 523.

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Quando o chefe do Poder Judiciário recebe requisição de tal natureza, ele deve comunicar a Fazenda Pública para que esta efetue o pagamento do respectivo valor devido. É nesse sentindo, inclusive, que Gilmar Mendes aponta para a responsabilidade da função jurisdicional frente a gestão do orçamento e dos gastos públicos, devendo o Poder Judiciário tomar ciência da importância de sua atuação em matéria de precatórios.4 Entretanto, por força constitucional e da estruturação própria ao Estado de Direito, o Poder Público não pode proceder com a execução de uma receita sem prévia dotação orçamentária. É por tal motivo que deverá haver previsão orçamentária incluída em lei para que a Fazenda Pública possa proceder com o pagamento do precatório. Para Marçal Justen Filho, podemos entender que “o Estado de Direito configura-se pela adoção de uma ordem jurídica caracterizada pela submissão dos atos estatais à ordem jurídica, separação de poderes, incidência do princípio-regra da legalidade, universalidade da jurisdição e isonomia.”5 Mais que isso, o Brasil é um Estado Democrático de Direito, sendo inafastável a supremacia dos direitos fundamentais. Decorrência desse desenho institucional é a submissão do Estado às determinações legais e judiciais. Em outras palavras, o Estado só pode atuar dentro dos limites do ordenamento jurídico. Se o Estado transgredir direitos dos cidadãos, este terá o direito e a pretensão legítima de ter o dano reparado por eventual sentença judicial condenatória. Não obstante, quando estamos falando de uma sentença que obriga a Fazenda Pública a dar quantia certa, o pagamento daí decorrente estará sujeito a um regime diferenciado por força da opção feita pelo constituinte. A CF/88, ao prever um regime de pagamento por precatórios, acabou por proibir que a Fazenda Pública cumpra imediatamente com sua obrigação reconhecida em juízo. Existiriam, como aponta o já referenciado administrativista paranaense, três principais argumentos para o constituinte assim proceder. Em um primeiro momento, considera-se que os bens públicos são impenhoráveis (frise-se, no entanto, que a impenhorabilidade só é relevante uma vez que partimos do pressuposto de que o Poder Público não irá cumprir com a sua obrigação).

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MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p.967. 5 JUSTEN FILHO, Marçal. Regime jurídico da liquidação das dívidas do poder publico (precatórios e requisições de pequeno valor). In: MARTINS, Ive Granda da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de direito financeiro, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2013, p.316.

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Em um segundo plano, avalia-se que a utilização dos recursos financeiros públicos depende de prévia dotação em lei orçamentária. Qualquer despesa a ser realizada pelo Estado deve estar previamente autorizada pelo Poder Legislativo. Podemos argumentar que isso decorre do entendimento de que o interesse público deve ser respeitado em sua soberania. Em terceiro lugar, há um número elevado de credores que deverão ter seus créditos adimplidos de maneira isonômica e impessoal. Assim, a sistemática dos precatórios aparece como solução para quitar a dívida em ordem cronológica, evitando que o Estado escolha quais créditos terão prioridade em detrimento de outros. Mais uma vez sentimos os reflexos do princípio republicano na escolha por um modelo que priorize o interesse público acima do privado, evitando a consolidação do patrimonialismo e de outras patologias estatais.

2.1 UM JOGO ONDE NÃO HÁ VENCEDORES

É sabido que o Estado brasileiro acumula uma dívida exorbitante em razão dos precatórios atrasados a serem pagos. Não apenas a União, mas também os demais entes federados. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em levantamento realizado no ano de 2014, os três entes públicos acumulavam uma dívida de R$ 97,3 bilhões em precatórios. 6 Para dimensionar melhor o valor exorbitante que isso representa, podemos coloca-lo ao lado do déficit primário previsto pelo governo central no ano de 2016, em meio a uma das maiores crises econômicas do país. Segundo projeções de economistas e do próprio governo de Michel Temer (PMDB), o Brasil deve sofrer um déficit próximo a R$ 170 bilhões. 7 A dívida em precatórios, portanto, corresponde a aproximadamente 57,2% deste último valor.8 É neste cenário que João Lopes Guimarães e José Fernando Ferreira Brega irão apontar para a maneira com que o modelo de precatórios brasileiro acaba influindo

