O SAMBA DE RODA EM CENA: APROPRIAÇÕES, INVENÇÕES E PROCESSOS TRABALHADOS PELO CORPO QUE DANÇA

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O Samba de Roda em cena: apropriações, invenções e processos trabalhados pelo corpo que dança Sabrina Marques Manzke1 Mário de Souza Maia2

Resumo Os processos de patrimonialização realizados no Brasil nas últimas décadas, tem possibilitado uma grande movimentação na dinâmica cultural do país. Ao serem evidenciadas manifestações de determinadas regiões, dando-lhes a outorga de símbolos da identidade nacional, possibilita que a difusão destas através de ações realizadas em diferentes partes do país sejam legítimas. Este trabalho aborda a apropriação da corporeidade do Samba de Roda do Recôncavo Baiano, reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil em 2004 e posteriormente, em 2005, como Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela UNESCO. Os estudos se relacionarão com suas origens, sua atuação no cotidiano dos seus grupos praticantes e a sua utilização enquanto performance cênica por grupos não-tradicionais. Com foco na corporeidade e na criação coreográfica enquanto (re)significação cultural, na maneira como os atores expressam seus sentimentos através da dança e da música, a partir de uma pesquisa embasada nos métodos da etnomusicologia e da auto-etnografia, buscarei compreender os elementos técnico-expressivos desta tradição centenária que permeia ritual, religiosidade e ludicidade. O objetivo deste é poder assim estabelecer no meu contexto cultural, uma releitura comprometida a partir de corpos não “tradicionais” desta manifestação. O locus de observação etnográfica será com os bailarinos da Abambaé Companhia de Danças Brasileiras, da qual também faço parte, situada na cidade de Pelotas/RS. A partir deste estudo será possível relacionar como o corpo percebe o samba de roda dentro e fora do seu ambiente cultural. Os resultados aqui apresentados são parciais visto que a pesquisa está em fase inicial.

Palavras-Chave: Samba de Roda; música e dança; corporeidade.

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Aluna do Curso de Mestrado em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Etnomusicologia - Professor Orientador Curso de Mestrado em Antropologia; Professor dos Cursos de Música – Licenciatura e Bacharelado da Universidade Federal de Pelotas. 2

É curioso pensar em como se organiza qualquer agrupamento social. E mais curioso é pensar que qualquer coletivo humano, que possui um certo tempo de convivência, com objetivos comuns, rotina, sistema de organização, possa ser visto como uma “sociedade”. Ao começar a aprofundar o meu olhar antropológico sobre a companhia de danças a qual faço parte, a noção de grupo social dotado de sistemas de organização, símbolos e principalmente de uma cultura específica, se evidenciaram, e percebi que não estava somente no significado da palavra Abambaé a dita “Terra dos Homens”3. Ao começar a pesquisa para a minha dissertação de mestrado, o foco do trabalho estava voltado somente para o processo pelo qual passam os bailarinos desta companhia – que tem como objetivo levar para a cena, através da dança, diversas manifestações populares artísticas do Brasil – para se apropriarem corporalmente de características que são singulares a cada dança, ritual, jogo das diferentes regiões do país e que não fazem parte do seu contexto social. A escolha se deu em torno de uma destas manifestações, o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Patrimônio Cultural Imaterial em âmbito nacional e Obra Prima da Humanidade, no âmbito mundial. Assim eu teria como produto principal de análise a composição coreográfica realizada pela companhia para leva-lo ao palco, ancorada na presença marcante que esta coreografia tem desde que foi criada na companhia: ela tem sido a primeira manifestação que o bailarino tem contato ao ingressar e é muito utilizada no relacionamento que a companhia tem com o público. Por trazer a experiência de bailarina na Abambaé Companhia de Danças Brasileiras, bem como atuação no Núcleo e Folclore da UFPel, a forma como as diferentes expressões coreográficas e culturais são apreendidas em contextos diferentes dos nativos, sempre esteve presente nestas diferentes práticas, especialmente em relação as questões da corporeidade. O que os diferentes movimentos do corpo carregam como informação cultural de quem os cria e produz, e de que maneira são apropriados e (re)significados por grupos de dança de outras regiões? Em se tratando de bens culturais de um tipo especial, como o imaterial, devemos levar em consideração que trabalhamos com “processos ou bens ‘vivos’, cujo principal repositório é a mente, e cujo principal veículo é o corpo humano” (FALCÃO, 2008, p.7).

