O título desse texto? SUMIU

June 2, 2017 | Autor: A. Fernandes Jr. | Categoria: Performance, Dance, Performative Writing
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O título desse texto? SUMIU!!!

Depois de alguns dias pensando e sofrendo para escrever esse texto, finalmente, sento com meu computador e começo essa tarefa. Confesso que fazer esse movimento não está sendo fácil. Levanto, ando um pouco pela casa, pego um pouco de café para beber e tento com isso conter meu estado de ansiedade, pois as idéias viajam em minha mente tão rápido quanto as informações que me chegam através da internet, de um emaranhado de possíveis conexões subjetivas, textos que venho lendo e outras referências. Levanto-me novamente, bebo mais café, no meu aparelho de som, Philip Glass toca seu piano de maneira insistentemente fluida e melancólica para a trilha do filme “As Horas”, isso me põe num transe quase hipnótico e facilita minha escrita. Lembro do filme, a estória da Sra. Woolf, Sra. Dalloway e Sra. Brown. Lembro do que mais me chamou atenção nesse filme, sua estrutura, sua sobreposição de tempos/espaços e realidades distintas, enredadas a partir da escrita de um livro pela Sra. Woolf (1920), no momento em que ele é lido pela Sra. Brown (1950) e vivido pela Sra. Dalloway (2001), em sequências de imagens simultâneas das angústias pessoais vividas pelas personagens. A morte assombra esses três momentos do filme, como o grande medidor de sua duração, em contraponto com a música que sugere uma continuidade enfadonha. Sempre, como coreógrafo, penso minhas danças numa relação direta com o cinema ou vídeo-clip, o movimento surge como uma imagem mental, para se (des)materializar no corpo em movimento. Nesse momento, coreografo a minha escrita refletindo sobre o esvair do movimento. Nesse ensaio, o movimento que “morre” é minha maior pulsão, talvez eu não chegue a terminá-lo, talvez esse não tenha como objetivo um fim, talvez ele se encaixe melhor no presente do que no relacionamento de presente com o passado ou o futuro. As imagens vêm fortes à medida que a música de Glass se torna mais intensa.

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FLASHBACK 1: Hoje a tarde estive no hospital para visitar meu pai, que está internado para tratar de uma ferida aberta que não cicatriza. {[Uns anos antes]: Recebi hoje a notícia que meu pai sofreu um AVC Isquêmico – Acidente Vascular Cerebral, (um derrame!) e ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Deslocome de Salvador para Vitória da Conquista e vou direto para o hospital, após 8 horas de viagem. Estava com meu cabelo descolorido, depois de uma experiência estética mal sucedida e lembro que sua primeira pergunta foi: “Que cabelo é esse rapaz?” nem na cama de hospital ele deixava de perceber meus movimentos, minhas mudanças. As horas se passaram e eu voltei para Salvador, os dias se passaram e meu pai saiu do hospital e começou suas sessões de fisioterapia que lhe ajudaram a recuperar um pouco da possibilidade de andar, com o auxílio de uma muleta de alumínio. Com isso, pode recuperar também um pouco de sua autonomia, que em parte fora perdida por conta do AVC. Em uma dessas sessões ele machucou a perna esquerda e conseguiu uma ferida que, por conta de uma bactéria hospitalar não cicatrizou}. Ele parecia mais magro que a última vez que o vi e sua perna não parecia nada bem. Apesar do curativo cobrindo o ferimento, uma tonalidade púrpura tomava conta de sua perna. Ajudo-o com sua refeição, da qual ele reclama bastante, por não gostar de comida de hospital. Quando terminamos, me despedi dele. Antes de eu me afastar ele me pergunta com os olhos marejados: “Jú, você lembra quando eu te ensinei a andar de bicicleta, lá no campo do Botafogo?” me comovo com a pergunta e respondo: “esse momento eu não esqueço nunca!”, dou meu beijo de despedida e saio... (Vitória da Conquista, 09 de outubro de 2010). Pensar em meu pai impossibilitado de andar, numa cama de hospital e lembrar de seus olhos marejados, quando me perguntou sobre o momento em que ele me ensinou a “andar de bicicleta”, me faz questionar: Por que ele lembrou disso? Será seu medo de não poder mais andar que trouxe essa memória de volta? Ou será uma

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tentativa de manter vivo um movimento que está desaparecendo e, por isso, suas lágrimas melancólicas? Será que ele imaginaria que eu poderia vir a escrever sobre isso? Lembrei de Phelan (1995) dizendo: “Escrever permite uma pessoa nomear outras, mas o escritor procura sempre outra voz para chamar seu nome mais tarde, após sua face e mãos tiverem desaparecido”.

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Quando escrevo sobre esse momento

meço a minha própria duração, a partir do movimento da lembrança que meu pai trouxe. Eu o vejo lembrar e ele percebe a partir daquela lembrança seu próprio desaparecimento como também o meu. Phelan (1995) explica: Nosso “próprio” corpo é o único que temos e a história daqueles que perdemos. Nosso corpo é tanto interno quanto externo, invisível e visível, doente ou sadio, vivo ou morto. Cheio de cacoetes e traseiros o corpo se move como um dançarino desajeitado tentando associar-se a alguém que ele não pode ver ou ocupar-se totalmente (Phelan, 1995, p.209). 2

