Para lá da Representação? Repensar a Violência na Prosa Ensaística de Expressão Alemã do Início do Séc. XX

June 5, 2017 | Autor: Catarina Martins | Categoria: German Studies, Violence, Modernist Literature (Literary Modernism), Austrian Literature
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Para lá da Representação? Repensar a Violência na Prosa Ensaística de Expressão Alemã do Início do Séc. XX

A ficção modernista do início do séc. XX, da qual se destaca, nos países de língua alemã, a narrativa do Expressionismo, é frequentemente caracterizada pelo recurso a uma estética dita do feio e do choque. Porém, uma perspectiva que creio ser mais fértil recomenda que esta estética seja abordada sob o signo da violência. Nesta prosa, a violência não se restringe a uma reprodução de um real violento, à crítica de uma modernidade tecnológica e urbana violenta, ou à expressão de alienação nessa mesma modernidade. Ao contrário, constitui uma estratégia da própria representação, cuja motivação vai muito além da provocação ou da ruptura em relação à tradição clássicoidealista. A violência da representação na prosa de língua alemã do início do séc. XX parece-me dever-se sobretudo a uma necessidade decorrente de uma relação extremamente complexa com a modernidade, que apenas a palavra paradoxo será capaz de traduzir – um paradoxo intrínseco à condição modernista e assumido como modo desesperado mas único de ser. No quadro de uma investigação que me levou a questionar a fractura do modernismo de língua alemã, instituída pela Germanística, em dois períodos essenciais – o Fin-de-Siècle e o Expressionismo, na década de 10 a 20 –,1 considero relevante procurar no primeiro as origens desta representação violenta, ao qual o segundo daria uma continuidade mais acutilante – continuidade que, aliás, entre muitos outros factores, sustenta uma concepção de forte unidade destes dois períodos do modernismo, contrariando a visão generalizada na crítica que associa a violência preferencialmente ao carácter dito mais explosivo do Expressionismo. Parece-me que esta unidade se torna 1

O resultado desta investigação pode ser lido, sobretudo, na minha tese de doutoramento. Cf. Martins, 2007.

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particularmente evidente na ficção ensaística, uma das manifestações mais originais do modernismo da literatura alemã como um todo, o qual se assume, usando as palavras do austríaco Robert Müller (1887-1924), como a “proclamação do paradoxo”.2 Por esta razão, focalizo a minha atenção, não nos profusos textos de uma violência mais evidente, mas num texto basilar do modernismo vienense, de configuração ensaística, onde a violência surge uma só vez e é aparentemente insignificante. Falo de Carta de Lorde Chandos (Ein Brief, 1902) de Hugo von Hofmannsthal (Hofmannsthal, 1959). Neste texto, o momento violento assume a centralidade da “emancipação da dissonância”, que Adorno considera o fenómeno fundamental da ambivalência no modernismo (Adorno, 2002: 29). Ou seja, é um elemento perturbador que provoca instabilidade na construção textual e obriga a uma nova leitura. Esta leitura faz-se, obrigatoriamente, na corda bamba do paradoxo, tendo em conta as estratégias de mediação presentes no texto e, em particular, a ironia. Paradoxo e ironia, sobretudo aquela que se filia na tradição romântica, constituem, afinal, meios de auto-reflexão, de desestabilização de uma narrativa, e do ensaio sucessivo de novas narrativas. São, por conseguinte, instrumentos centrais da ficção ensaística e constituem, porque disruptoras, formas de representação intrinsecamente violentas. Em “O Ensaio enquanto Forma” (1958), Theodor W. Adorno define o ensaísmo como um modo do pensamento e do discurso que fractura a narrativa do Iluminismo a partir da perspectiva do sujeito. O objectivo é a recuperação do “não-idêntico” aniquilado por uma racionalidade totalitária que impôs uma mediação omnipresente, tornando impossível a experiência do real. O ensaísmo reinventa a realidade como um 2

O paradoxo aparece como um dos princípios estruturais fundamentais do ensaísmo do romance maior de Robert Müller: Tropen. Der Mythos der Reise. Urkunden eines deutschen Ingenieurs (1915) (Tróp(ic)os. O Mito da Viagem. Testemunhos de um Engenheiro Alemão). O próprio romance enuncia esta sua premissa poetológica como “a proclamação do paradoxo” (Müller, 1993: 57). A este respeito, ver igualmente Martins, 2007.