Abambaé é uma palavra do vocabulário Tupi-guarani que significa “Terra dos Homens”. Ela designa os espaços estabelecidos para cada família, onde era realizado o plantio de suas lavouras de onde tiram o sustento. Seguindo esta lógica, a palavra Tupambaé é a que vai designar a “Terra de Deus”, espaços do sagrado. 3

Assim, tendo o samba de roda do Recôncavo por referência, minha principal questão partia da intenção de entender como bailarinos de outras regiões, informados culturalmente com outros repertórios e com corporeidades regionais se aproximam deste código corporal. O significado que o corpo assume diante da sociedade e suas implicações antropológicas é bastante abordado no trabalho de David Le Breton (2011, p.41) que parte do pressuposto de que “o corpo é uma construção simbólica sobre o qual incide uma diversidade de saberes e representações, evidenciando que esse só adquire significado com o ‘olhar cultural do homem’”. Sendo assim, através do método etnográfico, pretende-se, em um primeiro momento da pesquisa, uma aproximação a este código cultural, na busca de conhecer as experiências corporais nas sociedades sambadeiras tradicionais. Em um segundo momento, o projeto pretende observar os modos de apropriação do samba de roda, no repertório coreográfico da Abambaé Companhia de Danças Brasileiras. Com este propósito já foram realizadas incursões no campo de pesquisa, ao mesmo tempo em que está sendo feita a revisão bibliográfica e de material áudio visual, realizados nos grupos de sambadores buscando, com uma observação detalhada destes, entender os motivos que os fazem entrar em um samba de roda e expressar seus sentidos através da dança, complementada por uma prática, na qual tive a oportunidade de observar o grupo Raízes do Samba de Tocos da cidade de Antônio Cardoso, interior da Bahia, formado por camponeses que vivem na região da antiga fazenda de Tocos. A apresentação se deu no dia 04 de outubro de 2014, através do projeto Sonora Sesc – Tambores e Batuque que levou a cidade de Pelotas quatro grupos que fizeram parte do projeto. Ao considerar o meu campo de pesquisa, duas grandes dúvidas se faziam presentes desde o início do processo: como falar de algo no qual eu estava diretamente ligada? E, numa proporção um pouco maior de preocupação a análise de um grupo que realizava a apropriação de uma manifestação que não faz parte do seu contexto social, ou seja, um grupo situado no Rio Grande do Sul, apresentando manifestações distantes da realizada em seu estado. Minha primeira questão foi sanada ao decidir junto ao meu orientador Mário Maia que um dos métodos que fariam parte da pesquisa seria a autoetnografia. Sendo assim a pesquisa etnográfica, está sendo realizada a partir de duas perspectivas: a da etnomusicologia, “estudo que diz respeito aos usos e funções da música em relação a outros aspectos da cultura” (MERRIAN, 1964, p.47) neste caso dança, religiosidade e ludicidade; e a da autoetnografia já que sou uma das bailarinas da

companhia que se apropria desta corporeidade. “A autoetnografia significa dar conta do que se escuta, do que se sente e do próprio compromisso não só com a temática mas com a ação, ao reconstruir a própria experiência. (...) há uma dupla implicação: o investigador ‘é arte e parte’”4 (SCRIBANO e DE SENA, 2009, p.8). A outra questão, que se reflete diretamente a segunda abordagem do meu trabalho, foi solucionada na medida que mantinha discussões com minha co-orientadora Flávia Rieth sobre a dinâmica cultural e a invenção da cultura proporcionada pela institucionalização dos bens culturais, muitos deles presente no repertório da Abambaé Companhia de Danças Brasileiras, e mais ainda, juntos, os três, eu, Mário e Flávia, ao ressaltarmos a liberdade poética que as artes proporcionam, seja ela em qualquer um dos seus âmbitos. A atuação enquanto bailarina da Abambaé Companhia de Danças Brasileiras, me colocava em campo constantemente, pois não só eu trazia como bagagem os 5 anos de companhia, como durante o ano de 2014 estávamos trabalhando um novo espetáculo somente com manifestações do Nordeste, incluindo o samba de roda, o que exigia uma carga de ensaios maior, além da organização “coxia a dentro”5 de todos elementos que iriam compor este espetáculo, assim como a sua divulgação. Isto me possibilitava lançar este olhar sobre a companhia de diversas instâncias. [...]é possível supor que a autoetnografia está fundamentada em requisitos que têm como base a descrição, a reflexão e a introspecção tanto intelectual quanto emocional não somente do autor, mas dos autores que atuam dentro de um contexto social ou cultural e do leitor que se apropria desses conceitos. Desse modo, nossa perspectiva de uma pesquisa autoetonográfica coloca-nos como leitores da nossa própria cultura (BOSSLE e NETO, 2009, p.134) Cada contexto apresenta conforme suas possibilidades uma forma de se construir culturalmente. O antropólogo não deve mais pensar em modelos prontos e sim estar aberto para presenciar em campo o que não está na teoria, e para além disso, deve ser capaz de levantar novas hipóteses e abordagens que surjam de seus próprios insights. É o