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CNJ. O que são os precatórios?. Publicado em 02/03/2015. Acesso em 14/09/2016. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/77269-o-que-sao-os-precatorios 7 SIMÃO, Edna; BONFANTI, Cristiane. Governo central tem pior déficit primário para julho da história. Jornal Valor Econômico. Publicado em 30/08/2016. Acessado em 12/09/2016. Disponível em: http://www.valor.com.br/brasil/4693037/governo-central-tem-pior-deficit-primario-para-julho-dahistoria 8 Não há nenhuma correspondência de ordem econômica entre esses dados. Não há aqui, portanto, uma tentativa de defender que se não fosse a dívida em precatórios o país não estaria atravessando a atual crise econômica. Apenas nos valemos de dois números expressivos para este momento da economia brasileira, buscando, assim, munir o leitor de melhores parâmetros para que perceba a gravidade da situação que envolve o modelo de precatórios desenhado constitucionalmente (trata-se de um exercício de dimensionamento do “rombo” representado pela dívida dos precatórios em nível federal).

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negativamente para o interesse de todas as partes envolvidas.9 Trata-se, em suma, de um jogo onde todas as partes estão sujeitas a perdas substanciais e pouquíssimos ganhos. Para os dois autores, os precatórios atrasados e acumulados são um mal para os credores que observam seus direitos sendo desrespeitados, independente de sua condição econômica. É, nas palavras dos juristas, uma “negação da própria prestação jurisdicional garantida pela Constituição.”10 Além disso, ao deixar de pagar o credor, o Poder Público está se valendo dos valores que seriam destinados à quitação dos precatórios para outras finalidades. O particular, portanto, acaba sofrendo uma espécie de “empréstimo compulsório” para o qual não lhe foi dada a oportunidade de consentir. Do ponto de vista do advogado, este se vê muitas vezes questionado pelos próprios clientes que não encontram perspectiva de receberem aquilo que lhes é devido. Além disso, os honorários advocatícios que lhes são reservados não dão conta de suprir os gastos que o profissional deve desprender para realizar o acompanhamento do pagamento dos precatórios. E, como não poderia ser diferente, temos o próprio Poder Público como um dos prejudicados dentro da “arena dos precatórios”. A dívida com precatórios não goza de uma liquidez que permita ao Estado emitir títulos para sua melhor gestão dentro do mercado financeiro. Ainda, os precatórios acabam inflando o poder judiciário de demandas visando, dentre outros aspectos, a revisão dos valores. Parece, no entanto, que o ponto mais grave é aquele relacionado com a perda de confiança, nacional e internacional, no Estado brasileiro, que passa a ser visto como um mau pagador (afinal, quem irá se interessar em contratar com o Poder Público sabendo que eventualmente poderá ter sua dívida congelada dentro do limbo jurídico que representa a constelação de precatórios no Brasil?). Exemplo recente desse movimento foi a agência de ratings Moody’s ter rebaixado a nota de crédito do país frente ao crescimento da dívida pública no início do ano de 2016.11 Ademais, como anota Vincenzo Fiorenzano, as empresas que transacionam com o Estado por meio de licitações são levadas a embutir no preço do produto ou serviço o risco que o sistema de precatórios representa em caso de judicialização de eventual conflito entre as

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GUIMARÃES, João Lopes; BREGA, José Fernando Ferreira. A sistemática dos precatórios: críticas e idéias (sic.) para um novo regime. In: Vários Organizadores. Temas de direito contemporâneo. Campinas: Millennium, 2013, p.95–117. 10 GUIMARÃES, João Lopes; BREGA, José Fernando Ferreira. A sistemática dos precatórios: críticas e idéias (sic.) para um novo regime. In: Vários Organizadores. Temas de direito contemporâneo. Campinas: Millennium, 2013, p. 103. 11 JIMÉNEZ, Carla. Dívida pública em alta faz Moody’s tirar selo de ‘bom pagador’ do Brasil. Jornal El País. Publicado em 26/02/2016. Acesso em 12/09/2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/24/economia/1456323206_794068.html

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partes (encarecendo, assim, os contratos firmados), e, em vez de recorrerem ao judiciário para receber o pagamento, recorrem à propina.12