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todo heterogéneo, pretendendo preservar o indivíduo e a experiência individual numa constelação estética, relacional e dinâmica, na qual a dissonância é repetidamente emancipada. Trata-se, afinal, do singular, ou indivíduo, que se dissocia (criando paradoxos), fractura o todo e obriga à sua reconstrução, inclusivamente, como afirma o filósofo, segundo um dicionário ou uma linguagem pessoais (Adorno, 1972: 72). Assim, o Eu, expressão máxima do “não idêntico”, torna-se a origem e a finalidade da construção duma nova narrativa que toma como princípio estrutural a (auto)reflexão ensaística, numa dinâmica espiral inspirada na ironia romântica. Não é, pois, por acaso, que o ensaísmo surge com particular significado na ficção modernista de expressão alemã, a qual tem na crise do sujeito uma das problemáticas centrais. A prosa narrativa ensaística aparece, neste contexto, como uma maneira de encenar ficcionalmente o diálogo com a modernidade, bem como de experimentar diferentes fracturas e alternativas diversas para reconstruir o sujeito e a realidade como um todo. A autoreflexividade incessante (uma espécie de dialéctica negativa ao jeito de Adorno) não somente avalia as possibilidades e limites destas alternativas, mas também, sobretudo, sublinha o respectivo cariz construído e estético –, ou seja, o seu limite essencial. Por esta razão, a narrativa ensaística revela uma dimensão performativa, reproduzindo aquilo que diz no “fazer” do corpo textual. Pela mesma razão, nestes textos, o autor manifesta constante e insistentemente a sua presença, por detrás do narrador, como o verdadeiro responsável pela construção textual auto-reflexiva e pela dimensão performativa. E finalmente, tal significa que, juntamente com a problemática do sujeito e do todo, a questão da representação reside no cerne do ensaísmo. A Carta de Hofmannsthal é reveladora em todas estas vertentes. Neste texto, Hofmannsthal desenvolve uma espécie de síntese performativa do processo histórico de afastamento do sujeito em relação ao paradigma epistemológico

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da modernidade de raiz iluminista. Não é por acaso que o destinatário da carta de Lorde Chandos é Bacon, que Adorno e Horkheimer elegeriam algumas décadas mais tarde como representante emblemático do paradigma moderno, totalizante, opressivo e inerentemente violento (Horckheimer/Adorno, 2003). A escolha de Bacon por parte de Hofmannsthal, não podendo, como é evidente, aproximar-se da crítica radical daqueles filósofos, enformada pela experiência do nazismo, constitui, contudo, também um questionamento do paradigma racional da modernidade, revelando os interstícios, as inconformidades, que denunciam o fracasso da sua pretensão totalizante de criar um só pensamento, uma só narrativa, uma só verdade e uma só linguagem para a realidade como um todo. A maior destas inconformidades é o sujeito. A evolução diacrónica da concepção do Eu desde a tradição clássico-idealista até à crise modernista é descrita como uma espécie de percurso biográfico e literário de Chandos. Este tem início, por um lado, com projectos académicos que correspondem a obras reais de Bacon (Bosse, 2003: 200) e, por outro, com composições líricas caracterizadas pela unidade e harmonia de cunho classicista (coerentes com a cronologia ficcional da carta, datada de 1603). Estas composições revelam não somente uma crença, por parte do jovem aristocrata inglês, na forma estética como fonte e revelação da Beleza e da Verdade (Hofmannsthal, 1959: 9), bem como, em particular, a convicção da possibilidade de dizer o Eu na sua relação com a realidade, pois, segundo afirma Chandos, a Natureza, a Arte e o Eu são um só: Para resumir em poucas palavras: nessa altura, numa espécie de embriaguês permanente, toda a existência me parecia uma grande unidade: o mundo espiritual e o mundo físico pareciam não se encontrar em oposição, tal como a criatura cortês e a criatura animalesca, a arte e a não-arte, a solidão e a companhia. Em tudo sentia a natureza, tanto nas aberrações da loucura como nos refinamentos exteriores da etiqueta espanhola; não a sentia menos na rusticidade de jovens camponeses do que nas mais doces alegorias; e em toda a natureza me sentia a mim próprio. (Hofmannsthal, 1959: 10, trad. de António Sousa Ribeiro, in Scheidl, 1996: 183)

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Segundo o jovem Chandos, estas ideias de unidade e identidade estão subjacentes ao projecto de criar um Nosce te ipsum enciclopédico (Hofmannsthal, 1959: 10), cuja concepção se assemelha à dos Essais de Montaigne, uma vasta série de fragmentos reflexivos sobre uma larga variedade de assuntos, que o ensaísta francês caracteriza como um retrato progressivo de si mesmo, sob forma de mosaico: “E assim, achando-me inteiramente desprovido e vazio de qualquer outra matéria, apresentei-me eu próprio a mim mesmo, como argumento e como assunto” (Montaigne, 1972:7, trad. minha). Estes pressupostos desapareceram no segundo momento da trajectória histórica da concepção do sujeito, que se poderia classificar de modernista e corresponderia ao início do séc. XX. Chandos abandona quer o paradigma epistemológico baconiano, quer o seu Nosce te ipsum enciclopédico, substituindo-os por uma alegada mudez – e pela carta que envia a Bacon. Num outro plano, Hofmannsthal reage a este segundo momento, caracterizado por uma relação problemática com a modernidade, através da Carta de Lorde Chandos, texto que, simultaneamente, enuncia a crise do real, do sujeito e da linguagem, as resolve de um modo necessariamente precário e paradoxal, e torna este paradoxo performativamente presente na sua própria materialidade. O problema principal de Chandos é, aparentemente, o da linguagem. O jovem aristocrata confessa a Bacon que perdeu a compreensão das relações semânticas que fazem funcionar o pensamento e as palavras: O meu caso resume-se ao seguinte: perdi completamente a capacidade de pensar ou falar com nexo seja sobre o que for. Primeiro tornou-se-me pouco a pouco impossível tratar de um tema mais elevado ou mais geral, usando aquelas palavras de que toda a gente costuma servir-se correntemente sem hesitações. Sentia um mal-estar inexplicável no simples pronunciar das palavras “espírito”, “alma” ou “corpo”. Sentia uma impossibilidade interior de produzir um juízo sobre os assuntos da Corte, os casos do Parlamento, ou seja o que for. E isto não por qualquer espécie de cautela, pois conheceis a minha fraqueza que roça a leviandade; é que as palavras abstractas de que a língua é por natureza forçada a servirse para manifestar um qualquer juízo desfaziam-se-me na boca como cogumelos podres. (Hofmannsthal, 1959: 11-12; trad. de António Sousa Ribeiro, in Scheidl, 1996: 185)