“La auto-etnografía significa dar cuenta de lo que se escucha, lo que se siente y del próprio compromisso no solo com la temática sino com la accíon, al reconstruir la propia experiência. (...) hay uma doble implicación: el investigador ‘es arte y parte’” 4

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Coxia ou bastidores é todo espaço fora da cena, bastidores. Seria o local fora de cena onde os artistas aguardam sua entrada no palco, ou em cena, para fugir um pouca da ideia de teatro e palco italiano.

“ousar, mesmo correndo risco de sermos ingênuos” que Barth oferece quando defende que para além de se ter um conceito fixo de cultura ao chegarmos no campo, devemos é saber usar o nosso olhar para a vida tal como ela acontece naquele contexto. Sendo assim a cultura é vista não mais como uma totalidade e sim como multiplicidade e multivocalidade e sua análise é subjetiva. Essa noção de pluralidade era clara no meu campo, um grupo de dança do Rio Grande do Sul, que possui em seu repertório uma variedade de manifestações do Brasil, sendo que – e isso é muito interessante e será abordado posteriormente – a única região que não possui montagem coreográfica é a região Sul. E apesar de ir à campo informada que o melhor era fazer uma análise despretensiosa, aberta a qualquer informação, eu ainda estava de alguma forma presa a ideia de tentar compreender e retratar este processo de apropriação que o corpo do bailarino passa ao interpretar uma manifestação de outra região. E assim, meu olhar “corria a roda”6 em torno destes corpos dançantes buscando captar as diferentes características individuais que por fim iriam compor um corpo da Abambaé para assim trabalhando em conjunto com os bailarinos “descobrirmos” este processo.

O SAMBA DE RODA

O Recôncavo Baiano é um dos locais onde encontramos descendentes diretos de escravos que foram durante quase três séculos trazidos da África para o Brasil. Tamanha predominância negra faz com que o Recôncavo resguarde práticas culturais que são, a um só tempo, uma síntese das experiências das populações africanas no Brasil, e a evidência da enorme criatividade dos seus descendentes (IPHAN, 2007, p.28)

Uma dessas práticas, que eram vistas como festa ou forma de divertimento dos negros, é o que hoje conhecemos como samba de roda. Mas longe de apenas um divertimento, é uma das formas de cultuar seus santos protetores, em sua maioria orixás sincretizados pelos santos católicos, e mostrar sua religiosidade. Nestas festividades o samba de roda acontece em conclusão aos trabalhos espirituais e rezas. Porém não 6

Termo usado pelos sambadores ao definir o movimento que ocorre ao se dançar o samba de roda. Os homens tocam os instrumentos musicais e os sambadores – em sua maioria as mulheres – entram na roda e em sentido horário correm a roda passando em frente ao grupo musical, com maior ênfase aos tambores o qual fazem uma reverência até sair e dar lugar a outro(a) sambador(a). Vale deixar claro que a manifestação possui tipos diferentes e, estes, variações coreográficas e musicais dependendo da região do recôncavo. Porém dois dos tipos são mais comuns, o samba corrido e o samba – chula.