3. A EMENDA CONSTITUCIONAL nº 30/2000

É evidente a faceta jurídica do problema dos precatórios: como afirmar um Estado de Direito onde o Poder Público descumpre as decisões judiciais transitadas em julgado? Poderíamos, ainda, aprofundar o tratamento da questão, observando sua faceta econômica, referente à alocação de recursos escassos, e social, envolvendo a distribuição e aplicação de recursos públicos: estima-se, de acordo com levantamento realizado pelo STF 13 , com atualização até dezembro de 2007, que 3% do PIB nacional corresponde à dívida dos estados, Distrito Federal e Municípios em precatórios. Desse total, mais da metade diz respeito a precatórios alimentares. Uma melhor análise da evolução histórica dos precatórios se faz necessária para que possamos compreender a atual situação econômica brasileira. O art. 100 da Constituição Federal Brasileira de 1988 dispõe sobre o instituto do precatório; o art. 33 do ADCT trouxe a primeira moratória, de oito anos, para o pagamento das dívidas públicas. Argumenta-se que há inconstitucionalidade neste último artigo apontado; entretanto, sendo ele parte integrante do texto originário da Constituição, não seria possível ativar o controle de constitucionalidade contra o dispositivo, conforme entendeu o STF no Resp. 160486, de relatoria do Min. Celso de Mello 14 . Mesmo assim, poder-se-ia inferir que a finalidade do ADCT seria regular o período de transição entre regimes constitucionais, não devendo ser regra necessariamente permanente. Diante desse quadro de descaso, por parte dos Três Poderes, frente à questão dos precatórios, foi aprovada a EC nº 30/2000, que autorizou o novo parcelamento, dessa vez pelo período de dez anos. Tal medida, segundo Maurício Bugarin15 contribuiu para aliviar o fluxo de caixa das entidades públicas devedoras mas, ao mesmo tempo, concorreu para o acúmulo da dívida; uma vez que os administradores públicos eram desistimulados de saldar as dívidas dos precatórios, devido à expectativa de novos parcelamentos. 12

FLORENZANO, Vincenzo Demetrio. Crise dos Precatórios. Revista de Informação Legislativa, ano 50, n. 200, p. 277. 13 BUGARIN, Maurício; MENEGUIN, Fernando. A Emenda Constitucional dos precatórios: histórico, incentivos e leilões de deságio. Estud. Econ., São Paulo , v. 42, n. 4, p. 673. 14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 160486. Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 11/10/1994, DJ 09/06/1995. 15 BUGARIN, Maurício; MENEGUIN, Fernando. A Emenda Constitucional dos precatórios: histórico, incentivos e leilões de deságio. Estud. Econ., São Paulo , v. 42, n. 4, p. 672.

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Por fim, embora a Emenda nº 30/2000 tenha mantido a preferência dos precatórios de natureza alimentícia, ela acabou subvertendo a ordem de preferência do pagamento ao criar o §2º e §4º do art. 78 do ADCT. Enquanto para o inadimplemento dos primeiros não havia sanção, para os últimos era concedido poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora ou o sequestro de recursos. Os créditos preferenciais foram, então, deixados de lado. 4. A EMENDA CONSTITUCIONAL nº 62/2009: A CHAMADA “EMENDA DO CALOTE”

A Emenda nº 62/2009 recebeu diversas críticas, especialmente quanto ao art. 97 do ADCT por ela introduzido. Já percebemos a contradição que deu embasamento às ADINs 4357 e 4425 ao observar o aumento do prazo de parcelamento para 15 anos. A disposição transitória supracitada deixa evidente a infração ao art. 100, §5º da Constituição Federal, que determina o pagamento dos precatórios até o exercício financeiro seguinte. Tal norma, de acordo com Augusto César Pereira da Silva 16, é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não podendo permanecer sem efetividade, como temos visto na prática do regime dos precatórios, e como procura estabelecer a emenda nº 62/2009 . O texto originário da Constituição é hieraquicamente superior, dotado de imperatividade, e, portanto, afirma-se o direito subjetivo público que possui o credor da Fazenda Pública em exigir o recebimento de seu crédito até o final do exercício financeiro seguinte. Dessa forma, deve prevalecer a supremacia da norma constitucional: os poderes constituídos ou mesmo o império dos fatos e das circunstâncias não justificam seu descumprimento, pois ela é garantia de que direitos e liberdades não serão ofendidos por meio de “empréstimos compulsórios”, mesmo em períodos de crise. Conforme exposto no começo deste artigo, a inadimplência costumeira por parte do Poder Público frustra o credor, desmoraliza o judiciário e viola o Estado Democrático de Direito. Uma solução seria o sequestro das rendas públicas para tal fim, permitido por meio

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SILVA, Augusto César Pereira da. O precatório e a efetividade do processo após a Emenda 62 e o julgamento do STF sobre sua inconstitucionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3601, 2013. (sem paginação). Disponível em: . Acesso em 22 set 2016.