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Porém, este problema tem raízes mais profundas. A razão pela qual os signos perderam a capacidade de significar deve-se à derrocada do real e à dissociação do mundo e do Eu, que parecem esvaziar-se. Chandos confessa que renunciou à actividade literária, e o mais possível ao uso da palavra, porque o mundo perdeu a unidade e um centro que pudesse organizar e conferir sentido às partes, e porque o Eu também se desintegrou. A imagem escolhida por Hofmannsthal para descrever este estado – um vórtice de espelhos fragmentários que devolvem o reflexo do sujeito como vazio, que conhecemos também em Pessoa3 – é uma das mais expressivas do sentimento modernista de um real e de um Eu em dissociação: Tudo se me dividia em partes, essas partes, noutras partes ainda, e já nada se deixava abranger por um conceito. As palavras flutuavam em meu redor; coalhavam formando olhos que me cravavam em mim e que, por minha vez, não consigo deixar de fixar: são turbilhões, cuja visão me faz vertigens, que giram sem parar, e através dos quais se vai dar ao vazio.(Hofmannsthal, 1959: 13.trad. de António Sousa Ribeiro, in Scheidl, 1996: 185)

Ou seja, a possibilidade de significação através da linguagem desaparece quando entram em derrocada a narrativa e os códigos da modernidade, assentes numa semântica de ordem conceptual, que permitiam a correspondência a um contexto referencial e a confiança num lugar/sujeito (uno) de enunciação. A constatação da dissolução da linguagem equivale a uma declaração de impossibilidade para uma construção ou representação, mesmo que meramente discursiva, da realidade e do Eu. Esta é, de facto, a tese de partida deste ensaio ficcional, tese que é confrontada pelo autor com o facto contraditório de ele próprio escrever, de Chandos também

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Recordo os seguintes trechos do Livro do Desassossego de Bernardo Soares: “Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direcção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada […]. E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.” (Pessoa, 1982: 28)

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escrever, e de o texto, mesmo quando compara as palavras à decomposição de cogumelos, revelar um profundíssimo trabalho retórico, de tal forma que, numa perspectiva performativa, pode ser considerado um texto sobre a palavra estética, feito de palavras estéticas, colocando-as à prova (ou submetendo-as a um ensaio), por assim dizer, através do seu uso. Tem início aqui, de um modo significativo, a “proclamação do paradoxo”. Neste texto que constantemente se auto-reflecte, e no qual a ironia é um instrumento de auto-reflexão essencial, esta contradição é assinalada pelo próprio Hofmannsthal como a chave principal para compreender a Carta: “Mas porque recorro mais uma vez às palavras, se as reneguei?!” (Hofmannsthal, 1959:15, trad. minha). E o autor reforça o paradoxismo quando as palavras vazias que atormentam Chandos brotam em torrente imagética imparável, não tanto para exprimir o seu vazio interior, mas sobretudo para descrever momentos eufóricos de revelação e de extrema emoção, momentos de epifania. De facto, parece-me que o fundamental para a compreensão da Carta se situa exactamente no longo crescendo que se inaugura com as palavras-chave, acima citadas, que Hofmannsthal introduz sabiamente na missiva de Chandos como uma instrução de leitura do seu ensaio ficcionado. Este crescendo, que se estende praticamente até ao final do texto, diz respeito ao foro emocional da personagem que se escreve, e cujo discurso, concentradamente, revolve em torno do Eu, com uma profusão notória de pronomes da primeira pessoa do singular. Manifesta-se também na acumulação descritiva, assente quer no uso excessivo intencional de metáforas, imagens e outros efeitos retóricos, o qual converge numa reflexão sobre a metáfora ou o tropos, enquanto conceito. Parece que falar do Eu é também falar da palavra estética. Entre o que considero serem as duas partes da Carta – uma primeira parte em que Chandos descreve a perda de capacidade de usar a linguagem, a qual se conclui com

