Poesia: desafio ao pensamento (estudo sobre as categorias de poesia, mímesis e sujeito)

May 23, 2017 | Autor: Thiago Castañon | Categoria: Plato, Aristotle, Mimesis, Poetics, Petrarch, Ezra Pound, Performance, Michel Foucault, Callimachus, Horace, Plutarch, Stéphane Mallarmé, Guido Cavalcanti, Hans Blumenberg, Dante Alighieri, Theocritus (Classics), Catullus, Erich Auerbach, Pindar, Longus, Marcel Mauss, Charles Baudelaire, Sappho, Wolfgang Iser, Ibycus, Pierre Hadot, Alcaeus, Augusto de Campos, Provence, Emile Benveniste, Alcman, Archilochus, Luiz Costa Lima, Jean-Pierre Vernant, Dionysius of Halicarnassus, Longinus, E. R. Curtius, Ficção, Haroldo de Campos, Barbara Cassin, Lucian of Samosata, Nicolas Boileau, Ovide, Teognide, Simonides of Ceos, Pierre De Ronsard, Mimnermus of Colophon, Greek Melic Poetry, Poesia Mélica Arcaica, Bruno Snell, Eric Robertson Dodds, Hermann Fränkel, Marcel Detienne, Ignace Meyerson, Françoise Frontisi-Ducroux, Paula da Cunha Corrêa, Giuliana Ragusa, Louis Gernet, Claude Calame, Gregory Nagy, Gustavo Guerrero, Arnault Daniel, Ezra Pound, Performance, Michel Foucault, Callimachus, Horace, Plutarch, Stéphane Mallarmé, Guido Cavalcanti, Hans Blumenberg, Dante Alighieri, Theocritus (Classics), Catullus, Erich Auerbach, Pindar, Longus, Marcel Mauss, Charles Baudelaire, Sappho, Wolfgang Iser, Ibycus, Pierre Hadot, Alcaeus, Augusto de Campos, Provence, Emile Benveniste, Alcman, Archilochus, Luiz Costa Lima, Jean-Pierre Vernant, Dionysius of Halicarnassus, Longinus, E. R. Curtius, Ficção, Haroldo de Campos, Barbara Cassin, Lucian of Samosata, Nicolas Boileau, Ovide, Teognide, Simonides of Ceos, Pierre De Ronsard, Mimnermus of Colophon, Greek Melic Poetry, Poesia Mélica Arcaica, Bruno Snell, Eric Robertson Dodds, Hermann Fränkel, Marcel Detienne, Ignace Meyerson, Françoise Frontisi-Ducroux, Paula da Cunha Corrêa, Giuliana Ragusa, Louis Gernet, Claude Calame, Gregory Nagy, Gustavo Guerrero, Arnault Daniel
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura

Poesia: desafio ao pensamento estudo sobre as categorias de poesia, mímesis e sujeito

Thiago Castañon Loureiro

2017 1

Poesia: desafio ao pensamento estudo sobre as categorias de poesia, mímesis e sujeito

Thiago Castañon Loureiro

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientadora: Profª Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins

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Poesia: desafio ao pensamento estudo sobre as categorias de poesia, mímesis e sujeito Thiago Castañon Loureiro Orientadora: Profª Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Aprovada por:

_________________________________________________ Presidente, Profª. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins

_________________________________________________ Profª. Doutora Flávia Trocoli – UFRJ

_________________________________________________ Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – PPG Letras Vernáculas – UFRJ

_________________________________________________ Profª. Doutora Aline Magalhães Pinto – UFMG

_________________________________________________ Prof. Doutor Fernando Santoro – IFCS/UFRJ

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Castañon, Thiago. Poesia: desafio ao pensamento (estudo sobre as categorias de poesia, mímesis e sujeito) – Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2017. viii. 441 f. 30 cm. Orientadora: Vera Lúcia de Oliveira Lins. Tese (doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), 2017. Bibliografia: f. 442-461. Anexo: f.462-466 1. Mélica 2. Mímesis 3. Sujeito 4. Ficção 5. Performance 6. Safo 7. Aristóteles Lins, Vera Lúcia de Oliveira. II. UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Área de Teoria Literária. III. Título.

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RESUMO POESIA: DESAFIO AO PENSAMENTO ESTUDO SOBRE AS CATEGORIAS DE POESIA, MÍMESIS E SUJEITO

Thiago Castañon Loureiro Orientador: Profª Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins Coorientador: Prof. Luiz Costa Lima

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária)

O que permite chamar as obras de Safo, Arnault Daniel e Mallarmé igualmente de poemas? Trata-se do mesmo conceito de poesia quando referimos a “lírica” grega antiga (VIII-V a.C.), a lírica provençal e do dolce stil nuovo (XII-XIV d.C.) ou a poesia crítica moderna (XIX-XX d.C.)? Os fragmentos de mélica, iambo e elegia compostos na Grécia arcaica, já são poesia no sentido que chamamos as obras que nossos conceitos histórico-literários classificam como pertencentes a um mesmo gênero lírico? E a poesia concreta, ainda é poesia? A partir dessa problematização inicial, que propõe confrontar três configurações temporais distintas da categoria de poema (capítulo 1), a fim de delimitar o objeto da pesquisa, a parte central do estudo divide-se em duas seções: a primeira parte, sobre a noção de pessoa na Grécia antiga (capítulo 2), procura concretizar o eixo temático da relação entre poesia e paradigma do sujeito no horizonte da mélica grega, a partir da pré-história da categoria do “eu” no período arcaico, visando fornecer o pano de fundo para a reconsideração da relação entre mélica e mímēsis na segunda parte, concentrada no fragmento 31V de Safo (capítulo 3), tomado como um caso de “mímēsis da produção” (Costa Lima). A partir de uma série de traduções representativas de diversas épocas, a história de transmissão e interpretação do poema mais célebre da antiguidade coincide com a própria história do conceito de poesia, fornecendo um solo concreto para a exploração de uma hipótese: que a noção de performance, privilegiada pelo helenista contemporâneo, não é suficiente para distinguir o poema mélico se não for retificada pela indagação da mímesis.

Palavras-chave: Mélica. Mímesis. Sujeito. Ficção. Performance. Safo. Aristóteles

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ABSTRACT

POETRY: CHALLENGE TO THOUGHT STUDY ON THE CATHEGORIES OF POETRY, MIMESIS AND SUBJECT

Thiago Castañon Loureiro Orientador: Profª Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins Coorientador: Prof. Luiz Costa Lima

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária)

What makes it possible to call the works of Sappho, Arnault Daniel and Mallarmé equally of poems? Is it the same concept of poetry when we refer to ancient Greek “lyric” (VIII-V B.C.), Provencal and dolce sitil nuovo’s lyric (XII-XIV A.D.) or modern critical poetry (XIX-XX A.D.)? Are the fragments of melic, iambos and elegy, composed in archaic Greece, already poetry in the sense we call those works that our historical-literary concepts classify as belonging to the same lyrical genre? And concrete poetry, is it still poetry? From this initial problematization, which proposes to confront three distinct temporal configurations of the category of the poem (chapter 1), in order to delimit the object of the research, the central part of the study is divided into two sections: the first part, on the notion of person in ancient Greece (chapter 2), seeks to concretize the thematic axis of the relation between poetry and paradigm of the subject in the horizon of the Greek melic, starting from the prehistory of the "I" category in the archaic period, aiming to provide the background for reconsidering the relationship between melic and mimesis in the second part, concentrated on the Sappho fragment 31V (chapter 3), taken as a case of “mímesis of production” (Costa Lima). From a series of representative translations of different epochs, the story of transmission and interpretation of the most famous poem of antiquity coincides with the very history of the concept of poetry, providing a concrete ground for the exploration of a hypothesis: that the notion of performance, privileged by the contemporary hellenist, is not sufficient to distinguish the melic poem if it is not rectified by the inquiry of mímesis.

Key-words: Melic. Mimesis. Subject. Fiction. Performance. Sappho. Aristotle

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Para Carolina, Estela e Caetano

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Agradecimentos

A Vera Lins que acatou minhas escolhas

A Luiz Costa Lima que me encorajou a começar pelos gregos, quando tive que decidir entre três caminhos (mélica arcaica, lírica medieval ou poesia contemporânea).

A Giuliana Ragusa que me permitiu o acesso a material indispensável do seu curso sobre mélica grega na pós-graduação da USP.

A João Guilherme Paiva, pelo título, pelo interesse e apoio constante. Incluindo logística de livros, xerox de textos inacessíveis, publicação de partes da tese, amizade incondicional e suporte imprescindível com a documentação.

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Sumário Nota introdutória.....................................................................................................................13 Capítulo I. Paradigma do sujeito e formas líricas...........................................................................17 1. mélica arcaica e ausência do eu..............................................................................................21 2. lírica medieval e formação da categoria do sujeito................................................................34 3. poesia moderna e crise do paradigma.....................................................................................44 Capítulo II. Sujeito e pessoa na Grécia antiga................................................................................50 1. As teses da Snell-Fränkel school e seus opositores................................................................56 O olho e o espírito.......................................................................................................62 Vocabulário do corpo..................................................................................................64 A constelação da psykhḗ ..............................................................................................67 Os limites do “homem homérico”...............................................................................74 Antropologia trágica do agente....................................................................................77 2. Contributo de E. R. Dodds......................................................................................................81 Uma psicanálise histórica?..........................................................................................81 Técnicas de si no “xamanismo” grego........................................................................84 3. Vernant e a reconsideração do sujeito....................................................................................88 3.1. Uma história das categorias psicológicas..........................................................................88 Crítica do substancialismo...........................................................................................92 Primeira fase da obra (1960-1970)..............................................................................96 Problematização do sujeito..........................................................................................99 3.2. Pessoa e vontade entre os gregos.....................................................................................104 I

A pessoa na religião arcaica.......................................................................................105 Deuses, mortos e heróis.............................................................................................110 Segunda cena da psykhḗ : orfismo e pitagorismo.......................................................113 Balanço da primeira aproximação.............................................................................116

II

A vontade na moral clássica......................................................................................119 O problema da vontade na tragédia...........................................................................121 Estatuto do agente na Ética........................................................................................122 Vocabulário da vontade no direito.............................................................................124 Solução de Aristóteles...............................................................................................126 A ação trágica entre dois modelos.............................................................................128

III

Categorias gregas do agente e da ação.......................................................................131 Categorias linguísticas e categorias antropológicas...................................................132 Um programa de pesquisa.........................................................................................133 9

3.3. Três retificações para o estatuto do sujeito arcaico..........................................................136 I

Segunda fase da obra (1980-2000)............................................................................136 Frontisi-Ducroux e os valores gregos de prósōpon....................................................139 A categoria do corpo (sôma) e a experiência de si......................................................145 A psykhḗ e a categoria do duplo.................................................................................155

II

Deuses e homens.......................................................................................................160 Mundo e natureza......................................................................................................162 Si mesmo e o outro....................................................................................................164

III

O sujeito antigo na modernidade: uma alternativa à morte do homem......................166 Indivíduo...................................................................................................................174 Sujeito.......................................................................................................................179 Pessoa........................................................................................................................182

Conclusões ...........................................................................................................................184 Capítulo III. Mélica e mímesis em Safo.........................................................................................186 1. Problemas de classificação....................................................................................................186 a. b. c. d.

plásma e a pré-história da “ficção”......................................................................194 categorias da melikḗ e o silêncio da Poética.........................................................202 interpretação moderna de Aristóteles..................................................................210 mélica e as categorias da mousikḗ (nómos e harmonía).......................................214

2. Análise do fr. 31 V: breve histórico e fontes de transmissão..................................................221 Recorte e proposta de leitura......................................................................................225 2.1. Colóquio amoroso.........................................................................................................229 parece um sujeito.......................................................................................................229 semelhante aos deuses...............................................................................................235 três leituras................................................................................................................241 aquele homem...........................................................................................................251 cena da oaristýs: um colóquio com vazios................................................................258 o que é isso.................................................................................................................268 Safo sofista: por que dois e dois são três....................................................................271 2.2. Desejo de ver.................................................................................................................276 que cor, que ação?......................................................................................................276 sempre que te vejo.....................................................................................................285 problema métrico...........................................................................................286 problema semântico-interpretativo................................................................286 problema sintático (nexo temporal-condicional)...........................................288 lance de dados sobre um lance de olhos.....................................................................296

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2.3. A língua quebrada..........................................................................................................300 falar nada...................................................................................................................300 … mas a língua..........................................................................................................302 defesa do hiato...........................................................................................................311 mímesis e performance..................................................................................312 áphōna grámmata (silêncio da letra).............................................................316 fôlego sus!penso............................................................................................320 lezione difficile..............................................................................................329 multitudinous glôssa..................................................................................................333 fr.158 V: a língua que late..............................................................................339 fr. 137 V: a censura e a mímēsis práxeōs.......................................................343 Os poetas e os nomes.....................................................................................347 2.4. Ranhuras de suor............................................................................................................352 e balde de água fria....................................................................................................352 suor no feminino........................................................................................................365 garganta verde...........................................................................................................370 ékade! ÉKAde!..........................................................................................................378 O intraduzível e a intradução................................................................................................386

Safo: desafio à tradução (antologia de traduções do fr. 31 V)......................................................397 Edição moderna do fr. 31 V...................................................................................................398 Tradução crítica....................................................................................................................401 Safo em português.................................................................................................................402 Safo em latim........................................................................................................................407 topos do lance de olhos em Provença e no dolce stil nuovo..................................................409 Safo lírica francesa................................................................................................................416 Safo moderna........................................................................................................................418 Safo antilírica........................................................................................................................421

Documentos: algumas fontes, variantes e paralelos do fr. 31 V...................................................426 Referências bibliográficas..............................................................................................................442 Anexos..............................................................................................................................................462 Tábua de transcrição .............................................................................................................462 Siglas das edições de referência............................................................................................464 Abreviações..........................................................................................................................465 Símbolos utilizados nas transcrições de poemas...................................................................466

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Im Styl des echten Dichters ist nichts Schmuck, alles notwendige Hieroglyphe

No estilo do poeta genuíno, nada é ornamento, Tudo é hieróglifo necessário

(F. Schlegel, AF 173)

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Nota introdutória O título retoma a expressão utilizada por Luiz Costa Lima em comunicação apresentada no congresso comemorativo dos 30 anos da Semana nacional de poesia de vanguarda 1963/1993, onde afirmava que, por exigir o máximo de sua capacidade crítica, “a poesia apresenta um tremendo desafio ao pensamento”. Expressão que antecipa o título do livro Mímesis: desafio ao pensamento (2000), que serve de estímulo constante para este trabalho, e situa a questão da mímēsis, hoje, no espaço aberto pela poesia de vanguarda. A escolha me foi sugerida pelo ensaio de um amigo, que sublinhou essa dívida, em uma atenta réplica ao primeiro capítulo “Paradigma do sujeito e formas líricas” (2013), que esboçava as bases da pesquisa.1 Tomando de empréstimo o título desse artigo-resposta de João Guilherme Paiva,2 procuro concretizar o sentido que a expressão adquire dentro do recorte proposto. A pesquisa propôs confrontar, inicialmente, três configurações distintas das chamadas “formas líricas”, tendo como referências: a poesia mélica grega arcaica (VII-Va.C), a poesia lírica provençal e italiana da Baixa Idade Média (XII-XIVd.C.) e a poesia crítica francesa moderna (XIXXX), sem traçar uma pretensa linha evolutiva entre elas. Tratava-se de uma problematização das categorias de poesia, mímēsis e sujeito a partir de três momentos-chave, de mudança no estatuto dos três conceitos (capítulo 1). No primeiro quadro, o momento grego da análise, observa-se a ausência das noções de lírica e sujeito, sendo a poesia, em tese, integrada ao campo da mímēsis (objeto central da discussão). No segundo momento, pós-Dante, Arnault e Cavalcanti, aparecem os primeiros sinais da formação do paradigma do sujeito que vai caracterizar o início dos tempos modernos. Concomitante ao nascimento da categoria de "lírica", a partir da redescoberta da Poética e do silêncio de Aristóteles sobre a mélica, o gênero do eu por excelência se define, a princípio, dentro de uma concepção de mímēsis como imitatio, à qual deve-se submeter a expressão individual para ser integrada ao horizonte das “belas-letras”. Finalmente, no terceiro momento, pós-Baudelaire e Mallarmé, nota-se a mudança ocorrida na modernidade a partir da crise do conceito romântico de lírica, com a legitimação do paradigma do sujeito e o descarte da noção de mímēsis. Em todos os momentos, o que que se registra é a ausência de uma teorização da poesia propriamente dita – um saldo zero na correlação poesia e mímēsis: (1) silêncio de Aristóteles (no texto que conhecemos) sobre a mélica; (2) restrição do princípio de imitatio na concepção beletrística de lírica, a partir de Minturno; (3) abandono da categoria de mímēsis na ideia moderna de poesia como

Castañon, T. “Paradigma do sujeito e formas líricas”. in: Revista A!, n.1, 1º semestre de 2014, pp.83-112. Paiva, J. G. “Poesia, desafio ao pensamento”. Revista A!, abril de 2015. Disponível em: https://revistaa.org/2015/04/20/poesia-desafio-ao-pensamento/ 1 2

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“literatura”, primeiro como “expressão do sujeito”, em Schlegel, em seguida radicalizada no questionamento da própria ideia de lírica centrada no “eu”, com Mallarmé. Pound havia distinguido quatro momentos fundadores na história da poesia ocidental, marcados pela alternância de uma poesia vocal e outra escrita: (1) a mélica grega e (2) a lírica latina, (3) a lírica medieval de Provença e (4) a lírica clássica. A fim de definir um terreno concreto para a hipóstese de trabalho, propus mostrar que esses quatro momentos da categoria histórica de poesia podem ser acompanhados in loco na história das práticas de tradução, transmissão e interpretação de um poema de Safo, o fr. 31 V (Phaínetaí moi), a partir de três cortes privilegiados: o momento mélicolírico de Safo e Catulo (pós-homero), o momento lírico renascentista de Ronsard e Boileau (pósdante) e o momento concretista de Augusto de Campos (pós-mallarmé). Esse é o projeto geral. Para a tese de doutorado, optei por me concentrar no primeiro momento, o grego antigo, com ênfase na questão do sujeito, indagando pela possível relação entre mélica e mímēsis a partir desse fragmento privilegiado de Safo. De modo que o núcleo do trabalho se divide em duas seções mais extensas. A primeira parte, sobre a noção de pessoa na Grécia antiga (capítulo 2), procura concretizar o eixo temático da relação entre poesia e paradigma do sujeito no horizonte da mélica grega, a partir da pré-história da categoria do “eu” no período arcaico, visando fornecer o pano de fundo para a reconsideração da relação entre mélica e mímēsis na segunda parte, concentrada no fragmento 31V de Safo (capítulo 3). No primeiro estudo, sobre a categoria do sujeito, ressalta a contribuição fundamental de uma linhagem de pensadores de diversas áreas – antropologia (Mauss, Gernet), psicologia histórica (Meyerson), linguística (Benveniste), helenistas (Vernant, Detienne), filósofos (Blumenberg, Hadot, Foucault) – que repõem em questão a noção meta-histórica de indivíduo, permitindo uma releitura das teses da Snell-Fränkel school sobre o contexto histórico da poesia arcaica. Em seguida, procuro abordar o poema Phaínetaí moi sob a perspectiva de uma série de traduções poéticas particularmente representativas de cada etapa da história do conceito de poesia, como lâminas de diferentes espécimes. A tradução de Catulo (carmen 51), embora seja caracterizada como “lírica” em latim, ainda se integra no mesmo horizonte da mélica de Safo, ambos marcados pela ausência de “sujeito”. As traduções de Ronsard e Boileau reescrevem o poema dentro de uma perspectiva plenamente lírica, centrada no “eu”. Finalmente, as intraduções de Augusto de Campos (Pseudopapyros e olhos noite) acusam uma drástica mudança de horizonte, permitindo vislumbrar, junto às teorizações de Costa Lima e Haroldo de Campos, uma nova relação entre poesia e mímēsis capaz de recuperar (a) a noção de sujeito fora do modelo lírico, como instância do discurso ficcional (persona), e (b) a noção de mímēsis como categoria distintiva do poema, independente do silêncio de Aristóteles. 14

Observa-se entre os helenistas contemporâneos a noção predominante de que a poesia grega arcaica (mélica, iambo, elegia) teria sido excluída da Poética de Aristóteles, seja porque a categoria de mímēsis práxeōs (representação de ações), centrada no mŷthos (enredo), seria demasiado restritiva para abarcar os poemas de caráter não-narrativo no modo hōs autón (como o mesmo), que utiliza as formas da primeira pessoa; seja porque a própria poesia mélica não constituiria um discurso mimético, na medida que se define pela noção de performance como uma poesia de caráter fortemente pragmático. Essa é a tese defendida pelas leituras bastante influentes de Gustavo Guerrero, Claude Calame, entre outros, e, com variações, por Gregory Nagy, que propõe uma concepção antropológica de mímēsis ritual, por definição, excluída do domínio da Poética e oposta à noção moderna de ficção. No entanto, procuro mostrar (a) que a noção de performance não é suficiente para distinguir o discurso do poeta de seu antigo precursor, o poeta-sacerdote como “mestre da verdade” (Detienne), ou do discurso do sofista (Cassin), por exemplo, e (b) que ela pode, inclusive, ser um obstáculo para essa análise (de um ponto de vista estritamente pragmático, segundo Searle, o poema seria um enunciado parasitário), a não ser que seja reformulada sob uma perspectiva propriamente teórico literária. Com Wolfgang Iser, procuro contrapor à tese de Nagy e Calame da mélica como “ato de culto”, a noção do poema como “ato de fingir”, isto é, como modalidade de discurso performativo despragmatizado, distinguido pela cláusula “como se”; e com Costa Lima e Haroldo de Campos, procuro mostrar que o destaque da dimensão performativa pelo discurso ficcional, caracteriza uma modalidade de mímēsis como “produção de diferença”, distinguindo o que se pode chamar de um realismo de linguagem. O problema, dito de modo mais amplo, seria, portanto: como relacionar o poema mélico a uma noção de “ficção”, para a qual os gregos não tinham um termo correspondente (plásma)? O que se formula de modo concreto a partir de duas circunstâncias históricas: (i) como contornar o silêncio da Poética sobre o “grande gênero” da melikḗ ? (ii) como distinguir a performance do poeta arcaico das práticas de uma poesia de caráter pragmático, engajada em formas de culto e difusão de valores coletivos da pólis? A tradução e a análise detalhada que propus do fr. 31V (particularmente dos versos 9 e 13) e de oito versos do mito de Sísifo narrado por Ulisses no canto XI da Odisseia (a propósito da técnica do hiato empregado por Safo em kàm... glôssa éage, “a língua se quebra”) foi concebida para preencher essa lacuna, como uma modalidade de leitura crítica, no espírito poundiano da tradução – lançando mão de recursos poiéticos –, mas sem o propósito de recriar um poema em português. À diferença das versões literais habituais, que sobrepoetizam o poema a fim de oferecer uma “cópia” ou “sombra” do original, procurei manter não apenas uma literalidade da forma, mas também recriar ou recuperar na leitura em português, os efeitos de som e sentido não-literais do verso grego. Tratase de uma versão em prosa recortada, apenas disposta visualmente de forma equivalente ao texto. Nos 15

dois casos, importa observar que no poema grego arcaico, de Safo e Homero, a ênfase colocada na dimensão performativa da linguagem permite que a mímēsis não se limite à semelhança com “o que poderia ter sido”, mas se afirme plenamente como produtora de diferença. Privilegiando a análise empírica de aspectos da poesia arcaica negligenciados pela Poética e pelos intérpretes contemporâneos da mélica, a leitura propõe ampliar a discussão dos limites da mímēsis aristotélica a partir de indicações recolhidas em Demétrio de Falero, Dionísio de Halicarnasso, Pseudo-Longino e na segunda sofística; e indagando acerca da recepção antiga da Poética, suas relações com as categorias da mélica na classificação alexandrina dos gêneros transmitida por Dídimo Calcêntero, Diomedes e Proclo, por um lado, e suas relações com as categorias da mousikḗ na época clássica e arcaica (nómos e harmonía), por outro. Para terminar, cabe dizer que, ao lado da reconsideração da mímēsis por Costa Lima,3 a questão do poético e a problematização da categoria histórica da poesia aqui desenvolvidas encontram na poesia concreta a outra referência indispensável e a segunda “nutrição de impulso” determinante para a formulação dos problemas. Deve-se destacar, no entanto, num terceiro momento, quando os objetos da primeira etapa de trabalho se definiram, que foi no grupo menos prestigiado dos filólogos, helenistas e tradutores de poesia que a pesquisa encontrou o suporte necessário, especialmente nos livros de Paula da Cunha Corrêa e Giuliana Ragusa sobre a poesia grega, sem os quais este estudo teria sido impossível. Nos anexos, procurei privilegiar as traduções que me pareceram mais satisfatórias entre as existentes em português. Traduzi apenas o que não tinha uma versão prévia disponível e, sempre que possível, em confronto com traduções para outras línguas, para compensar a pouca prática de língua grega, que procurei exercitar e adquirir, ao mesmo tempo, conforme a necessidade da pesquisa. Por outro lado, o leitor deve notar que há traduções reunidas no anexo e na seção de documentos que não foram objeto de análise. Isso se explica pela limitação de tempo e espaço para desenvolver alguns temas. Mas achei preferível oferecer um aparato mais completo, para que o leitor possa avaliar por si mesmo os pontos não desenvolvidos na tese. Nesse sentido, a seção de “documentos” e a antologia crítica “Safo: desafio à tradução” complementam a interpretação do capítulo 3, fonecendo um enquadramento concreto do poema 31 V através de um conjunto mais amplo de traduções, paráfrases e paralelos representativos de diversas épocas do conceito de poesia. Rio das Ostras, fev. 2017

Castañon, T. “Mímesis repaginada (sobre três livros de Luiz Costa Lima)”. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n.161.01, Vitruvius, maio 2015. 3

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Paradigma do sujeito e formas líricas

As manifestações mais antigas do espírito lírico, no sentido específico que nos é familiar, só reluzem esporadicamente, assim como certos fundos da pintura antiga às vezes antecipam, carregados de presságio, a pintura de paisagens. Elas não estabelecem a forma. Aqueles grandes poetas do passado remoto que são classificados pelos conceitos histórico-literários como representantes da lírica, por exemplo, Píndaro e Alceu, mas também boa parte da obra de Walther von der Vogelweide, estão a uma distância descomunal de nossa mais primária representação do que seja lírica (Adorno: 2006, p. 70).

Três observações podem ser feitas em favor da advertência de Adorno, em seu Discurso sobre lírica e sociedade (1957). A chamada “lírica” grega, incluindo as formas da poesia mélica, a elegia, o iambo e o epigrama arcaicos (acrescidas do idílio e do poema visual ou tekhnopaígnion, “jogo de arte”, no período alexandrino), não coincide plenamente com o gênero lírico, ao menos como o entendemos desde a Vita Nuova de Dante. Mais próxima da canção (mélos, ōidḗ ), ela se encontra originalmente destinada a uma audiência no contexto de uma cultura oral, não a um público de leitores. Não só o adjetivo “lírica” (lyrikḗ ) e seu precursor “mélica” (melikḗ ), no sentido específico que lhe conferem os antigos, estaria ligado literalmente à performance musical, mas o próprio gênero, a rigor, ainda não existe. Em contrapartida, este se firma tardiamente, ao se desvincular da oralidade para desenvolver-se como forma escrita, apoiada na voz individual, independente do suporte oralmusical. Por sua vez, o eu que enuncia a poesia mélica grega, monódica e coral, e que permanece característico da poesia antiga até a lírica trovadoresca, se define como uma voz saturada de coletividade, marcadamente impessoal. Pelo que seria descabido falar de um “eu lírico” a propósito da poesia grega, seja por não se tratar de lírica propriamente dita, seja porque, enquanto agente da vontade e indivíduo psicológico, o sujeito tampouco existe (Mauss 2003, 2009; Vernant 2008a, 2008b). Em contrapartida, na poesia mélica arcaica, tanto a música quanto o que entendemos por lírica, e o próprio espaço de experiência do sujeito, seriam entendidos como formas de mímēsis, o que, para os modernos, seria o mesmo que falar... grego. Desde logo, para Aristóteles o homem se distingue dos outros seres vivos por sua capacidade privilegiada para a “representação” (mímēsis), pela qual adquire seus primeiros conhecimentos, desde a infância (Poét. IV. 48 b 5-9), e pode levar a termo tecnicamente o que a natureza não é capaz de executar por seus próprios meios (Fís. II. 8. 199 a 15-17). Uma concepção que valoriza o poema, na medida que visa delimitar sua tékhnē, mas restringe a atividade criadora do sujeito à margem de manobra prevista por uma moldura social, que abrange as duas formas da mímēsis práxeōs (representação de ações) e da mímēsis phýseōs (fabricação técnica). Enquadrando-se sob o princípio da plenitude de um cosmo em que não existem lugares vazios a ser ocupados pela invenção de algo 17

que não esteja inscrito em potência na phýsis (natura naturans), a mímēsis antiga supõe uma configuração de sujeito que, para falar com Adorno, se coloca a uma distância abissal da nossa mais primária representação do eu (Blumenberg, 2010). Junte-se a estas três restrições a insuficiência das estruturas tradicionais da poesia – rítmicas, rímicas e estróficas – em caracterizar o poema, que tampouco se confundem com a lírica, podendo ocorrer nos mais diversos gêneros e mesmo em textos não literários, como ironiza Octavio Paz: Tudo pode ser dito em hendecassílabos: uma fórmula matemática, uma receita culinária, o sítio de Troia e uma sucessão de palavras desconexas. Pode-se até prescindir da palavra: basta uma fileira de sílabas ou letras. Em si mesmo, o metro é medida despida de sentido (Paz, O.: 2012, p.76).

Como já afirmava Aristóteles no capítulo I da Poética, os escritos de Empédocles e Hipócrates, pertencentes à filosofia da natureza e à medicina, seriam impropriamente chamados de “poemas” por serem escritos conforme as regras do metro: “com efeito, as pessoas, juntando ao nome do metro a palavra poeta, chamam a uns poetas elegíacos e a outros poetas épicos, não os designando poetas pela mímēsis, mas pela semelhança do metro” (1447b 13-15). A que se contrapõe a situação atual: “hoje, seria válido afirmar-se também o contrário: não seguir um esquema métrico determinado, adotar uma ritmicidade irregular, não implica subtrair tal obra do corpo poemático” (Lima, L. C.: 2013, p.364). Pelo que, sem desprezar o interesse estético dos valores formais do verso, será preferível chamar de forma externa às estruturas de ritmo, rima e estrofação, por não caracterizarem o poético no poema, objeto do que Walter Benjamin chamou de sua forma interna (Gehalt) (Benjamin, W.: 2011). Do que decorre uma primeira dificuldade em relação à poesia antiga: se por um lado o verso (metro) não é critério suficiente da poesia, não constituindo sinal infalível da sua pertença a um gênero, por outro, a relação com a mímēsis, sugerida pelo horizonte pragmático da mélica arcaica e proposta no capítulo I da Poética, seria demasiado ampla para distingui-la dos outros gêneros. O que se agrava pelo fato de não ter chegado até nós nenhuma teorização explícita dos antigos sobre a mélica nem sobre a mímēsis, que, apesar de sua importância no tratado, não é definida no texto da Poética que conhecemos e só ocupa um lugar à margem no discurso da República. Mas principalmente pelo pouco que podemos ter acesso a esse pensamento apontar antes para a exclusão da mélica das formas reconhecidas de mímēsis, como ocorre declaradamente em Platão, ou dando lugar a interpretações contraditórias, em Aristóteles. Pondo em questão os critérios tradicionais da lírica, o pensamento grego propõe substituí-los, portanto, pela categoria da mímēsis, que se mostra (a) demasiado abrangente para identificar um gênero correspondente à lírica, e (b) da qual seria excluída justamente a mélica grega na opinião mais difundida entre os intérpretes modernos da Poética e especialistas em poesia arcaica. Por um efeito retrospectivo, costuma-se tomar por fundamento da lírica antiga o que se oferece como base da 18

literatura moderna, o primado da expressão individual, ausente, como tal, do horizonte grego. Por outro lado, desde que a ideia romântica de sujeito se afirma por oposição ao modelo tradicional de mímēsis como imitatio, a lírica seria, ao mesmo tempo, o gênero privilegiado de sua contestação e o paradigma da ideia moderna de literatura como expressão da subjetividade. Nesse sentdo, poderia ser considerada como “o cavalo de Troia que, desde o coração mesmo da teoria de Aristóteles, dará um fim ao reino da imitação poética” (Guerrero 1998,186). Mas como esta concepção tardia, centrada no “eu”, por sua vez, não permite distinguir o enunciado poético do autobiográfico, a marca diferenciadora do poema tende a se reduzir às características que o situam por oposição à prosa. Sem pretender uma crítica às formas tradicionais da lírica, ao verso ou aos gêneros (o que chamamos de sua “forma externa”), o que interessa investigar aqui é o conceito de poesia, no modo como foi pensado em três momentos particularmente significativos: na antiguidade grega, dando lugar à poesia mélica, iâmbica e elegíaca de Safo e Arquíloco; no início da idade moderna, com o surgimento da lírica propriamente dita, na ambiência de Dante e do dolce stil nuovo; e na abertura da modernidade, com o romantismo alemão e a poesia que parte de Baudelaire e Mallarmé em reação à crise do conceito normalizado de lírica. Cabe investigar, primeiro, (a) que estatuto a poesia mélica teria entre os gregos e em que medida se pode relacioná-la a uma consciência de gênero, para verificar em seguida (b) como o gênero lírico se relaciona à formação da ideia moderna de sujeito psicologicamente orientado; e, por fim, (c) como se caracteriza a poesia da modernidade, a partir da crise do paradigma fundado no eu, em que se baseia a ideia clássica e, sobretudo, romântica de lírica. A cada momento destacado do conceito de poesia corresponde uma situação diversa das formas líricas em relação aos problemas opostos da mímēsis e do sujeito. No mundo antigo, ainda não seria possível estabelecer uma ligação imediata entre lírica e mímēsis, uma vez que não existem o gênero e a individualidade lírica no sentido que os entendemos hoje, por um lado, e que a própria relação entre mélica e mímēsis se mostra problemática em Platão e Aristóteles. Nos tempos modernos, torna-se possível ligar a lírica à mímēsis, a partir de Minturno, desde que a recente afirmação do sujeito e a formação de um novo gênero lírico se reorganizam sob o princípio da imitatio. Finalmente, na modernidade, a partir da legitimação do paradigma fundado no sujeito, a relação entre lírica e mímēsis perde toda evidência, numa situação inversa à da mélica grega, resultando de uma crise do gênero lírico e da recusa da mímēsis como categoria distintiva. A cada quadro da indagação, portanto, a pesquisa se orienta pela relação diversa do conceito de poesia com os polos de atração da lírica, da mímēsis e do sujeito. Mas em nenhum dos três tempos encontra-se uma teorização suficiente do poema. Esta só encontra condições de desenvolver-se plenamente após a crise que define a experiência do poema moderno. Sobretudo a partir de Mallarmé, em cuja obra, completada a epoché dos critérios da mímēsis e do sujeito, o poema se identifica finalmente com o verso. Mas rompe, ao mesmo tempo, com a moldura silogístico-discursiva do 19

metro, dando lugar à ensaística de poetas críticos (Valéry, O. Paz, poetas concretos) e considerações de teóricos da literatura (Benjamin, Jakobson, H. Friedrich, Adorno) que inauguram o questionamento sobre a lírica moderna. De Aristóteles a Mallarmé estende-se, pois, o arco da reflexão teórica sobre o poema. Em poucas palavras, a questão levantada não consiste no problema da extensão legítima ou ilegítima do conceito convencionalmente aceito de “lírica” à poesia grega ou medieval, para a qual ele ainda não vale, ou à moderna, para a qual já não basta. Pois antes que a designação de uma modalidade histórica particular das formas líricas, trata-se de perguntar pelo que permite chamar tanto Safo e Catulo, como Dante e Arnault Daniel, quanto Baudelaire e Mallarmé, igualmente, de poetas, enquanto praticantes de modalidades distintas de uma mesma forma discursiva – entendendo por “poesia” um conceito transversal, de validade meta-histórica, independente de tratar-se da mélica arcaica, da lírica clássica ou do poema crítico moderno, em que se reconhecem três configurações, talvez privilegiadas, das formas líricas. Trata-se de uma investigação teórica, não da descrição de uma concepção histórica localizada. Se a análise pede auxílio ao historiador dos conceitos é na medida em que visa atingir, para além dos estados sucessivos de uma categoria, a temporalidade de um problema teórico. Mas trata-se de um recorte preciso, apesar da aparente abrangência. A partir da oposição entre três configurações temporais discordantes tentaremos fazer aparecer a razão histórica do problema, de sua permanência e do apelo constante dirige ao pensamento. Percurso fatigante, sem dúvida, cuja meta será o abandono da concepção substancialista de poesia e da ideia de sujeito que a define, pelo relacionamento de ambos à categoria da mímēsis. Para tanto, comecemos por descolar o poema do conceito tradicional de lírica, examinando as diferenças entre os três momentos.

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1. Mélica arcaica e ausência do eu

Tanto pela farta documentação em que se apoiam, quanto pela agudeza das análises que contêm, Fragmentos de uma deusa (2005) e Lira, mito e erotismo (2010) seriam dignos de causar inveja a qualquer helenista. Sobretudo na introdução do trabalho mais recente dedicado à poesia grega arcaica, Giuliana Ragusa apresenta uma densa pesquisa sobre os problemas de classificação do gênero lírico na antiguidade. Embora não pretenda tratar diretamente da relação com a mímēsis, que nos ocupa, sua investigação fornece uma base firme para o encaminhamento da questão, explorando a relação da lírica com o pressuposto do sujeito. Partindo da constatação da precariedade do conhecimento disponível sobre os autores, seus contextos e gêneros poéticos, antes de iniciar uma incursão pela obra dos poetas que propõe investigar, a autora retoma o problema da difícil definição do corpus dito habitualmente lírico na antiguidade. Sem pretender uma exaustiva história do conceito, Ragusa observa que a nomeação poesia lírica tem duas acepções principais. No sentido moderno, mais abrangente, o adjetivo “lírica” é usado para nomear a poesia grega arcaica não hexamétrica e não dramática, incluindo toda poesia do séc. VII a.C. ao V a.C., com exceção apenas dos poemas épico e dramático. É a denominação mais usual, por ela se definindo um gênero que abarcaria diversos subgêneros (Ragusa, G.: 2012, p.24). Porém, no sentido antigo, de alcance mais restrito, “lírica” corresponde mais precisamente à poesia mélica, dela se distinguindo a elegia, o iambo e o epigrama, e posteriormente o idílio. Essa teria sido, pelo menos, a denominação utilizada pelos antigos editores e teóricos alexandrinos, que estabeleciam suas diferenças baseando-se em características de metro, matéria e adequação. Nesse sentido, “lírica” não abarca uma gama variada de subgêneros, mas um só gênero autônomo, maximamente representado pelo cânone dos “nove líricos” (id., p.26ss.). Pelo que, na acepção antiga, lyrikḗ poderia ser substituído por melikḗ , termo que se presta melhor à caracterização da especificidade do gênero. Trata-se, como recorda a autora, de uma acepção que remonta à Biblioteca de Alexandria e à edição realizada por Aristófanes de Bizâncio, salientando que, a rigor, o termo lyrikḗ , “como nome do gênero de canções destinadas à performance ao som da lira, só entrou em circulação tardiamente [...], na era helenística (c.323-31 a.C.)” (id., p.30): desde que começa a ser usado no século II a.C., entende-se que tais poetas são os que produziram, entre c.650-450 a.C., canções para canto acompanhado do som da lýra ou outro instrumento de cordas. Eis o sentido da lírica na acepção antiga, que compreendia a canção monódica, entoada em solo, e a coral – a molpḗ por excelência, no termo que combina música, dança e palavra –, na qual à lira se agregavam outros instrumentos. (id., p.28-29)

Segundo Bruno Gentilli, em tempos mais arcaicos, a palavra comum para designar a poesia era mousikḗ e o termo para o poeta era aoidós (cantor) e, mais tarde, a partir do século V a.C., 21

melopoiós (fazedor de canções) e poiētḗ s. Sendo o nome mais habitual para referir a obra lírica, o poema cantado propriamente dito, conforme Budelmann, o substantivo mélos, “usado por vários líricos arcaicos com referência a suas composições” (apud id., p.30). No entanto, apenas aproximativamente mélos se deixa traduzir por “canção”, pois o termo não corresponde plenamente à noção moderna de “música vocal”. Além de mélos, acrescenta Herbert W. Smyth, eram usados como nome geral de “canção”, também, âisma e ōidḗ . Embora “ode”, em sua acepção mais restrita como “poema meramente cantado”, às vezes pareça denominar a lírica, usurpando o lugar de mélos, utilizado mais propriamente para “quando as palavras tenham sido arranjadas para música do começo ao fim” (apud id., p.31), não obstante, adverte Gustavo Guerrero, “toda analogia que evoque o predomínio da música sobre o texto ou inclua uma relação de paridade entre ambos falseia a perspectiva”, sendo alheia ao horizonte da mélica grega, na qual, segundo Eric Havelock, “a melodia permaneceu serva das palavras, e seus ritmos foram moldados para obedecer à pronúncia quantitativa da fala”. (apud id., p.33). De fato, a paridade de motz el son (palavra ao som) como raiz da canção moderna, surgida na antecâmara da lírica moderna com a arte dos trovadores provençais, encontra plena realização em Arnault Daniel, no século XII d.C., no contexto de uma afirmação mais ampla da poesia vernácula que abre o caminho para a lírica moderna. Mas o gênero lírico propriamente dito, ainda em formação, só se esboça por volta do século XIV, ao se desvincular da música, fixando-se como forma escrita, sendo finalmente codificada pela poetologia do século XVI, com Minturno. O que enseja a penetrante observação de Octavio Paz que poderia se aplicar a esses “dois nascimentos” da poesia como arte oral: “a poesia ocidental nasceu aliada à música; depois as duas artes se separaram [nas tradições escritas de Horácio e Petrarca], e toda vez que se tentou reuni-las o resultado foi um conflito ou a absorção da palavra pelo som” (Paz, O.: 2012, p.91-92). Com efeito, foi somente no período helenístico que lyrikḗ veio substituir definitivamente mélos, designando o poema cantado ao som da lira, mas justamente quando os padrões sociais que moldaram e sustentaram a lírica grega já estavam mortos ou em acentuado declínio e quando a perda das melodias monódicas e corais já havia tornado impossível saber, com algum detalhe, como palavra e som se integravam na prática da performance grega. Segundo Bruno Gentilli, foi a partir desse momento que “a poesia do passado passou a ser lida como literatura pura e simples”, embora ainda fosse recitada, marca da cultura oral em que se produziu (apud Ragusa, G., p.34-35). O problema, nesta explicação de Gentilli, reside apenas no termo empregado para a mudança de vocabulário: ao falar em “literatura”, a propósito do período helenístico, o autor supõe que já se esboça uma primeira noção de “lírica” no sentido moderno? Visto que o interesse dos eruditos de Alexandria se concentrava exclusivamente nas palavras dos poetas, seja porque nada sabiam da música que as acompanhava, ou porque não se interessavam 22

ou não mais a compreendiam, ainda que possam ter tido acesso a ela, como salienta G. Most, “os acadêmicos realizaram uma primeira seleção ao filtrarem o mélos dos poetas mélicos [...] e apresentarem a poesia, em suas edições, como palavras em metro” (id., p.37). Esse processo de mudança de horizonte é bem sintetizado em R. Pfeiffer: Ao verso que era cantado para a música e, muito frequentemente, a dança, e era composto de elementos de ritmos e tamanhos variados, chamava-se melikḗ ou lyrikḗ poíēsis. Um poema lírico era um mélos na literatura grega arcaica, o poeta, melopoiós, fazedor de canções, ou melikós, [...] e o gênero todo, melikḗ poíēsis. [...] Mas, em referência a edições de textos e em listas de “fazedores”, os autores são nomeados lyrikoí; [...] Os principais poetas eram sempre ditos os ennéa lyrikoí (nove líricos) e, do século I a.C. em diante, sua obra passou a ser designada lyrikḗ poíēsis, isto é, “poesia cantada ao som da lira” [...] Escritores latinos ocasionalmente usavam melicus [...], mas lyricus se tornou o termo comum na era de Augusto e mais tarde. [...] Mesmo nos teóricos latinos, melicus foi destituído por lyricus, e as derivações daquele se tornaram cada vez mais termos puramente musicais. O uso moderno de lírica [...] vem da literatura latina (apud id. p.31-32).