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de uma interpretação sistemática da Constituição, nas palavras de Augusto César Pereira da Silva.17 Destacando-se as alterações mais relevantes da emenda nº 62/2009, tem-se a “obrigação dos entes inadimplentes de depositarem em conta corrente especial um percentual fixo da sua receita corrente líquida (RCL) para saldar a dívida e a transformação do Tribunal de Justiça de cada estado em administrador dessa conta” 18 . Ademais, o pagamento dos precatórios na ordem cronológica de apresentação abriu espaço para novas formas de saldar as dívidas, como, por exemplo, o leilão reverso (o credor que oferecer o maior desconto na dívida do ente federado recebe antes) – outro absurdo (data venia), pois estimula os credores a reduzirem o que lhes é devido quando se encontram em situações emergenciais. A nova EC também trouxe o pagamento preferencial dos precatórios para as pessoas com 60 anos ou mais na data de expedição do precatório. Esta última expressão, no entanto, traz o questionamento da constitucionalidade da norma, pois exclui os credores que completam 60 anos posteriormente à data de expedição. Passaram, então, a coexistir três regimes de ordem cronológica de pagamento dos precatórios: o regime comum, o regime preferencial dos precatórios de natureza alimentícia e o regime prioritário especial. Em 14 de março de 2013, o STF concluiu o julgamento das ADINs 4357 e 4425, ajuizadas pela OAB e pela CNI, com a expressa declaração de inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Emenda Constitucional nº62/2009: a) da expressão “na data de expedição do precatório”, contida no § 2º do art. 100 da CF; b) dos §§ 9º e 10 do art. 100 da CF; c) da expressão “índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”, constante no § 12 do art. 100 da CF, do inciso II do § 1º e do § 16, ambos do art. 97 do ADCT; d) do fraseado “independentemente de sua natureza”, inserido no § 12 do art. 100 da CF, para que aos precatórios de natureza tributária se apliquem os mesmos juros de mora incidentes sobre o crédito tributário; e) por arrastamento, do art. 5º da Lei nº 11.960/09; e f) do § 15 do art. 100 da CF e de todo o art. 97 do ADCT.19

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SILVA, Augusto César Pereira da. O precatório e a efetividade do processo após a Emenda 62 e o julgamento do STF sobre sua inconstitucionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3601, 2013. (sem paginação). Disponível em: . Acesso em 22 set 2016. 18 FERNANDES, André Luiz; SBICCA, Adriana. Os Precatórios e as finanças Públicas Brasileiras. Revista Economia & Tecnologia, v. 7, n. 4, p. 28. 19 ANDRADE, Fábio Martins de. Julgamento da emenda dos precatórios pelo STF: modulação de efeitos. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3786, 2013. (sem paginação). Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2016.

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Para Vincenzo Florenzano 20 , nesse julgamento em conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4357 e 4425, passamos por um verdadeiro “teste de estresse” das principais instituições do Estado Republicano e democrático de Direito. Até o presente momento, foram definidos os efeitos modulatórios da declaração de inconstitucionalidade: ficou mantido parcialmente o regime especial criado pela emenda pelo período de cinco anos, contados a partir de janeiro de 2016. Foi, ainda, fixado um novo índice de correção monetária e estabelecida a possibilidade de compensação de precatórios vencidos com o estoque de créditos já inscritos em dívida ativa. Assim, o regime da EC 62/2009 foi prorrogado parcialmente, sendo mantidas as compensações, leilões e pagamentos à vista, previstos pela emenda realizados até o dia de hoje, vedada a possibilidade de seu uso a partir de então. Pelo prazo de cinco anos, permanece a possiblidade de realização de acordos diretos com os credores de precatórios, observada a ordem de preferência, redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado. A dúvida que nos resta: como será o regime dos precatórios quando findar esse prazo de cinco anos?