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a constatação da dissociação do real e do Eu, acima citada (Hofmannsthal, 1959: 13); e uma segunda parte em que descreve os referidos momentos eufóricos de revelação –, há um pequeno momento de transição, no qual o autor da epístola refere uma tentativa de recuperar a crença na linguagem através do mundo espiritual dos Antigos (Hofmannsthal, 1959: 13). A partir deste ponto, começa a evidenciar-se uma nuance no discurso de Chandos, a qual me parece revelar que o seu distanciamento em relação às palavras corresponde, de facto, a uma crítica a uma narrativa específica do real, a um paradigma específico de pensamento, e à linguagem que lhe corresponde. Em relação à sua tentativa de redenção através da cultura da Antiguidade, afirma Chandos o seguinte: Fiz uma tentativa de me salvar deste estado, transportando-me para o mundo espiritual dos Antigos. Evitei Platão, porque tinha medo do perigo dos seus voos de imagens. Sobretudo, pensei fixar-me em Séneca e Cícero. Esperava curar-me nesta harmonia de conceitos limitados e ordenados. Porém, não conseguia atingi-los. Os conceitos, percebia-os bem: via o seu maravilhoso jogo de relações erguer-se perante mim como repuxos magníficos, brincando com esferas de ouro. Conseguia pairar em torno delas e ver o que faziam umas às outras. Mas só tinham a ver umas com as outras, e o mais profundo, o mais pessoal do meu pensamento, permanecia à margem da sua dança de roda. No meio delas, fui assolado por um sentimento de terrível solidão; sentia-me como alguém que estivesse encarcerado num jardim rodeado só por estátuas sem olhos. Fugi novamente para o exterior (Hofmannsthal, 1959: 13, trad. minha).

Repare-se como Chandos inclui apenas filósofos do mundo clássico nesta sua tentativa de redenção, e não autores literários, e que, inclusivamente, evita aquele cuja linguagem classifica de imagética, porque esta comporta riscos que tem pavor de enfrentar. Estes riscos são os da dissolução do Eu em redes semânticas que transcendem o conceptual e o estritamente racional, razão pela qual procura modelos de pensamento caracterizados pela ordem e pela delimitação, cujas relações internas são inteligíveis de um modo abrangente. O paradoxo instaura-se, neste passo, de duas maneiras: Em primeiro lugar, Chandos não encontra a redenção na filosofia de Séneca e de Cícero, porque, apesar da relação intelectual que com ela estabelece, o seu Eu não é tocado por ela. Tal significa que o dizer do sujeito não passa (só) pela racionalidade, o que contradiz a máxima do eu cartesiano, em clara oposição ao paradigma racionalista da

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modernidade. Em segundo lugar, apesar de evitar o abismo da metáfora, que entrevê em Platão, é a ela que acaba por recorrer como âncora inevitável, conforme o seu próprio discurso profundamente imagético denuncia. Segue-se, no texto, a descrição propriamente dita dos momentos de revelação anunciados por Chandos, a qual me parece constituir, na realidade, uma busca desesperada por uma nova linguagem: aquela que devolve o Eu, ao contrário das “estátuas sem olhos”, ou sem espelho subjectivo, do jardim do discurso conceptual. Esta linguagem-espelho não pode ser senão a linguagem estética. A busca desesperada de Chandos pela linguagem do Eu é uma busca por uma nova imagética (um novo reportório metafórico, com diferentes códigos e modos de funcionamento semiótico), a qual, inevitavelmente, parte do Eu para regressar ao mesmo Eu. Chando sublinha que as suas epifanias ocorrem nas mais inesperadas situações: Não me é fácil descrever-lhe em que consistem estes bons momentos; as palavras desiludem-me novamente. Porque é algo totalmente sem nome e decerto também inominável que se me revela nesses momentos, enchendo, como se de um recipiente se tratasse, um qualquer fenómeno do meu ambiente quotidiano com uma maré transbordante de uma vida mais elevada. Não posso ter a expectativa de que me compreenda sem exemplos, mas tenho de pedir a sua compreensão pelo ridículo dos meus exemplos. Um regador, um rastelo abandonado no campo, um cão ao sol, um cemitério pobre, um aleijado, a casinha de um camponês, tudo isto pode tornar-se o recipiente da minha revelação. Cada um destes objectos e mil outros semelhantes, sobre os quais o meu olhar passa geralmente com uma óbvia indiferença, podem de repente, a qualquer momento, sem estar em meu poder suscitá-lo, adquirir para mim um cunho tão sublime e tão comovente que todas as palavras me parecem demasiado pobres para o exprimir. (Hofmannsthal, 1959: 14, trad. minha)

Esperar-se-ia que a epifania fosse desencadeada por algo de inusitado ou grandioso, que pudesse anular os automatismos do olhar que o texto menciona. Não é o caso, já que o próprio Chandos sublinha a banalidade dos objectos de percepção. Uma vez que desapareceu o contexto referencial constituído pela narrativa moderna do mundo e pelo respectivo dicionário, e uma vez que, com eles, desapareceu a dissonância (a qual pressupõe uma determinada ordem como pano de fundo), a epifania não pode ser senão construída, a partir da vontade ou do desespero do sujeito. Apesar de o