Mas que o nome “lírica” viesse a substituir “mélica”, não significa que esta se aproximasse de sua acepção moderna, como salienta G. Ragusa, pelo contrário: a maior dificuldade para se acercar da singularidade da lírica grega deriva menos de sua sujeição pelo pragmatismo romano que do sentido romântico do termo “a apontar para a ideia de uma poesia subjetiva, confessional, fruto do derramar dos sentimentos do poeta e de seu gênio” (id., p.24-25): Essa concepção, transportada para a lírica grega arcaica, que se torna “repentina explosão do ego” [...] é ainda mais equivocada do que no caso da lírica moderna, pois aquela, ao contrário desta, só existia na performance a uma audiência, plenamente inserida na vida da comunidade e da pólis. (id., p.25)

Para embasar seu argumento a autora recorre a um vasto elenco de especialistas. A começar por Gregory Nagy, que critica em Pindar’s Homer (1994) a “noção, tenazmente em moda, [...] de que a lírica grega arcaica representa a ascensão da inovação individual sobre a tradição coletiva” (apud id., p.26). Noção que combinada à “moda biográfica da crítica literária [...] obscureceu a prática retórica dos poetas antigos”, como como observa Diskin Clay em “The theory of literary persona in Antiquity” (1998) (id.). Mais incisiva, Anne Pippin Burnett (1983) ressalta que a lírica arcaica “é mais engenhosa e menos apaixonada, mais convencional e menos individual do que os que advogam essa noção [de uma explosão da individualidade] desejariam” (id.). Também contra essa concepção anacrônica, Wolfgang Rösler (1985) insiste tratar-se de uma poesia oral e de ocasião “fincada no sistema social de uma pólis grega arcaica” (id.). E nas palavras precisas de Leslie V. Kurke (2007): o que sabemos das exigências da performance desafia radicalmente a leitura do “eu” lírico como a espontânea e não mediada expressão do indivíduo biográfico. A poesia e a canção gregas arcaicas sempre foram compostas para uma performance pública, marcada e representada num lugar especial. Isso significa que, mesmo antes do desenvolvimento completo do drama em máscaras, o falante ou cantor estava sempre representando (apud id., p.26, grifo nosso). 23

Como falar em expressão individual quando o discurso é regulado por um conjunto de práticas coletivas que determinam sua circulação num contexto de transmissão oral, convertendo o próprio papel do locutor que diz “eu” num lugar vazio, disponível para ser assumido por uma série de recitantes e aedos sucessivos? Por outro lado, como falar propriamente em mímēsis num contexto, assim, previamente delimitado pela função pragmática do poema? Nesse sentido, a ideia de um “eu” representativo para distintas audiências, independente de uma representação do sujeito privado, constitui o extremo oposto da noção moderna de poesia da alma. Por isso, como já defendia Herbert W. Smyth em sua edição de 1900, Greek melic poets: “mais apropriado do que lírica, como uma designação exata e inclusiva de toda a poesia cantada com acompanhamento musical, é mélica, o termo em voga entre os gregos da era clássica” (apud id., p.32). Para Ragusa, a vantagem da nomeação “poesia mélica” – termo inexistente em português, cunhado a partir do adjetivo melikḗ , derivado de mélos, cuja tradução por “canção” seria incapaz de conservar seu significado original – para designar o que impropriamente se costuma chamar de lírica grega, se justifica à medida que indica não só um objeto diverso da lírica moderna, mas um objeto que precisa ser conhecido: “se o nome ‘lírica arcaica’ leva a pensar em algo que deve ser semelhante ou igual à lírica moderna, gerando expectativas e projeções errôneas, ‘mélica’ identifica um objeto desconhecido, para o qual um olhar deve ser construído” (id., p.32). O que nos aproxima do núcleo do nosso tema, na medida que à margem do estatuto da poesia grega, assomam os primeiros indícios de sua possível articulação com a mímēsis. Citando Bruno Gentilli, em “Lo ‘io’ nella poesia lirica greca” (1990), Ragusa principia sua abordagem teórica pelo vínculo estabelecido na base da compreensão equívoca da mélica grega pela suposta dependência da “voz própria” do poeta: a “relação estreita com a vida social e política” confere ao gênero um caráter “pragmático, eminentemente”: a lírica arcaica (elegia, iambo e mélica) “não foi intimista, no senso moderno”, pois só existia integrada na vida da comunidade em meio à qual circulava oralmente – suas composições, previamente feitas ou não, destinavam-se a performances de maneiras, em ocasiões e para audiências precisas. (id., p.33)

Por caráter eminentemente pragmático, a autora entende dois aspectos: inserida numa “cultura da canção”, até o século V a.C., a poesia grega, recitada ou cantada na performance, seria “o veículo principal para a disseminação de ideias morais, políticas e sociais” (John Herington, 1985, apud id., p.33). Em seguida, importa notar que este status determina, em toda a poesia antiga, uma maneira de compor centrada num gênero, cujas “leis”, na época arcaica, conquanto não estivessem redigidas, não deixavam de estar presentes na consciência dos autores, como esclarece Paola A. Bernardini (1991): [o poeta arcaico] não compunha seu canto buscando obedecer a regras correspondentes a uma tipologia preestabelecida, nem era condicionado pela exigência de respeitar as regras de um “gênero 24

literário”. Era a relação com a atualidade que, ao nível pragmático, o vinculava a um certo programa. Era o tipo de cerimônia para a qual ele compunha seu canto que inspirava, a cada vez, os conteúdos consoantes à circunstância. (apud id., p.33-34)

Assim, na lírica antiga o “eu privado” se mostra previamente “inserido numa moldura social”, conforme a precisa formulação de Glenn W. Most (1982), não havendo, como na moderna, um “confronto entre o eu-lírico e a sociedade”. (apud id., p.35). Também sua composição, complementa Francisco Achcar (1994), começaria por aderir, desde seu método de composição, ao “paladar social”, às regras estabelecidas e às expectativas suscitadas por elas no público. (id., p.35-36). Dado esse contexto das condições de circulação da chamada lírica grega, cumpre particularizar, dentro desta, o âmbito da poesia mélica. Uma questão recentemente debatida entre helenistas chama atenção para o fato de não haver sinais de uma clara divisão entre as duas modalidades mélicas, coral e monódica, pois “os antigos não parecem tê-la dividido, como os modernos, em duas modalidades praticamente estanques” (id., p.38). Em “Monody, choral lyric, and the tyranny of the hand-book” (1988), M. Davies reconhece: “houve uma poesia coral e monódica [...], mas é perigosamente enganoso falar em poetas corais e monódicos, pois a maioria dos líricos era suficientemente versátil para praticar ambas as categorias”. (apud id., p.41). A que acrescenta Chris Carey (1989): “se, por um lado, não devemos insistir resoluta e rigidamente na divisão moderna entre poesia coral e monódica, há evidência de uma distinção formal entre as duas”, que passaria por aspectos como métrica, conteúdo e performance, que não deve ser desprezado (apud id., p.42). Deixando de lado os aspectos relativos à métrica e ao conteúdo, importa reter a observação de Gustavo Guerrero (1998), para quem as composições mélicas em qualquer modalidade, estando destinadas, desde o início, à execução pública ou privada, “constituíam por definição, uma poesia de e para a voz”. Donde o forte caráter circunstancial, pelo qual ela aparece dominada por um maior traço [...] de literatura oral, que reflete a relação direta do texto com um local e um momento precisos, um espaço e um tempo ritualizados [...]; daí os índices textuais de um discurso situacional, que se expressam através do uso de certas figuras pronominais e de marcas do presente, signos que traduzem a interação geral entre o sujeito da enunciação e seus destinatários. Estes formam, sem dúvida, um público de ouvintes e espectadores que, como horizonte de recepção, provavelmente pouco ou nada tinham a ver com o das odes de Horácio (apud id., p.43).

A começar pela mélica monódica, “destinada a ser apresentada em contextos mais próximos aos da comunicação espontânea face a face”, como observa Giovan D’Alessio (2004), nela seria esperado “um grau maior de imediatismo” (apud id., p.44). Recompondo minimamente o cenário em que se desenrolava sua performance, diz Ragusa, encontramos “uma variedade de audiências e de ocasiões de performance, com destaque para o simpósio, central também para gêneros como a elegia e o iambo” (id., p.44). Como frisa Massimo Vetta (1995), “no mundo grego de até meados do século V a.C., em que não estava previsto “um público de leitores”, o simpósio funcionava como um “lugar 25

de conservação e evolução da cultura ‘literária’ relativa a todos os temas que resultam alternativos ao interesse ecumênico do épos e à ambientação exclusivamente pública do canto religioso oficial e da lírica agonística” (apud id., p.44). Mas se o próprio lugar por excelência de transmissão da poesia mélica abre espaço a temas alternativos ao “interesse ecumênico do epos” e à “ambientação exclusivamente pública do canto religioso e da lírica agonística”, que função pragmática distingue a performance da canção no simpósio? Não obstante a restrição de gênero que presidia estas reuniões, exclusivas de indivíduos do sexo masculino, Ragusa chama atenção para dois fragmentos de Alceu (fr.10 V) e Anacreonte (fr.385 P) nos quais a primeira pessoa do singular assume uma persona feminina, e observa que “ambos os fragmentos instauram a situação de um ‘eu/nós’ que se endereça a um ‘tu/vós’, típica na elegia, no iambo e na mélica arcaicos, todos orientados para o outro, e não para o eu” (id., p.49, grifo nosso). Alceu Fr.10 V (P.Oxy. 1789 e 2166 [séc.I d.C.]) ⊗

Ἔμε δείλαν, ἔ⸥με παίσ⸤αν κακοτάτων πεδέχοισαν⸥ δομονο̣[ ]ε̣ι μόρος αἶσχρος ἐπὶ γὰρ πᾶρ⸥ος νίατον ⸤ἰκ ἐλάφω δὲ⸥ βρόμος ἐν σ⸤τήθεσι φύει φόβερος⸥, μαινόμενον [ ] ἀυάταις’ ὠ[ “A mim, mísera, a m⸥im, de tod⸤os os males partilhando⸥ ... casa (?)[ ]... destino odi[oso pois me sobrev ferida ncurável, e⸥ o ventre ⸤do cervo⸥ no p⸤eito cresce temeroso˼, e]nlouquecendo [ ] com obsessões ...[ ” (Giuliana Ragusa) Anacreonte Fr.385 PMG ἐκ ποταμοῦ ’πάντα φέρουσα λαμπρά

venho do rio carregando (a água) toda brilhante4 (Giuliana Ragusa) 4

forma verbal feminina phérousa, 1ª pess. sing. fem. particípio “trazendo, portando, carregando”.

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Sendo frequente no âmbito dos simpósios, como ressalta Bowie, “o fato de os textos terem uma voz poética feminina não significa, em absoluto, que tenham sido ‘por mulheres compostos’”, como os poemas de Safo. Mas tampouco implica que se destinassem ao canto executado por mulheres, como ocorre, podemos acrescentar, nos partênios de Álcman, por definição destinados a um coro feminino. Os fragmentos de Alceu e Anacreonte “são mais bem vistos como evidência do entretenimento mútuo dos homens no simpósio pela representação – em canção, pelo menos – de um papel feminino” (apud id., p.49, grifo nosso). É digno de nota que na tragédia aparece três vezes a expressão gynaikómimos (γυναικόμιμος), “imitação de mulheres” (Ésq. Prom.1004; Sóf. Fr. 702 Nauck [= Clem. Al. Paedag.III. 53.5]; Eur. Bac.980), como um termo composto já tradicional.5 Vale à pena explorar a pista com um retrospecto mais localizado. Como se sabe, em sua acepção pré-conceitual o termo mímēsis aparece, a princípio, vinculado aos campos semânticos da dança e da música, particularmente da música coral (a molpḗ por excelência), como se encontra em alguns poemas e fragmentos de Píndaro (Pítica XII.18-21. Partenaica II.33.37 e Hipórquema fr.107a S), distinguindo-se do sentido tradicional (latino e moderno) de “imitação” como mostrou Hermann Koller (apud Lima 1995; 2000; 2003). Mas entre as atestações mais antigas, cabe precisar que, ao lado do poeta tebano, no Hino Homérico a Apolo (I.156164), nas Coéforas (vv.563-4) e em uma passagem conservada da peça Os Edônios (fr. 57 Nauck) de Ésquilo, o termo já se identifica mais precisamente como representação vocal, pelo uso da palavra cantada ou falada, eminentemente ouvida, ao lado da acepção mais geral de “imagem semelhante” em outro fragmento de Ésquilo (P. Oxy. 2162), na peça satírica Theōroì ḕ Isthmiastaí (O Espectadores). Central na concepção oral de poesia, é significativo que mesmo em Aristóteles, inserido numa etapa mais avançada da cultura escrita, a phōnḗ (φωνή), a “voz”, seja considerada o órgão “mais mimético” (μιμητικώτατον, Rhet. III.1.1404 a 21-22). Nos termos de Platão e Aristóteles, desde que a atenção do filósofo passa a se concentrar exclusivamente na palavra (lógos) e na imagem (eikṓ n), o próprio da mímēsis seria o modo de elocução em que o agente fala “como um outro, e não o mesmo” (ὡς ἄλλος τις ὁ λέγων ἢ αὐτός, Rep. III.393a7), “como se fosse outro” (ὥς τις ἄλλος ὤν, Rep. III.393c1). Na formulação mais abstrata de Aristóteles, trata-se de fazer-se semelhante “como se se tornasse outra coisa” (ὡς ἕτερόν τι γιγνόμενον, Poét. III.48 a 19-22), efetuando uma “mudança” (metabállonta) de agente, que o indefinido ti circunscreve da forma mais genérica possível como “algo” ou “alguém”, seja homem, mulher, coisa, animal ou deus (Dupont-Roc e Lallot 2011:160). Comum nas fábulas (aînos) de Arquíloco e nos epigramas fúnebres de Simônides de Céos, em que falam na primeira pessoa, respectivamente, os animais e os mortos, bem como na célebre 5

apud Claudio W. Veloso, 2004, p. 741 ss.

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alternância de locutoras do Hino a Afrodite em que Safo fala como se fosse a deusa (respondendo a uma assinatura oral chamada “Safo”, onde o “eu” se converte em destinatário da mesma locutora), para Aristóteles dois fragmentos de Arquíloco citados na Retórica seriam particularmente representativos desse modo de enunciação. No primeiro, diz o filósofo, o sujeito da locução é o carpinteiro Caronte, no segundo fala um pai sobre a filha: Fr. 19 W [trímetro] (Plut. De tranq. anim.470 b-c; Arist. Rh. 1418 b 28) Οὔ μοι τὰ Γύγεω τοῦ πολυχρύσου μέλει οὐδ᾽ εἶλέ πώ με ζῆλος οὐδ᾽ ἀγαίομαι θεῶν ἔργα, μεγάλης δ᾽ οὐκ ἐρέω τυραννίδος· ἀπόπροθεν γάρ ἐστιν ὀφθαλμῶν ἐμῶν. Não me interessam as riquezas de Giges multiáureo, nem jamais me tomou o zelo, nem invejo as obras dos deuses, nem desejo a grande tirania: pois estão distantes de meus olhos. (Roosevelt Rocha) Fr. 122 W [tetrâmetro] (P.Oxy. 2313 fr.1a; Stob. 4.46.10; Arist. Rh. 1418 b 28; Plut. de facie lun. 19.931 e) Χρημάτων ἄελπτον οὐδέν ἐστιν οὐδ᾽ ἀπώμοτον οὐδὲ θαυμάσιον, ἐπειδὴ Ζεὺς πατὴρ Ὀλυμπίων ἐκ μεσημβρίης ἔθηκε νύκτ᾽, ἀποκρύψας φάος ἡλίου λάμποντος. ὑγρὸν δ᾽ ἦλθ᾽ ἐπ᾽ ἀνθρώπους δέος. ἐκ δὲ τοῦ καὶ πιστὰ πάντα κἀπίελπτα γίνεται ἀνδράσιν. μηδεὶς ἔθ᾽ ὑμέων εἰσορέων θαυμαζέτω, μηδ᾽ ἐὰν δελφῖσι θῆρες ἀνταμείψωνται νομόν ἐνάλιον καί σφιν θαλάσσης ἠχέεντα κύματα φίλτερ᾽ ἠπείρου γένηται, τοῖσι δ᾽ ἦι δύνειν ὄρος. Ἀρ]χηνακτίδης ]ητου παΐς[ ]τυθη γάμοι[ ]..αινε..[ ]νεῖν· ] ἀν]δράσιν· ].[ ].[ ] Das coisas, nada é inesperável, nem se pode jurar impossível ou admirável, uma vez que Zeus, pai dos Olímpios, do meio-dia fez noite, ocultando o brilho do Sol luzente, e lúgubre temor sobreveio aos mortais. Desde então, tudo é crível e pode ser esperado pelos homens. Nenhum de vós deve se admirar do que vê, nem se com golfinhos as feras trocarem o pasto marinho e, para essas, as sonantes ondas do mar forem mais caras e, para aqueles, o monte relvoso. 28

Ar]quenáctida ]... filho(a?)[ ]... bodas[ ]…[ ]… ] ho]mens ].[ ].[ ] (Paula C. Corrêa)

Se na Poética a expressão hōs héteron ti caracteriza especificamente o modo épico de Homero, por oposição ao dramaturgo em que os personagens representam “como se agissem [por si mesmos]” (hōs práttontas) e ao modo em que o poeta fala “como o mesmo” (hōs autòn), no livro III da Retórica a mesma locução caracteriza tanto o poeta iâmbico como o trágico, estendendo-se além da narrativa épica: assim como Arquíloco faz com o pai em relação à filha, num contexto de reprovação (psógos), e com o simplório carpinteiro em relação ao tirano multiáureo, numa possível exortação (paraínos), também Sófocles coloca o irmão Hémon para defender Antígona no versos 683-709, num contexto diverso, de elogio (epaínos), “falando como se fosse outro”, hōs legóntōn héterōn (ὡς λεγόντων ἕτερων, Rhet. III.1418 b 32-32). Ora, já perguntaava Platão, “tornar a si mesmo semelhante a um outro (homoioûn heautòn állōi) seja pela voz (phonèn), seja pela figura (skhêma) não é o mesmo que representar (mimeîsthai) aquele que queremos assemelhar (homoioî)?” (Rep. III.393c5-6). Importa registrar que, em todos estes casos, a expressão recorrente, associada à mímēsis na acepção primeira de representação vocal, a locução hōs + particípio, “como se”, acompanha a diferenciação dos modos (en hoîs) de elocução tanto na República como na Retórica e na Poética. Embora se possam tomar esses indícios como siginificativos da plasticidade do agente da locução em primeira pessoa, dentro e fora da mélica, bem atestada nas diversas formas da poesia grega arcaica, a ausência de uma noção explícita de “ficção” (plásma) e “persona” (prósōpon) no pensamento grego opõe uma resistência considerável à projeção de uma concepção equivalente num contexto tão distinto do nosso. O que se agrava na medida que os gregos não nos transmitiram uma teoria da mímēsis que pudesse privilegiar o modo de elocução hōs autòn (como o mesmo) e o uso do chamado “discurso direto”, que Platão considera francamente não-miméticos. Apenas em Aristóteles se esboça uma classificação da locução hōs autòn como um dos modos da mímēsis. Mas como o próprio autor desaprova seu uso pelo poeta épico com argumento semelhante ao livro 3 da República, como um modo inadequado para realizar o “efeito próprio” da mímēsis narrativa (διηγηματικὴ μίμησις, Poét. 24. 59 b 36-37; 60 a 5-8); somada ao privilégio que a Poética confere à composição do enredo (mŷthos) e à representação de ações (mímēsis práxeōs), a dificuldade se torna quase intransponível, na medida que é mantida pelo intérprete contemporâneo da poesia grega. Pois se este reconhece a distância que a separa da ideia tradicional de lírica centrada na semelhança com o “eu” 29

do locutor, como expressa Calame: “a poesia mélica, sem distinguir por isso o advento do indivíduo moderno, deixa um amplo espaço ao narrador; o locutor efetivamente manifesta-se aí nas formas gramaticais de uma primeira pessoa que se identifica, aliás, muito rapidamente, com o enunciador real do poema, quando não com seu autor” (p.4) – resta saber como explicar esse “eu”, sem reintroduzir uma noção de sujeito biográfico ou sem suspender a própria diferença entre os discursos, capaz de distinguir a palavra poética, em vista da insuficiência do legado teórico antigo? Se nos contentarmos em retomar a distinção enunciativa elaborada por Platão e reorientada por Aristóteles, em suas respectivas tentativas de definir as formas da mímēsis, o modo épico poderá coincidir com uma representação de tipo narrativo, ao passo que o modo mélico se revelará próximo da representação dramática. Contudo, com essa diferença de que se, no primeiro caso, o narrador desaparece por trás dos atores do espetáculo, no segundo, a ausência dessa delegação de formas do eu aos atores – como na tragédia ou comédia – faz do narrador o protagonista principal da ação narrada. Razão pela qual essa poesia do eu, mélica, é apagada, justamente por Platão e por Aristóteles! Quando, na poesia mélica, o narrador-locutor assume, pelas diferentes formas do eu, uma parcela das ações enunciadas, o discurso não comporta mais a distância instituída pela narração épica ou pela representação cênica da tragédia; não se trata mais da ordem do mimético propriamente e, portanto, da poesia. Ele se confunde com a ação: torna-se poema de ação, senão ato de linguagem (Calame, p.47-48).

A formulação de Claude Calame tem a vantagem de expor claramente o limite da linha teórica mais recente centrada na categoria da performance. Se o poema mélico se exclui do âmbito da mímēsis, não é porque seja a “expressão da individualidade”, mas porque se trata de uma poesia pragmática, engajada em “atos de culto” de caráter ritual. Nisso o autor é consequente: não se trata, pois, sequer de “poesia”, seja no sentido mimético dos antigos, seja no sentido lírico dos modernos, mas, segundo o autor, de uma “etnopoesia”. Em sentido oposto à tese de Calame, os fragmentos de gynaikómimos em Alceu e Anacreonte, as atestações mais antigas de mimeîsthai em Píndaro, Teógnis e no Hino a Apolo, bem como inúmeros exemplos de locução mélica no modo hōs héteron, em Arquíloco, Safo e Simônides nos oferecem um ponto de partida privilegiado para tentarmos uma via diversa, capaz de refutar tanto essa linha de interpretação pragmática quanto aquela a que se opõe, a concepção biográfica e sociológica. Pois, como pretendo mostrar, desarticulada de uma noção consequente de mímēsis, a categoria da performance privilegiada pelo teórico atual da mélica pode gerar distorções analíticas tão graves quanto as escolas anteriores. Mas como a motivação inicial da escola pragmática coincide com nosso interesse em desobstruir a via da leitura lírica, é indispensável acompanhar a crítica aprofundada pelo helenista contemporâneo a partir do destaque estratégico da noção de “performance” a fim de preparamos o salto a ser tentado. Se o simpósio era “uma ocasião bastante adequada ao caráter mais informal e privado da mélica monódica”, é preciso ressaltar, como bem recorda Ragusa, que “os conceitos modernos de ‘público’ e ‘privado’ não correspondem inteiramente ao entendimento que deles tinham os antigos” (id., p.49). Como observa Glenn Most, com requinte de precisão: 30

[a] aparente privacidade da canção monódica não é do individual espontâneo, introspectivo, mas, antes, do pequeno grupo fora do qual o sujeito grego arcaico mal pode ser concebido. [...] Por sua própria natureza, portanto, centra-se nas relações pessoais entre um poeta individual e outro membro de seu próprio grupo de amigos, ou entre ele e o grupo como um todo, ou ainda entre ele e indivíduos de fora desse grupo. [...] Logo, em geral, a poesia monódica tem dois modos principais: erótico para com os de dentro do mesmo grupo, de invectiva, contra os de fora (apud id., p.50, grifo nosso)

Destas indicações recolhidas por Ragusa, ressalta, desde logo, a importância de dois traços: (a) a referência constitutiva da locução do “eu” a um “outro” tomado como marco valorativo dentro da própria modalidade erótica, supostamente mais pessoal, visto que a monodia “era apresentada em ocasiões informais, para pequenos grupos ligados por laços de amizade [philía] e interesse comum, e cumpria a função social de unir esses grupos em todos coesos e separá-los ou colocá-los em oposição a outros grupos numa mesma cidade” (apud id., p.50). Impessoalidade do “eu”, exigida pela função do canto monódico na transmissão de uma cultura oral, que se desdobra (b) pela representação de papéis no interesse mútuo dos simposiastas a que se dirige a performance do aedo, na qual o melikós podia fazer as vezes de mimētḗ s assumindo a locução hōs héteron, fazendo-se semelhante a um outro através de uma “mudança da voz” do locutor. Ao passo que a canção monódica tem lugar privilegiado no simpósio, voltado para o mundo relativamente “privado” dos pequenos grupos, de sua parte a mélica coral assume um caráter francamente público e mais fortemente ritualizado, sendo consagrada no âmbito de festivais cívicoreligiosos em que se desenvolvia a importante atividade do ágon para cada gênero: mélica coral, épica, canção monódica, elegia e, somente mais tarde, a tragédia e a comédia. Na canção coral, conforme Charles Segal, o poeta “compunha tanto a música quanto as palavras. E também dirigia um coro guiado por um líder [...], cujo número de membros que cantavam e dançavam ao som da lira e da flauta variava entre sete e cinquenta” (apud id., p.50-51). Conquanto em outros contextos, como funerais e bodas, a khorōidía pudesse assumir aspectos mais privativos, nessa modalidade é mais notório o caráter impessoal da poesia grega. Para muitos intérpretes, suas “prováveis origens nos cultos conferem à mélica coral um forte caráter religioso e celebrativo que dela não se descola”. Assim, “se a mélica monódica ora fala de preocupações divididas pela comunidade, ora relativas à persona, na coral a voz do poeta é evidentemente pública” (id., p.51). Nas palavras de Jan M. Bremer, “os poemas corais são quase o oposto de documentos do ego” (apud id.). Ao contrário da monódica, reservada à esfera dos pequenos grupos, a poesia coral desempenha “um papel vital na autoconsciência pública da cidade” (Most, apud id., p.51). Como salienta Segal, “porque os festivais em honra dos deuses também celebravam a vida cívica da pólis, a canção coral tinha um papel central na afirmação dos valores e da unidade da comunidade” (apud id.). Nesse sentido, a leitura de Most esboça uma tipologia suprapessoal das formas de enunciação do “eu” da 31

mélica arcaica que complementa a distinção dos modos principais da monodia, como erótico e de inventiva, voltados para dentro e para fora do pequeno grupo: [a mélica coral] tendia a ser cantada em celebrações formais que unificavam a cidade como um todo coerente ao reconhecer o benefício divino e a empresa humana [...] o caráter público de boa parte da poesia coral, em vez de excluir a possibilidade de asserções individuais do poeta, parece demandálas, contanto que integradas na celebração pública [...] Daí que, em geral, [...] os modos principais da poesia coral são hínico para os deuses, encomiásico para os homens (apud id., p.52, grifo nosso).

Se a monodia implicava a dupla inserção do “eu” na moldura social e da persona que representa o grupo para si mesmo, na mélica coral, não só seria realçado seu aspecto “dramático”, privilegiado por Aristóteles como precursor da tragédia, como nele ficava prescrita a integração das asserções “individuais” do poeta a práticas admitidas pela pólis. Nesse sentido se pode compreender que o uso da “voz própria” (o modo de enunciação hōs autòn) fosse não apenas permitido, mas de certo modo estimulado, contanto que partilhasse dos mesmos valores do público, sem que fosse necessário, para isso, presumir um sujeito autocentrado. Donde conclui Giuliana Ragusa: “é, pois, no modo de performance que jaz a diferença básica entre a mélica coral e a monódica, duas modalidades que as distinções formais não cindem em dois gêneros” (p.52). Mas se nenhuma das formas mélicas distingue a voz própria do poeta no sentido moderno, o que distingue o enunciado do “eu” no poema grego arcaico? Nesse ponto, a discussão dos intérpretes mais recentes pela analista brasileira põe a descoberto o limite da crítica pragmática. Substituindo as categorias de mímēsis e sujeito pela noção de performance, a concepção de poesia ritual (pedagógico-iniciática) defendida por Calame e Nagy e difundida pelos helenistas atuais não permite distinguir o “ato de fala” mélico dos discursos do orador, do historiador, do filósofo ou do seu antecessor, o poeta-sacerdote, sem confundi-lo com um enunciado parasitário, na medida que bloqueia a própria reflexão sobre o produto ficcional. Para formular o contraste a partir das categorias mais precisas de Marcel Detienne: o que vai diferenciar, nesse caso, a performance mélica do “discurso eficaz” do antigo mestre da verdade, por um lado, e da dimensão performática da palavra do sofista como mestre do engano, por outro? Pois desde que Barbara Cassin mostrou que no próprio discurso do filósofo “o ser é um efeito do dizer”, temos condição de constatar que o conceito de “performance”, abrangente de concepções tão distintas da alḗ theia, não permite distinguir nenhuma fronteira discursiva. Assim, embora a “virada pragmática” tenha sido eficaz, particularmente entre os helenistas, para suspender o primado da noção moderna de poesia centrada no sujeito, permanece a questão: em que sentido chamamos, então, a ambos os autores mélicos e líricos, antigos e modernos, igualmente, de poetas? Para tentar nos aproximar de uma resposta, teremos que verificar como se configura a noção de lírica que essa indagação especializada deixa em suspenso. 32

Como, de sua parte, a poesia lírica supostamente se distinguiria da mélica antiga por supor uma voz individual, comecemos por perguntar (a) quando o eu encontrou condições para se fazer ouvir e (b) o que permite distinguir sua voz de outros gêneros, literários ou não, que também partilham esse pressuposto? Pois, desde que o sujeito encontra condições de falar por si, ao contrário do que vimos passar no mundo grego, a “voz própria” deixa de constituir um privilégio do poeta. Noutras palavras, para assegurar sua elocução diferencial no espaço do poema lírico, ele precisaria revelar marcas capazes de assinalar sua não identidade com outros gêneros de expressão do eu.

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2. Lírica medieval e formação da categoria do sujeito

Comentando a suposta presença do gênero autobiográfico no mundo greco-romano, Luiz Costa Lima observa, em polêmica declarada com Georg Misch, e em parte com Arnaldo Momigliano, mais prudente, mas ainda assim supondo um “ego” interior na antiguidade, que se “a experiência pessoal não era por si mesma digna de ser levada à página escrita”, por outro lado “inexistia uma linha divisória entre a narração de fatos reais e de fatos inventados, desde que esses fossem verossímeis” (Lima, L. C.: 2007, p.462). Como a autobiografia supõe o reconhecimento do valor do eu individual, só uma concepção anacrônica deste pôde levar à postulação do gênero autobiográfico em um tempo que o ignorava. Como, ademais, a concepção de indivíduo é um dos componentes básicos da concepção corriqueira de literatura, a conclusão anterior repercute sobre essa: enquanto discurso ficcional, a literatura tampouco existe na Antiguidade, desde logo porque não há fronteiras absolutas entre formas ficcionais e formas de apresentação do eu (id., p.465)

Ora, se lembrarmos que “não é apenas o eu a matéria indispensável para a autobiografia – o que a confundiria com o diário –, pois tem como seu traço absoluto o intercâmbio de um eu empírico com o mundo”, devemos ressaltar ainda que “na Idade Média não é apenas esse comércio que falta: o próprio sujeito, ainda quando leiamos a referência a um eu, não tem dimensões psicológicas” (id., p.466). Sendo ambos gêneros modernamente identificados pela centralidade concedida à voz pessoal, o que se anota sobre a inexistência do autobiográfico na Antiguidade e na Idade Média se estende igualmente à lírica. A fim de avançarmos na investigação desta, é proveitoso fazermos uma pausa para verificar os primeiros sinais, ainda longínquos, do aparecimento do sujeito individual na Baixa Idade Média. Seu resgate será crucial para concretizar o processo de formação da lírica moderna. Com esse intuito, acompanhemos o modo como Costa Lima refaz este percurso na Trilogia do controle (1984/1986/1988) e em Limites da voz (1993). Para investigar as motivações que levaram ao aparecimento da subjetividade na Baixa Idade Média, Costa Lima parte da crise que eclodia ainda na Alta Idade Média, descrita por Hans U. Gumbrecht como “resultante da pouca flexibilidade da estrutura mental então dominante” (id., p.26). Segundo o autor alemão, a rigidez do pensamento medieval decorreria de duas razões: (a) do monopólio da cosmologia cristã que postulava uma única interpretação válida para cada experiência e (b) da falta de uma estrutura temporal capaz de incorporar a mudança. Da ambiência de crise progressivamente instalada derivava a necessidade imposta, sobretudo aos séculos XIV e XV, de descobrir novas “instâncias mediadoras”, dentre as quais se destaca “a maturação da experiência da subjetividade”: 34

À medida que se deixa de crer que a verdade foi inscrita pela divindade nas coisas do mundo, revelando-se então por sinais inequívocos, cada fenômeno passa a admitir vários sentidos e ao sujeito passa a caber a apreensão do adequado. A subjetividade adquiria, por assim dizer, uma função de suplemento: não sendo mais suficiente a ordem cósmica tradicional, religiosamente justificada e teologicamente formulada, ao sujeito individual cabia a descoberta da razão orientadora (id., p.26).

Desse modo, a crise da ordem antiga motiva, inicialmente, o aparecimento da subjetividade, com a falência da lei cósmica demandando a busca de novos pontos de apoio para garantir a estabilidade do que se toma por verdadeiro. Dentre os quais se destaca a invocação do eu em função de testemunha capaz de atestar a realidade do dito ou de oferecer uma razão para a escolha de determinada conduta, abrindo espaço para o progressivo reconhecimento do juízo individual. Mas, bem entendido, a afirmação válida do ponto de visa da falência da ordem antiga, não exclui o ponto de vista inverso, que o aparecimento do indivíduo provocasse, retrospectivamente, o transtorno da ordem clássica. Assim, da perspectiva da nova ordem que se formula, é correto dizer ao mesmo tempo que a instabilidade do eu como instância mediadora demanda, como sua contrapartida, o crescente encarecimento do factual como critério veraz. Donde a consequência imediata da valorização do eu: “a devoção ao fato se impõe ao indivíduo enquanto indício de uma Lei, i.e., testemunho de um princípio homogeneizador” (Lima, L. C.: 2005, p.70). O reconhecimento do eu por si próprio, i.e., fora do elo que se estabelecia com um termo externo e includente, que lhe emprestava sentido e orientação – fosse a família, a comunidade, a nação ou Deus – punha automaticamente em questão o problema da objetividade do que tal eu dissesse. Pois este reconhecimento implicava conceder-se uma autoridade que não era por si evidente. [...] Que segurança poderia haver de que aquilo que este eu declara é aceitável por nós, os outros? [...] Antes da sagração do indivíduo moderno, o mundo antigo clássico, estendendo-se pela Alta Idade Média, concebera uma ordem cósmica, que, com o cristianismo, se passara a crer provinda de um Deus bom, cuja magnanimidade instalara nas coisas a possibilidade de serem elas conhecidas, utilizadas e transformadas para o maior bem-estar dos homens; se não para que, mais convicta, a criatura entoasse a glória do demiurgo. É razoável supor que, ao ter condições de reivindicar para si a condição de peça primeira, o indivíduo provocou o transtorno da ordem clássica. Melhor dito, que esse transtorno já se dera quando aquela reivindicação se socializou, convertendo-se em Lei. (id., p.20)

Daí que nos Ensaios de Montaigne não fosse pacífica a consagração do “direito de o sujeito individual expressar sua experiência pessoalizada, sem já recorrer a modelos legitimados”, pois “dentro deste quadro, era preciso que tal indivíduo dispusesse de um princípio de regulamentação”, com o qual, entretanto, Montaigne ainda não podia contar. Donde “as soluções de compromisso a que se obriga” (id., p.21). Em situação semelhante, encontraram-se Petrarca, os humanistas, Pico della Miranda e Maquiavel. Em cada um, a concentração na voz de si próprio exigia uma escala de flexibilidade. Fosse uma escala vertical, para Pico, fosse uma basicamente horizontal, para Petrarca, fosse a vertical mas apenas terrena, para os humanistas, fosse a comandada pelo acaso, a fortuna, para Maquiavel. [...] Fosse qual fosse a forma assumida pela “flexibilidade do eu”, era preciso que ela se concebesse em termos de uma ordem fundamental, de uma Lei, que admitisse aquela variação. (id., p.21) 35

Seguindo a terminologia proposta por Costa Lima para caracterizar a mudança de situações que condicionam a enunciação do eu, a experiência da Antiguidade e da Idade Média se integrava ao que o autor chama de ordem da mímēsis, definida por dois traços característicos: (a) a identidade do eu se fazia decisivamente em função de algo externo ao eu; a individualidade antiga implicava a subsunção do eu em algum tipo de comunidade. Daí a própria circulação irrestrita dos topoi, das figuras retóricas, que passavam de autor a autor, sem que algum deles se considerasse proprietário ou inventor ou supusesse que por elas declarava sua intimidade; (b) essa impessoalidade da persona supunha, por sua vez, uma concepção substancialista do cosmo: enquanto singulares, as coisas e os seres partilhavam de uma ordem que era inerente à classe de cada um (id., p.24).

Sendo a ordem da mímēsis profundamente estabilizadora, sua imposta obediência a modelos, enquanto “imagens da própria harmonia de um mundo de substâncias”, no entanto, “não se confundia com a prática servil da cópia”, pois supunha “a multiplicação de um mesmo que menos se repetia do que, sob mudanças, se reiterava” (id., p.24-25). Distinguindo, a seguir, o advento dos tempos modernos e, dentro destes, a modernidade, aquela situação seria progressivamente suplantada por uma nova configuração da experiência regida pela ordem do método, caracterizando-se por uma dupla ruptura: (a) a “existência de uma consciência individualizada, que age dentro e a partir de um eu que se autonomiza do elo que antes fornecia sua identidade” e (b) pelo “processo de dissolução da concepção substancialista de mundo que respaldava a precedente”. Numa palavra, pela “irrupção do eu” e a simultânea “exigência de repensar-se a Lei” que decorre do reconhecimento da sua voz (id., p.25). Não se pode descurar, porém, que a nova pessoalidade da persona, rapidamente encontrará uma nova base normativa na noção substancialista de sujeito que passa da função inicial de suplemento a sucedâneo da concepção metafísica de mundo como cosmo pleno. Para o interesse da nossa investigação, deve-se destacar que é no intervalo entre essas duas ordens, a antiga e a moderna, que se processa a formação do gênero lírico, justamente num momento de “relaxamento” e “flexibilização” da Lei. Ou nos termos de Costa Lima, num período favorecido pela distensão dos mecanismos de controle do imaginário, o que explica o aparecimento da lírica trovadoresca que a precede. Mas antes de passar à indagação dos primeiros sinais desse transtorno e como ele se manifesta no âmbito específico das formas poéticas, ganharemos ainda em acompanhar a diferenciação do teórico entre as modalidades de configuração do sujeito que correspondem a cada uma destas situações. Para facilitar, Costa Lima propõe uma distinção preliminar entre duas concepções mais abrangentes: Individualidade e indivíduo são categorias distintas à medida que a primeira implica que a constituição da identidade é orientada por um marco valorativo, ao qual tem por alvo e modelo, ao passo que a segunda remete à ideia de exploração e expressão de um núcleo interno, inscrito em si, cujo alcance é antes embaralhado do que favorecido pelas relações sociais. (id., p.25-26) 36

Após o declínio do mundo antigo, os primeiros pensadores da Igreja e a sociedade medieval que ajudaram a construir teriam apenas prolongado a concepção anterior, apropriando-se do privilégio do modelo externo sobre a identidade do eu, supondo, por conseguinte, “embora modificada, a permanência da ordem da mímēsis” (id., p. 28). Inspirados nas epístolas de Paulo, os Santos Padres teriam estabelecido “uma concepção do individual em que a ideia de sujeito permanecia fiel à sua acepção de subdictus”, conforme o enunciado do apóstolo: “o que sou, o sou pela graça de Deus” (id.). Donde o prestígio que terá a prática da imitatio christi no universo medievo, com a primazia dos exempla a serem seguidos. Assim, estendendo-se além da Idade Média, A subjetividade é menos negada pela ordem clássica do que subordinada e integrada a princípios “naturais”. Universalidade dos valores e prévia determinação do lugar a ser ocupado pelo subjetivo eram o verso e reverso da mesma medalha. Aceita a hierarquia “natural”, acatado o modo de agir fundado na razão, o sujeito individual não tinha como sentir-se coibido. [...] A suprema astúcia da época clássica consistira em, aos poucos, aprender a controlar a redescoberta da subjetividade, iniciada naquele longínquo fim do século XII (Lima, L. C.: 2005, p.83-84).

Restringindo nossa consideração ao aparecimento do eu na poesia medieval, Costa Lima fundamenta sua tese retomando a contribuição de Paul Zumthor. Conforme as duas situações básicas distinguidas pelo medievalista: “a primeira, mais comum, corresponde a um eu vazio enquanto referente, i.e., cuja presença se esgota em combinar as peças do poema”. Nesse caso, “dentro de uma ‘literatura’ de papéis fixos, obediente a topoi seculares e a uma tradição impessoalizada, o eu lexicalizado não corresponde ao eu da pessoa que escreve” (Lima, L. C.: 2007, p.30). Nas palavras de Zumthor: A pessoa do autor aparece para confirmar a objetividade do texto; nada além disso. Suas intervenções representam a nossos olhos a projeção textual de uma situação. Normalmente transmitida (por cantor, recitante ou leitor público) da boca para o ouvido, a obra poética medieval possui um enunciador concreto, visualmente perceptível (enquanto ela própria não o é), mas que muda, em princípio, a cada nova audição. Se o autor (talvez idêntico a um dos recitantes sucessivos) fez do eu o sujeito do enunciado, este eu funciona como uma forma virtual, cuja atualização varia de acordo com as circunstâncias: é pouco verossímil que o ouvinte medieval pudesse interpretá-lo em um sentido autobiográfico (apud id., p.30).

Numa primeira situação textual, portanto, por volta do século XII, o eu aparece como “uma forma vicária, flutuante, que declara apenas a voz que fala em seu nome” (id., p.30). Nesta acepção inicial, afirma Zumthor, trata-se de “uma poesia quase totalmente ‘objetivada’: quero dizer, cujo sujeito nos escapa” (apud id., p.466). E acrescenta a propósito das vidas, predecessoras imediatas da Vita Nuova de Dante e precursoras remotas da biografia moderna, que nelas o “sentido importa mais que a história (sensus mais que littera): [pois aqui] a autobiografia é de imediato revelação, pela via

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real da emblemática e da alegoria, do sentido do eu, não dos acontecimentos que ele viveu” (apud id.). Ficava, assim, obstruído o caminho fosse para a construção lírica, fosse para a autobiográfica. Estes caminhos seriam impossíveis “onde um modelo ou modelos de vida de tal maneira se afirmem que a opção individual consista apenas na escolha de um deles” (id., p.466). Pois, adverte Costa Lima, “em si mesma, a idiossincrasisa individual desaparece para que se integre em um modelo de conduta geral e, por conseguinte, impessoal” (id.). Mas esta situação começa a se transformar ainda durante o século XV: Nas formas poéticas que, no século XV, dela [i.e., da tradição do grande canto cortês] derivaram, assiste-se a uma invasão do discurso pelas circunstâncias. O signo “je” aí vem-se referir ao sujeito exterior que essas designam, por assim dizer, em branco; nada mais o impede de se identificar com a pessoa do autor: isso sem dúvida se produziu muitas vezes, em Eustache Deschamps, Christine de Pisan, Charles d’Orléans. O discurso é quando muito narrativo, antes procede por alusões descritivas: confunde-se com os dits, na mesma ambiguidade. (Zumthor apud id., p.31).

Complementando as observações de Zumthor, em “Le nouveau lyrisme (XIVe-XVe siècles)”, estudo exclusivamente dedicado ao gênero dit na obra de Guillaume de Machaut, Jaqueline Cerquiglini motiva a presença desse eu, extratextualmente referido, pela problematização da verdade. “Noutras palavras, o eu autobiográfico aparece em socorro de um quadro de referências já não mais suficiente para atestar o sentido assumido pelas ações” (id., p.31). Como nota a autora: Machaut, primeiramente, afirmando com força a verdade de seu dit, pode levar à conclusão de que, em sua época, a ligação do dit com a verdade não é mais automática. Em segundo lugar, fazendo uso de um título [...] que elimina a alegoria, Machaut assinala que, para ele – e aí se encontra a grande inovação –, a verdade não mais pode ser garantida pelo recurso a uma alegoria, mas por apelo à experiência vivida. O dit só é verdadeiro porque EU o digo. (apud id., p.31)

De fato, observa Costa Lima, será apenas a partir do Renascimento que se encontrarão “condições efetivas para o aparecimento da autobiografia” (id., p.467). Resumindo o argumento de A. Heller, escreve o autor:

até fins do século XVI inexistiu uma literatura da interioridade. Durante o Renascimento, progressivamente se dissolve a vivência medieval da comunitas e o indivíduo se encontra perante si mesmo, obrigado a ter atuações diversas, mesmo antagônicas, sem que cada uma delas pudesse se justificar pela adoção de um modelo coletivo, de inspiração política ou religiosa. Deste modo, só quando a ruptura das condições esperáveis segundo um modelo prévio de conduta ganha a intensidade conhecida desde o século XVI, só então vem à tona a questão da individualidade. Vem à tona acompanhada da força desempenhada por um papel, pelo emprego da simulação e/ou da sinceridade, de que as peças shakespeareanas nos dariam tantos exemplos. As relações renascentistas de trabalho e de poder, já impedem a permanência de um ideal de conduta una, coletivamente orientada e previamente ensinável. A partir de então: “um homem podia identificar-se com diferentes maneiras, diferentes conjuntos de direitos e obrigações e diferentes normas concretas, sem que ‘ele’ se tornasse ‘elas”‘ (id., p.467) 38

Assim, por exemplo, a história de Abelardo e Heloísa, escrita entre 1132 e 1136, não corresponde ainda ao que entendemos por autobiografia, na medida que nela “a escolha amorosa, a opção religiosa, não [eram] valorizadas por si, mas em função de um modelo externo que se impunha ao agente”; visto que mesmo “seus sofrimentos são pessoais só na medida em que representam manchas e perdas quanto ao modelo a que o indivíduo se incorporou” (id., p.471). Mas isso não significa que tivesse ocorrido uma súbita ruptura com o Renascimento, como defende a conhecida tese Jakob Burckhardt sobre a “explosão da individualidade”. Não só porque seu progressivo aparecimento pode ser atestado desde bem antes, mas sobretudo porque, a rigor: de tal maneira esse homem permanece heterodirigido, de tal maneira o monismo teórico e metodológico impedia que se admitisse o livre-arbítrio, de tal maneira é ele dependente da vontade dos poderosos, que não há espaço para um autoexame radical. Em poucas palavras, o indivíduo renascentista ainda não pertence à espécie do sujeito moderno (id., p.489, grifo meu).