somente nestes momentos o samba de roda acontece, sendo indispensável em festas pagãs como por exemplo o carnaval, o que acentua o caráter dinâmico desta manifestação de negros permeando entre o sagrado e profano, ou, o céu e a terra. Reconhecido como uma das matrizes do notório símbolo nacional, o samba de roda possui origens africanas de extrato Bantu formador de boa parte da cultura afrobrasileira, e não necessita período ou lugar exclusivo para acontecer. Porém, em algumas festividades ele é indispensável, como nas festas tradicionais religiosas que, na Bahia, incluem tanto o catolicismo quanto as afro-brasileiras, além de ternos de reis, bumbameu-boi, e também no carnaval. Manifestação musical, coreográfica, poética e festiva, a disposição de seus participantes é em círculo ou formato aproximado, por isso o nome samba de roda. Segundo a pesquisa realizada para a composição do Dossiê Iphan – Samba de Roda do Recôncavo Baiano, podemos estabelecer dois grandes tipos: o nativo, mais recorrente em todo o recôncavo, chamado de samba corrido; e o samba chula, que é um tipo que se encontra na região de Santo Amaro e municípios vizinhos, e ainda entre eles pode ter pequenas variantes. Este também pode ser encontrado com os nomes de samba de parada, amarrado ou de viola. As principais diferenças entre os tipos de samba é a relação estabelecida entre a dança e a música. De forma resumida pode-se dizer que “no samba chula, a dança e o canto nunca acontecem ao mesmo tempo, (...) enquanto no samba corrido, ao contrário, dança, canto e toques acontecem simultaneamente. (...) no samba chula apenas uma pessoa de cada vez samba no meio da roda; enquanto no samba corrido podem sambar uma ou várias pessoas ao mesmo tempo no meio da roda” (IPHAN, 2007). A riqueza desta expressão como bem cultural, encontra-se na sua amplitude. Inclui dança, música, poesia, devoção e ludicidade. Segundo o povo baiano, “a alegria máxima do samba reside em fazer parte dele, em sambar (...) desfrutando o samba de roda através de todos os sentidos, mas também através de ações físicas, as quais transformam, é claro, a maneira como o corpo o percebe” (IPHAN, 2006, p.71). Desta maneira, podemos levar em consideração que o corpo possui uma bagagem cultural que torna-se parte de como uma sociedade imprime sua cultura e expressões. No caso do samba de roda que como citado acima possui diferentes técnicas, estilos, envolve dança e música, relação entre o feminino e o masculino, buscar um entendimento dele abordando como o corpo age, e como ele identifica a expressão torna-

se relevante. Diferente do que pensa o senso comum, o samba não possui apenas uma forma de dançar, e que esta seria comum em todo o país. Ao se debruçar sobre esta questão, logo percebe-se que as particularidades deste samba são completamente diferentes.

O PROCESSO INICIAL DE APROPRIAÇÃO

Ao ingressar na Abambaé Companhia de Danças Brasileiras, o samba de roda é a primeira manifestação ao qual o bailarino tem contato. As inquietações acerca de seus princípios básicos surgem ao desfazer nossa ideia de que o samba, independente da sua forma, é dançado de uma única forma. Como o samba é um símbolo nacional, acreditavase que ao aprender o samba de roda, sua técnica não será muito diferente: utilizar principalmente os pés em meia-ponta, corpo e braços completamente livres e uma postura, principalmente nas mulheres, altiva e exuberante. Ao iniciar o processo de aprendizagem da coreografia, percebemos que as particularidades deste samba são completamente diferentes, mesmo sendo o samba de roda uma das matrizes do samba acima descrito. O primeiro desafio é descontruir esta ideia única que se tem a respeito do jeito de dançar um samba, pois uma das frases mais ouvidas por nós era: “não sambem na ponta dos pés”. A partir daí entendemos que compreender os elementos técnico-expressivos da dança no seu contexto de origem é uma premissa básica para possibilitar uma releitura honesta e comprometida, que, no nosso caso, tem um objetivo final cênico. Assim, influenciada pelos diretores da companhia que sempre nos incentivaram a estudar o que estávamos dançando, e não ficar apenas com o conhecimento que era passado por eles, parti para este trabalho de investigação sobre o samba de roda que acabou se transformando em um projeto de mestrado. Durante este período, a busca por documentos sobre a manifestação, tanto científicos quanto através de repertórios em vídeo dos próprios grupos tradicionais foram tomando parte do meu trabalho. Além do já citado, uma série de experiências etnográficas complementam o método como: observação dos ensaios da Abambaé, viagens de estudo e viagens para festivais de folclore onde pude ter contato com outros grupos que trabalham com danças folclóricas. Depois de quase um ano tendo o samba de roda como objeto de pesquisa de fato, já no mestrado, e não só mais como uma pesquisa para conhecimento para o palco, tive a oportunidade de estar em frente a um grupo tradicional da manifestação. O contato