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signatário da carta se isentar de responsabilidades na criação destes momentos excepcionais, e de pretender sugerir que o que é revelado lhe é exterior, as palavras traem-no novamente: o “recipiente da minha revelação” não é apenas o recipiente da revelação que acontece a Chandos, mas o recipiente que o revela a ele. E que, por ser recipiente, recebe algo que alguém nele coloca – esse alguém só pode ser quem o olha e nele investe algum significado, mesmo que supostamente intraduzível por palavras e manifesto apenas numa reacção emocional. O processo que Chandos descreve é, afinal, o da criação da “sua” metáfora, aquela que mantém uma relação semântica com o Eu. Na sequência do texto, o carácter construído da percepção que desencadeia a revelação é reforçado, em primeiro lugar, pelo trabalho estético e retórico da descrição, desproporcionado em relação à trivialidade do representado; e, em segundo lugar, pelo facto de não ser apenas suscitado pelo mundo “empírico” (presente ou evocado), mas também pela imaginação da violência – o que potencia o papel do sujeito neste processo de construção ou de criação. Depois de ter mandado envenenar um bando de ratazanas que infestava as suas leitarias, o jovem aristocrata inglês é arrebatado pela visão da agonia dos animais moribundos, a que não assistiu. Relata-a a Bacon como mais um momento de revelação, o qual surge toda “dentro de si”, distante, no espaço e no tempo, do acontecimento propriamente dito: E ao atravessar, com o cavalo a passo, um campo profundamente revolvido, não tendo, ao pé de mim, nada de mais terrível do que uma ninhada de codornizes em debandada e, ao longe, um grande sol a pôr-se sobre os campos ondulantes, abre-se-me interiormente, de súbito, aquela cave, transbordante com a agonia daquela colónia de ratazanas. Estava tudo dentro de mim: o ar da cave, frio e bafiento, agora inundado pelo odor doce e acre do veneno, e o zunido estridente dos gritos de morte quebrando contra as paredes podres de mofo; aqueles espasmos de impotência emaranhando-se uns nos outros, desesperos cavalgando-se numa confusão louca; a procura alucinada das saídas; o olhar frio de cólera quando dois animais chocam um com o outro junto às frinchas tapadas. (Hofmannsthal, 1959: 14-5, trad. minha)

É este o brevíssimo episódio violento da Carta que atesta a emergência da estética modernista do feio e do choque, cujas origens me propus investigar. A visão da

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morte das ratazanas é também o passo do texto hofmannsthaliano que mais dúvidas tem suscitado entre os críticos.4 Parece-me lícito atribuir grande parte destas dúvidas à incapacidade de não tomar à letra a voz supostamente sincera do registo confessional da personagem criada por Hofmannsthal, reconhecendo estratégias de estranhamento que passam por notas claramente irónicas. Estas denunciam uma sábia manipulação autoral do desabafo epistolar no sentido do desenvolvimento ensaístico de um argumento. De facto, a visão violenta de Chandos dura apenas muito breves instantes, dando de imediato lugar à reflexão, através da comparação com outras narrativas de violência, históricas (a destruição de Roma e Cartago em Tito Lívio) e míticas (o mito de Niobe), caracterizadas pela dimensão maior dos acontecimentos, bem como pela grandiosidade das narrativas e pela associação à transcendência. Nestas comparações, que concluem da maior força da vivência da morte imaginada das ratazanas, a desproporção e o grotesco da respectiva fusão com a animalidade gritante – ou deveria dizer, guinchante – do “ranger de dentes” pseudo-bíblico das vítimas não podem constituir senão uma prova de ironia, que funciona como espelho deformante sobre a epifania imediatamente anterior: O meu amigo lembra-se daquele quadro maravilhoso de Tito Lívio, sobre as horas que precederam a destruição de Alba Longa? Como percorrem as ruas que não tornarão a ver … como se despedem das pedras da calçada. Pois, digo-lhe, meu amigo, isso estava em mim, e também a Cartago em chamas; mas era mais do que isso, era uma coisa mais divina e mais animal; e era o presente, o presente mais completo e mais sublime. Via uma mãe com as crias agonizantes puxadas para si e que não olhava para as impiedosas paredes de pedra, mas para o ar vazio, ou através do ar na direcção do infinito, acompanhando estes olhares com um ranger de dentes! – Se um escravo se quedou, estarrecido, junto à Niobe que se convertia em pedra, terá vivido o que eu vivi, quando em mim a alma deste animal mostrava os dentes ao destino monstruoso.(Hofmannsthal, 1959: 15, trad. minha)

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A bibliografia sobre este texto é imensa, tornando-se impossível enumerar as diferentes leituras de que este episódio é objecto. A título ilustrativo, considere-se, por exemplo, apenas o número especial da revista Hofmannsthal-Jahrbuch (11/2003) dedicado à Carta de Lorde Chandos. No conjunto de artigos ali contidos, as leituras do episódio das ratazanas estendem-se da perspectiva da teoria da percepção (Bosse), passando pela interpretação poetológica (Schneider), incluindo ainda análises psicanalíticas (Wellberry). Uma das leituras mais correntes é a mística e religiosa, que passa pela identificação de Chandos com a “criatura muda” como manifestação do divino (por exemplo, em Böschenstein, 1993). Em nenhum destes textos é considerada a dimensão ensaística do texto, e muito menos o elemento irónico.