Assim se explica, por exemplo, o prestígio que a carta usufruirá como gênero literário renascentista. Não era acidental que esta, para que se dignificasse, exigisse um tratamento retórico ao qual a expressão individual deveria se sujeitar, pois “a pessoalidade do conteúdo não bastava para justificá-la” (Lima, L. C.: 2005, p.29): Conforme ao prestigioso padrão ciceroniano, a epístola renascentista impunha a linguagem ornada. O conteúdo novo, a expressão da subjetividade, ainda não era considerado um princípio suficiente, mesmo porque a carta só era um gênero literário à medida que se integrava às belas-letras. Duas camadas portanto se superpõem e a que domina, a concepção retórica, trazia consigo a permanência da orientação pública dos gêneros “literários” da Antiguidade (id., p.29, grifo meu).

Prosseguindo no aparecimento das condições de socialização do eu, à medida que a crise das estruturas mentais não se encerrou nos séculos XIV e XV, “os esquemas introduzidos de flexibilização, tomando por pivô a instância da subjetividade, vieram a ser favorecidos pela difusão posterior da impressão tipográfica” (Lima, L. C.: 2007, p.31). Visto que “a referencialização do eu individual e a exigência de uma forma de fixação determinada, a forma escrita, se dão simultaneamente” (id., p.33), cabe indagar pelo modo como essa fixação se processa quanto ao gênero posteriormente identificado à expressão poética do sujeito: ao passo que, na lírica dos séculos XII e XIII, dominava a ligação da poesia com a música, com a memória e com a oralidade, na dos séculos XIV e XV, a poesia fundada no canto se baseava no sentimento, no eu, assim, como renunciava à memória, para se tomar como escrínio ou cofre, confiado à forma escrita (Lima, L.C.: 2007, p,33).

Nesse ponto, uma breve consideração sobre a história do soneto como forma lírica moderna por excelência permite visualizar o referido processo de transposição do eu para a página, relacionado 39

ao processo de formação do novo gênero. Sendo sua invenção atribuída ao siciliano pertencente ao grupo de poetas que se reunia na corte de Frederico II, em Palermo, Giacomo de Lentini, chamado il notaro, por Dante e outros toscanos, conforme Eduardo Sterzi, inspirado nos trovadores provençais, Giacomo “criou, no vernáculo local, a forma lírica que substituiria a canção na preferência dos poetas não só das épocas imediatamente posteriores, mas, pelo menos, dos seis séculos seguintes” (Sterzi, E.: 2008, p.66, grifo nosso). Importa notar que, “ao contrário da canção, [o soneto] se apresentava como texto escrito e não como música” (id.). Diferença que será decisiva para o aparecimento do novo gênero “literário”, não mais musical, em gestação. Ao passo que na Idade Média, na ambiência dos provençais, a poesia permanecia vinculada à música, embora a palavra sonet já apareça com os trovadores, de fato, não se faziam sonetos. Depois de Dante e Petrarca, porém, essa forma irá se consolidar como modelo da lírica por excelência. Como forma escrita padrão do gênero lírico, o soneto se associará historicamente ao crescente racionalismo dos tempos modernos e à afirmação do sujeito, bem como à imprensa e ao aparecimento das primeiras universidades. Octavio Paz chega a relacionar sua origem a um dualismo neoplatônico que teria inspirado, na origem, esta forma poética (Paz, O.: 2009, p.186): A maioria dos sonetos estão compostos [...] por quatro frases: o primeiro quarteto é uma exposição, o segundo a sua negação ou alteração, o primeiro terceto a crise e o último o desenlace. O soneto é uma proposição, ou melhor dizendo, quatro proposições encadeadas por uma lógica não menos rigorosa que a que liga os membros de um silogismo (Paz, O.: 2009, p.187)

Por essa espécie de “matemática da composição”, o modelo formal do soneto logo se prestaria exemplarmente à prática da imitatio moderna. Pelas dificuldades que impõe a seu praticante, sua técnica rigorosamente codificada, ele se torna ainda na ambiência do dolce stil nuovo uma espécie de pedra de toque para aqueles que pretendem escrever poesia, como atesta a correspondência poética que permite ao jovem Dante ingressar no círculo dos fedeli d’amore, favorecendo, pelo primado da forma externa, sua confusão com o próprio poético no poema. Vemos, assim que a transição da oralidade à forma escrita se inscreve na história da formação do gênero lírico, partindo dos provençais à poesia do dolce stil nuovo, como passagem da canção vernácula à lírica moderna, encontrando sua consolidação máxima nos sonetos de Petrarca como forma paradigmática do gênero lírico. Porém, vários críticos observam que o libello de Dante teria funcionado como “modelo em filigrana do livro de Petrarca” e “dada a ascendência petrarquesca de praticamente toda a lírica dos séculos seguintes, não será demasiado afirmar que o momento de irrupção da lírica moderna se localiza na Vida Nova” (Sterzi, E.: 2008, p.81). Cabe ressaltar, porém, que nesse momento ainda não se pode dizer que o estatuto da poesia estivesse plenamente assegurado. Muito pelo contrário: em meio ao conflito entre as poéticas 40

escolásticas e humanistas, “atacada pelos religiosos, sobretudo dominicanos, a poesia necessita assegurar, dentro da cristandade, seu direito de existência” (Lima, L. C.: 2007, p.39). Diversamente do que vimos se passar com o gênero do dit, entretanto, na ambiência de Dante, como adverte L. Ottimo, o valor poético não se encontrava adstrito à ordem da literalidade, pois “se o autor acreditasse no que diz literalmente, sem dúvida seria heresia, [...] mas ele poetisa [...] E aos pintores e aos poetas é atribuído tal direito” (apud id., p.39). Sabe-se o quanto esse tema será caro à defesa da poesia formulada no capítulo XXV da Vida Nova, em que Dante antecipa em alguns séculos a conhecida meditação de P. Bayle sobre a maior tolerância quanto à “ficcionalidade” do poema, sob a cláusula da “licença poética”.6 Por essa razão, “em linhagem que parte do próprio Dante e se estende por Musato e Boccaccio, apoiados numa falsa interpretação da Metafísica de Aristóteles, a poesia é defendida como similar à teologia, como forma alternativa de acesso ao divino” (id., p.39). Muito embora o poeta-teólogo pudesse ser justificado, numa postura flexível de compromisso, como anunciador do cristianismo, essa justificação de um concorrente, contudo, nota Costa Lima, só poderia exasperar o teólogo de profissão. Se de um lado, o humanista procurava antes uma conciliação, concebendo a poesia qua theologia, de outro, “um ortodoxo como Domenici não admitia o poético senão como manifestação didática” (id., p.40). De modo que, “fosse por efeito da pressão, fosse porque seu foco básico de identidade era o mundo antigo [...] em Petrarca [será] notável o esforço de conciliar o princípio da imitatio, cultuado desde os primeiros humanistas, com o da expressão da individualidade” (id., p.40-41). Visto que, “sem o princípio do modelo, em que assenta o prestígio da imitatio, o eu se tornaria uma entidade selvagem, incontrolável, incapaz de respeitar hierarquias, impossibilitadora de determinar-se qual sua legítima inscrição” (id., p.41). Dessa forma, no início dos tempos modernos, abre-se para a subjetividade uma via ambígua: uma possibilidade de legitimação, alcançável desde que ela se abrigue em um modelo aceitável por doutores e leigos, os humanistas, e pelos representantes do pensamento eclesiástico. Como conseguilo? Mostra-se de imediato um ponto de acordo: ambas as posições consideram a nobreza de linguagem, a elegantia sermonis, condição indispensável para a obra que demandam. (id., p.42)

No entanto, como adverte Costa Lima, o esmero reclamado pela elgantia sermonis implicava: (a) o descaso pelo estatuto da ficção, (b) a possibilidade efetiva de conciliar o serviço da fé com a reverência aos clássicos modelares, (c) a necessidade de combinar a expressão individual com parâmetros “objetivos”, i.e., os extraídos dos clássicos. As três consequências, na verdade, se relacionam, partindo, como partem, de uma pressão comum (id., p.42) Lactâncio, Divinae Intitutiones I.II.24: “(Os homens), em geral, não sabem onde está a peculiaridade da licença poética e até onde é concedido que vá a descrição; a tarefa do poeta é traduzir, com ornamentos próprios, o que realmente sucedeu, por meio de formas figurais, para que, mudado o que sucedeu, ganhe ele um outro aspecto” (apud Stierle, p.25). 6

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Por um lado, o realce da subjetividade individual motiva a ênfase no factual como suporte da verdade, como demonstra o exemplo paradigmático de Castelvetro, invertendo a fórmula aristotélica da poesia e da história. Por outro, o primeiro movimento em resposta ao aparecimento do eu será a tentativa de conciliá-lo com o princípio da imitatio. Assim, conclui Costa Lima, este se torna “o instrumento de conciliação das direções contraditórias representadas pelos ciceronianos e agostinianos”. O que, no entanto, só seria alcançável “se a imitatio permitisse o controle da subjetividade individual e se um de seus discursos possíveis, o ficcional, fosse previamente também controlado pela sujeição a modelos legitimados” (id., p.43) De fato, como bem observara J. G. Merquior, somente com a ultrapassagem do quadro helênico se tornava possível estender plenamente o conceito de mímēsis à poesia lírica. Mas então nos encontramos numa situação inversa à do mundo grego: Aos olhos dos tratadistas do século XVI que redescobriram a Poética, o modelo literário por excelência não era tanto Sófocles, nem Homero, quanto Petrarca. Para Fracastoro ou Capriano, o objeto da poesia é a imitação em geral, e não somente das ações do homem. Para Varchi, mais apegado ao texto do filósofo, a ação inclui as paixões, que são as disposições do espírito que nos impelem a agir. Então, o lema horaciano ut pictura poesis recebeu uma atenção privilegiada. Só com Castelvetro a ideia “ortodoxa” da mímese de ações humanas se mantém [...] Durante largo tempo, mais ou menos até o período final do século XVIII, a poesia será julgada, sobretudo, ou uma ilusão sem consequências, ou um veículo de instrução moral: aut prodesse, aut delectare. (Merquior, J. G.: 1997, p.19).

Quando Aristóteles formulava sua concepção de mímēsis, capaz de conferir dignidade ao produto poético, pouco importa se excluía a poesia mélica de suas modalidades possíveis por identificar a mímēsis à imitação de homens em ação, ou se o livro em que teria tratado da relação entre ambas se teria perdido; simplesmente, a lírica não existia. Por sua vez, ao incluí-la entre os modos da mímēsis, em resposta ao aparecimento do eu individual, os tratadistas do século XVI irão entendê-la literalmente como imitatio. O que significa: apenas privilegiavam a poesia lírica para melhor domesticá-la. Vimos que da Antiguidade à Baixa Idade Média a ausência de um sujeito individual não permite distinguir a existência de algo como uma poesia lírica ou uma modalidade de autobiografia. Sendo ambas referidas ao eu que escreve, desde que encontra condições de dar voz ao indivíduo, entretanto, o poeta apenas se distingue do autor da própria biografia pela exigência de se adequar ao princípio da imitatio, pelo respeito às regras de versificação pela prática beletrística da elegantia sermonis. Mas desde que a irrupção do romantismo impôs o abandono do preceito clássico, apaga-se o frágil limite entre a autobiografia e poema lírico. Sob a rubrica geral de literatura, como uma das modalidades de expressão do eu, o poema passou a se distinguir em primeiro lugar como o contrário 42

da prosa. Posteriormente, em reação ao realismo, uma tentativa tardia de salvaguardar o poema será promovida pelo uso desviante da linguagem, regido pela conotação. Mas como o primado da metáfora conotativa, como figura de semelhança em função de ornato, já não se aplica à parte mais representativa da poesia que deriva de Baudelaire e Mallarmé, consequentemente trata-se de perguntar: com que direito ainda se chamam de “poetas” e “líricos” os autores modernos normalmente identificados com esse nome?

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3. Poesia moderna e crise do paradigma

Enquanto o poema foi necessariamente metrificado ou metrificado e de diversos modos rimado, era fácil identificá-lo (Lima, L.C.: 2012, p.157). Quando um paradigma se torna inconteste, teorizar se torna ocioso. [...] O interesse em teorizar não se generaliza sem que antes se difundam os sinais da crise. (Lima, L.C.: 1989, p.17/19)

A forma externa da lírica preservava a poesia moderna, desde Petrarca, da dúvida sobre sua própria identidade. Métrica, rima, verso, gêneros estanques, formas fixas de composição eram condições suficientes da arte da palavra. Recusá-los, mais do que expor a arbitrariedade com que era produzida e recebida, equivaleria a deixar a poesia a descoberto. Supremo corolário da concepção substancialista do poético, a categoria da imitatio procurou conciliar a descoberta do sujeito com o postulado da representação (da substância) da realidade. Mas com o romantismo a afirmação do eu, levada ao extremo, e a exacerbação do pressuposto histórico do gênero lírico eclodem na renúncia da forma externa como modelo a ser imitado. Haverá, assim, de um lado, uma lírica por excelência que dispensa o privilégio da forma soneto, na poesia do romantismo normalizado de Hugo, Musset, Vigny, Lamartine, paralelo a um revival de formas fixas menos praticadas. A partir deles, a lírica perde sua evidência. Dentro do próprio romantismo, desenvolve-se uma vertente que, partindo da linha alemã de Schlegel e Novalis, passando por Höderlin, Poe e pelo romantismo inglês de Coleridge e Wordsworth desemboca em Baudelaire e Mallarmé. Os dois últimos entre os maiores sonetistas da poesia moderna. Mas se a forma externa do verso é mantida, sua transformação não será menos profunda. A começar pela reação contra a hierarquia e a separação das palavras adequadas aos estilos baixo e elevado. É verdade que a quebra da retórica literária baseada na divisão dos gêneros já tivera início na poesia do romantismo normalizado: Nos primeiros decênios do século XIX essa convenção se manteve em vigor, sem contestação. [...] Victor Hugo começara na poesia a nivelar a diferença entre as palavras da linguagem corrente e as da linguagem elevada. Sainte-Beuve procedera de modo semelhante. [...] Baudelaire ultrapassou tanto o jacobinismo linguístico de Victor Hugo quanto as liberdades bucólicas de Sainte-Beuve. [...] As flores do mal é o primeiro livro a usar na lírica palavras não só de proveniência prosaica, mas também urbana. (Benjamin, W.: 2000, p.96)

Com a introdução da Stilmischung (mistura de estilos), formulada por Auerbach, o tratamento sublime conferido a temas de proveniência prosaica vai provocar tanto na prosa – de Balzac a Stendhal e Flaubert –, quanto na poesia – de Hugo e Sainte-Beuve a Baudelaire – um transtorno da 44

situação do escritor, levando à perda dos critérios com que se identificava o poético. Do que são provas contundentes as acusações dirigidas contra as pessoas de Flaubert e Baudelaire. Como já notava Walter Benjamin, desde o início da modernidade, “as condições de receptividade da poesia lírica” haviam se tornado “as mais desfavoráveis”. O que se revela através de três observações, segundo o crítico alemão: (1) O poeta moderno não é mais o aedo, pois adota um gênero. Assim, Lamartine é citado como último aedo, ao passo que Rimbaud e Verlaine se afastam do público, retirando-se do auditório, pelas vias da especialização e do esoterismo; (2) após Baudelaire, a poesia lírica nunca mais teve êxito em massa, Hugo e Heine tendo sido os últimos líricos populares; (3) na segunda metade do séc. XIX, enquanto cresce a fama de Baudelaire o público se torna esquivo mesmo à lírica tradicional (id., p.104). Impecável como análise das relações entre o poeta e o leitor, importa notar que, de um lado, enquanto a lírica tradicional perde o público, que já não a compreende, de outro, surge uma poesia da negatividade, que o público ainda não compreende. Nesse intervalo, predomina a situação descrita por Benjamin: “se as condições de receptividade de obras líricas se tornaram menos favoráveis, é natural supor que a poesia lírica, só excepcionalmente, mantém contato com a experiência do leitor” (id., p.104). Ora, vimos que a lírica tradicional, tendo como pressuposto o enunciado proferido pelo eu individual, implicava sua sujeição a modelos legitimados de composição. Razão por que seria apressado identificá-la à concepção romântica de expressão das vivências do poeta, como já advertia Hugo Friedrich:

É verdade que a lírica anterior, desde os trovadores até à época anterior ao Romantismo, só em alguns casos recorre a vivências, só raras vezes é comunicação, em forma de diário, de sentimentos pessoais; o equívoco de alguns historiadores da literatura, contagiados pelo Romantismo, fez com que se considerasse a lírica, em seu conjunto, desse modo. Ainda assim, a lírica estilizada, a lírica antiga, à base de variações artísticas sobre o geral, se movia dentro do círculo que era familiar ao homem (Friedrich, H.: 1978, p.110, grifo nosso).

Assim, “até o início do século XIX, e, em parte, até depois, a poesia achava-se no âmbito de ressonância da sociedade”, sendo esperada como “um quadro idealizante de assuntos ou de situações costumeiras”. Ao contrário do que sucede a partir do romantismo: “em seguida, porém, [a lírica] veio a colocar-se em oposição a uma sociedade preocupada com a segurança econômica da vida”, tornando-se “lamento pela decifração científica do universo” e contra os perigos da técnica (id., p.20). Como bem apontara Adorno, no Rede über Lyrik proferido no mesmo ano do livro de Friedrich, a afirmação da subjetividade exacerbada na lírica romântica eclode como protesto contra as misérias do eu (Adorno, T.: 2006, p.69).

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A partir de Baudelaire, no entanto, a poesia investe cada vez mais decididamente na “emancipação das vivências” (Benjamin, W.: 2000, p.110). O poeta já não pode mais contar com uma comunidade de expectativas compartilhada senão por um hypocrite lecteur. Como todos esses dados apontam para uma mesma situação de crise, a fim de vermos como a nova configuração poética, paradigmática da modernidade, reage à dissolução das condições históricas da lírica, comecemos pela a conhecida tese de Hugo Friedrich: Com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em contraste com a lírica de muitos séculos anteriores. (Friedrich, H.: 1978, p.36-37).

Prosseguindo a trilha aberta pelo poeta inaugural da “lírica moderna”, a poesia de Mallarmé leva sua radicalidade a tal ponto que não seria mais comparável à de nenhum de seus predecessores ou contemporâneos (id., p.95), com ele se configurando definitivamente um novo tipo de “lírica moderna” (id., p.96):

Nenhuma das poesias de Mallarmé [...] poderia ser interpretada biograficamente [...] Mas tampouco há alguma poesia que se possa interpretar como linguagem de uma alegria que todos nós conhecemos, de um pesar que cada um compreende porque o tem dentro de si. (id., p.110)

Segundo H. Friedrich, “tal lírica nada mais tem a ver com poesia de sentimento” (id., p.101). Sendo, doravante, considerado o traço fundamental da poesia moderna “seu afastamento cada vez mais decidido da vida natural [...] o mais radical abandono da lírica baseada na vivência e na confissão” (id., p.110). Donde a definição, inteiramente negativa, que propõe: “a poesia moderna é o Romantismo des-romantizado” (id., p.30). De modo que, reconhece Friedrich, “o leitor pode perguntar-se: esta poesia ainda é lírica?” (id., p.96). A que responde afirmativamente o romanista. O extremo rigor formal do verso em Mallarmé seria uma necessidade imposta pela própria dissolução dos pressupostos da lírica: “uma poesia de extrema abstração [...] exige a ligação da forma” (id., p.116). O que explicaria a manutenção da forma externa da lírica. Mais significativa, porém, será a contrapartida dessa emancipação das vivências do poeta, que leva o teórico a chamar a linguagem de Mallarmé de: eine Als-ob-Sprache, um discurso como se (id., p.104). O que H. Friedrich não pretende questionar, entretanto, é o fato de Mallarmé manter a identificação da poesia com o verso. De fato, aqui nos deparamos com o limite que o crítico não se dispõe a ultrapassar, respaldado pelas palavras do próprio poeta, que afirma em Crise do verso:

Algum leitor francês, com os hábitos interrompidos pela morte de Victor Hugo, não pode senão se desconcertar. Hugo, em sua tarefa misteriosa, carregou toda a prosa, filosofia, eloquência, história, para o verso, e, como ele era o verso em pessoa, quase acabou por confiscar, de quem pensasse, discorresse ou narrasse, o direito de se enunciar. Monumento nesse deserto, com o silêncio longe; 46

em uma cripta, a divindade, e com ela, a majestática ideia inconsciente de que a forma chamada verso é simplesmente a própria literatura, de que há verso tão logo acentuada a dicção, ritmo tão logo estilo. O verso, acredito, esperou com deferência que o gigante que o identificava à sua mão tenaz e sempre mais firme de ferreiro, desertasse, para então, ele mesmo, romper-se. (Mallarmé, S.: 2007, p.151).

Bem entendido, Mallarmé não pretendeu abolir o verso. Pelo contrário. Não apenas escreveu sonetos impecáveis, como a revolução que promove em sua obra ocorre quase toda em versos, ainda que “para ouvidos livres de um contador factício”. Ao falar em crise, portanto, não pretendia se opor ao metro, pois seu privilégio se fundamenta por oposição à mot-monnaie, à “fala bruta” da prosa cotidiana, em sua “função de numerário fácil e representativo”. É mesmo inegável a defesa que propõe: “Apenas, saibamos, não exisitiria o verso: ele, filosoficamente, remunera o defeito das línguas, complemento superior” (id., p.155). Como explica (e se justifica) o próprio poeta, é no tratamento dispensado à versificação que ele situa a “crise”. Independente do alcance de suas reflexões e da revolução poética representada por Un coup de dés, para Mallarmé, de fato, a literatura ainda se identifica com o verso. Exacerbando a desconfiança do referente e o apagamento do eu, doravante na poesia mais representativa da “lírica moderna” prevalece a recusa não apenas da mímēsis, mas do próprio sujeito. Em comum, as duas vias principais da poesia moderna, a que pressupõe a afirmação do sujeito e a que sustenta sua negação, compartilham a mesma recusa da mímēsis, na medida em que permanece compreendida como imitatio. Identificada com noção de representação (Vorstellung) do objeto na consciência do eu, que fundamenta tanto a noção de “expressão do indivíduo” como seu oposto, a ideia de “reflexo da sociedade”, a manutenção moderna da concepção deformada de imitatio explica o ponto de acordo entre a rejeição romântica e a reação contra o realismo prosaico. Afastados ambos os princípios que permitiam descrever clássica e modernamente os limites do poema, este se define finalmente como desvio em relação à prosa normal. Erigido em regra desde Valéry e institucionalizado pela crítica imanentista, esse pressuposto anti-representacional encontra sua formulação plena a partir da releitura de Heidegger por Blanchot e pelo Foucault de “La pensée du dehors”. Nisto, contudo, a poesia do final do século não se distancia absolutamente daquela que se afirma na abertura da modernidade. Ao contrário, como anota Costa Lima, “a poética do desvio exercia um fecundo compromisso: a poesia era permitida, de certo modo estimulada, contanto que poetas e analistas partilhassem da mesma convicção quanto à ‘normalidade’ do não-poético, i.e., da sociedade”. (Lima, L. C.: 1974, p.7). Definido e exaltado por sua capacidade negativa, o poeta moderno convocado para encarnar um novo sacerdócio pelos românticos era agora valorizado como um tipo de herói, o “herói da linguagem”: 47

A danação do poeta passa a ser positivamente interpretada. Realiza-se, de certa forma, uma conciliação com o leitor. Não com a sociedade, é claro, mas com a parcela dos que seriam capazes de se “desautomatizar”, a ponto de captar o alcance das vozes novas. Neste esforço de recuperar o poeta da modernidade – não por sua normalização, mas pelo realce de sua ruptura da normalidade – o analista das três primeiras décadas do século XX [...] tende a absolutizar o espaço do poético [...] prendendo-se ao elogio do desvio, da obra que rompe com as normas, o analista ajuda uma forma de institucionalização da arte e da poesia, ajuda assim a academizá-la e, deste modo, a impedir a reflexão continuada sobre o que seja próprio ao discurso do poético. (Lima, L. C.: 1981, p.203)

À medida que a quebra das expectativas do receptor, na vivência de choque, se converte em um verdadeiro cânone do comportamento, deixando de marcar a obra de vanguarda para se apresentar desde as histórias em quadrinhos até no comportamento de presidentes, constatamos que o desvio se institucionaliza, deixando a subversão de ser subversiva: Na verdade, a tradição da negatividade encontra um modus vivendi com a sociedade que nega e que, ao mesmo tempo, a impulsiona, através da fetichização da mercadoria própria do capitalismo. Se não queremos, pois, tratar o poético por via da estetização, não podemos nos contentar em descrever o poético da modernidade em termos de negatividade. Esta é sem dúvida a experiência primeira que ele nos oferece. Mas [...] a experiência da negatividade é importante apenas como ponto de partida e não de chegada. (Lima, L. C.: 2003, p.121)

Embora se possa concordar com a observação de Henri Meschonnic de que “desde os formalistas russos, os estruturalistas de Praga e o New criticism, a teoria da literatura se desenvolveu mais que durante toda a era aristotélica” (apud Lima, L. C.: 2002, p.37), o pressuposto compartilhado pelos teóricos aí incluídos, como adverte Costa Lima, revela uma falha que antes bloqueia do que favorece a reflexão continuada sobre o poético, obrigando o crítico atual a refazer seu percurso. E como sugere o exemplo de Mallarmé, que fornece, de certo modo, o modelo correspondente dessa linha teórica, repensar seu ponto de partida implica, justamente, o retorno a Aristóteles e à sua observação básica sobre a não identidade de metro e poesia. Empresa complexa, visto que “a abstração da ação humana, realizada no poema lírico que não se aproxime do narrativo, torna mais difícil seu tratamento por uma teoria que se apoia no princípio da mímēsis” (apud Bastos, D.: 2010, p. 253). Por isso, pondera longamente Costa Lima, em entrevista recente, refletindo sobre sua própria tentativa: Já se acusou a teoria aristotélica da mímēsis de valer apenas para onde caiba tratar-se da ação humana. Como nunca se saberá se o livro que se supõe Aristóteles haja escrito sobre a lírica foi perdido ou sequer escrito, ficamos sem saber se a acusação é válida. A lembrança da objeção é adequada porque a teorização que tenho procurado construir tem, de fato, tratado muito mais dos gêneros em prosa. Será esse um estigma das teorias de algum modo fundadas no princípio do relacionamento entre texto e contexto? É possível que sim. [...] Talvez, entretanto, apenas suceda que desobstruir o caminho crítico da lírica seja bem mais difícil. O reconhecimento dessa maior dificuldade não é novidade para ninguém. Ao menos em termos de palpite, posso adiantar que não me parece que o obstáculo maior esteja no reconhecimento da presença da Lei e da posição que a obra literária – lírica ou não – assume perante ela. Basta pensar em que, de todos os produtos humanos integráveis em uma modalidade discursiva, o literário é o único, em todas as suas modalidades, não dotado de uma 48

função, mesmo que ela não seja pragmática. Isso não torna mais complicada sua aceitação pela Lei ou, em nossos termos, não o torna particularmente sensível ao controle? Entre as modalidades do literário, o lírico seria o ultrassensível ao controle, seja no sentido que sobre ele mais pesa a espada damocliana das normas controladoras, seja no de ele já se apresentar de antemão controlado, isto é, melodioso sem dentes, puro canto que se abstrai da pequenez humana. Não seria por aí então que a lírica seria mais dificilmente teorizável, porém pelo modo como ela se conduz perante a subjetividade. Os gêneros que exploram a ação humana podem ser confrontados com a subjetividade que os engendra até porque não podem prescindir de apresentar acidentes, conjunturas pelas quais o texto assuma uma posição a favor ou contra a qual a Lei se inclina. Na verdade, apenas posso dizer minhas suspeitas. Elas se resumem a que o desafio maior de toda teorização [...] está na lírica (apud Bastos, D.: 2010, p. 252-3, grifo nosso).

Termino com este acorde suspenso e passo imediatamente a uma primeira análise localizada sobre o momento mélico, a partir da história da categoria do “eu” na visão dos helenistas contemporâneos. Em seguida, proponho concentrar uma segunda etapa da pesquisa na relação entre mélica e mímēsis, a partir de um fragmento de Safo, cuja história de traduções configura um palimpsesto, no qual se inscrevem sucessivas camadas históricas do conceito de poesia e onde se pode distinguir práticas e concepções diversas como a mélica arcaica, a lírica latina-medieval e clássica e o poema moderno.

Rio das Ostras, jan-fev de 2014 Reescrito em jan de 2017

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Sujeito e pessoa na Grécia antiga

τί δέ τις; τί δ’ού τις; σκιας όναρ άνθρωπος O que é alguém? O que é ninguém? O homem é o sonho de uma sombra (Pítica 8.94-95)

A fim de verificar a concepção de sujeito que corresponde à poesia mélica arcaica produzida entre os séculos VII e V a. C. e à categoria da mímēsis concebida por volta dos séculos V e IV a.C., será apropriado começar pelos fatos da língua, iniciando pelos termos que melhor indicam a noção de sujeito em grego. Embora seja quase um lugar comum entre helenistas tomar a ausência de palavras para designar aspectos determinantes da categoria da pessoa, como as noções de “vontade” e “consciência” na Grécia arcaica e clássica, é inquestionável que a língua grega antiga possui termos bem precisos para nomear tanto o “sujeito” como a “pessoa”, respectivamente, hypokeímenon (ὑποκείμενον) e prósōpon (πρόσωπον). Por isso, comecemos por registrar dois fatos de transformação de vocabulário, envolvendo cada um destes termos. Quanto a prósōpon, literalmente: “rosto” e “máscara”, Marcel Mauss observou que a palavra com sentido de “pessoa” seria de uso tardio entre os gregos, tendo sido posta em circulação apenas pelos estoicos para traduzir a noção latina de persona e integrada pelos gramáticos alexandrinos para a categoria linguística correspondente. O próprio termo persona, como lembra, pode ter origem etrusca e talvez derive de Phersu, que designa “um demônio infernal aparentado por seu nome a Perséfone, a soberana dos mortos, e a Perseu, o mestre do pavor, um e outro detentores da cabeça de Górgona”7. Por sua vez, Phersu poderia derivar de um empréstimo tomado pelos etruscos do próprio grego prósōpon, como sugere Benveniste. Mas com o sentido de “pessoa moral” e “pessoa gramatical”, resume o Mauss, definitivamente foram os estoicos que buscaram o termo grego prósōpon para traduzir o latim persona (Mauss, 2009, p.382; 2007, p.385). De modo que esse sentido é ainda era desconhecido à época de Aristóteles e permanece ignorado até o período helenístico. Não é senão tardiamente que prósōpon assume o sentido de “pessoa”, a partir do séc. II a.C., se for correta a datação da Tékhnē Grammatikḗ atribuída a Dionísio

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Frontisi-Ducroux, 2012, p.38. Para uma análise detalhada das teses sobre a etimologia de persona a partir do vocabulário etrusco, cf. Nédoncelle, M. “Prosopon et persona dans l’Antiquité classique. Essai de bilan linguistique”. In: Revue des Sciences Religieuses, tome 22, fascicule 3-4, 1948, pp.277-299. Cf. também Vernant, J.-P. A morte nos olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 61-63.

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Trácio, em que o termo aparece pela primeira vez com sentido de “pessoa gramatical” 8. Em contrapartida, como nota Jean Lallot, desde então, prósōpon adquire uso estável nos textos gramaticais, sendo adotado para descrever a um só tempo os protagonistas da interlocução e as marcas, tanto pronominais como verbais, da sua inscrição linguística (apud Ildefonse, 2009). Se no tocante à “pessoa” foram os gregos que traduziram o latim, no caso de “sujeito” foi o contrário que sucedeu. A palavra latina subjectum é claramente moldada sobre o grego hypokeímenon para traduzi-lo. O que encontra paralelo no vocabulário filosófico, com o latim substantia para outro termo da mesma família, hypóstasis, frequentemente utilizado para traduzir a acepção “forte” de hypokeímenon, como sinônimo de ousía (no latim, essentia), indicativo do “ser” de algo. Como prósōpon que deriva do vocabulário dramático-religioso, significando a “máscara” trágica e ritual e só adquire mais tarde o sentido técnico (jurídico e gramatical) de “pessoa” por influxo da persona latina, hypokeímenon pertence originalmente à esfera arquitetônica, derivado do verbo hypókeimai, “estar debaixo; servir de base”, e designa o “fundamento” de uma construção. Apenas posteriormente a palavra se transforma em termo técnico (lógico e ontológico) da filosofia, graças a Aristóteles, passando a significar “o que está debaixo”, subjacente ao devir e suporte de predicados, como “sujeito lógico da proposição” e “substrato ontológico do devir”, ou ainda na acepção forte de “substância primeira” (próton ousían). Em nenhum dos casos, porém, o termo possui uma referência particular ao “ser do homem”, como bem assinalou Heidegger: na Grécia antiga a noção de sujeito (hypokeímenon) não possuía, à partida, nenhuma menção especial ao “homem” ou ao “eu” (Heidegger, 2002, p.111). Como já observara M. Nédoncelle (1948, p.277) e relembra FrontisiDucroux (2012, pp.115-116), desde os textos homéricos, a noção de “ser humano” (ánthrōpos) pode ser expressa pelos pronomes indefinidos tís (“alguém”), hékastos (“cada um”), autós (“ele”) e oudeís (“ninguém”). Mas não se encontra nenhum correlato da noção de “pessoa” ou “sujeito” e continuará não havendo por um longo: mesmo depois de já existirem os nomes capazes de significá-las, o próprio sentido ainda não era compartilhado pelos falantes. Segundo a hipótese mais detalhada de Pierre Hadot, complementando a de Marcel Mauss, “a evolução semântica de prósōpon e persona foi provocada pela introdução destes termos nas controvérsias teológicas cristãs”, entre os séculos II d.C. e IV d.C., a partir da sua identificação com a noção de hypóstasis (substantia) e sua consequente distinção quanto à ousía (essentia) (Hadot, 1973, p.123-124). Portanto, será válido observar brevemente como na patrística dos primeiros séculos do cristianismo primitivo o termo prósōpon teria chegado à plena acepção de “pessoa”.

“Em gramática, também, as três ‘pessoas’ do verbo (prósōpa) são traduzidas por personae, como se o constata perto da mesma época nos escritos de Élio Estilão [c.154-74 a.C.] ou de Varrão [116-27 a.C.]. Desde 168 a.C., a estadia em Roma do grego Crates de Malo [gramático e filósofo estoico] pôde fixar nesse sentido o vocabulário filológico, bem antes da vinda de Dionísio Trácio um século mais tarde. Essa sugestão seria uma certeza se as primeiras menções desse emprego gramatical remontam à [Caio] Lucílio (180-102), como o diz Rheinfelder” (Nédoncelle, 1948, p.296). 8

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Conforme Hadot, “no começo da era cristã, as duas palavras já tinham uma grande riqueza de sentidos: fundamentalmente, elas designam (i) a máscara dramática, (ii) o papel (dramático ou social), mas também (iii) o indivíduo” (id., p.124). Tanto em Tertuliano como em Hipólito, prósōpon e persona têm indissoluvelmente o sentido de “pessoa gramatical” e de “personagem dramático”. Mas nessa acepção, como já havia observado Schlossmann, trata-se de uma palavra sem verdadeiro conteúdo conceitual: “não existe em latim o emprego teológico de persona como atributo”. Ela permanece uma espécie de pronome e designa somente o sujeito que possui atributos. A partir do século III d.C. intervém um fato novo: sob a influência de Orígenes, começa-se a utilizar o termo hypóstasis para designar as três “pessoas” divinas, servindo para marcar a efetiva realidade do seu objeto. Mas a palavra ainda tem um sentido impreciso, que as controvérsias trinitárias obrigam a precisar. A fórmula que afirma a unidade de substância (homoousía) da Trindade, aceita pelo sínodo de 362 d.C., estabelece claramente a correlação: mya ousía, tréis hypostáseis, “uma só essência, três pessoas”. Fixada desde o século IV d.C. a identificação de prósōpon com hypóstasis, obliteram-se suas origens gramaticais, retóricas e dramáticas em proveito do sentido ontológico. Doravante as controvérsias podem se concentrar no mistério da dupla natureza de Cristo, que o Concílio da Calcedônia (451 d.C.) resolve reportando-se à mesma solução trinitária, distinguindo entre a natureza (phýsis) ou essência (ousía) de Cristo, de um lado, e sua substância (hypóstasis) ou pessoa (prósōpon), de outro: há duas naturezas em Cristo, a divina e a humana, mas elas se manifestam em uma só pessoa. A fórmula Unitas in tres personas, una persona in duas naturas encerra as disputas. É à base destas querelas trinitárias e monofisicistas que remete a famosa definição de Boécio (480-524 d. C.): persona est rationalis naturae individua substantia, “a pessoa é uma substância individual de natureza racional” (id., p.127-130). No século VI d.C., Cassiodoro (485-585 d.C.), sucessor de Boécio como magister officiorum, resume o final do processo numa fórmula precisa: persona – substantia rationalis individua. A partir daí, diz Mauss, é que o termo vai finalmente se aplicar à identidade do homem. O surgimento da categoria da pessoa teria devido seu fundamento ao cristianismo, que forneceu a base metafísica de que o sujeito carecia para afirmar sua individualidade: “é a partir da noção de uno que a noção de pessoa é criada [...] a propósito das pessoas divinas, mas simultaneamente a propósito da pessoa humana” (2007, p.393). Bem menos discutida, ou discutida com a mesma riqueza de detalhes, a pré-história da categoria do “sujeito” demanda um desvio mais complexo para se colocar devidamente a questão. De fato, com Aristóteles hypokeímenon passa a estar disponível para os estoicos. Mas essa aplicação do sujeito lógico para o sujeito gramatical só se desenvolve plenamente no período alexandrino (Murachco, 2007, p. 81). Quando os primeiros gramáticos se apropriam da descoberta de Aristóteles para nomear o sujeito gramatical e da nomenclatura do direito romano para a pessoa verbal e 52

pronominal, hypokeímenon permanece tributário da concepção estabelecida no livro primeiro do Órganon, desenvolvida em Física I, 7 e nos livros Δ (délta), Ζ (zdéta) e Η (êta) da Metafísica. Tanto em Aristóteles como para os primeiros gramáticos gregos, o enunciado constitui a base do sistema, formado de uma “essência” (ousía) e um “predicado” (kategoría). Transposto em termos gramaticais: o enunciado pressupõe o “sujeito” (tò hypokeímenon), aquilo de que se fala, e o “verbo” (rhêma), aquilo que se declara sobre o tema. Embora a definição gramatical da “pessoa” se faça em termos de lógos (“aquele que fala”) e não de ação, designando os interlocutores de um diálogo, em relação com o emprego retórico de prósōpon (Frontisi-Ducroux, 2012, p.117-118), dessa relação definida como necessária na Lógica de Aristóteles decorre que não pode haver enunciado sem sujeito e predicado, mesmos que estes não venham expressos. Do visto até aqui, resulta apenas um saldo inicial negativo: a língua grega dispunha de dois termos principais para as noções de “sujeito” e “pessoa”, porém, eles não eram de uso comum e possuíam outros sentidos prórprios, pelo menos até os primeiros gramáticos alexandrinos no período helenístico, sob o influxo da teorização lógica de Aristóteles e do empréstimo do vocabulário jurídico latino. O que equivale a dizer que tanto o sujeito como a pessoa, no sentido posterior, já surgem como metáfora (lógica, ontológica, jurídica, dramática e teológica) e, em primeiro lugar, como noções gramaticais, como escreve Hadot: me parece, ao contrário, que a experiência do sujeito falante desempenhou um grande papel no desenvolvimento da pessoa psicológica e na formação do conceito de pessoa. Creio tê-lo mostrado a propósito de Tertuliano (as pessoas teológicas são primeiro pessoas que falam) (1973, p.268).

O que leva a perguntar: se até a época de Platão e Aristóteles a língua grega não era codificada pela gramática, como se transmitiam suas regras e como eram apreendidas as categorias linguísticas de pessoa e sujeito, para ficar apenas no plano da linguagem? Até o século IV a.C., como se sabe, a língua grega era transmitida diretamente nos textos e canções de poetas épicos e mélicos. Mas, se os gregos não dispunham de um vocabulário comum para designar as noções de sujeito e pessoa, isso significa que simplesmente as desconheciam? Sabemos que a língua grega não dispunha apenas dessas duas formas tardias para designar as categorias linguísticas do sujeito e da pessoa. Ao contrário, agora podemos dizê-lo com mais precisão: como atesta uma simples consulta gramatical, independente da sistematização posterior dos gramáticos alexandrinos, o homem grego antigo dispunha de um sistema completo de verbos, pronomes, adjetivos e desinências, suficientemente capazes de representá-las, especialmente os pronomes pessoais “eu” (egṓ ), “tu” (sú); o demonstrativo adjetivo “mesmo” (autós) e os reflexivos formados por crase com os pronomes do caso oblíquo “me”, “mim” (emè, emoû, emoí), “te”, “ti” (sè, soû, soí), “se”, “si” (hé, heîo, hoî): “mim mesmo” (emautoû), “ti mesmo” (seautoû) e “si mesmo” (heautoû). Sendo notório que esse sistema de flexão verbal era suficientemente forte para dispensar 53

a menção explícita do pronome pessoal, a não ser que se quisesse insistir sobre a pessoa, como nas tautologias expressivas: “ele e não outro”, “eu e não ele”. Com efeito, de tal modo as desinências (ptṓ seis) se correlacionam às pessoas (prósōpa), que elas não pertencem a este ou àquele paradigma de flexão; são antes propriedades das pessoas gramaticais, “pertencem” às figurações de pessoa. O que explica o fato do grego não usar habitualmente o sujeito-pronome, pois elas o representam suficientemente: “cada pessoa gramatical tem ‘suas’ desinências, que são as marcas do sujeito” (Murachco, 2007, p.22). Henrique Murachco chega a sublinhar a existência de uma verdadeira “sintonia ou sinfonia fonética entre as consoantes das pessoas gramaticais e [suas] desinências” (id., p.24). Seria, pois, apressado fazer depender a representação de sujeito e pessoa dos termos que as significam explicitamente na consciência lexical do falante. Mesmo porque “a realidade da língua permanece, via de regra, inconsciente; excetuando o caso de estudo propriamente linguístico, não temos senão uma consciência fraca e fugidia das operações que efetuamos para falar” (Benveniste, 2005, p.68). O que equivale a dizer: se é verdade que não pode haver enunciado fora de uma correlação de sujeito, nem verbo fora de uma correlação de pessoa, ainda que num determinado estado histórico da língua o indivíduo não possua um termo para designar a classe linguística do sujeito ou da pessoa, é preciso que possua uma concepção implícita destas categorias, como demonstrou Benveniste, pelo simples fato de que ele fala. O que ajuda a esclarecer a própria aparição isolada da noção de sujeito em Aristóteles e sua posterior apropriação pelos alexandrinos, na medida em que sua tábua inteira de categorias se revela como uma transposição das categorias da língua. Isto é, pensando definir os atributos dos objetos, diz Benveniste, ele “não apresentava senão seres linguísticos”: substantivo, verbo, adjetivo, advérbio, voz passiva, ativa e medial, etc. (id., p.76). Do que decorre que sua noção de sujeito (hypokeímenon) não conduz, em primeiro lugar, a um ser, mas a uma categoria da língua. E, como já notava Meyerson, a uma categoria histórica: O exemplo mais impressionante nesse sentido é a lógica aristotélica, que se considerou [por muito tempo] como sendo a lógica, até que foi descoberto que ela havia sido feita de acordo com a gramática grega, que ela respondia ao nível de pensamento que representava a língua grega da época clássica, que não dava senão as normas desse pensamento, e que, por consequência, ela não era senão uma lógica (Meyerson, 1995, p.252).

Em seguida, esta categoria linguística não nos informa por si sobre nenhuma entidade, indivíduo ou conceito, fora dela, visto que o simples fato de alguém dizer “eu” não basta para afirmar que disponha de uma concepção determinada de sujeito. Pois, ainda segundo Benveniste, se “é o que se pode dizer que delimita e organiza o que se pode pensar” (id., p.76), em contrapartida nenhuma língua, por si mesma, pode favorecer ou impedir a atividade do espírito: “o voo do pensamento liga54

se muito mais estreitamente às capacidades dos homens, às condições gerais da cultura, à organização das sociedades que à natureza particular da língua” (id., p.80). O que significa, em poucas palavras, que (a) não é preciso dispor de uma noção de sujeito, expressa lexicalmente, para que o falante pressuponha a categoria de sujeito, independente de sua consciência linguística; em contrapartida, (b) o simples fato das categorias linguísticas referentes a sujeito e pessoa se verificarem numa determinada língua histórica não basta para assegurar o estatuto que nesta se confere às recíprocas categorias de pensamento, tal como se configuram numa determinada sociedade ou para um pensador em particular. Como já precisava Vernant (2008a, p.20), não se trata de saber se os gregos dispunham ou não de uma noção de sujeito ou em que momento eles teriam feito sua “descoberta” – o que suporia a nossa própria concepção de sujeito como o único modelo possível e a história das ideias como única via adequada de análise. Ao contrário, trata-se de investigar qual seria a especificidade das categorias gregas em questão. Sendo mais difícil apreender o estatuto do “eu” antigo, será pela indagação entrecruzada das categorias de mímēsis e do discurso poético-ficcional que se pode esperar uma maior precisão sobre a questão do sujeito. Vejamos, primeiramente, como a questão é examinada por especialistas na cultura antiga. Não surpreende que nenhum dos helenistas a seguir faça referência privilegiada às noções tardias hypokeímenon e prósōpon, nem se apoiem na mera hipóstase das categorias linguísticas de sujeito e pessoa, ocupando-se da instância do discurso egṓ e suas expansões gramaticais. Por onde, então, procedem sua abordagem? Desde logo, pelo estatuto conferido à noção de “alma” (psykhḗ ) e pelos atributos que lhe são predicados em um dado momento. Visto que a colocação clássica do problema do sujeito no quadro da cultura grega é formulada por Bruno Snell, comecemos por sua interpretação, para vir em seguida à contribuição de Eric Robertson Dodds e à retificação que Jean-Pierre Vernant propõe sobre o modelo de ambos.