se deu em uma apresentação de um projeto nacional que fez uma turnê com diferentes manifestações tradicionais do país que possuem como “base” o tambor. Em minhas pesquisas, entre outros aspectos, tenho procurado refletir, inicialmente, sobre a dicotomia do aprendizado teórico com o que tenho encontrado em campo. Neste processo, ocorre uma verdadeira desconstrução (e imediata reconstrução) no pesquisador, sendo surpreendido pela experiência etnográfica. O samba de roda não é uma manifestação de palco, organizada para estar em cena, ela está presente como citado acima em algumas festividades religiosas, mas também é uma forma de diversão, de confraternizar após um longo dia de trabalho, um aniversário, um casamento, entre outras situações. Porém, meu trabalho começou ao questionar como se dá a interpretação que um grupo de danças brasileiras faz desta manifestação para levala até a cena, do terreiro ao palco. A oportunidade de observar a performance do Grupo Raízes do Samba de Toco, no projeto Sonora Sesc, foi muito interessante justamente por ser feita pelos próprios nativos, esta transposição para o palco. Assim, desde suas primeiras falas, eles faziam questão de deixar claro que eles não eram músicos, nem dançarinos, nem muito menos artistas, apesar de estarem naquela situação de palco – público, eram apenas representantes da sua cultura, que estavam viajando pelo Brasil, por diversos estados, diversas cidades, somente para mostrar o que para eles é natural se fazer. Etnograficamente constituiu-se em importante momento de junção de questões teóricas com a própria realidade de uma performance. Em geral, o samba de roda usa como passo principal o samba chamado miudinho, que nada mais é do que “um leve e rápido pisoteado, com os pés na posição paralela e solas plantadas no chão” (IPHAN, 2007, p.53). É a partir dos pés que nasce o movimento do restante do corpo, e assim a dança de desenvolve, com maior destaque da cintura para baixo. Embora o passo do miudinho seja, em amplitude, pequenino, ele proporciona locomoção cômoda devido à velocidade na qual é executado. Esta locomoção ademais, pode ser feita para qualquer direção sem sair do miudinho: para frente, para os lados ou para trás, de acordo com o desejo da sambadeira (IPHAN, 2007, p.53)

Anteriormente, foi mencionado que há variações do samba de roda, como por exemplo o samba chula e o samba corrido. O andamento da pesquisa tem demonstrado que o estilo que mais se aproxima daquele que buscamos mostrar em nossa companhia é o samba corrido, devido a postura adotada pelos bailarinos em comparação com a postura das sambadeiras.

Neste tipo, a coluna vertebral de quem está dançando é mais flexível, proporcionando uma maior sinuosidade do movimento corporal, onde os joelhos e cotovelos ficam semi flexionados dando mobilidade no movimento de ir e vir. Ainda neste caso, apesar de os pés continuarem plantados no chão no passo do miudinho, há mais velocidade, amplitude e liberdade: “os pés se separam e podem às vezes sair do paralelismo e formar um ângulo agudo; os calcanhares elevam-se um pouco mais” (IPHAN, 2007, p.54). Além disso a utilização dos ombros por vezes se faz presente, sendo ambos sacudidos e agitando assim todo o corpo. A cabeça e o olhar também possuem maior liberdade podendo se dirigir para várias direções, diferente do samba chula onde a cabeça se mantém ereta e o foco do olhar está dirigido para o chão, observando o passo. Acredito que esta forma do samba de roda seja a mais fácil para uma aproximação da corporeidade, visto que é mais flexível e próxima ao que estamos acostumados, mesmo que ainda seja diferente do samba, símbolo nacional, dançado em todas as partes do país. Mas isto só será possível afirmar em uma próxima etapa deste trabalho, quando buscarei após uma maior inserção em campo, traçar um paralelo entre a dança em corpos tradicionais e não-tradicionais desta manifestação. Lembrando sempre que nosso objetivo final é o de uma releitura aproximada com a finalidade de espetáculo cênico, houve alguns contrastes e semelhanças que pude apontar em uma análise inicial. Por exemplo: a roda girar no sentido anti-horário como semelhança e o papel do homem e da mulher, como uma possível diferenciação do que é a manifestação e o que fazemos na companhia. Geralmente, quem dança são as mulheres e aos homens cabe o papel de fazer o samba, ou seja, são os músicos. Porém em nossa realidade, ambos são sambadores e os músicos – quando estão presentes, o que não acontece em todas as apresentações – não estão inseridos na roda. Embora esta seja a característica na maioria dos tipos e grupos pesquisados, há exemplo de variações coreográficas que coincidem com a releitura da companhia Abambaé. É o caso do grupo chamado Samba de Capela, da cidade de Conceição do Almeida, que é formado por homens e mulheres que dançam a coreografia juntos. Neste caso estes homens não são os músicos, ficando estes últimos em local fora do espaço da dança. Após estas primeiras inserções etnográficas, das pesquisas teóricas e observação de um grupo tradicional, foi realizada junto a Abambaé, uma oficina teórico-prática sobre o samba de roda, trazendo seu histórico, características, tipos e os aspectos principais de