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Deixando de lado, nesta fase da minha reflexão, o espelho irónico, concentro-me no instante da visão propriamente dita. Esta adquire a sua força, em grande medida, da extrema acumulação de metáforas, sinestesias e artifícios prosódicos e fónicos, a qual choca com o teor do episódio, problematizando-o. De facto, a forma elaborada em que é construído parece exceder o próprio real, formando uma espécie de hiper-realidade ou uma lente de ampliação invertida e paradoxal. Deste modo, Hofmannsthal concretiza e põe em questão, simultaneamente, um preceito teórico que o filósofo Ernst Mach desenvolve performativamente na Análise das Sensações (“Beiträge zur Analyse der Empfindungen”, 1886), um tratado que foi alvo de recepção entusiástica pelo modernismo de expressão alemã, nomeadamente no contexto da “crise do Eu”, divulgada no meio artístico vienense por Hermann Bahr sob a fórmula “O Eu irremediavelmente perdido” (“Das unrettbare Ich”). Para Mach, o Eu não passa de uma construção associada a um complexo flutuante de sensações, num mundo reduzido a uma percepção subjectiva marcada pelo constante devir e pela incapacidade de integração. Na amálgama de sensações que é o real, o único fundamento da individuação é a representação e esta corresponde, no fundo, à invenção do Eu como mero centro integrador da experiência sensível. Escolhendo, como Hofmannsthal, a representação da violência como estratégia, Mach compõe, por exemplo, um quadro dinâmico, onomatopaico e sinestésico de um terramoto, com o objectivo de postular que o fundamento do conhecimento empírico não é a coisa em si, nem o dado sensível, mas a experiência esteticamente construída, ou a representação: Conhecemos o máximo possível sobre um fenómeno natural, por exemplo um terramoto, quando os nossos pensamentos nos representam a totalidade dos dados sensíveis correspondentes, de tal forma que eles possam ser considerados quase como um substituto dos mesmos, que os próprios dados nos pareçam conhecidos, e que não nos provoquem surpresa. Quando ouvimos em pensamento o ribombar subterrâneo, quando sentimos a oscilação, quando temos presente a sensação do chão a levantar e a baixar, as paredes a rachar, o reboco a cair, o movimento dos móveis e dos quadros, os relógios a parar, o tinir das janelas a estilhaçar-se, as portas a empenar e a emperrar, quando vemos mentalmente a onda que passa através da floresta como sobre um campo de trigo,

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partindo os ramos, e a cidade envolta numa nuvem de pó, quando ouvimos o rebate dos sinos nas suas torres, quando, para além disso, os fenómenos subterrâneos, que à data ainda desconhecemos, surgem perante os nossos olhos de um modo tão sensível que vemos o terramoto aproximar-se como um veículo à distância, até sentirmos finalmente o abalo debaixo dos pés, então não podemos exigir mais conhecimento.(apud Bosse, 2003: 191)

Neste passo de Mach, é evidente a intenção de criar uma hiper-realidade estética que se sobrepõe à realidade e que se torna objecto de percepção, à semelhança do que acontece na Carta de Hofmannsthal. Trata-se, no fundo, do processo de integração dos dados sensíveis que permite a experiência, a qual deixa de ser experiência de um qualquer objecto exterior ao sujeito para se converter inevitável e exclusivamente na experiência de si. Para além disso, implica a invenção do Eu, no momento da percepção, como centro integrador de um corpo sensível, composto de matéria estética. É por isso que Mach refere uma espécie de incorporação do dado sensível, por parte do sujeito, através da qual o real (encenado sinestesicamente na mente, ou seja, recriado como estético) passa a ser consubstancial ao Eu. Esta incorporação do real é concretizada através de uma estética que pretende ser, primordialmente, criação de efeito e criação do real como efeito – ou, se quisermos, do real como violência –, um processo do qual o Eu é agente e receptor e que acaba por constituir, para o mesmo Eu, a única ontologia possível. Este processo, que no fundo responde à crise modernista do Eu, tem várias vertentes. Em primeiro lugar, passa por dar ao sujeito a faculdade de sentir. O discurso hiper-estético sobre a violência pretende despertar uma reacção sensível no leitor (Chandos e Hofmannsthal como leitores de si mesmos), e gerar a ilusão de imediaticidade na relação com o real. Para além disso, o efeito desta violência da representação permite ao sujeito reencontrar-se a si mesmo, com uma vaga sensação de unidade, no facto de conseguir “experimentar algo”, e no facto de se sentir a si próprio sentindo, mesmo que se trate apenas de uma experiência artificial. Chandos cria uma