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1. As teses da Snell-Fränkel school e seus opositores

Publicado originalmente em 1946, Die Entdeckung des Geistes [A descoberta do espírito] tornou-se rapidamente um dos livros mais discutidos entre os estudiosos do pensamento grego arcaico. Como recorda Trajano Vieira, coube à geração de Bruno Snell (1896-1986), de que fizeram parte Karl Reinhardt, Hermann Fränkel, Wolfgang Schadewaldt, Kurt von Fritz, Walter F. Otto e Paul Friedländer, “a difícil tarefa de suceder o mais ilustre helenista alemão do início deste século: Ulrich von Wilamowitz-Möllendorff (1848-1931)” (apud Snell, B.: 2012, p.xiii). Para o resumo histórico e introdutório que se segue, tomo basicamente como referência a excelente discussão de Paula da Cunha Correâ sobre as teses da escola Snell-Fränkel em Armas e varões: a guerra na poesia de Arquíloco (1998). Nessa prolífica escola alemã, a obra de Snell de destaca pela riqueza das formulações que contém e pela influência que teve e continua tendo, como o mais fecundo desenvolvimento hegeliano no campo dos estudos helenísticos. Utilizando o que se convencionou chamar de “método lexical”, Snell pretende demonstrar, pela ausência de um vocábulo, a inexistência da noção que ele designa. Partindo desse ponto de vista negativo, o autor procura entre os gregos noções que estes desconheceriam, seguindo neste aspecto a linha de Wilamowitz-Möllendorff, Stenzel e toda uma tradição que chega a “certo déficit da alma” entre os gregos, “aos quais faltariam ‘conceitos como o eu’, sentimento, mente, coração, humildade, consciência de si (Selbststimmung), responsabilidade, em suma, tudo o que seja ‘interno, pessoal’” (Corrêa, 2009, p.51). O método e as teses da chamada Snell-Fränkel school, adotados e desenvolvidos com modificações ou ressalvas por alunos e seguidores, exerceram grande influência nos estudos helenísticos, inclusive em outras linhas, como observa Paula Corrêa, tendo sido uma das bases da antropologia sociológica francesa ou a psicologia histórica de J.-P. Vernant. Porém, desde os anos 1950 esse modelo de interpretação do sujeito na Grécia arcaica tem sido alvo de crescentes objeções. O caráter controverso das teses de Snell sobressai, desde logo, pelo teor das críticas que lhe dirigem. Como bem sublinhou Griffith, “Essa abordagem resulta não apenas da ‘história do espírito’ póshegeliana, mas também do gosto e da teoria literária romântica que dominou a interpretação da poesia clássica até os anos 80 e que, até hoje, é influente” (apud id.,p.32). Divergindo do helenista alemão, “vários autores observam que Homero emprega o pronome de primeira pessoa – egṓ – que pressupõe, de algum modo, a noção de identidade, estruturadora do sujeito” (Vieira apud Snell, B.: 2012, p.xv). Nesse sentido, Albin Lesky considera que “embora não haja na épica reflexão sobre a ‘pessoa’, a unidade dela se expressa na fala e atos das personagens”. E intérpretes mais recentes de R. W. Sharples e R. Gaskin objetam que Homero representa seus personagens como “agentes unitários”. Definindo a pessoa do modo mais genérico possível, como “o 56

que organiza e reúne atividades emotivas e intelectivas no indivíduo”, o simples emprego do pronome “eu” implicaria, por si, tal noção (2009, p.36). Se Snell certamente havia reduzido o espaço do “eu” para melhor sublinhar sua “descoberta” progressiva, por que seus opositores reagem primeiro em defesa do sujeito, senão por que esse saíra de algum modo lesado da equação dialética? À rigor, a contradição implícita nas acusações remonta à própria ambiguidade da posição de Snell, ou seja até sua raíz em Hegel. Na Filosofia da História o filósofo já havia defendido a tese da inexistência de uma “consciência moral” na Grécia antiga, sendo a cultura grega definida como o mundo da “bela moralidade” carente do “princípio da interioridade” e da “ciência da subjetividade”. Não haveria entre os gregos uma “moralidade individual” (Moralität), cujo desenvolvimento é associado ao cristianismo, mas apenas uma “moralidade ética” (Sittlichkeit) (id., p.63-4). Seguindo em muitos pontos esse esquema, como bem pontua P. C. Corrêa, a caracterização do “homem homérico” e da mentalidade grega arcaica por Snell é descrita ora nos quadros da Filosofia da História de Hegel, em termos de mentalidade oriental9, ora em parâmetros antropológicos, assimilada à mentalidade primitiva, no rastro de Lévy-Bruhl (id., p.69). Concordando em parte com o ponto de vista de Snell, em sua tese sobre a noção de SyneídēsisConscientia (1928) F. Zucker também conclui pela “inexistência de uma noção precisa de consciência (Gewissen) no mundo antigo”. Haveria apenas no período sofístico uma representação da boa e da má consciência do sujeito acerca de seus atos. Mas ao contrário de Snell, Zucker afirma que ainda “faltaria a Sócrates, ou a Platão, uma consciência moral, sendo Aristóteles o que mais teria se aproximado desse conceito desenvolvido mais tarde por estoicos e epicuristas” (id., p.64). De sua parte, o próprio Snell, junto com Nestle e Seel, entre outros, refletindo sobre a expressão syneidénai heautôi (consciência de si), diverge da tese hegeliana, apontando para a presença de uma consciência moral em diversos momentos da história grega antiga. Donde, pergunta Corrêa, o que ele entende por consciência e por que a exclui de Homero? Embora constate a ocorrência da locução syneidénai heautôi no fr. 26 V de Safo, em resenha à tese de F. Zucker, publicada em 1930, Snell não admite haver “nem nessa passagem, nem em toda a lírica uma consciência propriamente dita”, pois “o sujeito na lírica pode ter um estado como objeto de consciência, mas não um ato”. Assim, ele considera a “consciência lírica”, a “reflexão sobre o estado próprio, como uma etapa na direção da “consciência da ação própria”, somente alcançada pelo homem grego do século V a.C. Sendo em Heródoto que ele vê surgir a consciência stricto sensu,

Conforme as características atribuídas por Hegel em sua Filosofia da história à “fase do espírito” do mundo oriental, anterior às fases do mundo greco-romano e do germano-cristão: “O mundo oriental tem como seu princípio próximo a substancialidade do ético (Sittlichen). É a primeira vitória sobre o arbítrio que submerge nessa substancialidade. As determinações éticas são proferidas como leis, de modo que a vontade subjetiva é regida pelas leis como se por um poder exterior, de modo que tudo que é interno, caráter, consciência, liberdade formal, não age, e isso porque as leis se impõem apenas de uma maneira externa e existem apenas como direito coercitivo” (trad. Corrêa, 2009, p.68). 9

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como “avaliação moral que tem por objeto uma ação própria do sujeito” (id., p.65). Ao contrário de Snell e Fränkel, muitos outros como O. Seel apontam a existência, já em Homero, de uma forma de consciência de si. Mas ao fazê-lo o autor concorda com Snell quanto à locução syneidénai heautôi, vendo nela uma forma de consciência reflexiva na qual o “eu, em clara divisão e estratificação, é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da declaração” (apud id., p.66). O que em Snell é um indício da progressiva formação da individualidade, para seu opositor não passa de uma constante metahistórica. Já Cancrini discorda que o emprego do verbo com o pronome reflexivo syneidénai heautôi implique uma “divisão da subjetividade” e que a estrutura em si expresse o tipo de reflexividade na qual o “eu” é sujeito e objeto. Em contrapartida, explica que originalmente syneidénai referir-se-ia a um “saber compartilhado, seja com outros (em um grupo ou círculo restrito), ou consigo próprio (heautôi)” (id., p.68), concluindo, após um levantamento das ocorrências das expressões gregas e palavras do mesmo campo semântico, que o substantivo syneídēsis, a forma que mais corresponde à conscientia, é tardio, atestado primeiramente em Demócrito (fr.297 Diels) e tornando-se frequente apenas entre os historiadores do primeiro século. O termo possui o sentido inequívoco de uma “consciência moral” em Fílon de Alexandria, na primeira epístola de Pedro, e em Paulo de Tarso (2 Cor. 1.12). A forma verbal com o pronome reflexivo (syneidénai heautôi) é, pelo contrário, comum nos textos dramáticos e retóricos do século V a.C. e mais rara no período helenístico (Corrêa, 2009, p.67).

Veremos depois como Vernant situa o problema do sujeito grego em relação à consciência da ação responsável. Por ora, basta registrar a concordância de Marcel Mauss com a tese de Zucker e Cancrini, antecipando a diferença que será desenvolvida por Vernant. Referindo-se à tese de Léon Brunschvicg em Le progrès de la conscience (1927), Mauss arrisca uma hipótese mais precisa: Para mim, as palavras que designam primeiro a consciência, depois a consciência psicológica, a syneídēsis – tò syneidós, são verdadeiramente estoicas; elas parecem técnicas e traduzem nitidamente conscius, conscientia do direito romano. Pode-se mesmo perceber, entre o antigo estoicismo e o da época greco-latina, o progresso, a mudança, definitivamente realizada na época de Epicteto e de Marco Aurélio. De um sentido primitivo de cúmplice, ‘que viu com’ – sýnoide –, de testemunha, passou-se ao sentido da ‘consciência do bem e do mal’. De uso corrente em latim, a palavra adquire por fim esse sentido entre os gregos, em Diodoro de Sicília, em Luciano, em Dionísio de Halicarnasso, e a consciência de si tornou-se o apanágio da pessoa moral (Mauss, M.: 2007, p.391).

O confronto de interpretações proporcionado por Paula C. Corrêa faz sobressair mais nitidamente o paradoxo da tese da ausência de uma noção de “consciência moral” e da carência de um “princípio de interioridade” entre os gregos com outra tese mais bem conhecida de Hegel, que define a lírica, por oposição ao objetivismo épico, como “expressão da subjetividade” (id., p.31-2). Nas palavras certeiras de Francisco Achcar: A justificada prudência de Adorno em relação à poesia antiga, evitando forçar toda a lírica dentro dos limites de sua definição, não teve precedente em Hegel. [...] Ou seja: Hegel, como aliás todos os 58

teóricos da lírica que lhe seguem os passos (com exceção de Adorno), não encontra limites históricos para a validade de seu conceito. Com isso, a especificidade do sujeito da lírica antiga [...] é drasticamente escamoteada (Achcar, F.: 1994, p.40-41).

Aderindo à definição cunhada nos Cursos de Estética do filósofo, a análise de Snell parte ao mesmo tempo de uma “falta” de sujeito na Grécia arcaica, defendida conforme o esquema da Filosofia da História, e da concepção da lírica como desdobramento e negação da racionalidade épica, constituindo, na história do espírito, “um momento mais avançado no sentido da consciência de si, um passo adiante relativamente à representação do espírito que se encontra em Homero”. O que envolve imediatamente, como sublinha Achcar, duas ordens de problemas: “essa visão implica, ao mesmo tempo, uma concepção substancial do eu-lírico [...] e a precedência histórica da épica” (id., p.41). Sobre o segundo problema, da concepção da história literária como sucessão cronológica de gêneros que se desenvolvem como “resultado e expressão de uma determinada situação histórica” (Snell, 2012, p.55), vários autores corrigiram a teoria evolutiva dos gêneros de Snell. Assim, para C. O. Pavese: A canção grega revela procedimentos que se encontram presentes também na canção pré-literária de outros povos. A diferente atmosfera ética que encontramos na lírica em relação à épica não é devida tanto a uma evolução das ideias que tivesse intervindo entre o oitavo e o sétimo século, quanto aos diversos aspectos de um mesmo mundo que a épica e a lírica representam. A lírica se liga a uma tradição contemporânea da épica e representa o reverso da mesma moeda (apud Achcar, 1994, p.42).

A propósito da expressão “pré-literária”, empregada por Pavese, a extensão do conceito de “literatura”, cunhado no século XIX, permanece a regra tanto em Snell como em seus críticos, com apenas uma diferença: postulando um período “pré-literário”, onde o canto ligado a funções pragmáticas (culto, ritos fúnebre e de casamento, colheita, marcha militar, etc.) ainda não seria “poema”, para Snell a datação do sujeito se confunde com o próprio nascimento do eu lírico. Em compensação, no caso da contemporaneidade da mélica e da épica ressaltada pelos intérpretes posteriores, independente de uma noção de “lírica”, o indivíduo psicológico se mostra tão antigo quanto a literatura oral. A circularidade é evidente: a descoberta do sujeito explica a ultrapassagem do “estatuto pré-poético do poema”, mas é o aparecimento da “poesia literária” que revela os primeiros indícios da individualidade do “eu”. Corrigindo parcialmente Snell e Fränkel, para quem o estilo seria produto de uma fase histórica, Rösler e Seel destacam o papel do gênero, mais que da época, como determinante das peculiaridades do estilo homérico. Ao invés de traduzir uma “visão de mundo” do período, os poemas homéricos operariam uma seleção conforme as convenções artísticas do gênero adotado (Corrêa, 2009, p.52). O que tem a vantagem de resolver um problema histórico literário, mas deixa de fora a questão da história da “interioridade”, elidido por uma técnica impessoal. Nas palavras de Dover: 59

devemos considerar a possibilidade de que o que temos aceito como evidências da percepção limitada do homem homérico sejam, de fato, convenções artísticas [...] a possibilidade de que as percepções estéticas da lírica primitiva foram excluídas da Ilíada, tão consciente e completamente, quanto o humor indecente (apud id., p.52).

O que não significa que as propriedades que Snell exclui do “homem homérico”, reservando à lírica e sobretudo à tragédia, devam ser consideradas contemporâneas ou até anteriores a Homero. Pelo contrário, como o argumento não afeta o pressuposto da história evolutiva do sujeito, mas apenas sua forma de expressão, nada impede que a lírica cronologicamente posterior se revele mais tradicional, prolongando a falta de uma consciência psicológica do “eu” além do período homérico, a despeito do esforço de Sell e seus críticos. Ou pelo menos, obrigando a pôr limites à elocução na primeira pessoa como categoria suficiente para determinar o estatuto do poema e do sujeito falante: Atualmente, os estudos de métrica indo-europeia têm revelado que, formalmente, os poemas de Safo e Alceu são mais tradicionais que os de Homero e as demais estruturas jônicas. Se a mélica de Safo possui, do ponto de vista formal, características mais antigas que a épica, como saber se os temas e o discurso na primeira pessoa do singular, por exemplo, não estariam já presentes em autores da poesia pré-literária anterior à composição da Ilíada e da Odisseia? (Corrêa, 2009, p.60-61).

Há, inclusive, inúmeras referências à mélica monódica e coral na Ilíada (1.472-4, 16.180, 18.493, 590, 22.391, 24.720) e os Hinos homéricos, que atestam a favor dessa contemporaneidade de formas de expressão, épica, mélica, iambo, elegia, etc. Por isso, deixando de lado o sentido que possa ter a ideia “literatura” referida a um tempo que seguramente a desconhecia, importa considerar a simultaneidade de tradições coexistentes no mesmo período: “Por volta do século VIII, havia na Grécia três tradições poéticas com dialetos, métricas e práticas musicais (modos) distintos: a eólica, a dórica e a jônica” (id., p.62). Desde logo, “não seria legítimo tomar a representação de um poeta (ou de um gênero poético) como a única existente ou possível em sua época” (Corrêa, p.52). Snell não ignora a existência dessa “lírica” anterior. Mas atribui ao impacto da épica de Homero sobre os poetas mélicos o desenvolvimento da poesia arcaica além do estágio funcional e sua promoção ao status de “literatura”, de modo que os carmina popularia anônimos, associados a ocasiões de performance definidas, canções de trabalho, hinos religiosos, poemas marciais, cantos fúnebres, de bodas, etc., teriam ultrapassado as limitações de sua antiga finalidade. Assim, os cantos de guerra de Arquíloco já não serviriam meramente para animar os guerreiros, como os de Calino e Tirteu, já não seriam meras arengas em verso, mas afastando-se de sua função social, o poema teria se desprendido de toda referência prática para tornar-se portador dos... sentimentos pessoais do poeta. Resta saber, nesse caso, o que distinguiria o poema de uma forma para- ou autobiográfica. Corrêa, ao contrário, defende que os poemas de Calino e Tirteu já seriam “obras literárias”, no sentido de conterem algo que ultrapassa a finalidade pragmática para a qual foram produzidos. Mas, como a autora não define o poema arcaico como peça ritual ou pedagógica dotada de uma referência prática, 60

no sentido de Calame, nem como forma privilegiada de expressão do “eu” antecipando a lírica moderna, como Snell, o que distingue o poema mélico contra o pano de fundo desse horizonte próximo, onde o poeta ainda acumulava as funções de sacerdote, sábio e advinho? No momento, tratemos apenas de acompanhar a formulação de Snell. Ao tentar conciliar as duas teses de Hegel, da lírica como “expressão da subjetividade” e dos gêneros como “reflexo de uma situação histórica”, o helenista atribui à poesia mélica um despontar da individualidade que permanece em grande parte incluído no quadro de sua caracterização do homem homérico: a mélica monódica corresponderia à nossa ideia de lírica “na medida que os poetas que a ela se dedicam tratam de coisas pessoais” (id., p.57); mas o sujeito da poesia grega arcaica não se sente plenamente agente e promotor de suas decisões, desconhecendo uma autêntica “consciência de si”. Por onde se vê que é menos a manutenção de uma teoria literária romântica evolutiva dos gêneros que incomoda seus opositores, quanto a abertura de uma brecha que fere a validade metahistórica da categoria do sujeito e seu corolário, a concepção substancialista da literatura como expressão da subjetividade. Daí porque o livro de Snell começa, precisamente, com um mea culpa: Se, em seguida, dissermos que os homens homéricos não tinham nem espírito nem alma e, por conseguinte, ignoravam muitas outras coisas, com isso não estamos querendo afirmar que não pudessem alegrar-se ou pensar em alguma coisa, e assim por diante, o que seria absurdo; queremos dizer que essas coisas não eram interpretadas como ação do espírito e da alma: nesse sentido, podese dizer que, no tempo de Homero, não existiam nem o espírito nem a alma (Snell, B.: 2012, p.xxi)

O autor sente necessidade de se explicar. Se faltava a palavra para designá-la e, portanto, não existia a noção de sujeito, isso significa que suas ações não eram atribuídas à decisão “livre e pessoal” do indivíduo. Mas não que o homem não existisse. Apenas, nesse estágio “primitivo”, ele ainda não tinha alcançado o ponto mais alto rumo à consciência de si. Utilizando um método filológico determinista, a tese de Snell toma cada silêncio lexical por fato comprobatório que narra o início da evolução progressiva da consciência de si ocidental, culminando na descoberta do “espírito europeu” no século V a.C.. Seus pressupostos são claramente enunciados desde os primeiros parágrafos do livro: “Com Aristarco, o grande filólogo alexandrino, estabeleceu-se um princípio fundamental para a interpretação da língua homérica: o de evitar traduzir os vocábulos homéricos segundo o grego clássico” (id., p.1). Dessa forma procura-se escapar à influência das formas mais tardias da língua. À diversidade semântica das palavras, já sentida na antiguidade, acresce o esclarecimento recente de etnólogos: Temos a tendência de considerar o que foi acrescentado no século V a.C. como válido para todos os tempos. Prova do quanto Homero está longe disso é sua linguagem. Já de há muito se descobriu que numa língua relativamente primitiva as formas de abstração ainda não estão desenvolvidas, mas que 61

em compensação existe uma abundância de definições de coisas concretas, experimentáveis pelos sentidos que pareceriam estranhas numa língua mais evoluída (id., p.1-2).

Etnocentrismo e ideologia do progresso dão-se os braços desde as primeiras páginas do livro. No entanto, não é inteiramente certo que Snell identifica o “homem homérico” à mentalidade primitiva, com Lévy-Bruhl. Do contrário, como explicaria que a “primeira etapa do espírito europeu” se tivesse manifestado em Homero e não em qualquer outra sociedade “primitiva”? Para que represente a “primeira etapa do espírito europeu” é preciso que Snell nele reconheça algum traço de sujeito que o diferencie da mentalidade primitiva. Por outro lado, se as práticas do “homem homérico” não eram interpretadas como ações do indivíduo, é preciso que Homero as atribua a uma concepção de sujeito anterior à plena consciência de si e da “ação própria”. Por essa via tortuosa impõe-se à tese de Snell uma leitura que ela certamente não pretende. Pois suponho que sua tese permanece instigante justamente pelo que, nela, ultrapassa seu propósito declarado. Mas para verificá-lo, cabe investigar por trás de sua história das ideias, o aparato conceitual que permite resgatar uma margem de especificidade da categoria grega de sujeito. Mas se ao invés de um estágio anterior do mesmo conceito, o homem homérico se orientasse por outra concepção, diversa da nossa, não será a própria ideia de sujeito consciente de sua individualidade, que terá seu valor meta-histórico abalado? Nesse caso, a indagação do “homem homérico” colocaria em questão a identidade do sujeito como correlato de uma substância. Seria preciso mostrar que hypokeímenon (sujeito-substrato) não é apenas um sinônimo lógico para ousía (essência). Mas não é esse o caminho de Snell. Vejamos como o autor formula sua hipótese antes de virmos à sua retificação posterior por outros helenistas que, não obstante sua diversidade, concordam em tomá-lo como referência incontornável.

O olho e o espírito

O primeiro exemplo destacado por Snell é o grupo de verbos que descrevem o ato de ver em Homero em comparação com os termos que serão utilizados para indicar a mesma ação por volta do século V a.C.. Homero emprega uma grande quantidade de verbos para designar a ação de ver: horân (ὁρᾶν), ideîn (ἰδεῖν), leússein (λεύσσειν), athreîn (ἀθτρεῖν), theâsthai (θεᾶσθαι), sképtomai (σκέπτομαι), óssesthai (ὄσσεσθαι), dendíllein (δενδίλλειν), dérkesthai (δέρκεσθαι), paptaínein (παπταίνειν). Destes, vários caíram em desuso no grego subsequente, pelo menos na língua viva, como dérkesthai, leússein, óssesthai, paptaínein, e para substituí-los encontram-se apenas duas novas expressões: blépein (βλέπειν) e theōreîn (θεωρεῖν). Conforme o postulado do método lexicográfico

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do autor: “pelas palavras caídas em desuso podemos ver quais as necessidades da língua antiga que se tornaram estranhas à língua mais recente” (Snell, 2012, p.2). δέρκεσθαι (dérkesthai) significa: ter um determinado olhar. δράκων (drákōn), a serpente cujo nome deriva de dérkesthai, é assim chamada porque tem um “olhar” particular, sinistro. É chamada de “vidente” não porque veja melhor que as outras e sua vista funcione de modo especial, mas porque nela o que impressiona é o ato de olhar. Assim a palavra dérkesthai indica, em Homero, não tanto a função do olho quanto o lampejo do olhar, percebido por outra pessoa (id., p.2).

Na expressão homérica dérkesthai “não se considera tanto o ver como função quanto como faculdade particular que têm os olhos de transmitir aos sentidos certas impressões” (id., p.3). O mesmo vale para paptaínein: “é, ele também, um modo de olhar, de olhar em torno procurando alguma coisa com olhar circunspecto ou com apreensão” (id., p.3). Sendo característicos desses dois verbos o fato de jamais serem encontrados na primeira pessoa: “dérkesthai e paptaínein são, portanto, atos que se observam nos outros e ainda não se sentem como ato próprio” (id., p.3). O caso de leússō será diferente. Por um lado, o verbo tem afinidade etimológica com leukós, brilhante e significa: olhar alguma coisa que brilha, sendo “um modo de olhar com mirada altiva, alegre”. Ou seja, também se atém a outra coisa que a função do olho. Mas, diversamente dos verbos anteriores, “leússein encontra-se com bastante frequência na primeira pessoa, distinguindo-se, por isso, de dérkesthai e paptaínein, ‘atos’ de ver que se captam sobretudo nos outros”. Contudo, é notável que leússein indica “determinados sentimentos que experimentamos no ver, sobretudo no ver determinadas coisas” (id., p.3). Donde o traço comum a ser destacado: “também essa palavra recebe, portanto, seu sentido específico do modo de ver, de ver algo que está além da função do ver e dá ênfase ao objeto visto e aos sentimentos que acompanham o ver” (id., p.4). O mesmo poderá ser dito em relação ao quarto verbo caído em desuso. Óssesthai significa “ter alguma coisa diante dos olhos, mas particularmente, ter algo de ameaçador diante dos olhos [...] Também aqui, o ver é determinado pelo objeto e pelo sentimento que o acompanha” (id., p.4). Assim, não apenas nesses quatro casos, mas de modo geral, Observamos que, em Homero, também outros verbos que significam “ver” recebem o significado autêntico da atitude que acompanha o ver, ou do momento afetivo. Theâsthai significa, aproximadamente: ver escancarando a boca [...] E por fim os verbos horân, ideîn, ópsesthai, mais tarde reunidos num único sistema de conjugação, demonstram que antes não se podia indicar com um só verbo o ato de ver, mas que existiam vários que ocasionalmente designavam um modo particular de ver (id., p.4)

Passando à época posterior a Homero, observa-se que um dos termos mais recentes, theoreîn, “não era, na origem, um verbo, mas deriva de um substantivo, de theōrós, e deve, portanto, significar, ‘ser espectador’”. Somente mais tarde passaria a referir uma forma de ver e assume o sentido de “ficar olhando”, “observar”. Diversamente do vocabulário homérico, a ênfase não recai sobre o modo de ver, nem no sentimento que o acompanha, ainda que num primeiro momento talvez se tratasse 63

exatamente disso: “em geral, com theōreîn não se indica um modo determinado ou afetivo de ver e sim, uma intensificação da verdadeira e autêntica função do ver. Isto é, enfatiza-se a faculdade que tem o olho de captar um objeto” (id., p.4). Os verbos da época primitiva teriam se formado prevalentemente “segundo os modos intuitivos do ver, ao passo que mais tarde é a verdadeira e autêntica função do ver que determina exclusivamente a formação do verbo”. Os diversos “modos” sendo, mais tarde, indicados por adjuntos adverbiais (id., p.4-5). Para o helenista as transformações de vocabulário atestam duas mudanças relacionadas: (a) a passagem de uma língua dependente do que Lévi-Strauss chamaria, mais tarde, de uma “lógica do concreto” para uma linguagem mais “abstrata”, denotando um avanço de racionalidade; (b) o vocabulário emergente respondendo às novas necessidades da língua em decorrência da crescente demanda expressiva do sujeito, na medida em que se “interioriza” progressivamente a ação de ver. Mas ao passo que Snell está mais preocupado em provar a descoberta da interioridade do sujeito, deixando de lado a oposição “etnológica” (na verdade, etnocêntrica) entre pensamento concreto/abstrato que pretende fundamentar sua tese, é a própria caracterização “externa” do ato de ver na língua de Homero que importa destacar. Como demonstra Snell, a multiplicidade de acepções do olhar em Homero não remete a uma riqueza interior do sujeito. O verbo ver, em suas múltiplas formas, não denota nenhuma função do olhar atribuída ao eu. Ao contrário, estas correspondem a uma classificação dos “modos de ver” na qual nem o olhar nem o sentimento que o acompanha são sentidos como particulares do indivíduo. Em contrapartida, o conteúdo expresso por tais verbos define um modelo válido para cada um que se encontre em uma situação semelhante ou diante de um objeto equivalente. Se “naturalmente, também para os homens homéricos os olhos serviam essencialmente para ‘ver’, isto é, para captar percepções óticas”, decisivo é o fato de que eles não concebiam essas ações como ações do espírito ou da alma. Em consequência a mudança de expressão poderá ser formulada em termos de uma passagem de uma concepção impessoal do olhar, atestada pelo vocabulário arcaico, catalogada em olhares-tipo, para o advento de um olhar público, exercido publicamente e posto ao alcance de todos, uma concepção do olhar referida a um centro de ação capaz de assumir esse olhar como meu modo de ver em função do próprio ato da visão. Advento de um olhar-theoreîn que será, num primeiro momento, o olhar do espectador da tragédia, antes de se tornar o olhar teórico, contemplativo, do filósofo

Vocabulário do corpo

A seguir Snell considera a evolução semântica do vocabulário grego para designar as noções de “corpo” e “alma”. O alcance de sua interpretação será melhor observado em comparação com as 64

explicação tradicional. Em ensaio de 1948, sobre os valores de prósōpon e persona na antiguidade, Maurice Nédoncelle resumia algumas das teses mais frequentes. Indagando sobre o vocabulário grego para designar a “pessoa”, afirma que o homem grego teria começado por utilizar termos aproximativos, “pela razão muito simples de que a ideia de pessoa ainda não havia nascido” (1948, p.277). Após relacionar pronomes indefinidos (tis, hékastos, oudeís), adjetivos (autós), o substantivo ánthrōpos e seus derivados, Nédoncelle destaca as palavras sôma (σῶμα), démas (δέμας), psykhḗ (ψυχή), kardía (καρδία), thymós (θυμός), kephalḗ (κεφαλή), etc., sublinhando que destas, a mais importante seria sôma. Para explicar sua primazia, faz um breve resumo das teses de maior prestígio. Erwin Rohde, em sua clássica obra prima Psykhḗ (1928), sustentava que, para Homero, o homem teria uma dupla existência: “Ele é um eu visível, chamado sôma; mas nele reside um duplo, a psykhḗ , imagem de seu ser vivente, que age quando está dormindo e que subsiste após sua morte” (id., p.277). A mesma opinião sendo adotada na França por A. Rivaud (1906), com a precisão de que em Homero, sôma designava apenas o cadáver, acrescentando, também, que o termo não teria aplicação à matéria antes de Demócrito (id., p.278). De sua parte, O. Weinrich, editor de Rohde, já estimava que os estudos mais recentes teriam arruinado essa interpretação, obrigando a admitir duas almas no homem homérico: pois ao lado da psykhḗ , haveria no homem o thymós. A psykhḗ não podia ser um duplo presente no homem vivente, senão que, mais propriamente, o espírito do cadáver, enquanto thymós seria o princípio vital, que escapa no momento do último sopro (id., p.278). De fato, Walter F. Otto havia se esforçado por estabelecer essa tese em seu livro Die Manen oder von der Urformen des Totenglaubens [Dos manes ou das formas primeiras da crença nos mortos] (1903), afirmando que se distinguem claramente na época de Homero uma alma de vida (thymós) e um espírito de morte (psykhḗ ). Para Homero, a psykhḗ não é uma alma liberada do corpo, mas, ao contrário, o corpo que perdeu sua substância, um corpo “inanimado” no sentido mais completo. O homem vivo estava animado pelo thymós, que escapa dele com seu último suspiro (apud Halbwachs, 1930, p.497).

Não obstante, precisa Halbwachs: “O thymós, segundo Rohde, não é uma alma: é a força espiritual do corpo vivo, que quer, sente e que pertence ao corpo, a mesmo título que as forças que se designam pelos nomes de ménos, nóos, mêtis, boulè” (id.). Com efeito, já Halbwachs extraíra algumas conclusões avançadas a partir das teses de Rohde, embora ainda permaneça aquém da intuição de Snell, estabelecendo a distinção entre a concepção homérica de psykhḗ como “duplo corporal” e a concepção platônica do “duplo espiritual”. Mas é em R. Hirzel, Die Person (1914), que Nédoncelle encontra melhor reforço para afirmar a primazia de sôma, entre os gregos, para referir a individualidade: “Desde que Licurgo, no século IV a.C., fala do sôma que libertou a cidade é impossível deixar de traduzir: o indivíduo, ou mesmo, a personalidade, o notável da cidade” (Nédoncelle, 1948, p.278). 65

O que quer que seja, um fato é inegável: sôma veio bem cedo (e já em Hesíodo) designar o indivíduo animado, na objetividade concreta de seu ser perceptível. O descrédito que Pitágoras e Platão infligem a essa palavra dizendo que o sôma é um sêma, quer dizer, um túmulo, não foi capaz de lhe retirar seu valor de uso que era considerável (id., p.278).

A título de amostra negativa, tanto as fontes citadas por Nédoncelle e Halbwachs como as conclusões que tiram a respeito de sôma e psykhḗ são suficientes para servir contraste para o salto interpretativo que será proposto menos de uma década depois pelo helenista alemão. Passemos a palavra a Snell: “já Aristarco observava que a palavra sôma, que mais tarde significará ‘corpo’, jamais se refere, em Homero, aos viventes: sôma significa ‘cadáver’” (id., p.5). Para indicar o que chamamos de corpo e que os gregos do século V a.C. designam com sôma, Homero possui outras palavras. A que corresponde mais de perto à forma tardia, como supunha corretamente o filólogo alexandrino, é démas (δέμας). Mas seu uso é muito limitado e só vale para certos casos. Paupérrimo substituto, significa mais propriamente “de figura”, “de estrutura”, limitando-se a poucas expressões (encontra-se apenas no acusativo de relação) como “ser grande ou pequeno”, “parecer-se com alguém”, e assim por diante. (id., p.5) Ou seja, refere menos o corpo em si mesmo, em sua unidade e inteireza, do que no interior de uma comparação. Bem mais frequentes são as formas guîa (γυῖα) e mélea (μέλεα). No entanto, temos, aqui, um plural onde seria de se esperar um singular: “Ao invés de ‘corpo’, fala-se de ‘membros’”: guîa são os membros enquanto movidos pelas articulações, mélea, os membros enquanto recebem força dos músculos. Além disso, existem em Homero, sempre nesta linha, as palavras hápsea (ἅψεα) e rhéthea (ῥέθεα). Mas Snell prefere deixá-las de lado, visto que se encaixam no mesmo paradigma (id., p.5). Menciona ainda o termo khrṓ s (χρώς), que em relação a algumas passagens homéricas como “ele lavou o próprio corpo” e “a espada penetrou em seu corpo”, se teria acreditado erroneamente que significasse “corpo” e não “pele”. De fato, dos termos que se empregava para designar o corpo, em lugar da expressão mais tardia sôma, “somente os plurais guîa, mélea, etc, permanecem indicando a corporeidade do corpo, visto que khrṓ s é apenas o limite do corpo e démas significa estatura, corporatura, e só o encontramos no acusativo de relação” (id., p.6). Para os fins da leitura de Snell, o fato de que os gregos dos primeiros séculos não concebessem o corpo como unidade, mas como pluralidade, confirma o que haviam demonstrado os diversos verbos de “ver” (id., p.7). Assim como o vocabulário arcaico capta as atividades humanas em suas formas evidentes, sensíveis, em vez de indicar a função dessa atividade, que aparece somente ligada a formas exteriores ou a determinados e bem definidos movimentos de ânimo; no caso do corpo: indica-se, antes de tudo, aquilo que impressiona aos olhos, a saber, os membros; só mais tarde é que a relação funcional desses membros passa a ser reconhecida como essencial. Mesmo nesse caso, porém, a função é algo de real, mas essa realidade não se revela de modo tão claro e, ao que parece, não é coisa que se sinta em primeiro lugar, nem mesmo pela própria pessoa. [...] Esse elemento real 66

existe para o homem somente enquanto é “visto” [...] Naturalmente, até mesmo os homens homéricos tiveram um corpo como os gregos da época mais tardia, mas não o sentiram como “corpo”, e sim, como um conjunto de membros. Pode-se, portanto, dizer também que os gregos homéricos ainda não tinham um corpo na verdadeira acepção da palavra (id., p.7-8).

Deixando de lado o valor normativo que Snell atribui à “verdadeira concepção de corpo” para a qual o pensamento grego ainda deveria evoluir possibilitando sua expressão plena no estágio racional da língua, importa resgatar o saldo positivo da pesquisa: se os gregos do período homérico não possuíam uma palavra para nomear o “corpo” como unidade orgânica do vivente, é porque o homem arcaico não sente e não representa a relação funcional entre as partes de sua estrutura física como referidas à sua pessoa. Assim pode-se falar de “pernas ágeis”, “braços fortes”, “móveis joelhos”, sem que haja um sujeito detentor de força, mobilidade e agilidade. Pelo contrário, o corpo, como dirá Vernant, só é visado enquanto investido de valores religiosos (Vernant, 2008a, p.411). A função dos membros não pode ser unificada como instrumento da força ou destreza de um “eu” forte e destro: se o órgão excepcional é uma parte do indivíduo bem dotado, a excepcionalidade de suas mãos, pés ou olhos encarna um “favor” ou “graça divina” (kháris), não um mérito ou qualidade pessoal. Novamente, nos importa menos que esse vocabulário traduza uma concepção vinculada a uma “lógica do concreto” – para o método lexicográfico de Snell, prova inequívoca de um déficit de razão –, do que notar que essa representação plural do corpo pressupõe uma outra concepção de sujeito. Não é que a “função do órgão” só tenha existência num estado pré-abstrato enquanto ela é “vista” pelo homem grego arcaico, senão que ela representa uma outra função e traduz outra realidade, diversa da que o pensamento moderno atribui ao olhar e ao sujeito. Na qual o órgão ainda não constitui um instrumento do eu, assim como a força não pertence ao indivíduo, mas se estende além dele e o ultrapassa, manifestando-se através de seu corpo, na medida que encarna, justamente, uma realidade que os olhos não podem ver, a realidade invisível do “outro mundo”, dos deuses e dos mortos.

A constelação da psykhḗ

Finalmente, venhamos à concepção homérica da alma. A tese de Snell sobre a noção homérica de sujeito remonta à dissertação de Joachim Böhme, Die Seele und das Ich bei Homer [A alma e o eu em Homero] (1929), sobre a qual o autor escreve uma recensão em 1931. Tendo estudado exaustivamente o uso dos termos ψυχή (psykhḗ ), θυμός (thymós) e νόος (nóos) em Homero, Böhme chamara a atenção para a ausência de um vocábulo “que indique o conjunto da vida do sentimento, isto é, a alma e o espírito, segundo a nossa concepção” (Snell, 2012, p.8). 67

Vimos que já em 1930, em resenha à tese de F. Zucker sobre a noção de syneídēsis, o helenista demarcara sua posição diante de Hegel, caracterizando o homem homérico assim como o sujeito lírico do período arcaico, pela ausência de uma noção de “consciência moral”, mas acusando sua presença a partir de Ésquilo. Como bem recorda Vernant, desde 1928, num artigo sobre “Aischylos und das Handeln im Drama” [Ésquilo e a ação no drama], Snell havia extraído da dramaturgia de Ésquilo os elementos de uma “antropologia trágica” centrada nos temas da ação e do agente. Opondo o dramaturgo a Homero e aos poetas líricos, Snell defendia que em Ésquilo se afirma um modelo da ação humana concebida como iniciativa de um agente capaz de tomar uma decisão “pessoal e livre”, extraindo de seu foro íntimo as motivações para seus atos e responsabilizando-se plenamente por eles. Do que resultava a constatação negativa da ausência de uma palavra para designá-la anteriormente e, conforme o postulado de seu método lexicográfico, a inexistência da noção de “vontade” em Homero e na mélica arcaica (Vernant, 2008a, p.26 e ss.). Acrescente-se por fim, como registra P. C. Corrêa, que o quadro igeral do “homem homérico” traçado por Snell foi inicialmente desenvolvido pelo autor em artigo de 1939, “Die Auffassung des Menschen bei Homer” [A concepção do homem em Homero], depois incorporado ao primeiro capítulo de A descoberta do espírito (Corrêa, 2009, p.33). Para o subsequente desenvolvimento da discussão acerca do conceito de alma em Homero, o próprio Snell remete aos estudos de Hermann Fränkel, Dichtung und Philosophie des früthen Griechentums [Poesia e filosofia da primeira Grécia] (1951), Eric Robertson Dodds, The Greeks and the Irrational (1951) e “o bastante estimulante, mas nem sempre convincente”, livro de R. B. Onians, The Origin of European thought about the body, the mind, the soul, the world, time and fate (1951), publicadas quase simultaneamente a sua obra síntese. Tomando essas referências como moldura para sua própria formulação, passemos à tese de Snell sobre o conceito que melhor define o estatuto do sujeito no período que precede o advento do pensamento racional no século V a.C., a noção de psykhḗ . Visto que “também para ‘alma’ e ‘espírito’ falta a Homero a palavra correspondente”, é a partir da tese de Böhme que Snell propõe a discussão da tríade psykhḗ , thymós e nóos para situar a noção homérica de sujeito. “Psykhḗ , palavra usada para ‘alma’ no grego mais tardio, nada tem a ver, na origem, com a alma pensante e senciente. Em Homero, psykhḗ só é alma enquanto ‘anima’ o homem, isto é, enquanto o mantém vivo” (Snall, 2012, p.8). Mas, aqui também, uma aparente lacuna pode ser preenchida por “outras palavras que, embora não tendo o mesmo valor das expressões modernas, podem substituir a palavra ‘alma’”. Para indicá-la, “são usadas em Homero particularmente as palavras psykhḗ , thymós e nóos”. (id., p.8). Vejamos o valor específico que estes três termos assumem. “Sobre a psykhḗ , diz Homero que ela abandona o homem no momento da morte, que vagueia no Hades, mas nada diz ele de como a psykhḗ se comporta 68

no vivente” (id., p.9). Com efeito, é bem pouco o que Homero nos diz sobre a psykhḗ do vivente, a saber: 1. que ela abandona o homem no momento da morte ou quando ele desmaia; 2. que no combate expomos a própria psykhḗ , que na luta está em jogo a psykhḗ , que a meta é salvar a própria psykhḗ e coisas do gênero. Não encontramos aí nada que nos autorize atribuir dois significados diferentes à palavra psykhḗ : por exemplo, o significado de “vida” no segundo caso, mesmo se aqui traduzirmos a palavra psykhḗ por vida. Quando se diz que alguém combate pela própria psykhḗ , que empenha a própria psykhḗ , que procura salvar a psykhḗ , faz-se sempre referência à alma, que, na morte, abandona o homem (id., p.9).

Mas até mesmo “esse afastar-se da alma em relação ao homem” é descrito por Homero em bem poucos traços: “ela sai pela boca e é emitida com a respiração (ou também através do ferimento) e voa para o Hades. Ali, torna-se espectro, leva a existência das sombras, como ‘imagem’ (eídōlon) do defunto” (id., p.9). Eis o ponto principal: em Homero esse princípio de vida, esse alento vital “é quase um órgão físico que, até que o homem esteja vivo, nele vive. Mas sobre onde essa psykhḗ se situa e como age, Homero nada diz e, assim, tampouco a nós é dado sabê-lo” (id., p.9, grifo nosso). De modo que resta apenas concluir que: “com a palavra psykhḗ indica-se, evidentemente, nos tempos de Homero, ‘a alma de um defunto’” (id., p.9), seu eídōlon, a “imagem” do morto. Do mesmo modo que ocorria com sôma, em Homero a psykhḗ jamais se refere ao homem vivo ou à função do “órgão” da vida. “Duplo” do vivente, como dirá Vernant, a psykhḗ refere-se apenas à “alma do morto”. Nesse sentido, tal como entendida no tempo de Homero, a psykhḗ entra numa categoria muito específica de fenômenos, a dos eídōla, “que compreende, ao lado dessa sombra que é a psykhḗ e desse ídolo grosseiro que é o kolossós, realidades como a imagem do sonho (óneiros), a sombra (skiá), a aparição sobrenatural (phásma)” (Vernant, 2008a, p.388). Daí porque a psykhḗ “é denominada às vezes fumaça, kapnós, ou sombra, skiá, ou sonho, óneiros” (id., p.389). Ou seja, ela caracteriza menos uma etapa da noção de “pessoa” do que participa do estatuto da imagem arcaica. Mas ainda se encontram na Ilíada e na Odisseia duas outras palavras para significar a “alma”, como notava Böhme: nóos, noûs (o intelecto) e thymós (fúria e força vital) que, de fato, parecem se confundir muitas vezes com a própria psykhḗ : “thymós é, em Homero, o que provoca as emoções e nóos o que faz surgir as imagens; assim sendo, o mundo espiritual, da alma, fica de certo modo dividido entre esses dois diferentes órgãos espirituais” (id., p.9). Em muitas passagens, ao falar da morte, Homero diz que o “thymós abandona o homem, daí a suposição de que também a palavra thymós estivesse indicando uma forma de ‘alma’ que provavelmente teria disputado terreno com a palavra psykhḗ ” (id., p.9). Por sete vezes se diz que “o thymós abandona os ossos” e duas outras que “logo o thymós destacou-se dos membros (meléōn)”. Entretanto, “não se diz com isso que o thymós continua a viver após a morte; quer-se dizer apenas que o que punha em movimento os ossos e membros se foi” (id., p.10). 69

No entanto, algumas passagens geram maior dificuldade, quando se emprega indistintamente tanto thymós quanto psykhḗ para dizer que ela abandona os rhéthē, que segundo Snell, se deve entender por “membros”. (p.10-11) Em outros trechos seus significados restam amiúde confusos, como em Il., VII, 131, onde se diz que “o thymós foi-se dos membros (méle) para o Hades”. (p.12) O que Snell atribui à possível alteração de um poeta tardio desconhecedor da língua homérica ou às variações típicas de rapsodos, devendo o verso ser emendado. “Restam ainda a ser considerados certos pontos nos quais o thymós é a alma do morto e onde se diz que saiu voando no momento da morte, mas trata-se sempre da morte de um animal”, um cavalo, um cervo, um javali, uma pomba. Pondera Snell: trata-se sempre de uma imagem derivada, pois, “no homem, é a psykhḗ que foge, mas é evidente que a um animal não se poderia atribuir uma psykhḗ ; e assim se achou para ele um thymós que o deixa no momento da morte”. Do que conclui: “isso demonstra que nos primeiros tempos as duas palavras não eram usadas indistintamente. Portanto, psykhḗ e thymós são, pelo menos no primeiro momento, claramente distintas” (id., p.12). Mais tarde, não só a psykhḗ poderá ser atribuída a animais, como o De anima, Aristóteles vai estender o termo aos homens e às plantas, entendido como princípio vital e princípio de movimento dos seres vivos em geral. Mas o sentido de thymós ressulta bastante impreciso: aproximado, porém distinto de psykhḗ , na época de Homero, podendo se referir ao homem vivo, tampouco se identifica plenamente com a noção de “vontade”, no período clássico, como sublinha Vernant. Por outro lado, prossegue o autor, já seria “impossível determinarmos com a mesma precisão os limites de thymós e nóos” (id., p.12). Embora não esteja claro como thymós e psykhḗ possam ser delimitados com a precisão pretendida, o argumento de Snell para distingui-los de nóos contribui para circunscrever seus sentidos: “se, como ficou dito, thymós é aquele órgão da alma que suscita as emoções e nóos o que percebe as imagens, então nóos é, de modo geral, a sede do intelecto, e thymós a das emoções. No mais das vezes, porém, os dois significados são confundidos” (id., p.12). Embora o uso corrente costume tomar um termo pelo outro, Snell submete ambos os termos a uma restrição. Para acompanhá-lo é preciso citar na íntegra o longo raciocínio a propósito de cada termo. Destaco os trechos conclusivos: Noós tem a mesma raiz de noeîn, e noeîn significa “entender”, “penetrar”; mais tarde, ao contrário, noeîn será traduzido por “ver”. Frequentemente ele acompanha ideîn, mas é um ver que não indica somente o puro ato visual, e sim também a atividade espiritual que acompanha o ver. Aqui, ele se aproxima do significado de gignṓ skein. Mas gignṓ skein significa “reconhecer”, sendo, portanto, usado sobretudo quando se quer identificar uma pessoa, ao passo que noeîn se refere mais a situações determinadas e significa ter uma representação clara de alguma coisa. Isso deixa claro o significado de nóos. Ele é o espírito entendido como sede de representações claras e, portanto, como órgão que as suscita. [...] Com uma ligeira transposição de sentido, nóos pode também referir-se à função. Como função duradoura, nóos é a faculdade de ter ideias claras [...] Aqui passamos do significado “mente” para o de “pensamento”, significados esses muito próximos um do outro [...] Daí a dar à palavra nóos a tarefa de designar a função isolada, a representação clara considerada isoladamente, 70

o passo é outro [...] Esse significado já ultrapassa, portanto, o significado das nossas palavras espírito, alma, intelecto e assim por diante (id., p.13-14, grifo nosso).