sua composição coreográfica. Notou-se que após a oficina, os bailarinos já responderam corporalmente de outra maneira, agora mais informados a respeito da manifestação. Mesmo não tendo a corporeidade natural dos agentes deste bem imaterial, a experiência etnográfica tem me proporcionado novos entendimentos sobre o samba de roda que, compartilhados com os integrantes da Abambaé, transformam os modos do pensar coreográfico da companhia sobre o repertório de danças brasileiras.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Esta primeira abordagem junto a companhia fez parte de um processo preparatório para o segundo momento da pesquisa, que será a análise de como estes corpos não tradicionais se comportam ao fazer a apropriação e ressignificação da manifestação para o contexto cênico. Para além desta análise corporal, o trabalho realizado até o momento possibilitou outras reflexões. Na etnografia realizada junto ao grupo tradicional, algumas dúvidas foram tiradas a respeito da técnica do samba, do molejo do corpo e entre outros. E pude presenciar algo que eu sempre lia sobre o caráter inclusivo do samba de roda. Mais para o final da apresentação que foi de quase 2 horas, uma das sambadeiras falou sobre este caráter inclusivo do samba de roda e o público foi convidado a levantar e sambar com eles. Foi um momento de integração muito interessante. Muita gente levantou, incluindo a mim, crianças que estavam presentes, senhoras, homens, mulheres, sem muita restrição, foram participar. Pessoas que não se conheciam sorriam umas para as outras, dançavam juntas, se davam as mãos. E as duas sambadeiras entre todos, em sua maneira de correr a roda fizeram com que a gente se divertisse muito. Eu já vinha pensando o samba de roda na companhia, mas presenciar um samba de roda contribuiu para compreender outras questões que estão além de uma composição coreográfica para o palco. Foi a partir daí que finalmente enxerguei aspectos da companhia que até então passavam despercebidos, seja por eu ser parte e achar tudo natural, seja por realmente nenhum de nós, inclusive a direção e os criadores da companhia não terem percebido que ao trabalhar com a cultura brasileira, tentando levar para o público tanto nacional quanto internacional, uma visão de Brasil, se criou uma nova cultura, e o samba de roda estava diretamente ligado e influenciando essa forma de (re)significar a cultura brasileira.

Volto aqui aquela segunda questão que me ocorria no início da minha pesquisa, um grupo gaúcho que representa uma manifestação que não é sua. Mas, como não é sua? Ao longo de vários anos, buscou-se uma unidade que fosse moldando a identidade nacional do Brasil. Ao aprofundar os estudos nesta direção, diversos intelectuais contribuíram para esta consolidação7 de uma cultura nacional que é pautada na pluralidade das regiões e na diversidade cultural das mesmas. As atenções voltaram-se para a cultura popular e as diferentes manifestações folclóricas que mantidas por uma memória coletiva contribuíam na construção ideológica8 de uma memória nacional. Cabe aqui abrir um parêntese acerca de memória coletiva e memória nacional: [...] a memória coletiva deve necessariamente estar vinculada a um grupo social determinado. É o grupo que celebra sua revificação, e o mecanismo de conservação do grupo está estreitamente associado à preservação da memória. [...] a memória coletiva só pode existir enquanto vivência, isto é, enquanto prática que se manifesta no cotidiano das pessoas. (ORTIZ, 2012, p. 133) Memória nacional e identidade nacional, são construções de segunda ordem que dissolvem a heterogeneidade da cultura popular na univocidade do discurso ideológico. [...] A memória nacional opera uma transformação simbólica da realidade social, por isso não pode coincidir com a memória particular dos grupos populares. O discurso nacional pressupõe necessariamente valores populares e nacionais concretos, mas para integrá-los em uma totalidade mais ampla. [...] O Estado é esta totalidade que transcende e integra os elementos concretos da realidade social, ele delimita o quadro de construção da identidade nacional. (Idem, p. 138)

Sendo assim, toda manifestação “escolhida” para representar a cultura brasileira, apesar de ter um contexto e um grupo social própria, parte para um todo maior constituído essa identidade do “ser brasileiro”. E se a cultura popular é heterogênea, podemos falar então em culturas populares que juntas resultam em uma só.