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espécie de espelho que não devolve uma imagem ou um conteúdo identitários, mas a ilusão da vivência do Eu como um só, a qual, em si mesma, é reconfortante em contraste com o vórtice de fragmentação provocado pela abordagem conceptual e racional do mundo. Em segundo lugar, o processo de recuperação do Eu passa por lhe dar a possibilidade de se dizer, sinónimo da possibilidade de se sentir, pois o sujeito só se sente no corpo estético. Nesta perspectiva, é indispensável a conversão da experiência de Si no instante do efeito estético criado pela representação da violência, numa experiência passível de ser novamente vivida. De facto, a resolução da problemática do Eu nas narrativas ensaísticas do modernismo alemão, nomeadamente naquelas em que a violência está presente, parece assentar, muitas vezes, na recuperação da experiência individual. Todavia, a crer em Nietzsche, esta experiência possui um cariz estético, é indizível e necessita, desta feita para Adorno, da explicação filosófica para ser partilhável (mesmo se este processo equivale a aniquilá-la).5 Este paradoxo é resolvido de duas maneiras, em simultâneo: através da densa elaboração retórica do discurso que permite superar a fugacidade e a incomunicabilidade da experiência estética. Esta pode ser revivida e partilhada quando reencenada através da trama material formada pelas palavras, substituindo-se a experiência do texto à experiência do real empírico; e através da dimensão performativa do texto ensaístico, que funde a explicação filosófica com a configuração textual, e que permite, a despeito da mediação imposta pela reflexividade que lhe é inerente, a concretização de actos de uma racionalidade e de uma sensibilidade outras, tais como aqueles que são propostos por Robert Musil nos seus ensaios – “Gefühlserkenntnisse” (conhecimentos dos sentimentos) e “Denkerschütterungen”

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Adorno afirma: “…a experiência estética genuína tem de se tornar filosofia ou não chega a ser” (Adorno, 2002: 197, trad. minha). Porém, acrescenta: “Por isso, a arte necessita da filosofia, que a interpreta, para dizer o que ela não consegue dizer, apesar de isto só poder ser dito pela arte, não o dizendo” (Adorno, 2002: 113, trad. minha).

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(emoções do pensamento) (Musil, 1981: 1324) – e que Chandos também intui nos seus momentos de epifania, como paradigma alternativo ao moderno: “… como se pudéssemos encetar uma nova relação intuitiva com toda a existência, se começássemos a pensar com o coração” (Hofmannsthal, 1959:17, sublinhado meu). Em terceiro e último lugar, e ainda na perspectiva da necessidade de conferir ao Eu a possibilidade de construir a sua materialidade discursiva experimentável, é indispensável resolver a crise da linguagem. O uso constante de comparações e metáforas responde ao imperativo de inventar um significado para cada palavra vazia, ao mesmo tempo que ela é usada. Uma vez que a linguagem perdeu o referente, Hofmannsthal está, na verdade, a construí-lo – um referente que não deve ser confundido com a realidade, porque é apenas textual e estético. O excesso formal da Carta constitui uma tentativa de preencher o vazio semântico do discurso através da densidade do tecido imagético,6 tal como de preencher o vazio do Eu com um corpotexto, cujo código é estético: Parece-me que tudo, tudo o que existe, tudo o que recordo, tudo o que os meus pensamentos mais confusos tocam, tudo é alguma coisa. Até a própria melancolia, a apatia do meu cérebro nos outros momentos, me parecem alguma coisa; sinto um jogo de contrastes encantador e verdadeiramente infinito em mim e à minha volta, e não existe, entre as matérias que jogam umas contra as outras, nenhuma em que eu não consiga desaguar. Então, é como se o meu corpo fosse composto de puros sinais secretos, que tudo me revelam. Ou como se pudéssemos encetar uma nova relação intuitiva com toda a existência, se começássemos a pensar com o coração. (Hofmannsthal, 1959: 16-17).

Este código assume como relação semântica base, não a conceptual, mas a metáfora, incorporando assim a dimensão emocional na racionalidade. A novidade desta linguagem é a auto-referencialidade e o facto de o código e o léxico não serem reportórios anteriores à produção do discurso, mas concomitantes com o dizer. É a

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Creio que é no potenciar deste excesso retórico que se situa alguma da prosa curta da década expressionista, que a crítica apelida de “textura” (Baßler, 1994), por se assumir como mera materialidade e se eximir à conceptualidade parafraseável, assumindo a incompreensibilidade que Adorno, na Teoria Estética, também considera distintiva do modernismo (Adorno, 2002: 9).