5. A PEC N. 152 DE 2015: UM NOVO CALOTE?

Tramita, hoje, no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição n. 152 de 2015. O projeto já foi aprovado pelo Senado Federal em abril de 2016 e foi encaminhado à câmara dos deputados para dar seguimento ao processo legislativo. A PEC em questão irá, caso aprovada, instituir um novo regime especial para o pagamento dos precatórios acumulados pelos entes da federação, criando art. 101 do ADCT. O intuito primordial do projeto é reacreditar o regime inaugurado pela EC n. 62, conformando suas disposições ao julgamento do STF. Como prevê a própria justificação do projeto, de autoria do Senador José Serra (PSDB), atual Ministro das Relações Exteriores, o regime especial segue, em espírito, as exatas mesmas diretrizes da EC n. 62. Assim sendo, os entes federativos poderão optar pelo novo regime especial, comprometendo-se a quitar a dívida dos precatórios atrasados ao final do prazo estabelecido de 10 anos (em contraste com o prazo de 15 anos, julgado inconstitucional, da EC n. 62). O pagamento deverá ser feito pelo depósito mensal, de 1/12, de uma porcentagem (definida de maneira distinta para cada ente da federação) de sua receita corrente líquida. Essa 20

FLORENZANO, Vincenzo Demetrio. Crise dos Precatórios. Revista de Informação Legislativa, ano 50, n. 200, p. 272.

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porcentagem será calculada de maneira distinta para cada ente. Os saldos em atraso serão atualizados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – Especial (IPCA-E) e remunerados por juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, para fins de compensação da mora. Os depósitos serão recebidas por uma conta única a ser administrada pelo Tribunal de Justiça local. Ainda, pelo menos 50% dos recursos serão destinados ao pagamento dos precatórios em ordem cronológica, respeitando as preferências já estabelecidas pelos §§1º e 2º do art. 100 da CF/88. Em linhas gerais, a PEC n. 152 de 2015 não inova no regime especial de pagamento dos precatórios acumulados durante décadas no Brasil, servindo apenas para conformar propostas já desgastadas e conferindo a elas “ares de constitucionalidade.” Como sabemos, em momentos de crise econômica e política, muito dificilmente haverá soluções absolutas para problemas tão graves quanto o acumulo da dívida pública em precatórios. Ainda é cedo para realizar previsões, mas a PEC n. 152 não deve trazer grandes revoluções ao ordenamento jurídico brasileiro e a tendência, ao menos nos próximos 10 anos, é de que o Estado Democrático de Direito continue a sofrer graves golpes e um novo calote em matéria de precatórios.

6. CONCLUSÃO

Estamos diante de um dilema: o pagamento de forma brusca dos precatórios não é viável na atual situação de crise brasileira, por motivos econômicos e financeiros; entretanto, o legislativo também não pode, a livre arbítrio, tomar a decisão de simplesmente deixar de pagar em prazo adequado as dívidas dos precatórios. O descumprimento da Constituição e das decisões judiciais é uma grave violação ao art. XVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, tendo em vista que, como direito de crédito, o precatório integra o patrimônio do titular e é, assim, direito de propriedade. Fica claro, após a exposição do tema, que mesmo após a declaração de inconstitucionalidade da Emenda nº 62/2009, o poder legislativo pode aprovar um novo “calote”, como é o caso da PEC objeto deste estudo. Há uma urgente necessidade de que o poder Legislativo se alinhe com o Judiciário no cumprimento da Constituição. Como muito bem colocado por Vincenzo Florenzano, “fazer a lei valer para o fraco é fácil; difícil é fazer a lei valer para o forte, para aquele que detém poder político, econômico e/ou bélico. Em

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qualquer país, a lei vale para o fraco (cidadão comum). Bem poucos, são, porém, os Estados em que a lei vale igualmente para o forte.”21 A questão discutida aqui somente serve para esclarecer ao leitor a atual situação brasileira sobre o regime dos precatórios, para que coloquemos o problema em pauta, impulsionando o debate sobre o tema e, eventualmente, criar possíveis soluções.

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FLORENZANO, Vincenzo Demetrio. Crise dos Precatórios. Revista de Informação Legislativa, ano 50, n. 200, p. 290.

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