Em seguida: O mesmo se pode observar a propósito da palavra thymós. Quando se diz que alguém sente alguma coisa katà thymón, thymós é, nesse caso, um órgão e podemos traduzir a palavra por “alma”, mas devemos ter presente que se trata da alma sujeita às emoções. Porém thymós virá também em seguida determinando uma função (e então poderemos traduzir a palavra por “vontade” ou “caráter”) e também a função isolada: também essa expressão, portanto, tem um significado muito mais amplo do que nossas palavras “alma” e “espírito” (id., p.14, grifo nosso).

Com o que se atinge “um significado claro e preciso, tanto para thymós quanto para nóos” (id., p.14). Essa tripla delimitação dos termos utilizados em Homero para designar a “alma” permite enunciar sua peculiaridade. Enquanto na Grécia clássica thymós e noós ultrapassam o sentido primitivo de psykhḗ , na acepção homérica sua estreita familiaridade aponta para a discrepância quanto à noção comum de “sujeito”: “poder-se-ia, num primeiro momento, pensar que thymós e nóos são algo semelhante àquelas partes da alma de que fala Platão. Só que isso pressupõe a unidade da alma, e é exatamente essa unidade que em Homero se ignora” (id., p.15, grifo meu). Para Snell, então, os termos se definem através de uma metáfora orgânica: “thymós, nóos e psykhḗ são, por assim dizer, órgãos separados que exercem, cada um por seu turno, uma função particular. Esses órgãos da alma não se distinguem substancialmente dos órgãos do corpo” (id., p.15, grifo nosso). Referindo-se a cada vez a um “órgão da alma” tomado separadamente, Homero jamais concebe uma noção unificada de alma capaz de identificar-se à pessoa que ela anima. De maneira que, se se quisesse falar com maior precisão seria preciso dizer que: o que chamamos de alma, é, na concepção do homem homérico, um conjunto de três entidades que ele interpreta por analogia com os órgãos físicos. As perífrases com as quais buscamos definir psykhḗ , nóos e thymós como órgãos da vida, da representação e dos movimentos do espírito, são, portanto, abreviações imprecisas e inadequadas, decorrentes do fato de que a ideia de “alma” [...] é dada somente na interpretação concreta da língua (id., p.16).

Como ocorria na evolução dos verbos para o ato de ver, também aqui os termos caídos em desuso acusam as “novas necessidades da língua” no período pós-homérico: “Quão próxima está a concepção que tem Homero de thymós, nóos e psykhḗ da dos órgãos corporais, evidencia-se exatamente onde essa analogia foi superada” (id., p.16). Ao especificar-se, nóos e thymós passam a identificar funções e Aristóteles poderá falar a respeito de cada um de capacidades (dýnamis) da alma. Em compensação, psykhḗ será cada vez mais identificada com a totalidade da vida anímica do sujeito. Como indicador dessa mudança, é significativo que “mais tarde, no século V, ao citar versos de Arquíloco (fr. 5W), Aristófanes substitui autón (si próprio), o pronome original, que se referia à pessoa como um todo, por psykhḗ n” (Corrêa, P. C.: 2009, p.38). 71

Passemos, então, à evolução semântica de psykhḗ no período pós-homérico. Como os exemplos do uso das palavras sôma e psykhḗ no período que transcorre entre o Homero e o século V a.C. são demasiado escassos para permitir acompanhar em minúcia sua evolução semântica, até o surgimento dos novos conceitos de “corpo” e “alma”, Snell elabora uma hipótese: É provável que tenham surgido como conceitos reciprocamente complementares, devendo, precedentemente, ter ocorrido a evolução da palavra psykhḗ , na qual deve ter influído a ideia de imortalidade da alma. Pois, se justamente a palavra que indica a alma do morto passou em seguida a definir a alma em geral, e a definição usada para alma do morto passou a indicar a do corpo vivente, isso significa que o que dava ao homem vivente emoções, sensações e pensamentos era considerado como sobrevivente na psykhḗ . Daí pressupor-se a ideia de que no homem vivente existisse algo de espiritual, uma alma, embora esta não pudesse num primeiro momento ser definida com uma palavra correspondente. É nessa altura que surge a lírica grega arcaica. Atribui-se ao morto um sôma como contraposto à psykhḗ , e quase espontaneamente se passa em seguida a usar essa palavra também em relação ao vivente, para contrapô-la a psykhḗ . Mas qualquer que tenha sido o desenvolvimento do processo em sua particularidade, o fato é que, com essa distinção entre corpo e alma, “descobriu-se” algo que se impõe de modo evidente à consciência, algo que passa doravante a ser considerado como óbvio, fazendo com que a relação entre corpo e alma e a ausência de alma se torne objeto de sempre novos problemas (id., p.17, grifo meu).

A fim de circunscrever a segunda cena que se abre para a psykhḗ no período pós-homérico, é em Heráclito que Snell situa a emergência da nova concepção da alma, encontrando nele, pela primeira vez, sua plena formulação. Como já haviam feito alguns poetas mélicos, Heráclito não apenas chama a alma em geral de psykhḗ , mas concebe o homem vivo como constituído de corpo e alma (sôma e psykhḗ ), atribuindo à alma qualidades distintas do corpo e dos órgãos físicos. Essas propriedades predicadas à alma do vivente diferem tão radicalmente do que Homero podia conceber, segundo Snell, que lhe faltam até mesmo as formas linguísticas adequadas para exprimi-las: “essas formas linguísticas formaram-se no período que vai de Homero a Heráclito; mais precisamente, na lírica” (id,. p.17).10 Segue, então, a análise dos três predicados que Heráclito atribui à psykhḗ e que definem, para Snell, o novo sentido do termo: intensidade (como tensão interna, denotando profundidade interior), comunidade (por oposição a propriedade) e espontaneidade (contrário de passividade). Conforme o fr. 45 DK de Heráclito: “Não poderias encontrar os limites da alma, mesmo percorrendo todo o caminho: tão profundo é o seu lógos” (ψυχῆς πείρατα ἰὼν οὐκ ἂν ἐξεύροιο, πᾶσαν ἐπιπορευόμενος ὁδόν· οὕτο βαθὺν λόγον ἔχει). Nessa concepção de uma “profundidade” da alma humana, ressalta a distância que a separa da noção arcaica: “nela há algo de totalmente estranho a um órgão físico e à sua função”. Assoma, aqui, a necessidade de designar uma característica da alma, 10

Para ilustrar esse processo parcamente documentado, Snell remete a duas ordens de documentos, doxografias da doutrina pitagórica e alguns fragmentos de lírica arcaica, explicitamente: “o mais antigo documento da doutrina da metempsicose de Pitágoras (Xenófanes, fr.7, ed. Diehl), que é, ao mesmo tempo, o mais antigo e seguro testemunho da interpretação particular dada por Homero à palavra psykhḗ ”; e alguns fragmentos mélicos (com a numeração de Dieh)l: Arquil., fr.21; epigrama de Eretria do século VI [Friedländer n.89]; Sim. 29.13; Hipon. 42; Safo,68.8; Alcm. 110.34; Aristea, fr.1.4; Anacr., fr.4.

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“que é a de ter uma qualidade particular que não diz respeito nem ao espaço nem à extensão”, que só pode identificar-se a uma qualidade “interior”. Como observa Snell com requinte de precisão, o vocabulário capaz de exprimi-la se teria forjado na lírica precedente: Essa representação da “profundidade” do mundo espiritual da alma não surge apenas com Heráclito, mas já na lírica precedente, como demonstram as palavras bathýphron, bathymḗ tis, “de mente profunda”, “de pensamento profundo”, usadas na lírica arcaica. Geralmente encontramos com frequência, na Era Arcaica, a expressão “profundo saber”, “pensamento profundo”, “sentido profundo”, mas também “profunda dor” e, em toda parte, a ideia de “profundidade” refere-se àquela “ilimitação” do mundo espiritual que o distingue do mundo físico. À língua de Homero ainda é estranho esse uso da palavra “profundo”, que é algo mais que uma metáfora consueta, e por meio do qual a língua busca sair de seus confins para entrar num campo a ela incessível; e estranho lhe é, por conseguinte, o conceito propriamente “espiritual” de um saber profundo, de um profundo pensamento [...] As palavras bathýphrōn, bathymḗ tēs, são certamente formadas por analogia com as palavras homéricas, só que estas significavam polýphrōn e polýmētis (“de muitos sentidos”, “de muitos pensamentos”) e assim como são características da lírica as palavras compostas com bathý-, também características de Homero são aquelas compostas com polý- para indicar uma intensificação do saber ou do sofrimento [...]. Também em outros casos, em lugar da intensidade expressa-se a quantidade. [...] Jamais encontramos [em Homero] uma expressão que transmita a particularidade do que não se apresenta apenas como extenso, nem no campo das representações nem no dos sentimentos (id., p.17-18)

Já a segunda propriedade atribuída ao lógos por Heráclito nos frs. 1 e 2 DK é a de ser “comum” (koinón), isto é, “de poder permear todas as coisas e de acolher em si todas as coisas”, de estar igualmente em tudo e todos. Na paráfrase de Sexto Empírico: “Esse lógos universal e divino (tòn koinòn lóngon kaì theîon), do qual participamos e pelo qual nos tornamos seres dotados de lógos (logikoí), é o critério da verdade, segundo Heráclito” (Adv. Math. VII.132-133). Do que ressalta a segunda diferença em relação ao poeta épico: “Homero não pode falar de seres distintos animados pelo mesmo espírito; não pode dizer, por exemplo, que dois homens têm o mesmo espírito ou a mesma alma, assim como não pode dizer que dois homens tenham em comum um olho ou uma mão” (id., p.19). Para ele não existiria um termo abstrato para designar a alma em geral. Por fim, a terceira propriedade do espírito, em contraste com as qualidades predicáveis a um órgão físico não é menos ignorada pelo autor épico. Como diz no fr.115 DK: “é próprio da alma um lógos que a si mesmo aumenta” (ψυχῆς ἐστι λόγος ἑαυτὸν αὔξων). Ao passo que “seria inoportuno atribuir ao olho ou à mão um lógos que ‘cresce’”, Heráclito reconhece na psykhḗ a possibilidade de estender-se e aumentar por conta própria, graças à capacidade de um desenvolvimento espontâneo, inconcebível nos quadros da língua do pensamento homérico: “decididamente, Homero não conhece uma possibilidade de desenvolvimento do espírito. Todo aumento de forças físicas e espirituais vem do exterior, sobretudo por intervenção da divindade” (id., p.20). Como acrescenta Corrêa, não apenas os poetas líricos teriam alcançado o primeiro e o terceiro predicados numerados por Snell, mas, precedendo os fragmentos de Heráclito privilegiados pelo autor, “segundo Aristóteles (De anima, II.2, 405 a 19), já em Tales o movimento seria uma função da 73

psykhḗ , e para Anaxímenes ela exercia uma forma de controle, mantendo a coesão dos seres” (Corrêa, 2009, p.38-39). Assim, também, “em Anacreonte (fr.360.4 PMG), por exemplo, a psykhḗ do amante é comparada a um cavalo cujas rédeas o menino amado detém [e] no contexto do pitagorismo, Xenófanes (fr.7aW) afirma que, pelos ganidos do cão surrado, reconhece a psykhḗ do amigo” (id., p.39).11 Por sua vez, quando vierem a tratar da mudança de sentidos de sôma e psykhḗ , retomando o quadro de B. Snell em suas linhas gerais, Vernant e Detienne vão buscar no orfismo e no pitagorismo, seitas filosófico-religiosas dos séculos VI a.C. e V a.C. à margem da religião oficial da cidade, conforme a sugestiva análise de E. R. Dodds, a formação de uma nova noção de alma.

Os limites do “homem homérico”

Tendo visto as diferenças entre a nova e a velha concepção de psykhḗ , cabe indagar (a) as causas que bloqueiam a emergência da concepção de alma dotada de realidade, qualidade e poderes próprios em Homero e, ao mesmo tempo, identificar (b) o que permite distingui-la da concepção de “alma” e “pessoa” partilhada pelas sociedades “primitivas”. Noutras palavras, trata-se de examinar o fundamento da representação homérica do sujeito. Seria ela devida simplesmente a um estágio primitivo da língua e, portanto, da razão, incapaz de uma concepção “abstrata” do eu? Se assim fosse não haveria motivo para identificá-la à “primeira etapa do espírito europeu”, como propõe Snell. Esse fundamento, ele vai encontrá-lo nos quadros da religião grega arcaica e no papel que ideia de “intervenção divina” desempenha na configuração da categoria de “sujeito” característica do homem homérico: Toda vez que o homem faz ou diz algo a mais do que dele se poderia esperar, Homero, para explicar o fato, o atribui à intervenção de um deus. E é o verdadeiro e autêntico ato de decisão humana que Homero ignora; daí porque, mesmo nas cenas em que o homem reflete, a intervenção dos deuses sempre tem uma parte importante. A crença nesta ação do divino é, portanto, um complemento necessário às representações homéricas do espírito e da alma humana (Snell, 2012,p.20, grifo nosso).

No quadro do pensamento religioso grego, “A ação humana não tem nenhum início efetivo e independente; o que é estabelecido e realizado é decisão e obra dos deuses” (id., p.29). Conforme a

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Outros exemplos dessa nova acepção de psykhḗ encontrar-se-iam também nos versos de Simônides (fr.8.13W), na Teodiceia (530), em Íon (fr.30.2), Melanípedes (fr.762.2PMG), Filoxeno de Leuca (fr.836 b 5PMG) e Filisco (fr.7W). No entanto, diz Corrêa, “o sentido mais ‘antigo’ de psykhḗ não cai em desuso, encontrando-se, inclusive, no fragmento 98 DK de Heráclito e na literatura posterior”, onde o termo continua a ser empregado para indicar, em contextos de morte, “o que sobrevive”, como ocorre em Arquíloco (fr.213W?), Simônides (fr.5553.2PMG), Teognideia (568, 710, 910) e Adespota (fr.925c16PMG) – ou a “vida” que se pode perder, como se atesta em Safo (fr.62V?), Tirteu (fr.10.14, 11.5, 12.18W), Sólon (fr.13.46W), Hipônax (fr.39.1W) e Teognideia (730) (id., p.39).

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célebre fórmula de H. Fränkel: o homem grego arcaico é um “campo aberto às forças múltiplas” que nele intervêm. Com efeito, já Fränkel havia concluído pela ausência de vida interior dos heróis épicos, ressaltando, porém, num sentido mais amplo, a pressão exercida pela organização mental da sociedade grega arcaica como um todo: Os heróis da Ilíada levam uma vida pública e sua conduta é determinada pelo julgamento dos contemporâneos e dos pósteros. A opinião pública fala claramente (nemessáō [indigna-se]), quando se comete uma ação imprópria, e não há dúvida alguma de que esse instrumento possa agir falsa e injustamente. Não se tem, na Ilíada, motivos ocultos e escuros subterrâneos; cada um é como age (Fränkel, 1973, p.84).

Embora Snell não desenvolva sua análise até a correlação sociologicamente mais refinada de Fränkel, sua interpretação não deixa de ser promissora, motivada pela necessidade de distinguir a concepção que o homem tem de si, na época de Homero, do “homem primitivo”: As ações do espírito e da alma desenvolvem-se por obra das forças agentes do exterior, e o homem está sujeito a múltiplas forças que a ele se impõem e conseguem penetrá-lo. Daí a frequência com que Homero se refere às forças, e daí porque dispõe de tantos vocábulos todos eles traduzidos por nós com uma única palavra: “força” (ménos, sthénos, bíē, kîkus, ís, krátos, alkḗ , dýnamis). Essas palavras, porém, têm um significado concreto, de rigorosa evidência, e estão bem longe de indicar a força sob forma abstrata, como mais tarde as palavras dýnamis ou eksousía que podem ser atribuídas a toda e qualquer função. E cada uma das formas assim indicadas recebe, da maneira particular da ação, o seu modus particular, o seu caráter próprio. Ménos é, por exemplo, a força que a pessoa experimenta nos membros, ao sentir o impulso de agregar-se a uma ação, alkḗ, a força defensiva que serve para manter o inimigo à distância; sthénos, o pleno vigor das forças físicas, mas também a potência do dominador; krátos, a violência, a força de opressão (Snell, 2012, p.21).

Mas como recorda Friedrich Pfister, nos chamados povos primitivos, também se atribuía frequentemente uma força mágica ao rei ou sacerdote, que o elevava acima de sua estirpe. É provável que algumas dessas expressões gregas tivesse servido originalmente para indicar homens dotados de tal força. No entanto, adverte Snell, seria um erro acreditar que forças mágicas desse gênero ainda estejam vivas nos poemas homéricos: “Os homens homéricos, que ainda não sentem a alma como lugar de origem das próprias forças, não atraem para si, contudo, essa força com práticas mágicas, e sim recebem-na – dom natural – dos deuses” (id., p.22). A continuação do argumento repõe em marcha sua concepção teleológica da história: É certo que, nos tempos que precederam Homero, reinavam magia e feitiçarias; certo é, também, que a concepção homérica da alma e do espirito está relacionada com esses tempos “mágicos”, visto que órgãos da alma como nóos e thymós, destituídos que são da faculdade de pensar e mover-se por si, devem forçosamente estar à mercê do poder mágico, e homens que têm uma tal concepção de sua vida interior devem naturalmente sentir-se expostos ao poder de forças arbitrárias e tenebrosas. Daí podermos inferir qual teria sido, no tempo que precedeu Homero, a concepção que tinham o homem a respeito de si do seu agir. Mas já os heróis da Ilíada não mais se sentem à mercê de forças selvagens e confiam em seus deuses olímpicos, que constituem um mundo bem ordenado e significativo. Ao evoluírem, os gregos completam seu autoconhecimento e, por assim dizer, absorvem em seu espírito humano essa ação divina (id., p.22). 75

Do que decorre a conclusão quase automática que seu argumento pretende assegurar: “A concepção que o homem tem de si no tempo de Homero, e que podemos reconstruir através da língua homérica, não é puramente primitiva mas tem os olhos voltados para o futuro e constitui a primeira etapa do pensamento europeu” (id., p.22). Com efeito, reconhece Snell, “todo primitivo se sente ligado aos deuses e ainda não conquistou a consciência da sua própria liberdade”. Em contrapartida, os gregos teriam sido “os primeiros a romper esses laços de dependência, instaurando, assim, as bases para a nossa civilização ocidental” (id., p.30). Mas onde o autor localiza, na concepção homérica de alma, os elementos que prenunciam essa evolução posterior? Visto que partira da ausência da noção de pessoa em Homero, para que constitua a “primeira etapa do pensamento europeu”, é preciso, doravante, que nele se emcontre algum traço de sujeito. É o que se mostra claramente no trecho seguinte, fazendo a ênfase cair na distância instaurada pela poesia em face do “pensamento mítico”, posto à distância, como antikeímenon, objeto, diante do homem homérico, enquanto correlato de um hypokeímenon diversamente afetado por sua presença: A expressão grega que indica admiração (thaumázdein) deriva de theâsthai, que significa “ver”. A admiração é contemplação acompanhada de espanto; diferentemente do horror, não se apodera inteiramente do homem. O olho dá distância às coisas e as capta como objetos. Se, portanto, o horror diante do desconhecido é substituído pela admiração do belo, o divino torna-se mais distante e, ao mesmo tempo, mais familiar, não se apossa inteiramente do homem, não o sujeita a si, e todavia fica mais natural (id., p.32, grifo nosso).

É irrelevante discutir aqui a adequação do esquema sujeito-objeto pressuposta por Snell. Importa sim, notar que a relativa distância em que se põe a autoridade divina e sua proximidade mais familiar, que Snell atribui à influência da poesia homérica na construção da religiosidade grega, conferem ao “sujeito” uma margem de flexibilidade sem paralelo com outros povos em que a mitologia assume valor classificatório, estritamente normativo da conduta humana. Não estranha que, comparada às outras religiões, como a cristã, judaica e muçulmana, a religião grega se distinga como uma “religião sem dogma”. Nela, os deuses aparecem como que “integrados à ordem natural do mundo”. Daí também porque “a divindade grega, diferentemente da divindade hebraica, indiana ou chinesa, incita à imitação, e os gregos sempre correram o risco de superar limites com presunçosa temeridade” (id., p.32, grifo meu). O que Snell atribui à importância do papel da poesia no processo que influirá no desenvolvimento posterior da cultura grega: o caráter significativo e natural dos deuses olímpicos não reside apenas na sua intervenção [...] a própria existência deles nos dá uma imagem significativa e natural do mundo, e foi isso sobretudo que influiu nos séculos posteriores. Para os gregos a existência espelha-se nos deuses (id., p.37-38).

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Mais do que a noção de “intervenção divina”, como explicação para a origem “externa” das ações do sujeito, é a imagem religiosa de mundo, a concepção de uma plenitude significativa do cosmo, que irá definir, para Snell, a “descoberta do espírito” na cultura grega: Segundo a concepção clássica grega, até mesmo os deuses estão sujeitos à ordem do cosmos [...] Os deuses gregos não podem criar do nada [...] Poder-se-ia quase dizer que o sobrenatural atua, em Homero, segundo uma ordem pré-estabelecida (id., p.28).

Antropologia trágica do agente

Como conciliar ambas as afirmações, da conquista da consciência própria e de um cosmo fechado? Para verificar como o autor pretende aproximá-las, cabe retomar uma explicação antropológica diversa da que Snell pretende desenvolver: “cada mitologia é, no fundo, uma classificação, mas que haure seus princípios das crenças religiosas, e não das noções científicas” (Mauss 2009, p.449). Como já notava Marcel Mauss, enquanto correlato de uma classificação social, a mitologia visa prioritariamente regulamentar a conduta humana: “Os panteões bem organizados partilham a natureza, da mesma forma como os clãs partilham o universo” (id.). Com essa finalidade também a mitologia grega confina com os demais sistemas de classificação que lhe são contemporâneos: A teoria grega da melotesia zodíaca e planetária que é, acredita-se, de origem egípcia, tem por objetivo estabelecer entre certas partes do corpo, de um lado, e, de outro, certas posições dos astros, certas orientações, certos acontecimentos, estreitas correspondências [...] esta teoria [...] implica certa maneira de conceber as coisas. Com efeito, o mundo é aí referido ao indivíduo [...] é propriamente a teoria do microcosmo (id., p.448).

Mas seria um erro, adverte Mauss, pensar que essa rede de correspondências se confunde com a ideia tardia do “homem como medida das coisas”: Muitas vezes se disse que o homem começou [a] representar-se as coisas referindo-as a si mesmo. O que foi dito precedentemente permite precisar melhor em que consiste tal antropocentrismo, que seria melhor chamar de sociocentrismo. O centro dos primeiros sistemas da natureza não é o indivíduo; é a sociedade. [...] A pressão exercida pelo grupo social sobre cada um de seus membros não permite que os indivíduos julguem livremente as noções que a própria sociedade elaborou e onde ela pôs alguma coisa de sua personalidade (id., p.454-55, grifo nosso)

De fato, será apenas na época da tragédia, ponto culminante da crise social que se instala a partir da era arcaica, que a mitologia começará a ser vista com “olhos de cidadão” e, por conseguinte, a ser questionada. Do que podemos retornar à consequência inferida por Snell: “em Homero, portanto, o homem ainda não se sente promotor da própria decisão; isso só ocorrerá na tragédia” (Snell, 2013, p.29-30). Ponto sobre o qual irá incidir a maior divergência de Vernant. Mas, por ora, concentremo77

nos o que Snell anota sobre a ausência de uma dimensão interior, psicológica, do “homem homérico”, em termos gerais: Em Homero, não existe a consciência da espontaneidade do espírito humano, isto é, a consciência de que as determinações da vontade e, em geral, dos movimentos de ânimo e dos sentimentos tenham origem no próprio homem. O que vale para os acontecimentos da epopeia vale também para o sentimento, o pensamento e a vontade: cada um tem sua origem nos deuses (id., p.30)

Assim, quando Goethe escreve que “O que o homem honra como Deus é a expressão de sua vida interior”, diz Snell, ele não mais entende o mundo homérico. Pois historicamente se deveria afirmar o inverso: “a vida interior do homem é o divino captado no próprio homem. De fato, o que mais tarde será entendido como ‘vida interior’ apresentava-se, na origem, como intervenção da divindade” (id., p.30). No entanto, a concepção do homem que será o corolário do período clássico, Snell reconhece em Ésquilo o primeiro autor a conceber “a ação humana como resultado de um processo interior” (id., p.111). Somente no dramaturgo se manifesta pela primeira vez um autêntico interesse pela “ação humana como fato interior, e, portanto, não reduzido a pura reação ou a estímulo, ou a uma determinação externa” (id., p.108). Como teremos oportunidade de voltar ao ponto, seremos ainda mais breves em relação ao homem trágico de Snell. Se em Homero o homem ainda podia encontrar refúgio num mundo que não conhece a contradições, a partir de Ésquilo o mundo dos deuses se torna progressivamente mais dúbio. Na Orésteia, o protagonista se encontra entre duas divindades que lhe impõem vontades antagônicas: “Apolo, que ordena o matricídio, e as Eumênides que punem o matricida. E no meio dessa dúplice exigência do divino está o homem, solitário, sem ter em quem apoiar-se se não em si próprio” (id., p.112). Orestes tem o dever de vingar o pai, mas para cumpri-lo deve matar a própria mãe. Preso entre as vontades contrastantes dos deuses, ele se vê abandonado a si mesmo: “Os valores unívocos são postos em dúvida, o homem detém-se no desenvolvimento natural de sua ação e tem de decidir por si o que é a justiça e o que é a injustiça” (id., p.125-26). O indivíduo se liberta de seus vínculos religiosos e sociais e começa a refletir criticamente sobre o divino (id., p.113). Diante de um quadro assim formulado como não supor a necessidade de uma decisão “livre e pessoal” do herói? Somente num ponto, porém muito importante, a tragédia concebe a relação entre Deus e o homem diferentemente da epopeia homérica: o homem se reconhece, aqui, pela primeira vez, como autor de suas próprias decisões. Em Homero, o homem não sabe que pode pensar ou agir espontaneamente, guiado por seu próprio espírito. O que lhe “vem à mente”, o que lhe é dado “como pensamento” é coisa que vem do exterior e, caso não haja nenhuma causa visível que o determine, então é um deus que lhe aparece ao lado e lhe dá um conselho que o colocará em vantagem ou quiçá o perderá. Por conseguinte, os homens homéricos agem sem titubear, com segurança, visto que nenhum escrúpulo, nenhuma dúvida os atormenta, nenhuma responsabilidade pessoal diante da justiça ou da injustiça. Nas tragédias de Ésquilo, o homem, ao mesmo tempo em que adquire consciência da própria liberdade, assume o peso da responsabilidade pessoal diante da ação (id., p.125). 78

Em linhas gerais, pode-se falar aqui, no que toca às formas literárias, de uma evolução que parte da épica, passando pela lírica, até a tragédia, sendo, dentro desta, acentuada de Ésquilo a Eurípedes. Na outra ponta dessa evolução, Medeia representaria o caso paradigmático da nova consciência do sujeito como agente responsável. Ela assume todo o peso de sua decisão, que recai sobre si mesma, sem executar uma ordem sobrenatural e sem sofrer uma punição divina ou sequer uma sanção pública. Seu conflito prescinde da dúplice exigência do divino. Tampouco se dá entre uma ordem divina e outra humana. Não é que o mundo dos deuses se torne dúbio, o mito não está particularmente em questão. Todo o conflito se desenrola no que chamaríamos de o “interior” da personagem. São sentimentos e pensamentos meramente humanos que lutam entre si, por assim dizer, “dentro da pessoa” de Medeia. É nesse momento que irrompem os versos 1079 e ss.: “Sinto quão grande é o mal que quero praticar, mas mais forte que a razão (bouleumátōn) fala em mim a paixão (thymós), e ela é para o homem causa dos maiores males”. Para Snell, não resta dúvida de que nestes versos, exprime-se pela primeira vez um senso moral moderno, psicológico e individualista, que se imporá mais tarde, e que faz com que a moralidade seja sentida como um fato puramente interior, como freio. Não é por acaso que os filósofos moralistas de épocas posteriores não se cansarão de citar essas palavras (id., p.128, grifo nosso).

Do mesmo modo, já em Hipólito, o conflito moral de Fedra não difere do de Medeia: “a consciência moral opõe-se ao impulso e, de novo, manifesta-se aqui o senso moral em forma de freio e de remorso de consciência” (id., p.129). Extraídas do grande monólogo de Fedra, as palavras da heroína nos versos 380 e ss. correspondem ponto por ponto às de Medeia: “Conhecemos o bem, mas não o seguimos quando nos assalta a paixão” (id., p.130). Segundo Snell, elas seriam “expressamente retomadas na Medeia para responder [...] a uma objeção levantada nada menos que por Sócrates”, sendo este, inclusive, “o primeiro testemunho seguro da influência filosófico-moral exercida pelas discussões socráticas” (id., p.130). Ao cabo desse percurso, Snell encontra a confirmação de seu pressuposto: a demonstração de uma “lei histórica do espírito grego”, que se pode constatar em vários níveis: a poesia [épica] leva à história; a poesia teogônica e cosmogônica desemboca na filosofia natural jônica, que busca a arkhḗ , a razão e o princípio das coisas; da poesia lírica desenvolvem-se os problemas relativos ao espírito e ao significado das coisas. Assim, a tragédia preanuncia a filosofia ática, cujo interesse principal está voltado para a ação humana e para o bem. Os diálogos de Platão retomam as discussões das personagens da tragédia, desenvolvendo-as de forma teórica (id., p.132).

Deixando de lado o ultrapassado evolucionismo que serve de fio condutor para o argumento, concentramo-nos no postulado que dele resulta. Este poderia resumir-se no seguinte esquema: ao término de uma evolução progressiva de um quadro que desconhece a figura do sujeito (homem homérico) até o advento do “espírito” na tragédia (homem do período clássico), passando pela lírica 79

do período arcaico, estabelece-se uma antítese entre dois momentos principais, representados pela épica e pela tragédia, que correspondem ao primado do sujeito heterodirigido e à afirmação plena do sujeito autocentrado, capaz de decisão “pessoal e livre”. Tendo limitado a extensão do sujeito autocentrado até a Grécia arcaica pela análise de Snell, trata-se de saber, com outros helenistas, se o período clássico marca, de fato, essa remota a aparição da figura do eu na Antiguidade, que Renan chamou de “milagre grego”, ou, como defendem os opositores de Snell, se não haveria traços mais antigos de uma individualidade característica de Homero e dos poetas arcaicos. Para discuti-lo, consideremos brevemente a formulação de E. R. Dodds, antes de vir à retificação mais significativa que vai receber a tese de Snell, proposta por J.-P. Vernant.

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2. Contributo de E. R. Dodds

Uma psicanálise histórica?

A interpretação desenvolvida por Eric Robertson Dodds em Os gregos e o irracional (1951) tem a vantagem de oferecer uma investigação mais detalhada da transformação que se opera no final da época arcaica sobre a noção de psykhḗ . Simultaneamente, sua abordagem interessa na medida em que procura formular, fora dos quadros da escola alemã, uma explicação diversa para a concepção grega de sujeito. Embora sua proposta de uma psicanálise da cultura grega não resista a uma segunda leitura, a menção da tese de Dodds importa, sobretudo, pelos paralelos que mantém com a de Snell. De sua obra destacamos duas considerações principais: (a) a concepção do “homem homérico”, formulada pelo autor sob o princípio de uma “intervenção psíquica”, e (b) sua análise da formação da nova concepção de psykhḗ no final do período arcaico. Nossa intenção será mostrar como no argumento do autor se sobrepõem duas teses de interesse contrário: uma interpretação psicanalítica da noção de psykhḗ que atribui valor substancialista a egṓ , entendido como instância psíquica, e uma análise filológica da evolução semântica de psykhḗ que ultrapassa essa primeira leitura. A começar pela caracterização “psicanalítica” do sujeito homérico, Dodds propõe definir sua singularidade a partir da noção de “intervenção psíquica” (Dodds, 2002, p.13), a que chega pela discussão das manifestações de átē (loucura ou cegueira) e daímon (divindade indeterminada), tal como se encontram atestadas no vocabulário da Ilíada e da Odisseia. Citando Nilsson, “provavelmente o primeiro a tentar encontrar uma explicação desses fenômenos em termos psicológicos”, resume Dodds, mesmo hoje, uma pessoa com temperamento semelhante ao dos heróis homéricos, estaria apta ao sofrer uma alteração de humor, a olhar para aquilo que fez com horror e exclamar “eu não pretendia fazê-lo!” – um pequeno passo para dizer “não fui realmente eu que o fiz”. Como afirma Nilsson, “seu comportamento tornou-se estranho para si mesmo. Ele não consegue entendê-lo. Para ele é alguma coisa que não faz parte de seu ego” (Dodds, 2002, p.22).

A atribuição a uma origem externa das ações dos personagens épicos seria devida, fundamentalmente, à impulsividade de seu “temperamento heroico”. Em seguida, na medida que aciona o mecanismo do recalque, o que ele “não consegue entender” na raiz de suas próprias ações seria expulso da área consciente de seu ego. De modo que “o mecanismo divino parece muitas vezes não servir para nada mais a não ser duplicar a ideia de uma causação natural e psicológica” (id., p.22). Permitindo a projeção de uma advertência interior em termos míticos, o resultado dessa “transposição 81

dos acontecimentos do interior do sujeito para o mundo externo” seria o fato de que “a imprecisão é eliminada – o daímon indeterminado tem que se tornar dado concreto” (id., p.23), satisfazendo as exigências racionais do ego. Ao contrário do grosseiro reducionismo de Nilsson, Dodds prefere relacionar a crença do homem homérico em uma “intervenção psíquica” a dois outros traços, ambos de fundo cultural. O primeiro faz referência explícita a Bruno Snell: ao fato de que “o homem homérico não possui um conceito unificado para aquilo que chamamos ‘alma’ ou ‘personalidade’” (Cf. id., p.24). Concordando que “para o homem homérico, o thymós não tende a ser sentido como parte do nosso ‘eu’ – ele aparece de fato como uma voz interna e independente” com a qual se pode conversar “quase que de homem para homem”, em primeiro lugar Esse costume de (diríamos) “objetivar as forças pulsionais”, tratando-as como um “não eu”, deve ter aberto amplo caminho para a ideia religiosa de intervenção psíquica, que, segundo se diz, atua não sobre o homem, mas sobre seu thymós ou sobre o espaço físico que ele ocupa (id., p.24).

Não obstante, Dodds capitula a propósito da ausência de uma “consciência” da ação pessoal do herói épico, contestando expressamente a posição de B. Snell: A conclusão de que nele o homem ainda não tem consciência da liberdade pessoal ou de algo como decisão pessoal me parece equivocada. O que eu diria é que o homem homérico não possui o conceito de arbítrio – “vontade” (que curiosamente se desenvolveu tarde na Grécia) – e que, portanto, não pode haver tampouco um conceito de “livre-arbítrio”. O que não impede de distinguir, na prática, as ações originadas no ego daquelas às quais ele atribui intervenção psíquica [...] E parece um pouco artificial querer negar os trechos da Ilíada 11.403 ss. ou da Odisseia 5.355 ss. em que são descritas decisões tomadas após razoável consideração das possibilidades (id., p.28-29).

Dodds pretende fazer valer para Homero o que o helenista alemão reserva para ser descoberto apenas em Ésquilo: o homem homérico teria uma “consciência de si” e de sua “liberdade pessoal”, sendo capaz de tomar uma decisão pensada, após razoável consideração das alternativas, sem auxílio divino; se desconhece o conceito de “vontade”, isso não o impede de distinguir “na prática” a ações originadas em seu ego das ações atribuídas à intervenção divina. Concordando com Dodds que parece artificial negar o papel da motivação humana em certas passagens de Homero, P. C. Corrêa lembra que há inclusive uma fórmula para expressar a decisão pessoal e que a noção de responsabilidade evidencia-se pela necessidade que o herói sente de reparar seu erro. Mas o argumento de Gaskin que cita em seu auxílio sugere antes o contrário: as “normas objetivas” de conduta moral que norteiam as decisões dos heróis homéricos, não as invalidam, diz o autor, pois “suas razões podem ser radicalmente individuais”, embora tendo um caráter necessariamente objetivo, sendo aplicadas “a quem quer que esteja nas mesmas circunstâncias” (Corrêa, 2009, p.46).

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O segundo parâmetro cultural refere-se ao “costume de explicar o caráter ou comportamento em termos de conhecimento” (Dodds, 2002, p.25), conforme expresso no célebre princípio socrático de que, sendo a maldade uma ignorância, “ninguém faz o mal voluntariamente, mas comete a falta malgrado seu”. Comenta o autor: Se o caráter é uma questão de conhecimento, o que não é conhecimento não faz parte do caráter, mas vem do exterior até o homem. Assim, quando ele age de modo contrário às suas disposições conscientes (tudo aquilo que nos é dito que ele “sabe”), a ação não é propriamente sua, mas lhe foi ditada de fora. Em outras palavras, impulsos sistemáticos e não racionais, assim como os atos resultantes, tendem a ser excluídos do “eu” e imputados a uma origem externa (id., p.25).

Embora divergindo de Nilsson, a formulação de Dodds submete o tema a uma banalização psicológica não muito diferente: “todas as atitudes normais do comportamento humano, cujas causas não são percebidas de modo imediato – nem pela própria consciência do sujeito em questão e nem por outras pessoas –, são imputadas a uma ação sobrenatural” (id., p.21). Se a noção de “intervenção divina” funciona para as “atitudes normais do comportamento humano” cujas causas ultrapassam a capacidade explicativa da razão consciente em Homero, isso vale tanto mais para os feitos extraordinários que condensam o desconhecido por excelência, as pulsões irracionais do id. Assim, a explicação para o “surgimento do sujeito” no século V a.C., como produto de uma vitória da razão sobre os impulsos irracionais, se define com base em dois traços complementares: pressupõe um ego dotado de consciência de si e subordinado uma moral intelectualista. Cada um se manifestando por um hábito mental típico, o costume de “objetivar as forças pulsionais” e o de “explicar o caráter em termos de conhecimento”. Por ambos se exclui de egṓ o que pertence à esfera do “irracional”, então imputado a uma origem externa. Por fim, Dodds acrescenta uma nuance histórica: tudo isso é evidentemente mais comum quando os atos em questão são tais, que chegam a causar profunda vergonha em seu autor. Sabemos bem como, em nossa sociedade, pesados sentimentos de culpa são superados por uma fantasiosa “projeção” sobre os outros. E podemos supor que a noção de átē desempenhou um papel similar para os homens homéricos, tornando-os capazes, com toda boa fé, de projetar sobre um poder externo seus insustentáveis sentimentos de vergonha (id., p.25-26).

Distinguindo entre uma “cultura da vergonha” e uma “cultura da culpa”, Dodds atribui a primeira ao período arcaico e a segunda à época clássica. Visto que “o sumo bem do homem homérico não é a fruição de uma consciência tranquila, mas sim a fruição da timḗ (estima pública)”; e ademais, que “a mais potente força moral que o homem homérico conhece não é o medo de um deus, mas o respeito à opinião pública”(id., p.26), conclui o analista: “o tipo de situação para a qual a noção de átē é uma resposta nasce não apenas da impulsividade do homem homérico”, como pretendia Nilsson, “mas também da tensão entre impulsos individuais e pressão de adaptação social, característica de uma cultura baseada na vergonha” (id., p.26, grifo meu). 83

Como Snell, ele pressupõe um sujeito meta-histórico que objetivaria seus impulsos numa explicação mítica das ações humanas, mas à diferença do helenista alemão, o autor atribui essa objetivação de uma “intervenção psíquica” a uma “cultura da vergonha” e introduz a variante, inconcebível na perspectiva hegeliana, de que essa projeção seria de ordem inconsciente, relacionando a gênese de noções como átē e daímon a uma “pressão social”. A racionalização mítica da ação “vergonhosa” provaria indiretamente a referência a uma substância egṓ que exclui de sua instância consciente a representação da ação insustentável ao olhar vigilante da censura pública. Mas é sempre o postulado psicológico de um ego, ainda que ultrapassado pelo id (impulsos irracionais) e pressionado pelas injunções do superego (cultura da vergonha), que permanece independente de sua situação histórica. Se as formações do superego são descritas em termos culturais, o próprio eu que se esforça por integrar as demandas pulsionais do id ao princípio de realidade, permanece imutável. Não que a teoria freudiana não tenha validade para um tempo que se orienta por uma concepção de sujeito diversa da nossa. Mas o uso mecânico e racionalista que dela faz o crítico leva a ignorar a historicidade da formação do próprio ego. Longe de propor um desenvolvimento teórico na linha da “psicologia social” e do diálogo com a “antropologia histórica”, esboçados em Totem e tabu e “Psicanálise do eu e psicologia de grupo”, as teses contidas em Os gregos e o irracional derivam de uma aplicação mecânica e grosseira dos princípios mais abstratos da segunda tópica de Freud. Resumindo o primeiro item, pudemos constatar que embora supondo uma ressalva quanto à caracterização do “homem homérico”, Dodds concorda em linhas gerais com o quadro traçado por Snell. Sua noção de “intervenção psíquica” confirma, fora dos parâmetros do pensamento hegeliano, a representação do homem homérico de Snell. Mas diverge de suas conclusões. Para Dodds, “os elementos principais da psicologia grega tradicional já se encontravam plenamente desenvolvidos em Homero, mesmo sem o auxílio do conceito de alma” (apud Corrêa, 2009, p.34). Por isso, veremos, a seguir a parte mais interessante da sua tese, em que o autor esboça outra interpretação da passagem para segunda cena de psykhḗ . Técnicas de si no “xamanismo” grego

Voltando-se para o advento da nova concepção de psykhḗ no período pós-homérico, Dodds chama atenção, em primeiro lugar, para o surgimento em alguns escritores, no limiar do período clássico, de “uma nova crença, relacionada a experiências de um poder humano, oculto e inato” (Dodds, 2002, p.139) e cita como exemplos próximos, antecipadores da nova concepção, Píndaro (treno VII, Fr. 131b S) e Xenofonte. Já neles a psykhḗ passa a referir a alma do homem vivente, como atesta o prosador pitagórico: 84

É durante o sono que a alma (psykhḗ ) exibe melhor sua natureza divina. É durante o sono que ela atinge uma certa intuição do futuro, e isto porque é no sonho que ela se encontra aparentemente mais livre (Xenofonte, Ciropédia, VIII, 7, 21, apud id., p.139).