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enunciação que escolhe arbitrariamente a metáfora e produz a respectiva relação de significação, a qual tem origem no sujeito e acaba sempre nele, permanecendo eternamente secreta no que diz respeito ao respectivo referente e apontando apenas, de um modo vago, para o respectivo criador. Desta forma, o sujeito, que o modernismo considerava “irremediavelmente perdido”, encena-se como absoluto: reencontra uma unidade e uma identidade com o todo que derivam do facto de converter todas as coisas em tropos do próprio Eu. Para além de se ver reflectido em todos os elementos singulares do real, o Eu modernista abarca as relações que entre eles se estabelecem. O seu verdadeiro reflexo é um todo heterogéneo, paradoxal, composto por dissonâncias, e pelo respectivo choque, tensão ou violência. Como o próprio Chandos reconhece, é uma solução precária, um vórtice novo, cuja vaga sensação de paz resulta do facto de, no outro lado, não se entrever o abismo, mas uma emoção que constitui a certeza possível do sujeito relativamente a si mesmo: E então é como se eu entrasse em efervescência, fizesse bolhas, fervesse e lançasse faíscas. E tudo é uma espécie de pensamento febril, mas um pensamento num material que é mais imediato, mais fluido e mais ardente do que as palavras. Também são turbilhões, mas turbilhões que não parecem conduzir ao abismo, como os da linguagem, mas sim, de algum modo, a mim mesmo e ao colo profundo da paz. (Hofmannsthal, 1959: 19, trad. minha)

A violência em a Carta tem, por conseguinte, de ser interpretada no contexto da necessidade modernista de restituição do Eu e da realidade como um Todo, através da restituição da experiência. Isto tem implicações sobre a concepção tanto da violência como da representação, cuja característica mais marcante é a circularidade paradoxal que caracteriza a condição do sujeito estético na modernidade. Tal como a realidade, que só é sentida e percebida quando transferida para o reino estético, a violência é estetizada e perde a sua materialidade. Isto significa que, muito embora o Eu modernista procure a violência para adquirir uma ontologia precária através da experiência sensível, é uma alienação profunda em relação ao real que surge como sentença definitiva, bem

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como a dependência estrita de uma ontologia estética. Apesar de este processo de procura do sujeito acontecer no âmbito do texto ensaístico, que representa uma tentativa de fracturar a mediação global da modernidade de raiz iluminista, acaba por equivaler igualmente a um tipo de “mediação” totalizante – uma mediação paradoxal, uma vez que substitui a própria realidade e é significado, contexto e representação num só. Contudo, não é esta a única diferença entre os dois tipos de mediação. O inverso também é verdadeiro: o trabalho estético sobre a imagem violenta produz um efeito dissonante ou de estranhamento, ampliado, como vimos, pelo recurso à ironia, assente na comparação de desproporção grotesca e no paradoxo. Este efeito de estranhamento não permite que a ilusão de imediaticidade, presente numa primeira leitura, se instale, criando uma lucidez constante sobre o facto de se tratar não da coisa em si, mas de representação, lucidez que os mecanismos de reflexão ensaística de a Carta, também eles mecanismos de distanciamento e mediação, potenciam. Não é por acaso que a violência jamais surge no texto como violência “real” ou objecto de experiência empírica, mas sim, ou como violência discursivamente representada e lida (no caso de Lívio e do mito de Niobe), ou como uma imaginação que posteriormente é descrita numa carta, que um editor ficcional apresenta (ou seja, objecto de múltiplas representações dentro do universo ficcional, através de diversas instâncias de mediação). Deste modo, a representação da violência, que é sempre violência da representação, torna-se parte integrante da auto-reflexividade da ficção ensaística, garantindo emancipação e possibilidade de escolha, em oposição à ilusão no quadro de um paradigma regulador. Todavia, é uma escolha tão desesperada e tão pouco livre quanto a do sujeito modernista, que sabe que a sua identidade se reduz ao texto como máscara estética, e que, apesar de tudo, se força a acreditar nesta máscara como se fosse a sua verdadeira face. A emoção perante o efeito violento é, ela própria, uma construção

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do “Eu irremediavelmente perdido”, que se vê forçado pela lucidez sobre a sua condição desesperada a construir o próprio objecto dos seus sentimentos construídos, através de uma linguagem que ele próprio inventa, nos respectivos elementos e fundamentos. A violência na Carta de Hofmannsthal acaba por desempenhar a mesma função de fingimento de si que a dor pessoana no poema Autopsicografia. Apesar de ter como objectivo a reinvenção do todo e do Eu como alternativas à modernidade, a ficção ensaística – e, em particular, a Carta de Hofmannsthal – não conseguem ir além da substituição do “Penso” cartesiano pelo chandiano “Imagino”, “Represento”, “Finjo”, logo “sinto” e, assim, só assim, “existo”. O passo que é dado para lá da modernidade não é grande e o modernismo, com toda a problematização e inovação que protagoniza, revela-se incapaz de substituir o paradigma do Iluminismo por uma outra ordem epistemológica e discursiva, e por um conceito de sujeito radicalmente diferente. É por isso que Bacon continua a ser o único interlocutor possível, não apenas para Chandos, mas para Hofmannsthal e os modernistas.

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