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É importante termos em mente que essa consolidação de uma cultura nacional, deu-se através de uma construção ideológica do Estado. O processo para esta construção vem de uma busca pelo nacional, alicerçada na fala de intelectuais que contribuíram diretamente nesta constituição do que é ser brasileiro, do que representa ou não esta identidade nacional. Para além disso, surgem os patrimônios que dão significado a esta identidade, patrimônios estes que são institucionalizados pelo Estado para serem representantes desta cultura brasileira, serem parte daquilo que remonta um passado coletivo e identificam este povo. O Estado, hoje representado pelo IPHAN, é quem escolhe o que é ou não relevante para integrar esse “passado” e presente que remonta e constitui o Brasil, “o que é nosso” e deve ser conservado. 8 “A ideologia se define como uma concepção de mundo orgânica da sociedade como um todo (ou visando uma totalidade) e como tal age como elemento de cimentação da diferenciação social” (ORTIZ, 2012, p. 136;137).

Pensar que, mesmo em um discurso de segunda ordem, sim, possuímos uma cultura brasileira, constituída pela diversidade cultural de suas regiões, mostra então, que antes de ser gaúcho, baiano, paulista, somos brasileiros, e assim sendo possuidores de uma identidade nacional, torna-se legítimo transmitir como sua, uma manifestação mesmo que esta não tenha sido apreendida e preservada no seu contexto social regional. A Abambaé, possui em seu repertório manifestações diversas, contemplando quase todas as regiões do Brasil, em dois espetáculos (ainda vigentes no grupo): Amanajé e Sóis. A principal motivação ao ser constituído, foi apresentar a grupos internacionais que vinham a cidade de Cruz Alta – local onde a companhia foi fundada – participar de um festival de folclore, o que mais havia no Brasil a não ser as manifestações apresentadas pelos grupos de danças gaúchos que em sua maioria traziam apenas o que temos instituídos pelo MTG9 como manifestação do Rio Grande do Sul. Estes eram os grupos que representavam o Brasil, mas apresentavam apenas o “folclore” da sua região, do seu contexto social (o que é muito comum em outras regiões). Ao começar a constituir um repertório que apresentasse a diversidade cultural existente no país, os integrantes partiram do Norte e Nordeste, após passando pelo Centro-Oeste e Sudeste. Existem dois motivos pelos quais a região Sul ainda não foi montada: primeiro, na ocasião a intenção era mostrar o restante do Brasil, além do que os grupos regionais apresentavam; e segundo, e acredito que mais importante: acreditar que a região sul e principalmente o Rio Grande do Sul possui diversas manifestações e que não são reconhecidas como tal, pois o que se apresenta hoje é muito do que o MTG instituiu como manifestação artística gaúcha, e isso deixa de fora muitas outras manifestações. Por este motivo, a companhia encontra-se em processo de pesquisas, em parceria com o Núcleo de Folclore da UFPel e o Grupo de Pesquisas Observatório de Culturas Populares, onde está mapeando estas manifestações para após montar o quadro coreográfico que as represente. Foi através desta visão mais amplas das ideias de como representar o Brasil através da sua dança, que partindo da análise do Samba de Roda, comecei a enxergar uma dinâmica cultural própria da companhia. Cada manifestação escolhida é (re)significada para o contexto cênico, mas para além disso, é a forma como a Abambaé escolheu para representa-la. O movimento tradicionalista teve seu ápice no ano de 1948 com a criação do “35 CTG” por um grupo de jovens que sentiam a necessidade de resgatar os costumes gaúchos. Na prática, é a criação de núcleos – os CTG’s – para realçar os valores tradicionais, através de atividades artísticas e convívio em grupo. Assim propagou-se muito das danças, das indumentárias, dos costumes que estavam sendo abandonados. 9