A análise da mudança semântica de psykhḗ que se segue é repleta de sugestões instigantes. A nova crença do período clássico, diz, certamente não foi a ideia de sobrevivência. “Na Grécia, como na maior parte das culturas, tal ideia é, na verdade, bem antiga” (id., p.140). Se o homem alimentava seus mortos, era porque ignorava a distinção entre cadáver e espírito. “Não se tratou, portanto, de ‘estabelecer’ uma ideia de sobrevivência, pois ela já estava implícita no antigo costume por aquilo que jazia na tumba como cadáver e espírito”. Em seguida, “nem mesmo a ideia de recompensas e punições após a morte era algo novo”. Finalmente, “a contribuição do novo movimento nem sequer consistiu em uma equalização da psykhḗ (ou alma) com a personalidade” (id., p.141). Após todas estas negativas, passa-se aos primeiros indícios de uma nova concepção: Isto acabaria sendo feito, aparentemente pela primeira vez, na Jônia. Na verdade, Homero não atribui nenhuma função à psykhḗ , exceto a função de abandonar o homem em vida [...] Mas Anacreonte [fr.4] pode, por sua vez, dizer a seu amado: “Você é o mestre da minha psykhḗ ”; Semônides [de Amorgos, fr.29.14D (= Simonides de Ceos fr.85B)] pode falar em “agradar a sua psykhḗ ” [...] Aqui a psykhḗ é vista como um eu vivo, e mais especificamente como o eu apetitivo – ela assumiu as funções do thymós homérico mas não as do nous homérico. Entre a psykhḗ compreendida neste sentido e o sôma (corpo) não há qualquer antagonismo fundamental; a psykhḗ é apenas o correlato mental do sôma (id., p.142)

Segundo Dodds, no grego ático, ambos podem significar “vida” ou “pessoa”. Assim, “Sófocles pode fazer Édipo se referir a si mesmo, em certa passagem, como ‘minha psykhḗ ’, e em outra, como ‘meu sôma’. Em ambos os lugares ele poderia ter dito ‘eu’” (id., p.142). Mas ressalva que, tanto nos escritores áticos do século V a.C. como em seus predecessores jônios, o “eu” designado pela palavra psykhḗ é normalmente tomado em sentido mais emocional que racional. “Fala-se dela como da sede da coragem, da paixão, da piedade, da ansiedade, do apetite animal. Mas antes de Platão, raramente, ou quase nunca, ela é citada como sede da razão – sua extensão sendo tão ampla quanto a do thymós homérico” (id.). Implicitamente, estaria o autor sugerindo faltar a essa noção, para que se equalizasse a psykhḗ com a ideia de “pessoa”, apenas a noção platônica de uma “alma racional”? Independente de ser esta sua hipótese, a análise histórica da mutação semântica do termo segue impecável, complementando a de Snell: Seja ou não verdade o fato do termo psykhḗ causar um sentimento tênue de estranheza para o cidadão ateniense do século V a.C., uma coisa é certa: a palavra não [...] gozava de qualquer status metafísico. A “alma” não era nenhuma prisioneira relutante do corpo, mas sim vida ou espírito do corpo (id., p.143).

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O novo padrão religioso “ao creditar ao homem um ‘eu’ oculto, de origem divina, e por conseguinte colocar em desacordo corpo e alma” (id., p.143), introduziu na cultura grega clássica uma nova interpretação da existência humana, que Dodds propõe chamar de “puritana”, da qual deriva a leitura de Platão. O que o analista pretende sugerir em sua reconstituição é a existência de “uma linha de descendência espiritual que vai da Cítia até a Grécia asiática, atravessando o Helesponto [...] Ela emigra com Pitágoras e tem seu último representante no siciliano Empédocles”. Estes teriam difundido “a crença de uma alma ou ‘eu’ passível de ser separada do corpo ainda em vida, através de técnicas adequadas” (id., p.150). “Eu” que seria mais velho que o corpo e sobreviveria a ele. O conjunto dessas novas ideias e crenças – noção de excursão psíquica durante o sono, antítese corpoalma, técnicas de áskēsis, crença no “eu” indestrutível, doutrina da reencarnação – eram apenas possibilidades. Se foram atualizadas por alguns gregos no final da era arcaica, deviam corresponder a certas necessidades lógicas, morais e psicológicas (id., p.153).

Por necessidade lógica, “uma vez aceita a ideia de que o homem possui uma ‘alma’ distinta do corpo, era natural perguntar de onde ela provinha. E era também natural responder que ela provinha do grande reservatório de almas do Hades” (id., p.153). O que faria da doutrina da reencarnação um produto de “lógica pura”. Mas como não explica que a mesma crença também não tenha se desenvolvido em povos menos inclinados a este tipo de pensamento lógico, Dodds abandona a hipótese. Por necessidade psicológica, o autor entende a injunção de “racionalizar sentimentos inexplicáveis de culpa” (id., p.154), de que já assinalamos o pressuposto arbitrário de um aparelho psíquico atemporal. A única alternativa, com efeito, é a mais pregnante, a tese de que o novo sistema de crenças corresponde a uma necessidade moral, apontando para uma razão socialmente motivada na crescente pressão exercida por novas demandas jurídicas: Em termos morais, a reencarnação ofereceu uma solução mais satisfatória ao problema da justiça divina, surgido no final do período arcaico, do que a ideia de culpa herdada ou de punição postmortem em outro mundo. Com a crescente emancipação do indivíduo face à velha autoridade familiar, e direitos jurídicos cada vez maiores, a noção de pagamento dos pecados em lugar de outrem começou a se tornar inaceitável (id., p.153, grifo meu).

Mas teria sido, sobretudo, o impacto das crenças do chamado “xamanismo grego” que teriam posto em funcionamento o sistema de ideias, crenças e valores puritanos que promoveram um “um horror do corpo e uma repulsa contra a vida dos sentidos que eram bastante novas para a Grécia” (id., p.155). Para as pessoas que igualavam a psykhḗ à personalidade empírica, como ocorria no século V a.C., tal asserção [i.e. do corpo como “prisão da alma” ou “tumba na qual a psykhḗ jazia morta, aguardando a ressurreição para a verdadeira vida”] não faz qualquer sentido. Tratava-se de um paradoxo fantástico [...] Nem faz muito sentido igualar “alma” à razão. Devo supor que, para as pessoas que tomavam tudo isso a sério, o que jazia “morto” no corpo não era nem a razão nem o homem com 86

suas experiências de vida, mas um “eu” oculto, a “imagem de vida” de Píndaro, indestrutível mas capaz de funcionar apenas nas condições excepcionais de sono ou de transe (id., p.155-156).

Como já notara Louis Gernet: “A afirmação de Sócrates na República, segundo a qual o indivíduo possuiria propriamente uma alma imortal, um ateniense culto a recebe como uma estranha novidade” (apud Vernant, 2008a, p. 431). Referindo o acerto das restrições introduzidas por Dodds, acrescenta Vernant: somente “em Platão, aparece em plena luz o laço entre uma noção de Memória e uma nova doutrina da imortalidade [na teoria da reminiscência] que rompe decididamente com as concepções helênicas da alma, de Homero aos pensadores jônicos”, muito diversa da noção, ainda incipiente nos meios do orfismo e do pitagorismo a que remete Píndaro, “de uma alma individual, que possui em si mesma e por si mesma o poder inato de se libertar do corpo e viajar no além” (Vernant, 2008a, p.458). A partir desses deslocamentos de sentido configura-se o pano de fundo para o surgimento da nova concepção de psykhḗ , cuja formulação original Snell localiza em Heráclito. Vemos, assim, que tanto Snell como Dodds fornecem uma descrição valiosa do quadro em que se insere a categoria grega de sujeito. Mas em ambos a noção de psykhḗ permanece atrelada a uma concepção meta-histórica como ponto de fuga da análise, o “espírito” da razão europeia em Snell, a instância consciente do “ego” em Dodds. É essa base substancialista que a interpretação de Vernant vai contestar em suas principais articulações.

Rio das Ostras, fev-jul, 2014

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3. Vernant e a reconsideração do sujeito

3.1. Uma história das categorias psicológicas

Em posição antípoda à de Snell, a pesquisa de Jean-Pierre Vernant (1914-2007) se insere numa descendência marcadamente kantiana, através da escola francesa de sociologia do início do século XX e suas afinidades com o método estrutural de Georges Dumézil e Claude Lévi-Strauss. Mas a inspiração decisiva do seu trabalho, ao lado da antropologia e da história do direito de Louis Gernet, como ele mesmo não cansa de lembrar, lhe veio da psicologia histórica de Ignace Meyerson. O próprio ambiente intelectual amplificado pela extensa rede de colaboradores do diretor do Journal de Psychologie favorecia um maior contato com diversas áreas das ciências humanas sem equivalente entre os alemães. Embora não se considerasse adepto do “kantismo sem sujeito transcendental” de Lévi-Strauss, a que sua obra, junto com as de Marcel Detienne (1935-) e Pierre Vidal-Naquet (19302006), seria frequentemente associada, ele mesmo preferia se definir de outra forma: “minha pesquisa inscreve-se na linha de uma psicologia histórica cujos fundamentos foram estabelecidos na França por Meyerson e que se coloca sob o signo de Marx” (Vernant, 2001, p.54). O que o situa, de saída, como duplamente dissidente na encruzilhada do estruturalismo e do marxismo (id., p.56). A propósito de suas relações com Georges Dumézil (1898-1986), Vernant declarou em entrevista recente: “devo-lhe certa concepção, depois chamada estruturalista [...] nesse plano inscrevo-me na linha duméziliana” (Vernant, 2010, p.219). E ressalta que Dumézil era próximo de Émile Benveniste (1902-1976) e Jules Bloch (1880-1953), ambos judeus, como Marcel Granet (18841940), todos empenhados na escola semiológica francesa. Na mesma entrevista refere-se ainda à proximidade de seu trabalho com Claude Lévi-Strauss (1908-2009), seja por sua maior afinidade com a filosofia, seja por sua formação na escola sociológica francesa, na linha de Mauss, de quem fora igualmente aluno (Vernant, 2010, p.228-29). Rejeitando tanto o catecismo revisto a que foi reduzido o marxismo, quanto a moda que assolou o meio intelectual parisiense depois da publicação da Antropologia estrutural, Vernant considerava que se, por um lado, o trabalho de Marx, por um lado, lhe fornecia “uma metodologia crítica indispensável para colocar corretamente questões de história”, por outro, os desenvolvimentos da linguística e da antropologia não podiam ser ignorados: se levarmos em conta o que os estudos linguísticos trouxeram de novo nos últimos cinquenta anos com as noções de sistema e de sincronia, e o partido que os mitólogos tiraram deles para perceber os sistemas de oposições e de homologias que constituem a armadura das narrativas míticas, direi apenas que não se pode mais fazer história das religiões sem ser, nesse sentido, estruturalista (id., p.56).

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O importante, diz ele, não é a escolha do rótulo, mas “perceber que o problema, hoje, é entender como um sistema nasce [...], como se desenvolve, se organiza vive, definha, se desfaz e desaparece para dar lugar a outro” (id., p.56-57). No que concerne diretamente a seu trabalho, será nesse sentido que sua obra vai se ocupar insistentemente da passagem do pensamento mítico à racionalidade clássica, desde o desmoronamento das estruturas micênicas até o surgimento da pólis com as instituições democráticas: “essa problemática, que procurei aplicar à Grécia antiga, situa-se precisamente na junção do marxismo e do estruturalismo” (id., p.57). Esboçando uma tentativa de definição desse lugar paradoxal em que inscreve sua obra, Vernant rebatizaria retrospectivamente sua démarche intelectual com uma expressão significativa: “os caminhos que tentei explorar, no território da Grécia, levando em conta as diversas dimensões sociais e mentais daquela cultura, poderiam ser chamados, se fosse preciso atribuir-lhes rótulos, de antropologia histórica” (id., p.48). Mas esse “estatuto indeciso, polimorfo”, fundamentalmente multidisciplinar, defeituoso aos olhos dos especialistas das disciplinas clássicas, teria, entretanto, algumas vantagens: “quando estamos em um cruzamento, temos uma perspectiva diferente daqueles que caminham por uma mesma rua”, as fronteiras, em vez de obstáculos, podem constituir “pontos de cruzamento, passagens e encontros, postos de observação privilegiados” (id., p.48). A fim de elucidar esse lugar complexo que seu trabalho ocupa nos estudos helenísticos, lancemos um rápido olhar sobre o panorama intelectual em que ocorre a formação de Vernant, pois ele será decisivo em sua reformulação da categoria de “pessoa”. Louis Gernet e Ignace Meyerson teriam se conhecido por intermédio de Marcel Granet, que, por sua vez, ao lado de R. Hertz, M. Halbwachs, M. Mauss e Lévy-Bruhl, pertencia ao grupo de alunos de Durkheim (Corrêa, 2009, p,53). Judeu de origem polonesa, radicado na França desde 1905, onde se diplomara em medicina, dedicando-se posteriormente aos estudos de psicologia, Meyerson dirigiu durante 63 anos o Journal de Psychologie Normale e Pathologique, tendo entre seus colaboradores, Marcel Mauss, Ernst Cassirer, Antoine Meillet, Joseph Vendryes, Émile Benveniste e Louis Renou (apud Vernant, 2008b, p.xvii). Fundado por Pierre Janet e Georges Dumas em 1920, Ignace Meyerson foi seu secretário de redação até 1938, quando passou a dividir a direção com Charles Blondel e Paul Guillaume, onde permanece até o fechamento da revista, com sua morte (Vernant, 2010, p.218). Vernant trabalhou como secretário de redação no Journal de 1948 a 1993, período que coincide com praticamente toda sua vida de pesquisador, permanecendo no cargo mesmo após sua aposentadoria no Collège de France (id., p.225). Autor de um único livro, sua tese de doutorado, Les fonctions psychologiques e les oeuvres (1948), não se deve esquecer que “sua obra é feita, essencialmente, da série de artigos nos quais, ao longo de sua vida e até o último instante, ele ofereceu, na forma conveniente para seu espírito, o melhor de seu pensamento” (id., p.125). Ensaios estes que foram reunidos postumamente pela editora 89

Presses Universitaires de France no volume Écrits, 1920-1983. Pour une psychologie historique (1987). Ao lado destas duas obras mais importantes, encontram-se ainda dois colóquios organizados por Meyerson, de que se destaca o histórico Problèmes de la personne (1960, publicado em 1973), que o autor teria organizado ponta a ponta, com a colaboração de Vernant, estabelecendo referências para uma história do indivíduo (2001, p.132-133).12 Como nota Riccardo Di Donato, fora do círculo de influência do autor e de seus amigos e admiradores, o eco de seu livro foi limitado. A fecundidade da teoria histórica de Meyerson ficando reservada inicialmente ao domínio específico da Grécia antiga, graças à exitosa apropriação de Vernant (apud Meyerson, 1995, p.260-261). Além de romper com o cientificismo de seu mestre, Vernant iria insistir sobre um parentesco não intencionado pelo autor de Les fonctions psychologiques entre a via da “psicologia histórica” e o caminho assinalado por Marx, reivindicando uma psicologia que pesquise como os sentidos se humanizaram no seio das relações sociais, como a música criou o ouvido musical, como o trabalho das gerações passadas educou não apenas os cinco sentidos, mas ainda “os fatos ditos espirituais, os sentidos práticos como querer e amar” (Vernant, apud id., p.262).

Para Vernant e Philippe Malrieu, que fazem uma primeira avaliação crítica do trabalho de Meyerson em um artigo conjunto de 1955, a inovação introduzida pelo autor seria idêntica ao projeto esboçado por Marx e a atitude inicial de seus primeiros leitores será balizada pela preocupação de conciliar a psicologia histórica com o método marxista. Apenas em data recente, Di Donato levanta a questão de saber se essa ligação estabelecida tão cedo, e motivada por uma tomada de posição política exterior a seu livro, não teria criado uma dificuldade suplementar para a difusão da obra de Meyerson (id., p.263). Sobre a obra de Gernet, por outro lado, falecido ainda na década de 1960, Vernant destaca que foi por ele, em seu trabalho, sem que os helenistas contemporâneos tivessem consciência disso, “que foi operada a passagem, com todas as suas implicações e consequências, do humanismo tradicional – o do milagre grego – para uma antropologia histórica” (id., p.164-165). Em polêmica declarada com o anti-humanismo do Foucault de Les mots et les choses, Vernant escreve no prefácio ao livro póstumo de Gernet, Antropologia da Grécia antiga (1968):

Cf. os volumes também reunidos postumamente: Recherches sur l’usage de l’instrument chez le singes (1930-1937), em colaboração com Paul Guilhaume (Vrin, 1987), Forme, couleur, mouvement dans les arts plastiques (1953-1974) (Adam Biro, 1991) e o colóquio Problèmes de la couleur (Sepven, 1957), que, assim como Problèmes de la personne (La Haye, Mouton, 1973), Meyerson reuniu e apresentou em vida. Sua obra se compõe ainda de uma massa de notas dos cursos ministrados na École de Hautes Études, de 1951 a 1983, todos integralmente ditados por Meyerson e redigidos por Claire Bresson uma semana antes de cada aula, e de uma vasta correspondência, ambos depositados nos Archives nationales (521 AP 1-67), ainda não editados. Desse conjunto destacam-se os cursos dos anos de 1961-1962 e 1981-1982 que tratam especificamente da categoria da pessoa e que por suas datas sugerem uma estreita conexão com as respectivas fases da pesquisa de Vernant sobre o problema do sujeito. 12

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No momento em que podemos considerar o afastamento do homem como objeto de ciência e escrever que: “em nossos dias, só se pode pensar no vácuo do homem desaparecido”, a pesquisa de Louis Gernet adquire, a nosso ver, um valor exemplar (id., p.160)

Com seu trabalho “o que chamamos tradicionalmente de ‘humanismo’ encontra-se colocado em seu devido lugar, situado historicamente, relativizado” (id., p.158). No caso do antropólogo historiador, importa analisá-lo particularmente no que concerne à passagem, em todos os planos, do que se pode chamar de um pensamento mítico-religioso, para o que Gernet chama de “razão”. Segundo o autor da Antropologia da Grécia antiga, o advento da pólis clássica grega, com a atitude intelectual, o comportamento social e o sistema de valores que a caracteriza, apareceria como “um acontecimento singular da história humana, proveniente, senão da pura contingência, ao menos de uma inteira relatividade”: Seu surgimento supõe um jogo complexo de condições que poderiam não ter acontecido; sua instauração sempre recobre, por trás de um equilíbrio aparente, tensões, zonas de sombra nas quais as práticas e as mentalidades antigas subsistem, prontas para ressurgir. No próprio lugar onde a razão parece ter estabelecido seu reinado, o fanatismo, a superstição, a demissão da inteligência, a “barbárie”, como Gernet chegou a dizer, permanecem escondidas por trás do pano, ameaçando uma invasão (id., p.167, grifo nosso).

Trata-se de ver a dinâmica e os avanços da história como “um combate aleatório, uma vitória sempre questionada e cuja responsabilidade cabe a cada um de nós” (id., p.168). Resta verificar como Vernant pretende conciliar a defesa de um humanismo “à Gernet” com a perspectiva estruturalista: pois o que poderia significar um paradoxal “estruturalismo humanista”? A evidente discrepância da expressão demanda que a situemos na problemática de modo sumário. Digamos que o contraditório da expressão (não utilizada por Vernant) remete a dois planos, não necessariamente opostos. No plano específico dos estudos helenísticos, a posição de Vernant se define contra a tese humanista tradicional do “milagre grego”, mais especificamenteb à afirmação da “descoberta do sujeito” na Grécia clássica. No entanto, essa recusa não se contenta com a solução de estrito cunho estruturalista. Ao contrário do programa assumido pela vanguarda estrutural de apagamento do sujeito e desvalorização da história, o que interessa ao antropólogo historiador são menos os sistemas tal como se constituíram, modificaram e desapareceram do que ressaltar o que chama de “a dimensão propriamente humana” que comportam os fatos de mudança: Só poderíamos entender sua dinâmica se nos questionarmos, não sobre o Homem, mas sobre a mentalidade particular dos homens, dos grupos humanos que os implementaram, se procurarmos entender o que foram seus modos de pensar, seus quadros e ferramentas intelectuais, suas formas de sensibilidade e de ação, suas categorias psicológicas – no sentido que Mauss dava a esse termo (id., p.160-161).

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Pelo que se pode entrever que a defesa da diacronia e do individual humano por Vernant não significa um mero recuo para o historicismo e o antropocentrismo combatidos por Foucault, mas aponta para uma terceira posição.

Crítica do substancialismo Negando a existência de “um sujeito interior fixo”, com funções psicológicas permanentes, a psicologia de Meyerson “procurava traçar o percurso da história do espírito humano através de suas obras, indicando transformações ocorridas em sua atividade mental”, abrindo caminho para a pesquisa que Vernant vai traçar sobre a “história interior do homem grego” e sua “organização mental” a partir das mudanças sociais que afetam o quadro de suas funções psicológicas. De outra parte, a antropologia de Gernet, concentrada na passagem das instituições gregas arcaicas para o advento da pólis clássica, forneceria a seu trabalho o que ele tem de característico nos temas e cortes cronológicos (Corrêa, 2009, p.53). Mas é preciso ressaltar ainda o aspecto mais relevante dessa aprendizagem que Vernant herda de ambos os mestres e se manifesta em duas frentes de ataque. Procurando nos aproximar da perspectiva teórica que marcará o trabalho de Vernant, façamos um esboço esquemático desse duplo ponto de partida. Na primeira ponta, destaca-se a crítica ao materialismo sociológico, concernindo à problemática das relações entre religião e sociedade, política e economia, bem como entre a obra de arte e seu contexto histórico, centrada no confronto com as noções de teleologia histórica e de causalidade unilateral, pelo destaque da diversidade de ritmos temporais e das ações recíprocas entre as diversas instâncias sociais. Tomemos dois exemplos. O primeiro refere-se ao problema da predominância do econômico e ao estatuto do político na Grécia antiga. Numa análise retrospectiva Vernant observa que seu trabalho procurou dirigir o foco em uma série de direções simultâneas “para mostrar que existe uma convergência que desemboca em uma profunda transformação na concepção das relações humanas” (id., p.101). Assim, após o desmoronamento das estruturas micênicas, com o início da construção da pólis, da segunda metade do século XI a.C. até o século IX a.C. teria se operado uma série de mudanças (demografia, metalurgia do ferro, ocupação e cultivo do solo), conduzindo ao que A. Snodgrass chamou de “revolução estrutural” da qual sairia o tipo particular de vida coletiva constituído pela cidade-estado. Ainda durante o século VIII a.C., a própria religião deve ter sido modificada muito profundamente para satisfazer a uma dupla exigência: responder ao particularismo de cada grupo humano que se coloca, com seu território, sob a proteção de suas próprias divindades políadas; mas instaurar, no mesmo movimento, por meio dos grandes santuários, dos jogos e do desenvolvimento da literatura épica, um panteão e uma cultura religiosa comuns ao conjunto da Hélade (id., p.40). 92

Desse modo, a cidade grega se inscreveria na tradição de uma sociedade aristocrática e guerreira, e em uma medida razoavelmente ampla seria uma espécie de democratização, de alargamento para o campesinato do que eram privilégios de uma aristocracia militar (id., p.102-103). Nesse processo, o intervalo entre os séculos VII e IV a.C, que caracteriza a passagem da época arcaica para a clássica, aparece especialmente marcado por choques, conflitos abertos e lutas violentas no plano da história social, ao mesmo tempo que por um movimento de ruptura e inovação, no plano intelectual, frente à tradição. O que tornou possível esses conflitos? Conforme a hipótese de Vernant, a condição das lutas sociais estaria diretamente ligada ao aparecimento da esfera do político que, dominando a economia, teria deixado de lado toda uma parte da oikonomía, a economia doméstica e pessoal. Pois somente na medida em que a política adquiriu essa autonomia frente ao “predomínio do econômico” os conflitos puderam se colocar, neste terreno, com uma nitidez e uma acuidade notáveis (id., p.105). De toda forma, a hipótese de causalidade unilinear não basta para explicar esse conjunto de transformações. Pelo contrário, a manutenção de um primado do econômico as faria aparecer como uma espécie de “milagre grego”. Passemos ao segundo exemplo. Como praticante de um marxismo heterodoxo, para Vernant a religião constituía a princípio apenas uma questão de ideologia. Uma vez mergulhado nela, percebe, entretanto, que as relações entre religião e sociedade não eram tão simples. Paralelamente, o desenvolvimento da antropologia e das ciências humanas insistia cada vez mais na importância dos sistemas simbólicos e lhe parecia necessário tentar entender o funcionamento desses sistemas, sendo levado a notar que em todo sistema religioso havia uma espécie de saber, de gramática, uma forma de decifrar, de classificar os acontecimentos, os fatos, e de mostrar o lugar do homem no mundo. Logo, existem sistemas classificatórios muito bem organizados e é perfeitamente claro que um panteão é, ao mesmo tempo e indissoluvelmente, uma expressão das hierarquias sociais [...] o mito está completamente integrado à vida social, mas ao mesmo tempo ele é outra coisa: um sistema classificatório que, para mim, como marxista que sou, coloca um problema considerável (id., p.110).

Em suma, tudo isso colocava “o problema dos ritmos diferentes de evolução da história” (id., p.111). E como marxista e militante Vernant não podia deixar de observar com espanto que as grandes revoluções sociais de que era contemporâneo, na China e na União Soviética, colocavam, em vários de planos, “a terrível questão das persistências” – nos hábitos políticos, nas relações sociais, nos sistemas de pensamento (id., p.111). Em contrapartida, a constatação lastimável se converte em ganho teórico, quando Vernant passa a se esforçar, associando sistematicamente análise estrutural e pesquisa histórica, para iluminar as relações recíprocas do social e do religioso: Os homens criam seus deuses, as sociedades produzem as religiões. Mas nenhuma religião é o reflexo simples e direto de uma sociedade. Ao lado das crenças e dos ritos que visam consagrar um Estado 93

de fato, justificar normas usuais, integrar os indivíduos no grupo tal como ele é, existem tendências inversas, práticas desviantes, movimentos sectários, atitudes marginais, condutas aberrantes que questionam, junto com a ortodoxia religiosa, toda a prática social de uma comunidade. É o caso, por exemplo, na Grécia, dos pitagóricos e dos órficos [...]. Assim, uma religião também pode expressar o contrário do que é uma sociedade, a recusa do real em nome de alguma outra coisa (id., p.56, grifo nosso).

Passemos à segunda frente de ataque. Em um texto-manifesto de 1957, “Psicologia histórica e experiência social”, que permaneceu inédito até ser posteriormente recuperado em Entre mito e política (1996), Vernant esboça precocemente um programa a cumprir na trilha aberta por Meyerson. A começar por uma aguda crítica do idealismo psicológico então dominante: “a psicologia partiu de opiniões sobre o homem e não da observação das condutas”. Afastando os testemunhos da história, o psicólogo da primeira metade do século teria se limitado duplamente: eliminando de sua pesquisa tudo que não fosse o presente, teria abordado seu estudo com conceitos prévios: “a ideia de uma natureza humana dada desde sempre, de um espírito estável e permanente”. Desse modo, seu método implicava forçosamente “a crença em um quadro definitivamente constituído das funções psicológicas” (id., p.139-140). A própria demanda por atingir um conhecimento duradouro teria conduzido na direção desse dogmatismo teórico: para conhecer e para fazer a si mesmo, o homem precisava primeiro atribuir-se uma forma e uma realidade estáveis. A ideia de uma alma imortal correspondia a essa necessidade de nos pensarmos como substâncias permanentes. Ainda hoje, os psicólogos, quando falam de consciência e de espírito, continuam tributários dessa forma de pensamento (id., p.141, grifo nosso).

O que não justifica a atrofia em hábito mental. Donde a palavra de ordem do helenista militante: “Não podemos mais aceitar sem discussão o dogma da fixidez do espírito, da permanência das categorias e das funções psicológicas. Depois de tantas outras ciências, a psicologia deve acrescentar ao seu objeto uma nova dimensão, a da história” (id., p.141). De imediato, a historicização das categorias mentais desemboca em um problema análogo ao já levantado em escala social: a temporalidade diversa das funções psicológicas (memória, espaço, tempo, razão, imaginação, etc). Uma função pode não existir, pode ter uma data de nascimento mais recente do que se crê. Pode adotar outras formas além de sua forma atual. O agrupamento das funções, sua divisão e seu equilíbrio puderam, assim, ser diferentes. O quadro das funções psicológicas não deve jamais ser considerado como uma moldura prévia na qual se deve fazer entrar todos os fatos humanos (id., p.142).

Mas também se encontra essa diversidade quando passamos de uma civilização a outra. Por exemplo, quanto à categoria do tempo, numa civilização como a nossa, em que as atividades se interpenetram, apesar das experiências temporais serem relativamente unificadas, comenta Vernant: Sabemos que essas experiências são diversas: o tempo da espera não é o da saudade, o tempo da profissão (do trabalho) não é o das férias nem o do calendário, nem o tempo astronômico. Todos são igualmente psicológicos, todos são interiormente vividos, mas com qualidades e ritmos diferentes. 94

Não podem, contudo, permanecer exteriores uns aos outros. A vida moderna exclui toda compartimentalização entre tempos que, em cada um de nós, se cruzam incessantemente e se recobrem. Se nossas experiências temporais pudessem, em vez de se unificar, manter-se como séries independentes, talvez não tivéssemos um conceito “comum” do tempo, e talvez não pudéssemos falar de uma função única de organização do tempo (id., p.143).

Não obstante, em contraste com a população dos canacas, na Nova Caledônia, Maurice Leenhardt ressaltou, em seu estudo Do Kamo: la personne et le mythe dans le monde mélanésien (1947), que não existiria entre eles uma única representação, mas uma multiplicidade de representações do tempo, atestando uma autonomia entre as diversas experiências temporais, que permanecem tão exteriores umas às outras quanto os domínios do concreto a que são estritamente associados. Em contrapartida, não existe para eles um conceito geral, visto que o tempo não se organiza em torno do sujeito: ele adere aos atos, aos acontecimentos, às atividades sociais, que não se reúnem para formar uma série linear, mas permanecem justapostas (id., p.143). Mas se não se pode dizer que nenhuma função psicológica adotou sua forma definitiva; se elas se definem mesmo por esse inacabamento constitutivo, isso não significa que não se possa conhecê-las. Por isso, ao inacabamento das funções, à sua instabilidade histórica e cultural, Meyerson opõe o caráter preciso e objetivo dos atos e das obras. A obra “introduz na história do espírito a objetividade indispensável para uma pesquisa positiva” (id., p.145), ao mesmo tempo que ilumina o elo entre a história do espírito e a história social. Produção humana, a obra pertence à vida social; transformadora da realidade, ela reage sobre o indivíduo e o transforma por sua vez. Não há um nexo direto unilinear entre o homem e seu produto: trata-se de buscar “o elo que une tal forma mental a tal estrutura social [...] entre umas e outras não existe causalidade unilateral, e sim, sempre, ações recíprocas” (id., p.148). Portanto, conforme a primeira palavra de ordem de Vernant, seria preciso restituir à psicologia sua dimensão histórica. Mas, pergunta-se retrospectivamente: isso não significaria deslocar a questão do “indivíduo” para a “sociedade”? Não seria antes o contexto social que estaria submetido a transformações incessantes, cabendo ao homem apenas adaptar sua conduta a essas variações, permanecendo ele mesmo idêntico? Em que o olho do cidadão de Atenas, no século V antes de nossa era, seria diferente do de nossos contemporâneos? Sem dúvida. Assim, não se trata do olho ou do ouvido [...] e sim das formas gregas de usá-los [...]. A ilusão de que, posto que o homem é um homem, se os historiadores conseguissem reconstituir perfeitamente o cenário no qual viviam os antigos, teriam cumprido sua tarefa e, ao lêlos, todos poderiam sentir-se na pele de um grego, é tenaz (Vernant, 2001, p.170-171).

Em suma, nem o indivíduo nem o contexto social podem ser tomados como substâncias permanentes. O que implica aceitar o risco de uma mudança da perspectiva histórica que passa a assumir o caráter de retrodição. Não se trata de buscar, nas obras em que o homem se objetivou, o que ele realmente foi, nem de reduzi-lo ao contexto social: “colocarei o perfil cujos traços procuro 95

esboçar sob o signo, não do grego, mas do grego e de nós. Não do grego tal como foi em si, tarefa impossível porque a ideia em si é desprovida de sentido, mas o grego tal como aparece hoje para nós” (id., p.172).

Primeira fase da obra (1960-1970)

Tendo em vista os limites dentro dos quais opera o pensamento de Vernant, cumpre precisar a perspectiva teórica a que conduzem essas tomadas de posição até aqui descritas de modo genérico. Podemos situar sua formulação primeira, bem antes do início da primeira fase de sua obra, na reviravolta que o contato com Gernet e Meyerson produz sobre a pesquisa inicialmente apresentada ao CNRS. Ao adotar como assunto de tese, em 1948, “A noção de trabalho em Platão”, Vernant permanece mais historiador da filosofia do que helenista. Mas logo teria entendido, segundo conta, haver por trás dessa análise uma questão de psicologia histórica. Seu propósito era fazer “uma leitura marxista da filosofia platônica”, mostrando que a noção de trabalho em Platão situava-se na junção de dois eixos: por um lado, tratava-se de determinar o estatuto do trabalho no século IV a.C. ateniense. Mas não era suficiente limitar-se ao contexto sócio-histórico para explicar a noção platônica. Era preciso mostrar, também, como nos quadros do sistema filosófico de Platão, de suas intenções, de sua linguagem, essa noção de trabalho vinha se articular em relação a outros planos do seu pensamento (id., p.95).

Portanto, inicialmente o projeto de Vernant inscrevia-se numa perspectiva de relativamente tradicional. Foi nesse momento que encontrou Louis Gernet e, sob sua influência e de Meyerson, pareceu-lhe que o problema não estava bem colocado. Certamente, era possível fazer aquele estudo, mas não atingia o núcleo do problema: era preciso investigar não a “noção” de trabalho em um filósofo, objeto de uma possível história das ideias; também não era o contexto sócio-histórico do trabalho, tema para uma dissertação de história social, mas, sim a temporalidade do que Vernant viria a chamar, no vocabulário de Mauss, de “categoria” do trabalho (id., p.95-96). eu estava abordando o trabalho como uma categoria psicológica perfeitamente delimitada e constante: por exemplo, como os gregos conheceram, julgaram o trabalho? A verdadeira questão, na verdade, era: existia o que nós chamamos de trabalho, ou seja, um comportamento, uma atitude geral oposta ao lazer, que possui um valor econômico, que implica a ideia de que o homem é produtor e que, nessa atividade produtiva, ele estabelece relações sociais com os outros? Nada disso, a própria categoria era problemática... Daí a série de análises que fiz sobre a noção de trabalho procurando mostrar que o mesmo termo recobre uma história das formas técnicas do trabalho, como também uma história da ideologia do trabalho, ou seja, uma história do trabalho como categoria interna do homem. [...] Fui levado a concluir o seguinte: certamente o homem trabalha, mas não existe o 96

trabalho, existem diversos tipos de trabalho muito diferentes [...] e o homem está longe de ter sempre vivido suas atividades de trabalho da mesma forma que nós (id., p.65).

Somente após esse deslocamento da história da filosofia para a psicologia histórica, redefinindo seu tema inicial, tem início o itinerário que caracteriza a obra madura de Vernant, no interior da qual se põe a problemática da categoria do sujeito: No espaço de poucos séculos, a Grécia antiga conheceu, em sua vida social e intelectual, mutações tão profundas que foi possível ver nelas o nascimento do homem moderno, o advento do espírito como poder de reflexão crítica, ou, em outras palavras, foi naquele momento que se teria produzido a passagem do mito à razão (id., p.55).

Tendo se interessado primeiramente pelas condições de aparecimento da razão na Grécia antiga, apenas secundariamente Vernant foi levado a se ocupar dos problemas ligados à religião que iriam se tornar centrais em todo o seu trabalho posterior. Vindo da filosofia, aos poucos seu trabalho deriva para uma antropologia religiosa da Grécia (id., p.39). Assim, perguntei-me como, por que e até que ponto de fato se desprenderam da mentalidade religiosa modos de pensar e de agir que [...] parecem todos mais ou menos incluídos no universo simbólico da religião. E, nesse processo de mutação [...] quais mudanças afetaram, de um lado, os instrumentos mentais – instrumental conceitual, modos de raciocínio, quadros lógicos do pensamento – e, de outro, as grandes funções psicológicas: tempo, espaço, memória, imaginação, vontade, persona (id., p.55).

A esse programa respondem os livros Les origines de la pensée grecque (1962), Mythe et pensée chez les Grecs (1965) e Mythe et tragédie I (1972). Mas, já nos dois últimos, o acento se encontra deslocado. No primeiro livro, um ensaio filosófico curto e sintético, o mito aparece como parâmetro de comparação, é a razão que o interessa: “o mito era considerado apenas como ponto de partida; tratava-se menos de estudá-lo em si e por si mesmo do que de examinar o modo como ele havia sido descartado” (id., p.55). Mas já durante sua escrita a perspectiva de Vernant se modifica e, como atesta a maior parte dos capítulos do livro seguinte, a análise do mito passa para o primeiro plano. À medida que procurava localizar as diversas condições que permitiram o surgimento daquilo que chamamos de pensamento racional, outra passagem era efetuada. Tendo partido da questão: “como passamos do mito à razão?”, era levado a perguntar: “O que é o mito, como funciona, que tipo de pensamento recobre?” (id., p.109). Nesse campo, sua pesquisa se orientará por duas vias principais: a decifração dos mitos e a evidenciação das estruturas do panteão (id., p.43), conforme as ideias seminais de Dumézil e Lévi-Strauss. Às quais que se acrescenta a lição sempre seminal de Mauss: Sob a forma de uma hierarquia organizada de poderes que se delimitam reciprocamente, um panteão apresenta-se como um sistema de classificação que preside à ordenação das potências do além e que se aplica, assim, ao mundo da natureza e ao universo humano [...] eu não desejava apenas delimitar a natureza dos laços que associam os deuses em pares ou em tríades ou de outra forma, procurava 97

entender a forma como esses esquemas teológicos, inseridos no próprio tecido da vida coletiva, organizam o pensamento e regulam as práticas institucionais (id., p.43-44, grifo nosso).

Mas o estudo da religião grega por si mesma, diz Vernant, constitui apenas o degrau último de sua pesquisa. (id., p.42). Partindo da obra e do ensino de Meyerson, Vernant projeta inicialmente sua pesquisa no campo da “psicologia histórica”, desenvolvendo-a aos poucos até as dimensões de uma “sociologia da literatura” e uma “antropologia histórica”, com que seu trabalho será finalmente identificado. Mas já a premissa metodológica de Mito e pensamento entre os gregos (1965) introduz uma ligeira mudança de perspectiva em relação a seu mestre: Quer se trate de fatos religiosos – mitos, rituais, representações figuradas –, de filosofia, de ciência, de arte, de instituições sociais, de fatos técnicos ou econômicos, nós os consideramos sempre na qualidade de obras criadas pelos homens, como expressão de uma atividade mental organizada. Por meio dessas obras, buscamos aquilo que o homem grego foi, este homem grego antigo que não se pode separar do quadro social e cultural do qual ele é, ao mesmo tempo, o criador e o produto (id., p.15, grifo nosso).

Diferença que se manifesta na estrutura do livro, dividido em “dossiês dedicados a explorar funções psicológicas” como as grandes categorias da memória, do tempo, do espaço, do trabalho, da pessoa, da imagem, do mito e da razão, a que se acrescenta, no livro seguinte, a vontade (Guimarães, J. apud Lima, 2010, p.11). Embora essa rede englobe, num nível menos genérico, uma multiplicidade de categorias laterais, como as noções de duplo (eídōlon), representação figurada (mímēsis), corpo, morte, formas de racionalidade empírica como a astúcia (mḗ tis), sempre inseridas numa perspectiva mais ampla, trata-se, conforme à celebre proposição de abertura de Mito e pensamento, de fazer uma “história das funções psicológicas” (2008a, p.17): As obras que a Grécia antiga criou são bastante “diferentes” daquelas que formam nosso universo espiritual para nos expatriar de nós mesmos, para nos dar, com o sentimento da distância histórica, a consciência de uma transformação do homem. Ao mesmo tempo, elas não nos são estranhas como outras [...] O homem grego, bastante afastado de nós para que seja possível estudá-lo como um objeto, e como um objeto diverso, ao qual não se aplicam exatamente as nossas categorias psicológicas de hoje, é, entretanto, bastante próximo para que possamos sem muitos obstáculos entrar em comunicação com ele, compreender a linguagem que fala em suas obras, atingir, além dos textos e documentos, os conteúdos mentais, as formas de pensamento e de sensibilidade, os modos de organização do querer e dos atos, em resumo, uma arquitetura do espírito (Vernant, J. P.: 2008a , p.16-17).

Para dizer de modo sumário: cada “função” recebe uma configuração histórica particular nas práticas simbólicas e nos sistemas de valores que as reúnem em uma determinada “categoria psicológica”. Como precisa na introdução a Mḗ tis: as astúcias da inteligência, escrito em parceria com Marcel Detienne, trata-se de investigar uma determinada “categoria mental” e não uma simples “noção”, na medida em que não se pretende uma “história das ideias”. Nessa perspectiva, reveladora de afinidades com Marcel Mauss e Michel Foucault numa linha kantiana, seu objeto consiste em 98

“formas de pensamento e sensibilidade”, categorias do espírito ligadas a determinadas condições de lugar e de tempo que “jamais foram objeto de formulação explícita”, formas de classificação das quais “nem o mundo sensível nem nossa consciência nos oferecem o modelo”, como diria Mauss (2009, p.403), cuja configuração se procura restituir “à maneira dos arqueólogos” (Vernant & Detienne, 2008c: 10-11). De modo abrangente, a atitude epistemológica de Vernant, tensionada pela oposição entre marxismo e estruturalismo, permanece rigorosamente afinada com a de Meyerson, apenas afastando seu cientificismo de base. Para ambos, o núcleo do trabalho consiste em precisar e desenvolver uma história das categorias capaz de arrancar as ciências humanas de seu “sono dogmático”. No ponto de partida encontra-se a mesma recusa em estabelecer uma “tábua de categorias” ou uma lista de funções a priori, a qual “seria tirada de seu próprio espírito, nesse caso, precisamente o que se quer evitar” (Meyerson, 1995, p.248). Para o tema que nos interessa diretamente, a mímēsis e o problema do sujeito não ocupam inicialmente uma posição central na obra de Vernant, mas se inserem numa reflexão mais ampla sobre as formas da imagem, do imaginário e da imaginação, de um lado, e as formas da pessoa, do sujeito e do indivíduo na cultura grega. Por sua vez, inseridos num projeto mais abrangente, consagrado à compreensão das “funções psicológicas” estruturadoras do universo mental dos gregos na passagem do pensamento mítico-religioso para o plano racional e político das cidades. Desse modo, sua reflexão sobre as categorias da imagem e da pessoa participa desse esforço em “aplicar no domínio dos estudos gregos as pesquisas de psicologia histórica”.

Problematização do sujeito

Restringindo nosso foco sobre a investigação da categoria da pessoa na Grécia antiga, já a introdução à primeira edição de Mito e pensamento ressalta que “dois temas retiveram, mais do que outros, a atenção dos helenistas durante o último meio século: a passagem do pensamento mítico à razão e a construção progressiva da pessoa” (id., p.17). Ambas motivadas por um núcleo comum: as inovações, em todos os domínios, introduzidas durante o período arcaico, marcariam “uma mudança de mentalidade tão profunda que se pôde ver nela o registro de nascimento do homem ocidental” (id., p.17). Concepção tornada clássica desde Brunet e repaginada por Snell, de fato, reconhece Vernant, como negar o acontecimento espantoso da transformação da imagem do homem que acompanha o advento da pólis clássica? Do homem homérico, sem unidade real, sem profundidade psicológica, acometido por impulsos súbitos, por inspirações sentidas como divinas, de qualquer modo estranho a si mesmo e a seus atos, 99

até o homem grego da idade clássica, as transformações da pessoa são notáveis. Descoberta da dimensão interior do sujeito, distanciamento com relação ao corpo, unificação das forças psicológicas, surgimento do indivíduo ou, pelo menos, de certos valores ligados ao indivíduo como tal, progresso do sentido da responsabilidade, engajamento mais preciso do agente em seus atos (id., p.19).

Todos esses desenvolvimentos da pessoa foram objeto de inúmeras investigações e discussões especializadas e um balanço recente do conjunto, traçado por Zevedei Barbu, merece destaque. Aceitando muitas de suas análises, Vernant limita-se a exprimir duas ordens de restrições em relação às conclusões do psicólogo. O autor não seria isento de anacronismo ao projetar sobre a pessoa grega alguns traços que aparecerão somente em época mais recente. E ainda que dirigido sob um ponto de vista histórico, seu estudo não estaria livre de uma preocupação normativa: Para Z. Barbu, os gregos descobriram a verdadeira pessoa: ao edificar o ser interior sobre o equilíbrio entre dois processos psíquicos opostos, por um lado, a “individuação” que realiza a integração das forças internas do indivíduo em torno de um centro único, por outro a “racionalização” que integra os indivíduos em uma ordem superior (social, cósmica, religiosa), os gregos teriam elaborado a forma perfeita da pessoa, o seu modelo (id., p.20).

O exemplo é instrutivo. As objeções que parecem suscitar os trabalhos da maioria dos helenistas decorrem precisamente do fato de desconsideração da complexidade da categoria da pessoa e sua relatividade histórica. Tomando-a como uma forma acabada, helenistas e psicólogos “têm às vezes tendência a orientar a investigação como se se tratasse de saber se os gregos conheceram a pessoa, ou não a conheceram, ou a partir de que momento fizeram a sua descoberta” (Vernant, 2008a, p.20). Para o psicólogo historiador, o problema não se colocaria nestes termos: “não pode haver uma pessoa-modelo, exterior ao curso da história humana” (id.). Portanto, a investigação não deve procurar estabelecer “se a pessoa existe na Grécia, mas buscar o que é a pessoa grega antiga, no que ela difere, na multiplicidade dos seus traços, da pessoa de hoje” (id., p.20-21). Conforme o minucioso recorte de Vernant, numa pesquisa “ideal”, que tivesse determinado previamente o conjunto dos fatos de civilização que se referem a um ou outro aspecto da pessoa, “os tipos de obras e de atividades pelos quais o homem grego construiu os quadros da sua experiência interior” (id., p.21), se poderiam abordar os fatos de língua e de transformação de vocabulário; história social e história do direito, da família e das instituições políticas; história do pensamento (noções como alma, corpo, individuação); história das ideias morais (vergonha, culpa, responsabilidade, mérito); história da arte, “em particular os problemas que coloca o aparecimento de novos gêneros literários: poesia lírica, teatro trágico, biografia, autobiografia, romance, uma vez que esses três últimos termos podem ser empregados sem anacronismo no mundo grego”; história da pintura e da escultura, com o advento do retrato; e, finalmente, história da religião. (id., p.21). É indubitável o ganho de precisão que a mera apresentação do problema recebe com Vernant, em relação a Snell e Dodds. Mas uma afirmação não deixa de causar estranheza: que os termos 100

“biografia”, “autobiografia” e “romance” possam ser empregados “sem anacronismo” no mundo grego, ao lado da lírica e da tragédia, enquanto documentos do eu. Diversas passagens revelam a afinidade de Vernant com o ponto de vista de Snell a respeito do “surgimento do indivíduo” ou, como prefere dizer, de “valores ligados ao indivíduo”. Vernant atribui ao helenista alemão o mérito de haver examinado “através da poesia lírica grega antiga, a descoberta da alma humana, no que constitui as suas dimensões propriamente espirituais: interioridade, intensidade, subjetividade” (cf. id., p.452). Expandindo essa afirmação, outra passagem faz referência implícita ao esquema interpretativo de A descoberta do espírito: Essa conquista do sujeito por si mesmo, essa elaboração progressiva do mundo da experiência interna em face do universo exterior desenvolvem-se por vias diversas em que a poesia lírica, a reflexão moral, a tragédia, a medicina, a filosofia representarão um papel importante (id., p.436).