Enquanto escrevo, percebo outro movimento acontecer, os flashbacks criam dentro da estrutura desse texto camadas de realidades, da mesma forma que as vi na tela do cinema quando assisti “As Horas”, pela primeira vez. Esse filme possui uma relevância especial pra essa escrita com sua idéia de tempo que dilui, desgasta e esvazia. O tempo em “As Horas” tem uma qualidade contínua, ácida e fluida que queima e torna cinza aquilo que está sob seu manto. O tempo passa como as águas do rio que atravessa Richmond na Inglaterra e que leva embora, no início do filme, o corpo da Sra. Woolf, esse tempo leva também, aos poucos a perna de meu pai. Percebo movimentos involuntários, espasmos, olhos pesados e, minha coluna reclama muito. Sinto-me como a Theresa M. Senft em seu texto “Spare Parts”, tendo que escrever seu texto para Prodigy e desconsiderando a indicação médica de não ficar sentada muito tempo na frente do maldito computador. Possuo uma hérnia discal que pressiona o nervo ciático, assim como a Theresa Senft, e esta me causa muita dor, mas minha maior preocupação é o meu deadline. O passar das horas na minha realidade imediata, torna-me vulnerável a uma crise epiléptica, preciso dormir um pouco...

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Tradução minha Tradução minha.

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FLASHBACK 2: Há uma semana havia ganhado minha bicicleta Monark Monareta verde metálico com coxim marrom e estava ansioso pelo cumprimento da promessa que meu pai havia me feito de, no sábado, me levar para pedalar. Sábado chegou e lá estava ele, no meu quarto, me acordando cedo, (uma das coisas que eu menos gosto é acordar cedo, mas não me importei, pois o meu desejo de aprender a guiar aquela bicicleta era maior que qualquer preguiça de me levantar da cama). “Vamos! Levante pra irmos pedalar, você quer, ou não?” Lembro-me dele no campo do botafogo, no bairro São Vicente em Vitória da Conquista ao meu lado, me dando segurança, ele falava sobre noções de equilíbrio e foco. “Distribua seu peso, equilibra, equilibra, olha pra frente e mantenha o guidão da bicicleta sempre na direção que você está indo, pra você não cair, olha pra frente...” (Vitória da Conquista, em algum momento de minha infância). Talvez essa tenha sido minha primeira aula de dança. Os princípios de movimento e noções básicas de equilíbrio, distribuição de peso e foco para se mover no espaço são elementos fundamentais em qualquer aula de dança, dessa forma, o que aconteceu foi uma aula para “dançar de bicicleta”. Nesse aspecto a “dança” como sugere Phelan (1995): “[...] é uma moldura representacional que sempre convida a uma interpretação da atividade.” Quando meu pai me oferece, mais uma vez, a memória da minha bicicleta, ele tenta, inconscientemente, com isso, obter a resposta para tudo aquilo que ele estava vivendo. Lacan explica: “Nós podemos somente oferecer aquilo que não temos. Mimetizamos para o outro aquilo que pensamos o outro querer, então o outro nos mostrará o que desejamos. Nosso desejo é sempre a interpretação disto pelo outro.” (Lacan apud Phelan, 1995, p.203).

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Essa afirmação é o princípio da simulação como sugere Baudrillard (1991), quando diz que simular é fingir ter o que não se tem, referindo-se a uma ausência. No meu caso, a uma presença se tornando ausência.

Meu pai não tem mais o movimento da perna,

eu não tenho mais a bicicleta, depois disso não tive mais nenhuma, só minhas próprias pernas, nós já não nos temos mais presentes e, até aquela minha presença, ali no hospital, naquele momento, já estava acaban n n n d o. Será que estou sendo muito umbilical nessa escrita? Devo estar, mas não há como não ser, ou pelo menos, ainda não descobri como não ser. Após toda essa conversa sobre meu pai e eu, percebo que os tempos/espaços se dissolvem em seu acontecer histórico e a sensação de continuidade temporal é simplesmente a repetição como uma contínua presença, um estranho arrebatamento de mesmice, de rotina cotidiana. Seria essa sensação advinda do ouvir a música de Philip Glass repetida circularmente no looping de meu aparelho de som? . Penso na obra de Pina Baush em que a repetição é a base de toda a representação como afirma Ciane Fernandes (2000), uma repetição usada para subverter o seu próprio processo de controle sobre o corpo e o movimento dos dançarinos, dissolvendo os significados e construindo outros. Phelan (1995) diz que: “História escrita e coreografia reflete e reproduz corpos cujos nomes demoramos de aprender e escrever. Nossa aposta é se podemos chamar e reviver estas formas esvanecidas”. Baush conseguia isso, coreografando os corpos históricos de seus dançarinos. Meu pai tenta, retomando a memória de seu corpo histórico, num momento específico em que o movimento esteve latente, e eu, agora, escrevo sobre a significação desse rastro naquele momento no hospital. Irei refletir sobre os assuntos colocados aqui nesse espaço do papel e por agora encerro temporariamente essa escrita com a voz de Phelan (1995), “Esta dança repetitiva assegura nossa presença contínua: Nós somos personagens que estamos sempre lá, desaparecendo”.

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FICHA TÉCNICA:

Coreo-grafia: Aroldo Santos Fernandes Júnior Música: “As Horas” por Philip Glass Filmo-grafia: “As Horas” por Michael Cunningham Historio-grafia: Aroldo Santos Fernandes Junior Aroldo Santos Fernandes Corpos históricos referenciados: BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação, Relógio D’água, Lisboa, 1991. FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal Dança-Teatro: Repetição e Transformação. Hucitec, São Paulo, 2000. PHELAN, Peggy. Thirteen Ways of Looking Choreographing Writing. In: FOSTER, Susan Leigh (Org.). Choreographing History, Indiana University Press, Indiana,1995. SENFT, Theresa M.: Spare Parts. In: PHELAN, Peggy & LANE, Jill (Orgs.). The Ends of Performance. New York University Press, New York and London, 1998.

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