As culturas regionais, como tudo no âmbito da cultura, possuem elementos de inovação e elementos tradicionais, o que constitui a dinâmica cultural, que é tão móvel e ambígüa quanto a sociedade em que está inserida. Assim, a morte de certos padrões culturais apenas significa que as situações que lhes deram origem não mais existem ou foram alteradas para enfrentar novas situações (DURHAN, 2012)

Pela dimensão geográfica, é muito difícil que possamos conhecer todas as manifestações que o país possui. Ao entrar para a Abambaé Companhia de Danças Brasileiras, o bailarino, em sua maioria do sul, é apresentado a esse “brasil” constituído por ela, e representado por ela, tanto para o público nacional quanto para o internacional. É a “Terra dos Homens” onde cada bailarino que é ou que foi da companhia passa a fazer parte. Uma terra com uma dinâmica cultural própria, uma forma de ver a cultura brasileira e de ser essa cultura brasileira. Essa dimensão que o campo me mostrou, de um lugar onde eu estou inserida e sentia, mas não havia vislumbrado, aparece em um depoimento de uma das interlocutoras do meu trabalho pela passagem dos 10 anos da companhia que se comemora este ano.

Há mais ou menos 4 anos fui convidada a conhecer um novo mundo. Fui percebendo, admirando, dançando e me reconstruindo como bailarina, pessoa, artista. Ressignifiquei a dança no meu corpo, na minha mente e na minha alma. E minha vida também. É uma aprendizagem constante, uma luta a cada ensaio, são encontros com realidades diferentes. Um amor que nunca cessa. Ganhei amigos verdadeiros, pessoas que já conhecia de outros caminhos e que ali, naquele mundo, se fizeram mais que conhecidos para mim. São meus irmãos. Encontrei almas amigas de idas e vindas. E com certeza de outras vidas. Neste mundo eu realizo meus sonhos, me encontro e me perco. E me acho. Me sinto mais uma. Me sinto estrela. Me sinto humana. Converso, danço, discuto, danço de novo, me calo e danço mais uma vez. Sorrio e choro. As viagens, a energia desse mundo, até suas desestabilidades são marcantes. Mas tem uma passagem que me marca e me faz cada vez mais pertencente e apaixonada por ele: Quando estive morando fora por um tempo, fora até mesmo de mim, procurei no meu coração o que me faria voltar. Onde era o meu lugar, o que me faria feliz todos os dias, em todos os momentos, o que me faria crescer, o que me faria mais EU. E então, em um dos nossos encontros nas minhas viagens a Pelotas em que eu não sabia onde ficar eis que escuto o seguinte. ‘Não importa onde você está, ou tu és abambaense, ou não é. Só quem sente e vive sabe o que é ser abambaense. Não somos apenas bailarinos que se encontram para dançar. Somos amigos que dançam. E isso não é para qualquer um, pois acredito que estamos onde devemos estar e que isso

nunca é por acaso’ (Thiago Amorim). Era o que eu precisava ouvir. E sentir. Respirei, pensei. Me senti em casa. E aqui fiquei. E desde então eu falo com muita certeza: Sou abambaense. Hoje, reverencio esse mundo de amor, de arte e por fazer das nossas danças, uma constante busca de uma mostra respeitosa da nossa brasilidade, de nossas raízes e diversas identidades. Orgulho dessa história, dessa vida, das vidas que criaram essa companhia. Abençoados sejam Thiago, Jaciara, Ste, Igor e claro, que nossa anja criadora Jana Jorge comemore conosco, do céu, nossos 10 anos. Agradeço pelo melhor convite da minha vida, o presente de pertencer a essa "Terra dos homens". (Íris Netto, bailarina e assistente artística)

Apresentar esta brasilidade como fala a bailarina, passa por ter a consciência de que cada pessoa possui traços culturais e corporeidade distintas de acordo com a região onde nasceu. E ao trabalhar com bailarinos, com diferentes influências a partir da dança, estas distinções não aparecem apenas quando se trabalha a apropriação da corporeidade de uma manifestação de outro contexto cultural, aparece também na própria formação do bailarino. Então, tem-se muito claro que não podemos chegar a uma apresentação onde a corporeidade de diferentes manifestações vai ser a mesma do que os corpos tradicionais apresentam. Tão pouco será uma corporeidade homogenia visto que somos diretamente influenciados por diferentes traços destas culturas que nos cercam. O que podemos encontrar como característica da própria companhia, uma corporeidade diversa, representando uma cultura diversa, através de uma visão própria.

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