No mesmo sentido apontam as reflexões de Detienne: “os valores religiosos impediram a construção da noção de corpo e a delimitação da ‘pessoa’, que se prolongava de certa maneira na ‘natureza’, a phýsis antiga: sem contornos, a ‘pessoa’ não podia fixar-se nem separar-se do mundo mítico” (Detienne, 1973, p.47). Citando explicitamente a tese de Snell sobre a falta de unidade do homem homérico: “Em suma, parece que o homem arcaico não teve uma ‘experiência do espelho’, essa etapa da ‘descoberta de si’ que permite à criança, em nossa civilização, descobrir seu corpo e estruturar sua pessoa” (id.). Como Vernant, Detienne também julga que “raramente o homem se construiu e se transformou tanto quanto durante o chamado período grego arcaico” (id., p.45). No entanto, se o filósofo belga se mostra mais prudente acerca da extensão dos termos autobiografia e romance até a os gregos, gêneros que seguramente não conheceram, “ao menos enquanto entretêm relações estreitas com a pessoa” (id., p.47), não assinala menos sua concordância com a tese de Snell sobre a mélica: O que nós chamamos de mundo interior, é preciso sublinhar, não é senão uma aquisição tardia que aparece por aportes sucessivos. Sem dúvida, se pode falar de um surgimento do mundo interior do indivíduo na poesia lírica, pois aparecem valores novos, como os sentimentos e as volições: enquanto as emoções são ainda, na epopeia, fenômenos pensados e vividos religiosamente, na poesia lírica eles são experimentados pelos poetas que se nomeiam em seus poemas e se põem a si mesmos na sua poesia. O pensamento grego arcaico, entretanto, só descobre lentamente o mundo interior (id., p.50, grifo nosso).

Cabe, pois, indagar: o que Vernant e Detienne entendem por “elaboração progressiva da experiência interna” e como a tese da “descoberta da subjetividade” se coaduna com a afirmação, ainda mais enfática nos autores franceses, da ausência de uma categoria da “pessoa” no mundo grego? Que significa dizer que no período arcaico o homem se transformou e se constituiu, sem que sua “pessoa” tivesse adquirido contornos?

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Vernant reconhece abertamente seu débito com Hermann Fränkel e Bruno Snell, declarando que foi a partir dos autores alemães que ele se convenceu de “que a Grécia foi o teatro de uma profunda mutação, intelectual ou espiritual, que indicou o curso da história do homem no Ocidente” (apud Corrêa, 2009, p.53) e atribui aos mestres alemães, inclusive, uma precedência em seu próprio domínio: Procurei revelar em todos os meus trabalhos a psicologia histórica do mundo antigo. Não se trata exatamente de uma inovação: Fränkel e Snell começaram antes de mim. Mas separo-me deles; em meu estudo, trago questões de sociologia – procuro ligar tal ou qual fenômeno às condições sociais [...] – e questões de psicologia – interrogo-me sobre o estatuto da memória, das imagens, do desejo, do indivíduo (Vernant, 2001, p.69).

Medindo essa distância, Vernant assinala três divergências entre sua perspectiva, a antropologia histórica, e a escola alemã: (1) suas questões seriam “mais diferenciadas, menos globais”; (2) seu método, menos especulativo e mais concreto, derivado da antropologia, da sociologia e da psicologia, e não apenas filosófico, filológico e iconográfico, considera fatores institucionais e econômicos além das fontes primárias (textos poéticos, filosóficos e científicos), da iconografia e da religião; (3) sua abordagem seria, por princípio, comparativa e não normativa (Corrêa, 2009, p,53-54). Paula Corrêa tem razão, portanto, em sublinhar que o quadro do homem homérico traçado por Snell “repercute em muitos pontos no Vernant” (id., p.33). Mas contrabalançando sua afirmação, que favorece antes a tese de A. Lesky sobre a “dupla motivação” do homem grego, bem assinala Trajano Vieira que a obra de Vernant jamais dialogou “com certa tradição alemã que atribui valor metafísico a categorias do pensamento grego ou as examina de uma perspectiva transistórica” (apud Vernant, 2008b, p.XV). Mas uma diferença mais profunda interfere na distância entre a perspectiva de Vernant e a dos helenistas alemães: A antropologia histórica praticada por Vernant e que tivera em Louis Gernet seu emérito ascendente não fecundara no outro lado do Reno. Com efeito, a Altertumwissenschaft (ciência da Antiguidade) [...] nunca contou com a presença significativa da antropologia. É provável que assim não tenha se dado – antes mesmo do horror causado pelo racismo oficializado do nazismo – porque, havendo sido tardia a unificação promovida por Bismarck, o Estado alemão chegou tarde na divisão dos grandes impérios coloniais, dificultando que seus antropólogos tivessem o acesso facultado a franceses e, sobretudo, ingleses. Dessa maneira, a Altertumwissenschaft no máximo assumiria uma tonalidade histórico-antropológica. Terão sido, portanto, razões políticas que inibiram a Alemanha de exibir obras semelhantes à de Vernant. Assim, a curiosidade despertada pelas sociedades que a expansão do capitalismo trazia ao calor da história só poderá ser satisfeita como desdobramento da reflexão filosófica. É nesta, na antropologia filosófica, que a cultura alemã terá um destaque ímpar – basta que se lembrem os nomes de Bernard Groethuysen (1880-1946) e de Arnold Gehelen (1904-1976), aos quais se incorporaria o de Hans Blumenberg (1920-1996) (Costa Lima, L.: 2010, p.12-13, grifo nosso).

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Fundamentalmente, Vernant retoma a tese de Snell e a corrige. Mas, ao fazê-lo, podemos acrescentar, ele mina seu pressuposto meta-histórico. Vernant criticou igualmente Snell e Lesky por terem atribuído ao herói trágico uma decisão “pessoal e livre”. Já seu mestre, Meyerson, “alegava que não existia na Grécia, nem mesmo nos períodos mais tardios, uma ‘psykhḗ -pessoa’, em função do vínculo da psykhḗ com o daímon (um princípio divino e exterior ao indivíduo)” (Corrêa, 2009, p.46). Do ponto de vista do problema que nos ocupa, resta perguntar como a recusa da validade da noção de “pessoa” no período arcaico e da noção de “vontade” no período clássico, defendidas por Vernant, afetam os gêneros por excelência de expressão do “eu”, lírica, autobiografia e romance? Se com Snell-Fränkel e E. R. Dodds, a lírica havia permanecido como intermediária entre duas configurações de sujeito, em Vernant, a recusa de uma espontaneidade do agir se estende até o período clássico, incluindo a própria tragédia. Ao passo que os defensores da Snell-Fränkel school subtraindo ao homem homérico a dimensão da interioridade, da vontade e da consciência de si, postulam uma descoberta do sujeito autocentrado na época clássica. Vernant, em um sentido convergente com Mauss e a escola alemã na descendência de Wilamowitz, recusa a presença da categoria de “pessoa” na Grécia antiga. O que também vai de encontro à tese de Hegel na Filosofia da história. Mas ao aproximar o “sujeito trágico” do quadro geral do “homem homérico” traçado por Snell, o autor de Mito e tragédia se distancia do pressuposto evolucionista do modelo hegeliano. Se Vernant e Detienne admitem que “a lenta descoberta do ‘mundo interior’ no pensamento arcaico teve uma primeira expressão na lírica” (Corrêa, 2009, p.40), essa posição já supõe a necessidade de buscar “o que é a pessoa grega antiga, no que ela difere, na multiplicidade dos seus traços, da pessoa de hoje” (Vernant, 2008a, p.20-21). No que toca diretamente ao nosso tema, trata-se de saber: que configuração de sujeito corresponde à instância do discurso egṓ na poesia mélica arcaica? Para essa interpretação, vejamos primeiramente como o autor analisa o estatuto da “pessoa” na Grécia antiga em dois textos complementares: “Aspectos da pessoa na religião” (1960) e “Esboços da vontade na tragédia grega” (1972), para virmos, em seguida, a partir da base analítica estabelecida, à reconsideração do problema do sujeito no mundo antigo, refeita em L’individu, la mort, l’amour (1989), a partir da influência das reflexões do último Foucault sobre a experiência de si mesmo na Grécia antiga.

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3.2. Pessoa e vontade entre os gregos Apresentado originalmente no colóquio Problèmes de la personne, em 1960,13 posteriormente retomado em Myhte et pensée chez les Grecs, “Aspectos da pessoa na religião grega” integra sozinho o capítulo 6 do livro, sobre a função psicológica do eu. Curiosamente, aquela que se poderia supor a categoria central de uma “psicologia histórica”, constitui aqui o “dossiê” mais sumário. O que impõe uma dupla constatação. Tratando de alguns “aspectos”, o ensaio não pretende uma abordagem sistemática do tema. Implicitamente o título remete à análise de Mauss sobre o vocabulário de prósōpon e persona, que só tardiamente atinge o significado de “pessoa”, por um lado, e ao que Snell, retraçando a evolução semântica de psykhḗ , havia escrito sobre a falta de unidade do homem homérico e a “descoberta da individualidade” na lírica, por outro. Por isso mesmo, a indagação de Vernant sobre o estatuto da “pessoa” na Grécia antiga supõe, de saída, um problema diverso do que se punha tanto para o helenista quanto para o antropólogo. Como conciliar essas duas vias de análise? Sem dúvida há inúmeros pontos de contato e desencontro entre ambas. O mais notório seria a lacuna do ensaio de Mauss, que deixa completamente de fora o período da Grécia arcaica e clássica, bem como a manutenção de uma concepção meta-histórica de sujeito por Snell. Em comum, para dizer abruptamente, ambos incorrem em práticas diversas de retrodição: tendo como ponto de chegada o homem grego clássico, em Snell, a pessoa cristã, em Mauss. Assim, perguntando pelos aspectos ligados à nossa noção pessoa, prevenido contra o postulado de um sujeito substancial e de uma identificação a priori com o horizonte da “pessoa arcaica”, Vernant vai procurar no intervalo entre os séculos VII e IV a.C, os rastros de uma categoria ao mesmo tempo ainda não unificada de pessoa e de uma concepção já altamente elaborada dos valores gregos ligados à individualidade. De certo modo, pode-se resumir seu escopo como uma tentativa de preencher a lacuna deixada por Mauss, na linha de prolongamento de Meyerson. Segundo dado preliminar: a própria extensão diminuta do texto, se comparado aos demais capítulos que compõem Mythe et pensée, indica que tampouco se estabelece uma relação hierárquica entre as diversas categorias, das quais nenhuma possui a primazia. Desprovida de centro, a pesquisa suspende o privilégio do eu sobre o quadro das “suas” funções psicológicas, situando-as num plano, ao mesmo tempo, interior e exterior ao sujeito individual.

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As comunicações apresentadas no colóquio foram compiladas sob a direção de Meyerson na publicação homônima: Problèmes de la personne. Exposés et discussions, actes du colloque du Centre de recherches de psychologie comparative (Paris, 29 septembre-3 octobre 1960), Paris / La Haye, Mouton & Co, coll. “Congrès et colloques. École pratique des hautes études. Sixième section. Sciences économiques et sociales”, 1973. 104

I

A pessoa na religião arcaica

Fornecendo um primeiro enquadramento sobre o estatuto do sujeito na Grécia arcaica, Vernant estabelece em “Aspectos da pessoa na religião grega” o ponto de partida do que se tornará uma de suas obsessões mais recorrentes. Neste ensaio, o autor se restringe aos fatos de religião concernentes à categoria da pessoa, partindo do seguinte problema: “até que ponto crenças e práticas religiosas, pelas suas implicações psicológicas, comprometem o status interior do sujeito e participam da elaboração de um eu” (id., p.22)? De saída, destaca que “um dos traços característicos da religião grega é dar às forças do além uma figura individual bem delineada e um aspecto plenamente humano” (Vernant, 2008a, p.419), como atesta sua figuração antropomórfica. Sendo frequente denominaremse as divindades do panteão grego “deuses pessoais”, a expressão corrente entre helenistas pressupõe, entretanto, que os gregos teriam conhecido a categoria da “pessoa” no sentido que a entendemos hoje e teriam organizado em torno dela, senão toda, ao menos parte de sua experiência religiosa. Ora, até que ponto se podem chamar às divindades gregas de “pessoas” e aos elos que as unem aos fiéis no culto de relações “pessoais”, sem incorrer em grave anacronismo? Será correto dizer que a sociedade divina é constituída de “sujeitos singulares e únicos, inteiramente definidos pela sua vida espiritual, de indivíduos com dimensão de existência puramente interior, manifestando-se como centros e fontes de atos, agentes responsáveis?” (id., p.419). Eis a cadeia de pressupostos que Vernant propõe analisar na primeira parte do ensaio. Trata-se de verificar “em que medida a individualização e a humanização das forças sobrenaturais concernem à categoria da pessoa, quais aspectos do ‘eu’, do homem interior, a religião grega contribuiu para definir e formar, e quais, pelo contrário, ela ignorou” (id., p.419). Já pela enunciação do problema, ressalta a vantagem sobre o modo como a questão era tradicionalmente colocada. Vernant põe sua pergunta sob o prisma da categoria moderna do sujeito, sublinhando sua distância histórica. Mas a interrogação não deixa de acarretar um prejuízo evidente: o autor ainda não se interroga qual teria sido a concepção de “pessoa” e qual o estatuto do “sujeito” entre os gregos, e sim quais aspectos do “eu”, no sentido que o entendemos hoje, a religião grega contribuiu para e formar e quais ela ignorou. Vejamos as consequências dessa formulação. No nível do culto público e da religião da cidade, a resposta parece evidente: “nesse plano, a vida religiosa aparece integrada à vida social e política, da qual constitui um aspecto”. Como Vernant sublinhará em diversos textos, “o religioso não constitui na Grécia, uma esfera à parte, separada da vida social. Todos os atos, todos os momentos da existência pessoal e coletiva possuem uma dimensão religiosa” (2001, p.42). Nesse quadro “fortemente marcado de integração social no culto cívico, cuja 105

função é sacralizar a ordem, tanto humana quanto natural, e permitir aos indivíduos se ajustar” (2008a, p.420), literalmente, a impiedade (asébeia), falta em relação aos deuses, é, ao mesmo tempo, “atentado ao grupo social” e “delito contra a cidade” (id., p.420). Nesse contexto, o indivíduo estabelece a sua relação com o divino pela sua participação em uma comunidade. O agente religioso opera como representante de um grupo [...] O elo entre o fiel e o deus comporta sempre uma mediação social. Não estabelece comércio direto entre dois sujeitos pessoais, ele exprime a relação que une um deus a um grupo humano, tal casa, tal cidade, tal tipo de atividade, tal ponto do território. Expulso dos altares domésticos, excluído dos templos da cidade, não aceito em sua pátria, o indivíduo acha-se desligado do mundo divino. Perde ao mesmo tempo o seu ser social e a sua essência religiosa; não é mais nada. Para reencontrar seus status de homem, deverá apresentar-se como suplicante em outros altares, sentar-se diante da lareira de outras casas e, integrando-se a novos grupos, restabelecer os elos que o enraízam na realidade divina, pela participação em seus cultos (Vernant, 2008a, p.420).

Excluído dos quadros comunitariamente estabelecidos da religião, da pátria, da família, o indivíduo perde seu status de homem, ele “não existe”. Noutras palavras, nesse plano, como já constatava com acerto B. Snell, o “eu” não constitui uma categoria reguladora da organização mental da sociedade grega arcaica. Nesse tipo de religião, o indivíduo não ocupa, como tal, um lugar central. Não participa do culto por razões puramente pessoais, como criatura singular voltada para a salvação de sua alma. Exerce nele o papel que seu estatuto social lhe atribui: magistrado, cidadão, membro de uma fratria, de uma tribo ou de um demo, pai de família, matrona, jovem – rapaz ou moça – nos diversos aspectos de sua entrada na vida adulta. Religião que consagra uma ordem coletiva e que [...] deixa fora de seu campo as preocupações relativas a cada indivíduo, à eventual imortalidade deste, ao seu destino além da morte (Vernant, 2006, p.8-9).

Mas ao lado deste quadro oficial e opondo-se a ele, diz Vernant, se afirma uma tendência religiosa de aspecto inverso e, de certo modo, complementar, que se exprime em linhas gerais no dionisismo: “É significativo que o dionisismo se dirija de preferência aos que não podem esquadrarse inteiramente na organização institucional da pólis”, notadamente às mulheres e aos escravos, em primeiro lugar (Vernant, 2008a, p.420). A corrente religiosa do dionisismo ofereceu, pois, em época antiga, um quadro de agrupamento aos que se achavam à margem da ordem social reconhecida [...] Com efeito, o que o dionisismo oferece aos fiéis – mesmo controlado pelo Estado como ele o será em época clássica – é uma experiência religiosa oposta ao culto oficial: não mais a sacralização de uma ordem à qual é preciso integrar-se mas a liberação dessa ordem (id., p.421).

Se a experiência religiosa do culto oficial subsume o indivíduo nas grandes categorias que regem a vida da coletividade ao invés de centrá-lo nele mesmo, a experiência contraposta do dionisismo pressupõe um esforço para abolir os limites e derrubar as “barreiras pelas quais se define um mundo organizado: entre o homem e o deus, o natural e o sobrenatural; entre o humano, o animal,

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o vegetal, barreiras sociais, fronteiras do eu” (id., p.421-22, grifo nosso). Nada mais propício, parece, a uma relação “pessoal” com o daímon: O culto cívico se ligava a um ideal de sōphrosýnē, feita de controle, de domínio de si mesmo, situando-se cada ser em seu lugar nos limites que lhe são consignados. Ao contrário, o dionisismo aparece como uma cultura do delírio e da loucura: loucura que é tomada como encargo, possessão pelo deus [...] Pela experiência do êxtase e do entusiasmo, essa ordem se revela como uma simples ilusão, sem valor religioso; o que, a partir de então, o fiel procura atingir por um contato íntimo com o divino, é um estado diverso [...] a liberação com respeito ao sagrado (id., p.422, grifo nosso).

Mas, essa fusão com o deus, será propriamente uma “comunhão pessoal”? O êxtase dionisíaco não se obtém na experiência solitária do eu, “pela meditação, pela oração, pelo diálogo com um deus interior”, senão que se dá no quadro de uma relação social bem definida, “em grupo, no thíasos e através dele, graças às técnicas de frenesi coletivo que põem em jogo danças, saltos, cantos e gritos, corridas errantes mergulhando o homem em plena natureza selvagem”. Aliás, sublinha Vernant, “possessão não é comunhão” (id., p.422). Por um lado, os cultos dionisíacos fazem parte integrante da religião cívica (2006, p.70): distribuídas no calendário sagrado ao lado das festas dos outros deuses, as homenagens a Dioniso são celebradas da mesma maneira, sujeitando-se às mesmas normas de celebração. “Todas são cerimônias oficiais de caráter plenamente cívico” (id., p.75). Por outro lado, como deus da manía, da loucura divina, por seu modo de se apossar dos fiéis no transe coletivo, ritualmente praticado em seus thíasos, “Dioniso introduz, no seio da religião da qual constitui uma peça, uma experiência do sobrenatural estranha e até, sob vários aspectos, oposta ao espírito do culto oficial” (2006, p.70-71). Como notara Louis Gernet, mesmo no mundo dos deuses olímpicos ao qual foi admitido Dioniso encarna a figura do outro: “seu papel não é confirmar e reforçar, sacralizando-a, a ordem humana e social”, mas questioná-la a partir de dentro (id., p.77). Na formulação precisa de Vernant: Celebrar solenemente, para toda a comunidade, as festas de Dioniso; organizar, para as mulheres, no âmbito de thíasos oficializados e promovidos a instituição pública, uma forma de transe controlado, dominado, ritualizado; desenvolver para os homens, no júbilo do kômos, pelo vinho e pela embriaguez, o jogo e a festa, a mascarada e o disfarce, a experiência de um desterro em relação ao curso normal das coisas; enfim, fundar o teatro, em que, no palco, a ilusão ganha corpo e se anima, e o fictício se mostra como se fosse realidade: em todos os casos, trata-se, pela integração de Dioniso à cidade e à religião desta, de instalar o Outro, com todas as honras, no centro do dispositivo social (Vernant, 2006, p.79-80).

Em todo caso, Dioniso não vem anunciar uma sorte melhor no além: “não preconiza a fuga para fora do mundo, não prega a renúncia, nem pretende proporcionar à almas, por um tipo de vida ascético, o acesso à imortalidade”. Ao contrário, é nesta terra e no âmbito da cidade que ele atua para fazer surgirem “em torno de nós e em nós, as múltiplas figuras do Outro” (Vernant, 2006, p.80). Portanto, é antes à conclusão inversa que conduz sua indagação: 107

Até na corrente que se afirma como a mais oposta à religião da cidade e ao seu espírito, nós encontramos definitivamente esse mesmo esforço para inserir o indivíduo humano em uma ordem que o ultrapassa. Quando o sujeito não se inscreve diretamente na ordem social sacralizada, quando ele se evade, não é para afirmar-se como valor singular, é para voltar à ordem por um outro caminho, identificando-se, tanto quanto possível, com o divino (id., p.437).

Excluídos os dois extremos do culto oficial e sua contestação, não menos oficializada, pelo dionisismo, resta perguntar se poderia haver em outra manifestação religiosa da vida grega um tipo de culto “privado” ou de menor projeção pública, capaz de fornecer uma terceira via. Nesse sentido os cultos de mistérios pareceriam oferecer melhores resultados, diz Vernant, pois é nele que a vida religiosa encontra condições mais favoráveis para individualizar-se, constituindo “uma comunidade, não mais social, mas espiritual, da qual participa cada um com a sua plena vontade, pela virtude de sua livre adesão e independentemente do seu status cívico” (id., p.423). Embora pertençam igualmente ao calendário religioso oficial, os mistérios introduzem uma margem de individualização sem equivalente no culto cívico: Oficialmente reconhecidos pela cidade, são organizados sob o controle e a tutela desta. Contudo, ficam à margem do Estado, por seu caráter iniciático e secreto, assim como por seu modo de recrutamento aberto a todos os gregos e baseado não no estatuto social mas na opção pessoal dos indivíduos (Vernant, 2006, p.70).

Segundo o testemunho de Aristóteles, os mistérios de Elêusis não conteriam nenhum ensinamento, nenhuma doutrina: “os que são iniciados não devem aprender algo, mas experimentar emoções e ser levados a certas disposições” (apud id., p.73). Como esclarece Vernant: “Essa subversão interior, de ordem afetiva, era obtida por drômena, coisas encenadas e imitadas, por legômena, fórmulas rituais pronunciadas, e por deiknýmena, coisas mostradas e exibidas”. Terminada a iniciação, o fiel tinha o sentimento de ter sido transformado (por dentro?). “Doravante sentia-se ligado às deusas por uma relação pessoal mais estreita, em íntima convivência e familiaridade com elas, tornara-se um eleito, assegurado de ter, nesta vida e na outra, uma sorte diferente da comum” (Vernant, 2006, p.73). Não é de se admirar, pois, de ver-se a comunhão com o deus representar um papel central na economia dos cultos de mistério. Mas o simbolismo que exprime essa comunhão se refere não a uma troca de amor entre dois sujeitos, a uma intimidade espiritual, mas à relação de caráter social ou familiar, fazendo do iniciado o filho ou a criança adotiva ou ainda o esposo da divindade (id., p.423).

Onde esperaríamos encontrar a expressão simbólica de uma comunhão pessoal, os mistérios traduzem a experiência da “comunhão com o deus” através de categorias que, designando “relações de parentesco”, em hipótese alguma visam traduzir, num vocabulário tradicional, um novo elo que seria de ordem “interior” (id., p.423). Para Vernant, ao contrário, os cultos iniciáticos colocavam à disposição do público, operando uma espécie de “divulgação ou democratização do que foi, na 108

origem, vantagem exclusiva de uma aristocracia religiosa” (id., p.424), um conjunto de categorias plenamente codificadas que originalmente serviam para justificar prerrogativas sagradas de certas famílias, fundamentando poderes e privilégios religiosos, “particularmente, a imortalidade bemaventurada, que elas detêm, graças a uma familiaridade especial, de elos particulares com a divindade” (id., p.423). Generalização, portanto, do “favor” divino. De fato, as iniciações não parecem ter comportado exercícios espirituais, técnicas de ascese aptas a transformar o homem por dentro. Elas atuavam pela virtude quase automática das fórmulas, dos ritos, dos espetáculos. Certamente o iniciado devia sentir-se pessoalmente comprometido no drama divino do qual algumas partes eram mimadas diante dele [...] Mas não percebemos nenhum ensinamento, nenhuma doutrina, capazes de dar a essa participação afetiva de um breve momento de coesão, consistência e duração suficientes para orientá-lo a uma religião da alma. De resto, os mistérios, assim como o dionisismo, não manifestam um interesse especial pela alma; não se preocupam em definir nem a sua natureza, nem os seus poderes. É em outros ambientes que se elaborará, em ligação com certas técnicas espirituais, uma doutrina da alma (id., p.424, grifo meu).

Louis Gernet já havia chamado a atenção para esse aspecto: “É notável que mesmo o dionisismo como tal e mesmo os mistérios de Elêusis nada tenham a ver com ela [a alma]” (apud, id., p.424). Embora os iniciados nos mistérios compartilhem a promessa de uma sorte melhor no Hades, seu culto não evoca nenhuma reflexão sobre a natureza da alma ou a aplicação de técnicas espirituais para sua purificação. Como bem observou Gernet, “o pensamento dos mistérios permanece suficientemente confinado para que nele se perpetue, sem grande mudança, a concepção homérica de uma psykhḗ , fantasma do vivo, sombra inconsistente relegada sobre a terra” (Vernant, 2006, p.8-9). Sem apresentar uma nova concepção da alma, sem romper com a imagem tradicional do Hades, ainda assim os mistérios abriam a perspectiva de continuar sob a terra uma existência mais feliz. E esse privilégio repousava sobre a livre opção de indivíduos que decidiam submeter-se à iniciação e seguir um percurso ritual em que cada etapa assinalava um novo progresso em direção a um estado de pureza religiosa. Mas, de volta à sua casa, às suas atividades familiares, profissionais, cívicas, o iniciado em nada se distinguia daquilo que era antes e tampouco dos que não haviam conhecido a iniciação. Nenhum sinal exterior, nenhuma marca de reconhecimento, nem sequer a mínima modificação do tipo de vida. O iniciado retorna à cidade e ali se reinstala para fazer o que sempre fez, sem que nada tenha mudado nele, exceto sua convicção de ter adquirido, através dessa experiência religiosa, a vantagem de incluir-se, depois da morte, no número dos eleitos. [...] Mas, para a cidade que os patrocina, para os cidadãos, iniciados ou não, nada nos mistérios se opõe àquilo que a religião oficial lhes exige como uma parte dela mesma (Vernant, 2006, p.73-74, grifo meu).

Consequentemente, o primeiro círculo da análise encerra com um balanço negativo. Em toda a parte, “as relações entre o homem e o deus parecem-nos inscrever-se em um quadro que excluía previamente certas dimensões essenciais da pessoa” (id., p.427). Enquanto no cristianismo “um deus transcendente [...] pode encontrar no foro íntimo de cada devoto, em sua alma [...] o lugar privilegiado de um contato e de uma comunhão”, ao contrário, nada disso é concebível para um grego. O fiel não estabelece com a divindade uma relação de pessoa para pessoa. Como adverte Vernant: “os deuses

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gregos não são pessoas, mas Potências”, constituem uma raça que encarna “a plenitude de valores que importa nesta terra” (2006, p.9) Portanto, mesmo nos séculos VI a.C. e V a.C., quando o culto cívico dominava toda a vida religiosa das cidades, “não deixavam de existir ao lado dele, em suas franjas, correntes mais ou menos marginais de orientação diferente”. A própria religião cívica, para garantir seu domínio, precisaria reservar um lugar para os cultos de mistérios, que lhes eram parcialmente estranhos, e integrar a si uma experiência religiosa como o dionisismo, cujo espírito seria, sob tantos pontos de vista, contrário ao seu (Vernant, 2006, p.11-12). Mas trata-se se alargar o domínio oficializado do religioso e não de favorecer sua desintegração: Quer a pessoa contorne o sacrifício pelo alto [nos mistérios], alimentando-se, como os deuses, de iguarias inteiramente puras e no limite de odores, quer o subverta por baixo [no dionisismo], eliminando, pela diluição das fronteiras entre homens e animais, todas as distinções que o sacrifício estabelece [...] trata-se, nos dois casos, de instaurar, seja pela ascese individual, seja pelo frenesi coletivo, um tipo de relação com o divino que a religião oficial, através dos procedimentos do sacrifício, exclui e proíbe (Vernant, 2006, p.68).

Deuses, mortos e heróis

Abrindo um segundo círculo, Vernant passa a interrogar-se sobre a tese amplamente difundida por autores como B. Snell, R. B. Onians, H. Fränkel, Cl. Ramnoux e Louis Gras. Conforme a opinião bem aceita entre os especialistas, o panteão grego se constituiu “em um período do pensamento que ignorava a oposição entre sujeito humano e força natural, que não tinha ainda elaborado a noção de uma forma de existência puramente espiritual, de uma dimensão interior do homem” (Vernant, 2008a, p.427). Em compensação, se desconhecia a “realidade psíquica”, o pensamento religioso arcaico teria elaborado, na figuração da sociedade divina, um sistema de representação que atribuiria às suas divindades um aspecto “pessoal”. Donde a pergunta imediata que se impõe: se a fonte das ações do sujeito não se encontra nele, na medida em que se tributa à intervenção dos deuses, isso significa que a categoria da “pessoa” constituía um privilégio do divino? Estabelecendo uma antecipação da unidade do sujeito na “pessoa” divina, não teria a religião grega contribuído para a formação da categoria do “eu”? Sabemos ter sido este o pressuposto comum às interpretações de Snell, Fränkel e Dodds: que “ao evoluírem, os gregos completam seu autoconhecimento e, por assim dizer, absorvem em seu espírito humano essa ação divina” (Snell, p.22). Algo semelhante ao que, segundo Mauss, ocorreria, entre os séculos III d.C. e VI d.C., com as categorias de prósōpon e persona a partir das querelas trinitárias dos padres da igreja.

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Numa palavra, se o indivíduo humano não encontra lugar na religião grega, não seria no culto e na figuração dos deuses que deveríamos buscar a noção de uma individualidade, como sugerem sua representação antropomórfica e sua inserção numa sociedade do além? Vernant recusa peremptoriamente a hipótese: Os deuses helênicos são forças e não pessoas. O pensamento religioso corresponde aos problemas de organização e de classificação das Forças [...] não se interroga sobre seu aspecto pessoal ou não pessoal. Por certo, o mundo divino não é composto de forças vagas e anônimas; dá lugar a figuras bem delineadas, em que cada uma tem o seu nome, o seu estado civil, os seus atributos, as suas aventuras características. Mas isto não basta para constituí-lo em um conjunto de sujeitos singulares, de centros autônomos de existência e de ação, de unidades ontológicas, no sentido que damos à palavra “pessoa”. Uma força divina não tem realmente “existência para si”. Não tem ser senão pela rede de relações que a une ao sistema divino em seu conjunto. E, nessa rede, ela não aparece necessariamente como um sujeito singular, mas também como um plural (id., p.427-28).

Portanto, nem mesmo aos deuses se poderia atribuir um status de “pessoa”, que os constituísse em projeção da interioridade humana como pretendiam Dodds e Snell. Conforme a lição herdada de Dumézil, “um deus grego define-se pelo conjunto de relações que os unem e opõem às outras divindades no panteão” e as próprias “estruturas teológicas assim evidenciadas são demasiado múltiplas [...] para poderem integrar-se no mesmo esquema dominante” (id., p.29-30). Como resume Vernant: os problemas do deus, agente responsável, e da sua liberdade interior não são nunca levados em consideração. A ação de uma divindade não conhece outros limites a não ser os que lhe são impostos do exterior pelas outras Forças cujos privilégios e esferas ela deve respeitar. A liberdade de um deus tem como medida a própria extensão do seu poder, o seu “domínio” sobre outrem. Walter F. Otto anota justamente que, entre os deuses gregos, nenhum traço chama a atenção sobre um “si mesmo”, nenhuma fala de um eu com a sua vontade, os seus sentimentos, um seu destino, particulares (Vernant, p.427).

Bem antes dele já notava E. Rohde que “os gregos não conheceram uma unidade da pessoa divina”, e completava L. Schmitt: um grego seria capaz de conceber sem dificuldade uma “unidade de ação sem unidade de pessoa” (id., p.429). Donde, conclui Vernant: “A figuração do deus em uma forma plenamente humana não modifica este dado fundamental. Ela constitui um fato de simbolismo religioso que deve ser situado e interpretado exatamente”: o ídolo não é um retrato do deus [...] A relação da divindade com o seu símbolo cultual – seja ele antropomorfo, zoomorfo ou anicônico – nada tem a ver com a relação do corpo com o eu. [...] É que nessa perspectiva, o corpo não aparece ligado a um eu, encarnação de uma pessoa; ele está imbuído de valores religiosos, exprime certas forças [...] Assim, os problemas que coloca a figuração antropomorfa do deus, na Grécia, permanecem no essencial exteriores ao domínio da pessoa (id., p.430).

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Mas não é apenas aos deuses que se dirige a devoção dos gregos. Entre as forças sobrenaturais a que se destina o culto religioso encontram-se duas outras entidades igualmente representadas sob a forma “pessoal” – os mortos e os heróis, nos respectivos cultos prestados em sua homenagem. Quanto ao culto funerário e em que medida concerne à “pessoa” dos defuntos, pergunta Vernant: teria ele “a função de assegurar a permanência, além da morte, de uma individualidade humana em sua singularidade?”. Sua resposta é taxativa: De modo algum. O seu papel é outro: por ele mantém-se a continuidade do grupo familiar e da cidade. No além, o morto perde as suas feições, os seus traços distintivos; funde-se em uma massa indiferenciada que não reflete o que cada um foi durante a sua vida, mas um modo geral de ser [...] Na fraca medida em que o culto funerário apoia-se em uma crença na imortalidade, trata-se de uma imortalidade que se deveria dizer impessoal. Em Hesíodo, o qualificativo que caracteriza o status dos mortos no Hades é nṓ nymoi: sem nome (id., p.431).

Mas ao anonimato e à dissipação, no além, da figura singular do morto comum, contrapõe-se o renome do herói, arrancado ao esquecimento pela “bela morte”, que o destina a ser lembrado, preservado no canto épico e no monumento fúnebre. Quanto à individualidade destes heróis celebrados no culto, reflete Vernant: Eles formam, na época clássica, uma categoria religiosa muito bem definida, que se opõe tanto aos mortos quanto aos deuses. Ao contrário dos primeiros, o herói conserva no além seu próprio nome, a sua figura singular; a sua figura emerge da massa anônima dos defuntos. Ao contrário dos segundos, ele se apresenta, no espírito dos gregos, como um homem que viveu outrora e que, consagrado pela morte, viu-se promovido a um status quase divino. Indivíduo “à parte”, excepcional, mais do que humano, o herói deve, no entanto, assumir a condição humana [...]. O que o define, no interior mesmo do seu destino de homem, são os atos que ele ousou empreender e que pôde cumprir com sucesso: as suas proezas. A empresa heroica condensa todas as virtudes e todos os perigos da ação humana: ele figura de certo modo o ato em seu estado exemplar (id., p.431-32).

Por seu caráter “exemplar” a ação heroica representa seja o ato inaugural, fundador de cidades ou linhagens, seja o ato que assegura a vitória no combate, que restabelece a ordem, ou ainda o ato que transpõe as barreiras humanas e se aproxima da força divina, encarnando-a e tornando-a visível, no plano religioso, de modo que, “no culto, a individualidade do herói se oculta ou se apaga” (id., p.432). O que caracteriza a proeza heroica é a sua gratuidade. A fonte e a origem da ação, a razão do triunfo não se encontram no herói, mas fora dele. Ele não realiza o impossível pelo fato de ser um herói; ele é um herói pelo fato de realizar o impossível. A proeza não é emprego de uma virtude pessoal, mas o signo de uma graça divina, a manifestação de uma assistência sobrenatural. A lenda heroica não fala do homem como de um agente responsável, no centro de seus atos, que assume o seu destino. Ela define tipos de proezas, modelos de provas, em que sobrevive a lembrança de antigas iniciações, e que estilizam, sob a forma de atos humanos exemplares, as condições que permitem adquirir qualificações religiosas, prerrogativas sociais excepcionais (id., p.433-34).

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Assim, tanto nas experiências religiosas do culto oficial, do dionisismo e dos mistérios, quanto nas figurações dos deuses, dos mortos e dos heróis a que se dirigem os cultos cívicos do período arcaico, Vernant não encontra nenhuma prática que se oriente nem para uma doutrina da psykhḗ , nem reconhece nada que evoque, de longe, a nossa categoria da “pessoa”. Até aqui, basicamente se confirma o que já haviam dito por outras vias Mauss e Snell. Antecipando o que se verificará em item posterior, cabe notar que essa conclusão geral permanece válida até a fase mais avançada da obra de Vernant. No entanto, sua indagação do culto de mistérios e das figuras dos deuses, mortos e heróis será drasticamente reavaliada no segundo momento, a partir dos anos 1980, quando Vernant retoma sua pesquisa sobre a categoria do sujeito dando nova direção à investigação sobre a experiência grega de “si mesmo”, dentro de um diálogo com a obra tardia de Foucault. Mas a via intermediária que leva a essa reviravolta passa pela contribuição de E. R. Dodds. Não por acaso, é neste ponto da pesquisa que se impõe a constatação do paradoxo que define a primeira fase da psicologia histórica de Vernant. “Ao termo deste estudo, bastar-nos-á fazer pura e simplesmente uma constatação de carência?”. Encerrar o estudo com tal conclusão sumária, diz Vernant, equivaleria a desconhecer todo um aspecto da religião grega que, nem “por ser aberrante em alguns pontos”, deixou de ter “um papel decisivo na própria origem da pessoa e da sua história no homem do Ocidente” (id., p.434-435).

Segunda cena da psykhḗ : orfismo e pitagorismo

Ante o saldo negativo, predominante no quadro do pensamento arcaico, um terceiro e último círculo parece, então, oferecer melhor resultado à pesquisa. Uma brecha se abre a partir da análise de Dodds sobre a formação da segunda cena de psykhḗ . Com o autor, Vernant reconhece nos meios do orfismo e do pitagorismo dos séculos VI e V a.C., no que o helenista irlandês chamou de “xamanismo grego”, os sinais remotos da formação de uma nova concepção da psykhḗ , que irá se desenvolver nos séculos seguintes. No entanto, sua hipótese diverge igualmente de Dodds e Snell sobre a evolução semântica do termo. À margem da religião oficial, nos meios das seitas, elabora-se entre os séculos VI e V a.C. uma nova noção concernente à alma [...] A alma aparece no homem como um elemento estranho à vida terrestre, um ser vindo de outra parte e em exílio, aparentado ao divino. A experiência de uma dimensão puramente interior teve de início, para tomar corpo, que passar por essa descoberta, no íntimo do homem, de uma força misteriosa e sobrenatural, a alma-daímon. Os Magos, estes personagens tão singulares dos quais se ressaltou o papel no início do pensamento filosófico, fizeramse os detentores de um poder sobre a alma demônica, que lhes assegurava o patronato e o controle. Por meio de práticas de ascese, técnicas do corpo, especialmente a interrupção da respiração, eles pretendem agrupar e unificar forças psíquicas esparsas por todo o indivíduo, separar do corpo, à vontade, a alma assim isolada e reorganizada ao redor do centro, entregá-la por um momento à sua 113

pátria originária, para que ela recupere a sua natureza divina antes de tornar a descer, a fim de acorrentar-se de novo aos elos do corpo (id., p.434-35).

Ao lado do dionisismo e do culto de mistérios, a corrente religiosa do orfismo, que “pertence essencialmente ao helenismo tardio, durante o qual ganhará mais amplitude”, se distingue em primeiro lugar por uma tradição de textos escritos, uma forma doutrinária que o opõe tanto àquelas correntes “marginais” quanto ao culto oficial, aproximando-o da filosofia (2006, p.81-82). Mais precisamente, na Grécia arcaica e clássica, o orfismo aparece como uma nebulosa na qual encontramos, de um lado, uma tradição de livros sagrados, atribuídos a Orfeu e Museu, que comportam teogonias, cosmogonias, antropogonias “heterodoxas”; e, de outro, personagens de sacerdotes itinerantes, que pregam um estilo de existência contrário à norma, um regime vegetariano, e que dispõem de técnicas de cura, de receitas de purificação para esta vida e de salvação para a outra. O destino da alma depois da morte é objeto, nesses ambientes, de preocupações e de dissertações às quais os gregos não estavam acostumados (id., p.71).

Inseparável de uma busca individual de salvação, o aspecto doutrinal, a adoção de um estilo de vida “puro” e de um regime vegetariano traduzem a “ambição de escapar à sorte comum, à finitude e à morte” pela união com o divino (id., p.84). Assim como a rejeição do sacrifício cruento constitui um desvio da prática oficial e contradiz o limite entre deuses e homens que o ritual estabelecia, de modo geral, essa busca de salvação situa-se fora da religião cívica, caracterizando o orfismo como “exterior e estranho à cidade, às suas regras e seus valores” (id., p.84). Segundo Vernant, o impacto dessa corrente espiritual na mentalidade religiosa dos gregos na época clássica teria se referido principalmente a dois domínios. Primeiro, no nível da piedade popular, “alimentou as inquietações e as práticas dos ‘supersticiosos’ obsedados pelo temor das máculas e das doenças” (id., p.85), dando lugar ao aparecimento de personagens de sacerdotes marginais, “de bom grado assimilados a uma trupe de mágicos e charlatães que exploram a credulidade pública” (id., p.86). Num nível mais intelectual, a tradição órfica inscreve-se, como o pitagorismo, na linha dos personagens fora de série, excepcionais por seu prestígio e seus poderes, “homens divinos” cuja competência foi utilizada, desde o século VII a.C., para purificar as cidades e que às vezes foram definidos como os representantes de um “xamanismo grego”. Em pleno século V a.C., Empédocles comprova a vitalidade desse modelo de mago [...] Um traço dessas figuras singulares, que, ao lado de Epimênides e Empédocles, incluem missionários inspirados [...] é que eles se colocam, com sua disciplina, seus exercícios espirituais de controle e de concentração do sopro respiratório, suas técnicas de ascese e de rememoração de suas vidas anteriores, sob o patrocínio, não de Dioniso, mas de Apolo (Vernant, 2006, p.86-87).

No transe coletivo do tíaso dionisíaco, era o deus que vinha a este mundo para apossar-se do grupo de fiéis, para “cavalgá-los, fazê-los dançar e saltar a seu gosto”. Ali, os possuídos não pretendiam deixar este mundo, mas eram, neste mundo mesmo, “tornados outros pela potência que os habita”. Em contraposição, com os théoi ándres, estes “homens divinos” das seitas órficas e 114

pitagóricas, “é o indivíduo humano que toma a iniciativa, conduz o jogo e passa para o outro lado”. Graças a um conjunto de técnicas e poderes excepcionais que aprendeu a manejar, “ele pode deixar seu corpo abandonado como que em estado de sono cataléptico, viajar livremente pelo outro mundo e retornar a esta terra conservando a lembrança de tudo o que viu no além” (id., p.87). Esse tipo de homem, o modo de vida que escolhia, suas técnicas de êxtase implicavam a presença, nele, de um elemento sobrenatural, estranho à vida terrestre, de um ser vindo de alhures e em exílio, de uma alma, psykhḗ , que já não seria, como em Homero, uma sombra sem força, um reflexo inconsistente, mas um daímon, uma potência aparentada com o divino e impaciente por reencontrálo. Possuir o controle e o domínio dessa psykhḗ , isolá-la do corpo, concentrá-la em si mesma, purificá-la, libertá-la, alcançar através dela o lugar celeste do qual se conserva a nostalgia, tais poderiam ter sido, nessa linha, o objeto e o fim da experiência religiosa (id., p.87-88).

Por ora, importa apenas notar que, ao contrário de Dodds e Snell, para Vernant, não é como uma sequência de dois momentos psicológicos que se forma a nova concepção de psykhḗ , pela racionalização do mecanismo divino, mas é a própria objetivação da “alma” na categoria do “duplo” (eídōlon), doravante identificada com o daímon, que, por sua oposição ao corpo, que abre caminho para a unificação semântica com a interioridade da “pessoa”. Eis a passagem decisiva: Então, a psykhḗ não é mais, como em Homero, esta fumaça inconsistente, este fantasma sem relevo e sem força que exala do homem em seu último suspiro, mas é uma força instalada no interior do homem vivo [...] Transformada no homem nesse ser demônico com o qual o sujeito procura coincidir, a psykhḗ apresenta toda a consistência de um objeto, de um ser real podendo existir fora, de um “duplo”; mas, ao mesmo tempo, ela faz parte do próprio homem, define nele uma dimensão nova que ele deve conquistar e aprofundar incessantemente, impondo-se uma dura disciplina espiritual. Ao mesmo tempo realidade objetiva e experiência vivida na intimidade do sujeito, a psykhḗ constitui o primeiro quadro que permite ao mundo interior objetivar-se e tomar forma, um ponto de partida para a edificação progressiva das estruturas do eu (id., p. 435-36, grifo nosso).

Ora, o “duplo”, diz Vernant, caracterizando o estatuto do eídōlon arcaico, é por definição exterior ao sujeito. Mas aqui ele aparece, pela primeira vez, ao contrário da psykhḗ em Homero, instalado no interior do homem vivo. Esse cruzamento, que aparece igualmente em Píndaro, permite localizar, na evolução semântica de psykhḗ verificada por Dodds e Snell, dentro do próprio pensamento religioso arcaico – não numa suposta projeção ou introjeção do mecanismo psíquico da “intervenção divina” pela psicologia do homem grego –, o primeiro quadro que permite ao indivíduo objetivar sua “interioridade” de uma forma paradoxal. Essa “origem religiosa da categoria da pessoa” teria, na civilização grega, uma dupla consequência. Em primeiro lugar, “é opondo-se ao corpo, excluindo-se do corpo que a alma conquista a sua objetividade e a sua forma própria de existência”, a “descoberta da interioridade” seguindo passo a passo a “afirmação do dualismo somatopsicológico”. O corpo vai achar-se, assim, de saída, “excluído da pessoa, sem elo com a individualidade do sujeito” (id., p.436). Do que Vernant sublinha a consequência negativa: será preciso esperar ainda que se recupere o corpo, para reintegrá-lo ao eu, a fim de “fundamentar a pessoa 115

ao mesmo tempo na sua singularidade concreta e como expressão do homem em toda a sua inteireza” (id., p.436). Em seguida, sendo a alma “divina”, também ela não poderia exprimir, nesse primeiro momento, a singularidade dos sujeitos humanos, visto que, por definição, ultrapassa o individual. “É bastante significativo, a este respeito, que ela pertença à categoria do ‘demônio’, isto é, paradoxalmente, ao que existe no divino de menos individualizado, de menos ‘pessoal” (id., p.436). Congruente com esse quadro, Aristóteles poderá dizer, por exemplo, que a natureza (phýsis) não é divina, mas demônica, visto que o que define o sujeito na sua dimensão interior, a psykhḗ , aparentase, aos olhos dos gregos, a essa “misteriosa força de vida que anima e põe em movimento a natureza toda” (id.). Detienne exprime claramente o embaraço dessa interpretação, na comunicação “Ébauche de la personne dans la Grèce archaïque”, que apresenta imediatamente após a intervenção de Vernant no colóquio Problèmes de la personne: Em suma, a noção de alma [...] não mais que a de corpo, não pode justificar o uso da palavra “pessoa” no pensamento grego arcaico. [...] Há, portanto, esboços da pessoa [...] e o mais estranho é que eles se situam no nível do demônico, nessa província do pensamento religioso que se caracteriza pelo indefinido (Detienne, 1973, p.51).

Por fim, apesar de reconhecer neste terceiro eixo de análise o que chamou de “origem religiosa da categoria da pessoa”, cujo ponto de partida mais remoto deriva da evolução semântica de psykhḗ , Vernant conclui negativamente que “nessa etapa do seu desenvolvimento, a pessoa não concerne ao indivíduo singular [...] e tampouco ao homem no que o distingue do resto da natureza” (id., p.43637). Em termos diretos: a descoberta da individualidade permanece dependente de um quadro mental ao mesmo tempo, impessoal e suprapessoal.

Balanço da primeira aproximação

No conjunto, podemos ver que as conclusões de Vernant assinalam, sobretudo, as diferenças e marcam “as distâncias que separam, em sua vida religiosa, o grego do século V da pessoa do crente de nossos dias” (id., p.22), não restando senão um esboço do que será, para além do horizonte grego, a categoria de “pessoa”. Não obstante, subsiste nesta análise um ponto de consenso com Snell quanto à descoberta, senão do indivíduo, ao menos de “certos valores ligados à individualidade” e à formação de um primeiro quadro para a “edificação progressiva das estruturas do eu”. Seu paradoxo consiste em situar nos gregos a origem de uma categoria que não encontra condições de se desenvolver sequer no interior de grupos minoritários. A justificada prudência de Vernant, advertido pela obra de Meyerson, em não atribuir à Grécia antiga uma noção que 116

seguramente não existia, pode estar na origem das contradições aparentes de sua formulação. Como não pretende conciliar as teses contraditórias que Snell toma de Hegel, se Vernant mantém a perspectiva de uma “progressiva elaboração da experiência interior”, esta é concebida sem recurso a um télos: é o próprio ponto de chegada de Snell, a afirmação da categoria da pessoa, que Vernant apaga. No entanto, sua indagação do homem grego permanece dependente do que ele não é. Como nota Fréderic Ildefonse, pesquisadora atual do CNRS, Vernant e Detienne estabeleceram de forma consistente que “não se podia falar de ‘pessoa’ nas épocas arcaica e clássica”. Para ambos, “alguma coisa da pessoa ‘se esboça’ quando se estabelece a oposição entre alma e corpo, no contexto de seitas espirituais, como o pitagorismo”. Eles mostraram igualmente “o papel fundamental do daímon na instauração da oposição alma/corpo”, sendo a partir do momento em que certos sentidos do demônico se identificam ao campo semântico da psykhḗ que a alma “adquire os contornos conceituais que nós lhe reconhecemos”. No entanto, adverte, ainda seria preciso sublinhar a topologia complexa associada a essa instauração: Certos termos, tais como “esboço” ou “descoberta”, devem ser discutidos, assim como a formulação segundo a qual, “a um tempo realidade objetiva e experiência vivida na intimidade do sujeito, a psykhḗ constitui [...] um ponto de partida para a edificação progressiva das estruturas do eu”. Toda forma de submissão à ideia de uma preexistência dos objetos conceituais (que subentende o termo “descoberta”) ou a uma espécie de teleologia de fato, justificada pela história tal como ela se desenrolou (“esboço” ou “edificação progressiva”), é discutível (Ildefonse, F.: 2009).

Por isso, em seu comentário à intervenção de Vernant no colóquio Problèmes de la personne, Meyerson já exprimia certa cautela: Monsieur Vernant nos mostrou de maneira impressionante os diferentes caminhos pelos quais o pensamento religioso grego teria podido se aproximar da nossa concepção de pessoa: os historiadores de hoje poderiam ter a impressão que ela estava de fato se aproximando, para recuar em seguida. De fato, os gregos não buscaram construir a noção de pessoa, seu sistema de ideias e de valores estava diversamente orientado (Meyerson, 1973, p.43, grifo nosso).

Do que foi visto até aqui, podemos tirar algumas conclusões parciais. Notamos que o primeiro passo da investigação de Vernant sobre a categoria da pessoa também foi perspectivado pela concepção moderna de sujeito. Mas de imediato, sua formulação se distingue por ultrapassar as polêmicas dos helenistas em torno da Snell-Fränkel school: tanto seus defensores, como seus opositores, apoiados em A. Lesky, supõem algo que não encontra condições de desenvolver-se no quadro da Grécia antiga, o advento de um sujeito autocentrado. Mas este permanece o ponto de fuga de Vernant, demonstrando que nessa etapa de sua obra tampouco o helenista se distancia plenamente do modelo evolutivo. Do que seguem duas consequências: (a) sua recusa da extensão da categoria da pessoa à Grécia arcaica e clássica conduz, inicialmente, apenas a resultados negativos. Em contrapartida, (b) lá onde Vernant sublinha a 117

descoberta de “alguns valores ligados ao indivíduo”, se reintroduz em sua pesquisa o pressuposto do progresso, fazendo do sujeito grego, em sua especificidade, apenas um “esboço” do que não poderia ter direito de cidadania entre os gregos. O paradoxo da formulação, a se estender pelo trabalho de Vernant durante toda a década de 1960 e 1970, se aprofunda no livro seguinte. Vejamos, no desdobramento seguinte, como essa aporia se configura a partir de um ângulo distinto à medida que a indagação se aproxima do núcleo problemático da pesquisa. Tendo-se confirmado, mediante análise antropológica, a análise filológica sobre a ausência de indivíduo na Grécia, em que medida a contradição corresponde a uma hesitação de Vernant diante da “descoberta” do sujeito autodirigido na idade clássica?

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II

A vontade na moral clássica

No segundo ensaio destacado, sobre a elaboração da função psicológica da vontade no século V a.C., publicado em 1972, Vernant retoma o problema da categoria da “pessoa” no ponto em que havia deixado o texto anterior, no momento em que se forma a nova concepção de psykhḗ , a partir da qual vão se elaborar as “primeiras estruturas do eu”. É nele que o paradoxo se afirma de modo mais evidente, já pela escolha do título: “Esboço da vontade na tragédia”, quando pretende demonstrar justamente o contrário do que sugere a primeira vista. À guisa de advertência, as primeiras linhas retomam o prisma herdado pela Crítica da razão prática: Para o homem das sociedades contemporâneas do Ocidente, a vontade constitui uma das dimensões essenciais da pessoa. Pode-se dizer sobre a vontade que ela é a pessoa vista em seu aspecto de agente, o eu visto como fonte de atos pelos quais ele não somente é responsável diante de outrem, mas também aos quais se sente preso interiormente (Vernant, 2008b, p.25).

A categoria moderna da vontade pressupõe que o sujeito humano é posto como origem e causa produtora de seus atos, apreendendo-se a si mesmo, “nas suas relações com outrem e com a natureza, como um centro de decisão, como detentor de um poder que não depende nem da afetividade, nem da pura inteligência” (id., p25). Assim entendida, ela se apresenta “como esse poder – que não admite divisão – de dizer sim ou de dizer não, de aquiescer ou de recusar”, que se manifesta em particular no ato de decisão: “Desde que um indivíduo se empenha numa opção, que se decide [...] ele se constitui a si próprio como agente, isto é, como sujeito responsável e autônomo que se manifesta em atos e por atos que lhe são imputáveis” (id., p.26). Tais afirmações, tornadas triviais a partir de um quadro de pensamento fundado sobre a categoria da pessoa, mais precisamente após a “revolução moral operada por Kant” (1979, p.77), levaram muitos pesquisadores a crer que essa faculdade psicológica seria tão natural ao homem quanto possuir braços e pernas, a ponto de, mesmo a uma civilização como a grega arcaica e clássica, que não teve em seu vocabulário nenhuma palavra que corresponda ao nosso termo “vontade”, não hesitarmos “em dotar os homens desse tempo, como que apesar deles, com aquela função psicológica a que eles, entretanto, não deram um nome” (2008b, p.26). Mas se Vernant não se contenta com uma análise lexical, tampouco mantém um conceito prévio sobre a natureza da vontade, comum a todos os tempos. “Contra essas pretensas ‘evidências’ psicológicas, diz Vernant, toda a obra de Meyerson nos põe de sobreaviso”. Pois a pesquisa que não cessou de realizar sobre a história da pessoa, destrói “o mito de uma função psicológica da vontade, universal e permanente” (id., p.26).

119

É preciso, pois, que evitemos projetar sobre o homem grego antigo nosso sistema atual de organização dos comportamentos voluntários, as estruturas de nossos processos de decisão, nossos modelos de comprometimento do eu com os atos. Sem um julgamento a priori devemos examinar de que formas se revestiram, no quadro da civilização helênica, as categorias respectivas da ação e do agente, como se estabeleceram, através de diversas práticas sociais (religiosas, políticas, jurídicas, estéticas, técnicas), as relações entre o sujeito humano e suas ações (id., p.26).

Já Meyerson havia sublinhado que “para nós, naturalmente a ação supõe o agente, e o agente implica a pessoa; o agente é de certa forma exterior à ação; a qualidade de agente é um atributo importante da pessoa e reciprocamente”. Mas para o pensamento grego antigo “é a ação que interessa, sua justificação moral e metafísica: eles não têm a tendência de individualizar o agente, ele é ‘interior’ à ação” (Meyerson, 1973, p.43). Numa curta resenha de 1955, “Tempo estoico, tempo dos homens”, que antecipa em quase duas décadas o argumento do ensaio sobre a vontade, Vernant já circunscrevia sua abordagem em termos bastante próximos aos de Meyerson, opondo-se à tese que Victor Goldschmidt formula em Le Système stoïcien et l’Idée de temps (1953) sobre as categorias estoicas do tempo e da ação: O tempo dos estoicos é apreendido pela categoria exclusiva do presente – tempo da ação. Passado e futuro são desqualificados; não são reais; não são agidos. Representam a dimensão temporal da distância, o intervalo sempre mantido entre o agente e sua ação, entre o ato e o objetivo visado. É assim que a passividade e a paixão são introduzidas no tempo. O presente é, ao contrário, a supressão de toda distância temporal; não porque está fora do tempo como o instante de Aristóteles; mas porque a ação, da qual é, de certa forma, a espessura temporal, é totalmente interior à atividade do agente. Vivo um “presente” toda vez que, deixando de correr atrás de um fim que me é estranho, sou realmente causa e fonte de meus atos. O presente é a presença completa do agente em sua ação. E sem dúvida, de certa forma, não haveria no mundo outro presente além do presente de Deus, único agente plenamente eficiente. Mas a moral estoica, a perspectiva de sua análise temporal, nos traz os meios para “agir” até mesmo em nosso tempo humano, para vivê-lo no modo do presente. Esse é, por exemplo, o caso do sentido da transformação do acontecimento, imposto do exterior e sofrido, como uma provação que impomos a nós mesmos e durante a qual nossa atividade não visa a nada além de seu próprio exercício (Vernant, 2001, p.435-436).

Como defende Goldschmidt, a ruptura do estoicismo em relação às filosofias de Platão e de Aristóteles incidiria sobre dois pontos principais: atribuindo à realidade temporal “toda a consistência da eternidade” e liberando a causa eficiente de sua dependência em relação à causa final ou formal, o estoicismo se distinguiria por legitimar, através da formulação de uma nova estrutura do tempo, o lugar da ação e do agente humano (id., p.436). Embora sua análise se mostre penetrante ao tratar dos limites da ação em Platão e Aristóteles – onde, a rigor, “o agente não age, não deve agir, não pode agir” (id.) –, ela não deixa de apresentar problemas, devendo-se perguntar se, em contraste, o estoicismo se apresentaria, de fato, como uma verdadeira filosofia da ação:

não estamos convencidos disso. Entre Platão e Aristóteles, de um lado, e os estoicos, de outro, existe ao menos um ponto em comum. O agente só é concebido como verdadeiramente ativo quando não há distância entre sua atividade e o produto dessa atividade. A tônica é colocada no exercício do ato, 120

não em seu resultado. A noção de obra faz falta aqui, com tudo o que implica a nossos olhos como esforço de construção do futuro. Trata-se de saber se não existe nessa questão uma estrutura do tempo que exige, para aparecer, que o homem se sinta ativo na medida em que transforma a realidade, em que é fabricador e criador (id., p.436).

O problema da vontade na tragédia

Partindo desse pressuposto, o ensaio que desenvolve sua indagação da categoria da vontade passa a situar a formulação clássica do problema por B. Snell a partir de uma contestação contundente: “É a propósito da tragédia e do homem trágico que os helenistas, no decurso dos últimos anos, encontraram esse problema. Um artigo recente de A. Rivier [1968] situa muito exatamente o debate” (id., p.26). Desde 1928, B. Snell havia extraído da dramaturgia de Ésquilo os elementos de uma “antropologia trágica” centrada nos temas da ação e do agente, localizando no poeta a afirmação de um modelo de ação como “iniciativa de um agente capaz de tomar uma decisão ‘pessoal e livre’, extraindo de seu foro íntimo as motivações para seus atos e responsabilizando-se plenamente por eles”. No prolongamento da escola alemã, Z. Barbu teria extraído as conclusões psicológicas dessa interpretação, afirmando que “a elaboração da vontade, como função já plenamente constituída, se manifesta no e pelo desenvolvimento da tragédia, em Atenas, no decurso do século V a.C.” (Vernant, p.27). Pois bem, “é essa análise que Rivier pretende anular em seus pontos essenciais” (id.) Em oposição a B. Snell e sua escola, a tese mais difundida entre os helenistas, a teoria da dupla motivação de Albin Lesky, reconhece o papel determinante das potências sobrenaturais na tragédia, mas reintroduz uma margem de livre escolha, sem a qual pareceria impossível imputar ao sujeito a responsabilidade por seus atos. Contestando ambas as alternativas, para Rivier, toda a ação trágica se reduziria ao reconhecimento de uma necessidade de ordem religiosa: considerada do ponto de vista do sujeito, a deliberação se revela “incapaz de produzir outra coisa que não seja a verificação da aporia”. Ela é impotente para motivar uma escolha, visto que “o que engendra a decisão é sempre uma anánkē imposta pelos deuses” (Vernant, p.27). Enquanto a tônica de B. Snell sobre a decisão do sujeito obscurecia o papel decisivo das forças supra-humanas que agem no drama e que lhe dão sua dimensão propriamente trágica, a solução de A. Lesky superestima o papel da decisão pessoal, visto que “essas potências religiosas não estão presentes apenas no exterior do sujeito; elas intervêm no íntimo de sua decisão para coagi-lo até na sua pretensa ‘escolha’” (id., p.27). Assim, o comprometimento do indivíduo não traduz uma livre escolha do sujeito, senão “o reconhecimento dessa necessidade de ordem religiosa à qual a personagem não pode subtrair-se e que faz dela um ser ‘forçado’ interiormente, biastheís, no próprio seio de sua decisão” (id., p.28). 121

A dificuldade dessa tese, sublinha Vernant, consiste em explicar o comprometimento do sujeito com sua ação: como ele pode ser responsável independente de suas intenções e decidir sem haver efetivamente escolhido? Simplesmente, para Rivier, esta seria a forma da vontade característica entre os gregos. Mas até que ponto ainda é legítimo empregar o termo “vontade” nesse caso permanece bastante duvidoso para um psicólogo historiador (id., p.29). Toda a dificuldade está em saber “o que os próprios gregos entendiam por escolha e ausência de escolha, por responsabilidade com ou sem intenção” (id., p.29).

Estatuto do agente na Ética

Como ponto de partida, Vernant toma as categorias gregas da ação e do agente na formulação da Ética a Nicômaco: “O caso de Aristóteles é particularmente significativo a esse respeito”, sua filosofia moral “pretende refutar as doutrinas segundo as quais o mau não age de bom grado, mas comete a falta malgrado seu” (id., p. 30). Essa lhe parece ser a concepção “trágica”, tendo em Eurípedes seu maior representante. Suas personagens proclamam frequentemente não serem culpadas de suas faltas porque agiram “a despeito de si mesmas, por coerção, bía, dominadas, violentadas pela força de paixões irresistíveis na medida em que encarnam, no íntimo delas, potências divinas como Éros ou Afrodite” (id., p.30). Essa é igualmente, embora noutro plano, a concepção de Sócrates, “para quem, sendo toda maldade uma ignorância, ninguém faz o mal ‘voluntariamente’” (id.). Para justificar o princípio da culpabilidade pessoal do mau e dar à afirmação da responsabilidade do homem um fundamento teórico, Aristóteles elabora uma doutrina do ato moral que representa, na filosofia grega clássica, o mais elaborado esforço de análise para distinguir, segundo suas condições internas, as diferentes modalidades de ação (id., p.30).

Para marcar o mais alto grau de consciência e comprometimento do sujeito com a ação, Aristóteles forja um conceito novo: proaíresis, designando a ação “sob a forma da decisão, privilégio exclusivo do homem, enquanto ser dotado de razão, por oposição às crianças e aos animais”. A proaíresis, por um lado, é mais que hekoúsion, palavra que geralmente se traduz por “voluntário”, mas que, assegura Vernant, “não pode ter esse sentido” (id., p.30), pois, em grego, a oposição corrente na língua comum e no vocabulário jurídico, entre hekṓ n, hekoúsios e ákōn, akoúsios, não corresponde a nossas categorias do voluntário/involuntário, mas às noções de ação cometida ‘de bom grado’ e ‘de mau grado’. (id., p.30). Nesse sentido, dirá Aristóteles, “o ato passional é hekṓ n e não ákōn” (id., p.30), visto que também o animal age hekoúsion, “de bom grado”, como os homens, quando segue sua inclinação própria, sem ser constrangido por uma potência exterior. “Se, pois, toda decisão (proaíresis) é um ato 122

executado de bom grado (hekṓ n), ao contrário ‘o que se faz de bom grado não é sempre objeto de uma decisão’”. Daí que, quando se age por apetite (epithymía) ou impulso (thymós), movido pela atração do prazer ou sem deliberação prévia, “isso é feito de bom grado (hekṓ n), mas não por decisão (proaíresis)” (id., p.31). Essa doutrina apresentava aspectos tão modernos que alguns intérpretes chegaram a supor que a proaíresis corresponderia a um livre poder de escolha, atribuindo-o seja à razão, seja elevando-a à dignidade de um verdadeiro querer, devido à “reação anti-intelectualista” que a análise aristotélica representaria contra Sócrates e Platão (id., p.31-32). De fato, nenhuma dessas interpretações é sustentável, diz Vernant: “a proaíresis não constitui um poder independente dos dois únicos tipos de faculdades que, segundo Aristóteles, agem na ação moral: de um lado, a parte desejante de alma (tò orektikón); de outro, o intelecto, o noûs, na sua função prática” (id,. p.32). Por um lado, “a proaíresis se apoia sobre um desejo, mas um desejo racional, uma aspiração (boúlēsis) penetrada de inteligência e orientada não para o prazer, mas para um objeto prático que o pensamento já apresentou à alma como um bem”. Por outro, ela implica “um processo prévio de deliberação (boúleusis)”; e somente ao cabo desse cálculo racional ela institui uma haíresis, isto é, “uma escolha que se exprime num julgamento que desemboca diretamente na ação (id., p.31). Eis então como se encadeiam, em relação recíproca, os dois polos que delimitam o campo da proaíresis: A boúlēsis, a aspiração penetrada de razão, orienta-se para o fim da ação; é ela que move a alma para o bem; pertence, porém, da mesma forma que o apetite e o impulso, à ordem do desejo, órexis. Ora, a função desejante é toda passiva. A aspiração (boúlēsis) é, pois, o que orienta a alma para um fim racional, mas um fim que lhe é imposto e que ela, a aspiração, não escolheu. A deliberação (boúleusis) pertence, ao contrário, à parte dirigente, isto é, ao intelecto prático. Mas ao contrário da aspiração, ela não tem relação com o fim, diz respeito aos meios. A opção da proaíresis não se dá entre o bem e o mal, entre os quais teria livre poder de escolha. Posto um fim, a saúde, por exemplo, a deliberação consiste na cadeia de julgamentos pelos quais a razão conclui que tais meios práticos podem ou não conduzir à saúde; o último julgamento, ao término da deliberação, dirige-se ao último meio da série [...]. Logo que o desejo da boúlēsis assim se fixou sobre o meio imediatamente realizável, segue-se a ação e segue-se necessariamente (id., p.32).

Essa necessidade imanente às etapas da aspiração (boúlēsis), da deliberação (boúleusis) e da decisão (proaíresis) justifica a adoção do “modelo do silogismo prático” por Aristóteles para explicar esse processo da ação sob a forma da decisão prática. Como observa David J. Furley “tudo se produz necessariamente (ex anánkēs), sem que, em ocasião alguma, se trate [...] de um poder de escolher de forma diferente da que o sujeito faz” (id., p.33). O que é espantoso, pois parece “incompatível com o projeto, que ela [Ética] sustenta, de fundar a responsabilidade sobre o plano moral e jurídico”, como nota D. J. Allan (id., p.33). Entretanto, diz Vernant, a teoria da ação moral de Aristóteles, não pretende em nenhum momento demonstrar ou refutar “a existência de uma liberdade psicológica com que não conta em momento algum”. Ao contrário, a noção de um “livre poder de decisão” sequer tem lugar 123

em sua problemática da ação responsável, permanecendo inteiramente estranha a seu pensamento (id., p.33-34).

Vocabulário da vontade no direito

Essa lacuna permite marcar com nitidez a distância que separa as concepções grega e moderna do agente. Não só hekṓ n tem uma extensão mais larga e uma significação psicológica mais imprecisa que nossa noção de vontade, como ákōn reúne noções que seriam normalmente distinguidas por nossa noção de involuntário (id., p.34), como esclarece Vernant: A oposição hekṓ n-ákōn não é fruto de uma reflexão desinteressada sobre as condições subjetivas que fazem do indivíduo a causa responsável de seus atos. Trata-se de categorias jurídicas que, na época da cidade, o direito impôs como normas ao pensamento comum. Ora, o direito não procedeu após uma análise psicológica dos graus de responsabilidade do agente. Os critérios que seguiu visavam a regulamentar, em nome do Estado, o exercício da vingança privada distinguindo, segundo as reações passionais mais ou menos intensas que ela suscitava no grupo, diversas formas de homicídio que estavam sujeitas a jurisdições diferentes (id., p.35).

Classificando as ações segundo “a força do sentimento coletivo de escusa”, o par hekṓ n-ákōn permite distinguir três tipos de crimes, conforme as jurisdições que presidem seu julgamento: phónos hekoúsios, homicídios plenamente sujeitos à punição, da competência do Areópago; phónos akoúsios, homicídios escusáveis, a cargo do Paládio e phónos díkaios, homicídios justificáveis, da alçada do Delfino. (id., p.35). Desse modo, a distinção que o direito assinala não se funda na oposição entre voluntário e involuntário, senão que “baseia-se na distinção que a consciência social, em condições históricas determinadas, estabelece entre a ação plenamente repreensível e ação escusável, colocadas, ao lado da ação legítima, como um par de valores antitéticos” (id., p.35). Um paralelo significativo com essas inovações jurídicas pode ser atestado na transformação do vocabulário religioso da falta, hamártēma. Como já haviam demonstrado Snell e Dodds, no contexto religioso da Grécia arcaica, estando a ação humana sujeita à intervenção de átē e daímon, a noção de “vontade” era simplesmente impensável. Inserida, ademais, no quadro de uma moral intelectualista, as noções de “conhecimento” e “ação” apareciam estreitamente solidárias, de modo que: “lá onde um moderno espera encontrar uma expressão relativa ao querer, ele encontra um vocabulário relativo ao saber”. Nesse sentido diz Vernant, a afirmação socrática de que, “sendo a maldade uma ignorância, ninguém faz o mal ‘voluntariamente’”, retomada por Platão, da qual se ocupa Aristóteles, “prolonga muito diretamente as concepções mais antigas de falta, concepções que se atestam num estado de sociedade pré-jurídica, anterior ao regime da cidade” (id., p.35).

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A falta, hamártēma, aparece aí ao mesmo tempo sob a forma de um “erro” de espírito, de uma polução religiosa, de uma fraqueza moral. Hamartánein é enganar-se, no sentido mais forte do desvario de inteligência, de uma cegueira que leva à ruína. A hamartía é uma doença mental, o criminoso é presa de um delírio, é um homem que perdeu o senso [...] Essa loucura do erro ou, para dar-lhe seus nomes gregos, essa átē, essa Erinýs assedia o indivíduo a partir de seu interior; penetrao como uma força religiosa maléfica. Mas, mesmo identificando-se de certo modo com ele, ela é ao mesmo tempo exterior e o ultrapassa. Contagiosa, a polução do crime, indo além dos indivíduos, prende-se à sua linhagem, ao círculo de seus parentes; pode atingir toda uma cidade, pode poluir todo um território (id., p.35-36).

No contexto pré-jurídico da Grécia arcaica, como observou L. Gernet, não é o indivíduo como tal que constitui o fator do delito: “o delito existe fora dele, o delito é objetivo” (apud id., p.36). No contexto desse pensamento religioso em que o ato criminoso se apresenta, no universo, como uma força demônica de polução [daímon] e, no interior do homem, como um desvario de espírito [átē], é toda a categoria da ação que aparece organizada de uma maneira que não é a nossa. O erro, sentido como ataque à ordem religiosa, esconde em si uma força nefasta [míasma] que vai bem além do agente humano. O próprio indivíduo que o comete (ou melhor, que é sua vítima) é tomado pela força sinistra que ele desencadeou (ou que se exerce através dele). Em lugar de emanar do agente como sua fonte, a ação o envolve e arrasta, englobando-o numa potência que escapa a ele tanto que se estende, no espaço e no tempo, muito além de sua pessoa. O agente está preso na ação. Não é seu autor. Permanece incluso nela (id., p.36).

Com o advento do direito e das instituições jurídicas da pólis a antiga concepção religiosa da falta se apaga, dando lugar à nova noção de “delito”. É somente neste novo contexto que “a representação do indivíduo” se acusa mais nitidamente, a oposição entre as categorias de hekṓ n e ákōn assumindo, então, valor de norma. Entretanto, diz Vernant, é sintomático que esta “psicologia do delinquente” se constitua no interior de um vocabulário inteiramente intelectualista, que o ato realizado de “bom grado” e “mau grado” se definam em termos de “conhecimento” e “ignorância” (id., p.36). Se, daí por diante, a intenção, implícita na palavra hekṓ n, aparece como elemento constitutivo do ato delituoso, esta se expressa pelo termo prónoia, que significa “um conhecimento, uma intelecção feita previamente, uma premeditação”. De modo que “a intenção culpada, que constitui o delito, não aparece como uma vontade má, mas como pleno conhecimento de causa” (id., p.37). Esse paradoxo de uma ágnoia, princípio constitutivo da falta e, ao mesmo tempo, escusa que a faz desaparecer, se exprime igualmente na evolução semântica das palavras da família de hamartía. Essa evolução é dupla. De um lado, os termos se impregnam da ideia de intenção [prónoia]: é culpado, hamartṓ n, só quem intencionalmente cometeu o ato criminoso. [...] De outro lado, porém, a noção de não-intencional, implícita na ideia primitiva de uma falta, cegueira do espírito [átē], já começa a frutificar desde o século V a.C.. Hamartánein aplicar-se-á à falta escusável, quando o sujeito não teve plena consciência do que fazia (id., p.37).

Essa coexistência de dois sentidos contraditórios na mesma família de termos – “cometer intencionalmente uma falta”, “cometê-la sem intenção” – se justifica na medida em que a noção de ignorância se situa, ao mesmo tempo, “em dois níveis bem diferentes de pensamento”: de um lado, 125

ela ainda permanece ligada à antiga concepção religiosa da ignorância (átē), cegueira do espírito, como princípio da falta, de outro, já assumiu um sentido “positivo” de desconhecimento (ágnoia) como escusa da falta, “mas em nenhum dos dois planos [...] está implícita a categoria da vontade” (id., p.37-38). Configuração análoga aparece nos compostos da família boul- que também servem para exprimir as modalidades do intencional (id., p.38). Tampouco aqui se pressupõe a “pessoa” do agente: no caso da inclinação (boúlomai) como no da deliberação racional (bouleúō), a ação do sujeito não encontra nesse último sua causalidade mais autêntica. O que põe o sujeito em movimento é sempre um “fim” que orienta, como que do exterior, a sua conduta: seja o objeto para o qual tende espontaneamente seu desejo, seja o que a reflexão apresenta ao seu pensamento como um bem (id., p.39).

Solução de Aristóteles Sendo assim, que sentido devemos atribuir às afirmações de Aristóteles de que “nossos atos estão em nosso poder (eph’ hēmin)”, que “somos causas responsáveis por eles (aítioi)” e que “o homem é princípio e pai (arkhḗ kaì gennētḗ s) de suas ações como seus filhos” (id., p.39)? Tais afirmações, sem dúvida, “marcam o cuidado de enraizar os atos no foro íntimo do sujeito”, apresentando-o como sua causa eficiente, a fim de que “o mau e o incontinente sejam tidos como responsáveis por suas faltas e para que não possam invocar como escusa uma pretensa coação exterior de que teriam sido vítimas” (id., p.39). Mas, adverte Vernant, as expressões de Aristóteles devem ser interpretadas corretamente: Ele escreve repetidas vezes que a ação “depende do homem”. O sentido exato desse autós se esclarece se o aproximamos da fórmula que define os seres vivos como dotados do poder de “mover a si mesmos”. Nesse contexto, autós não tem o sentido de um eu pessoal, nem de uma faculdade especial de que disporia o sujeito para modificar o jogo das causas que agem no interior dele. Autós se refere ao indivíduo humano tomado no seu todo, concebido como conjunto de disposições que formam seu caráter particular, seu êthos (id., p.39-40).

Contestando a teoria socrática que faz da maldade uma ignorância, Aristóteles afirma que “os homens são responsáveis por sua ignorância”, na medida em que essa ignorância está em seu poder (ep’ autóis), pois, escreve Aristóteles, “em cada domínio de ação, ações de um certo gênero fazem um gênero correspondente de homens” (apud id, p.40). Portanto, a ação depende do homem enquanto congruente com seu caráter: O caráter, êthos, próprio de cada gênero de homem, tem por base uma soma de disposições (héxeis) que se desenvolvem pela prática e se fixam em hábitos. Uma vez formado o caráter, o sujeito age conforme essas disposições e não poderia agir de outro modo. Antes, porém, diz Aristóteles, era 126

kýrios, isto é, tinha autoridade para agir de maneira diversa. [...] “Que na juventude tenhamos sido educados em tal ou tal hábito não é, pois, de pequena importância; é, ao contrário, de importância máxima, ou melhor, nisso está tudo”. Se tudo está aí, a autonomia do sujeito se apaga diante do peso das coações sociais (id., p.40)

Em nenhum momento Aristóteles se preocupa em fundar psicologicamente a capacidade que o sujeito possuiria de se decidir de outra maneira enquanto suas disposições ainda não se fixaram. Como sublinha Vernant, isso pouco importa ao filósofo: “sendo seu propósito essencialmente moral, basta-lhe estabelecer entre o caráter e o indivíduo [...] esse laço íntimo e recíproco que funda a responsabilidade subjetiva do agente” (id., p.40). Se o homem é “pai” de seus atos, ele o é na medida em que aparece como seu princípio (arkhḗ ) e causa eficiente (aitía). Mas essa causalidade “interna” se define de modo inteiramente negativo: “cada vez que não se pode atribuir a uma ação uma fonte exterior coercitiva, é que a causa dela se encontra ‘no homem’ que agiu ‘de boa vontade’, ‘de bom grado’ e que seu ato, portanto, por direito lhe é imputável” (id., p.40-41). Nada disso se refere, portanto, a um poder da vontade, como manifestação de uma livre decisão: o indivíduo, se ele já assume sua particularidade, se assume a responsabilidade de todos os atos realizados por ele de bom grado, permanece muito fechado nas determinações de seu caráter, muito estreitamente preso às disposições internas que comandam a prática dos vícios e das virtudes, para libertar-se plenamente como centro de decisão pessoal e afirmar-se, enquanto autós, em sua verdadeira dimensão de agente (id., p.41).

Em suma, todas as mudanças enumeradas por Vernant – “advento da responsabilidade subjetiva, distinção entre o ato realizado de bom grado e o ato cometido de mau grado, consideração das intenções pessoais do agente” –, que afetaram profundamente, através dos progressos do direito, a concepção grega do agente, se produziram dentro de limites bastante estreitos para que, “mesmo na obra do filósofo preocupado em fundar a responsabilidade individual sobre as condições puramente internas da ação”, elas tenham permanecido inscritas num quadro psicológico “onde a categoria da vontade não tem lugar” (id., p.41). Por certo, diz Vernant, na Atenas do século V a.C. o indivíduo se afirmou em sua particularidade como “sujeito do direito”, a intenção do agente passando a ser considerada elemento fundamental da responsabilidade. “Mas nem o indivíduo, nem sua vida interior adquiriram bastante consistência e autonomia para constituir o sujeito como centro de decisão de onde emanam seus atos” (id., p.51).

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A ação trágica entre dois modelos Retomando o fio inicial das questões que A. Rivier apresentou sobre o homem trágico – se não seria preciso admitir, no caso dos gregos, uma “vontade sem escolha” e uma “responsabilidade independente das intenções” –, não seria possível responder a elas apenas com sim ou não. Simplesmente, “o problema, ao que parece, não deve ser formulado nesses termos”, pois “o que falta é precisamente a vontade” (id., p.41). Para responder às objeções de Rivier será mais proveitoso reler o que escreve Aristóteles. Ele distingue o que é executado sob coação e o que é feito de bom grado, pelo que, só então, o agente é responsável. Mas a distinção entre as duas categorias não opõe uma ação sob coação a uma ação livremente querida, e sim “uma coação proveniente do exterior a uma determinação que opera no interior” (id., p.42). Essa determinação interna, embora seja diferente de uma coerção exterior, nem por isso deixa de ter relações com o necessário. Quando segue as disposições de seu caráter, de seu êthos, o sujeito reage necessariamente, ex anánkēs, mas é dele que emana seu ato; longe de decidir-se sob o peso de uma coação, ele se afirma pai e causa do que faz; carrega também a plena responsabilidade por ele (id., p.42)

Trata-se, portanto, de saber se anánkē se reveste sempre da forma de uma pressão exterior exercida pelos deuses (daímon), como diz Rivier, ou se ela não poderia apresentar-se como imanente ao caráter do herói (êthos) ou aparecer, “ao mesmo tempo, sob os dois aspectos, comportando o poder que engendra a ação, na perspectiva trágica, duas faces opostas, mas inseparáveis” (id., p.42). Com efeito, diz Vernant: Parece-nos [...] que, ao longo de todo o século V, a tragédia ática apresenta da ação humana um modelo característico que propriamente lhe pertence e que a define como gênero literário específico. [...] Nesse sentido, a tragédia corresponde a um estado particular de elaboração das categorias da ação e do agente (id., p.42).

As duas afirmações caracterizam com precisão o “modelo de ação trágica” como uma ação biface, situada entre duas determinações do necessário, uma externa (daímon) e a outra interna (êthos). Nesse sentido, não haveria “progresso” de Ésquilo a Eurípedes, no sentido de uma “psicologização” da tragédia, como supunha Jacqueline de Romilly, mas apenas uma mudança de ênfase entre dois extremos de um modelo igualmente presente em ambos, ora destacando o papel das forças demônicas, ora o papel do caráter. Mas o que determinaria essa mudança de ênfase? A segunda parte da afirmação de Vernant permite relacioná-las ao processo histórico que fornece o pano de fundo da tragédia: o polo destacado em Ésquilo corresponde mais de perto ao privilégio das antigas concepções religiosas, pré-jurídicas, da falta, ao passo que o polo realçado por Eurípedes já se aproxima das novas ideias jurídicas da pólis, tal como se encontram formuladas em Aristóteles. 128

Tomando o exemplo do Agamêmnon, de Ésquilo, a partir de um estudo recente de A. Lesky, em que o autor retoma, tornando-a mais precisa, sua teoria da dupla motivação (pp. 42-48), Vernant propõe, então, uma drástica revisão sobre o “estatuto do agente trágico”. Retenho apenas a passagem decisiva: Êthos, o caráter, daímon, a potência divina, eis, portanto, as duas ordens de realidade onde se enraíza em Ésquilo a decisão trágica. Situando-se a origem da ação, ao mesmo tempo, no homem e fora dele, a mesma personagem aparece ora como agente, causa e fonte de seus atos, ora como alguém que é movido, que está imerso numa força que o ultrapassa e arrasta (id., p.47).

Divergindo de A. Lesky, Vernant situa o sujeito clássico entre duas ordens do necessário: êthos e daímon, que não deixam espaço para um sujeito autocentrado. O sujeito aparece como agente apenas negativamente, quando não se pode atribuir a causa a uma fonte externa, e quando se reconhece uma causa interna esta se identifica com a força coercitiva de seu caráter. Em ambos os casos, não há margem para uma livre decisão, como expressão de uma “deliberação interior”. Mas qual seria, para uma história da função psicológica da vontade, pergunta Vernant, o significado desta “tensão constantemente mantida pelos trágicos entre o realizado e o sofrido, entre o intencional e o forçado, entre a espontaneidade interna do herói e o destino previamente fixado pelos deuses?”. Porque esses aspectos de ambiguidade aparecem precisamente no “gênero literário que, pela primeira vez no Ocidente, procura exprimir o homem em sua condição de agente?” (id., p.49). O advento, o desenvolvimento e o declínio do gênero trágico coincide com um momento histórico bem localizado no tempoe com um período de crise: “esse debate entre o passado do mito e o presente da cidade se exprime muito especialmente na tragédia por um questionamento do homem enquanto agente” (id., p.49). A culpabilidade trágica constitui-se assim num constante confronto entre a antiga concepção religiosa da falta, polução ligada a toda uma raça, transmitindo-se inexoravelmente de geração em geração sob a forma de uma átē [...] e a concepção nova, posta em ação no direito, onde o culpado se define como um indivíduo particular que, sem ser coagido a isso, escolheu deliberadamente praticar um delito. (id., p.50).

Essas duas concepções, que para o pensamento moderno parecem excluir-se mutuamente, podem coexistir na Grécia clássica, fazendo o agente trágico aparecer constantemente dilacerado em duas direções contrárias: “ora aítios, causa responsável de seus atos enquanto eles exprimem seu caráter de homem; ora simples joguete nas mãos dos deuses, vítimas de um destino que pode prenderse a ele como um daímon” (id., p.50). Daí a falha da interpretação de Snell. Se a ação trágica “supõe que já tenha se formado a noção de uma natureza humana que tem seus traços próprios e que, assim, os planos humano e divino sejam bastante distintos para se oporem”, no entanto, “para que haja trágico, é preciso igualmente que esses dois planos não deixem de aparecer como inseparáveis” (id., p.50-51). Se essas duas escalas de valor não chegam a se excluir é à medida que a própria 129

configuração da tragédia testemunha a relativa inconsistência e a falta de organização interna da categoria grega do agente (id., p.52): Quando ele quer, como Édipo, levar até o fim a pesquisa sobre o que ele é, o homem se descobre enigmático, sem consistência nem domínio que lhe sejam próprios, sem ponto de apoio fixo, sem essência definida, oscilando entre o igual ao deus e o igual ao nada. Sua verdadeira grandeza consiste naquilo que exprime sua natureza de enigma: a interrogação (Vernant, 2008b, p.99, grifo meu).

Esse permanente “não ser aquilo que esperaríamos que fosse”, como sintetiza Trajano Vieira, é a marca do herói trágico: “o homem não pode ser definido, o homem não tem uma essência, o homem é um monstro, um enigma que não tem resposta” (apud Vernant, 2008b, p.xviii). Daí a conclusão de Vernant, apontando para um paralelo entre a inexistência de um sujeito agente plenamente delimitado e seu correlato na ausência de uma noção de sujeito criador: Para os gregos, nós o sabemos, o artista ou o artesão, quando produzem uma obra por sua poíēsis, não são verdadeiramente autores dela. Eles nada criam. Seu papel é apenas encarnar na matéria uma forma preexistente, independente e superior à sua tékhnē. [...] Da mesma forma em sua atividade prática, sua prâxis, o homem não está à altura do que faz (id., p.51).

Ao termo desse percurso, vemos que o acento de Vernant recai principalmente sobre os resultados negativos que sua pesquisa revela, embora sem diminuir a afirmação de um realce progressivo do papel do indivíduo a partir do final da era arcaica, reiterado seja no âmbito da história da religião, seja no da história do direito. A permanência da formulação paradoxal antes aguça o olhar para esse momento chave de passagem entre as eras arcaica e clássica, sem que seja possível dar uma resposta satisfatória à pergunta pelo advento de uma nova configuração de sujeito. Em todo caso, a oposição frontal de Vernant à hipótese de Snell sobre a descoberta de um sujeito autocentrado na passagem para o século V a.C., permanece como enigma motivador de expressões como “esboço” da vontade e da pessoa na Grécia antiga.

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III

Categorias gregas do agente e da ação

Antes de encerrar o item para virmos à direção que Vernant vai dar à sua pesquisa a partir da década seguinte, retenhamos um último ensaio do autor que ocupa posição intermediária, no qual se elabora uma síntese da primeira fase de sua pesquisa sobre o sujeito. Aqui, podemos ser mais esquemáticos, visto que “Catégories de l’agent et de l’action em Grèce ancienne” (1975), apenas retoma por outro ângulo o tema já tratado em “Esboço da vontade”, assinalando a precedência de Émile Benveniste nas pesquisas que procurou empreender. Acompanhemos brevemente o resumo que Vernant oferece da análise que o linguista desenvolve em Noms d’agent et noms d’action en indo-européen (1948), cuja démarche considera exemplar não apenas para o linguista de profissão, visto que abre caminho para uma investigação mais geral, aportando uma “contribuição decisiva” para a antropologia histórica (1979, p.85). Situando sua dívida em relação a uma linhagem que vai de Mauss a Meyerson, passando por Benveniste, nosso interesse concentra-se na síntese metodológica da primeira etapa da pesquisa de Vernant sobre o problema da pessoa a que dá lugar, inscrevendo seu trabalho no quadro mais amplo de uma história das categorias. Em seu livro, Benveniste havia partido do que chamou um “fato estranho”, um paradoxo linguístico: Uma das categorias mais seguramente estabelecidas da morfologia nominal indo-europeia é a dos nomes de agente em *-t e/o r. Ora, essa categoria é representada em grego por dois sufixos distintos, -tér e -tor; em védico existem igualmente dois tipos, diferenciados pelo tom da regência, dátar e datár. Por que essa dualidade de formas? Deixando de pesquisar por suas razões, os autores que a mencionaram admitiram que ela não é significativa, que não existe nenhuma diferença entre as duas formas. Também os comparatistas se julgam sempre fundados a falar de um sufixo único indoeuropeu *-t e/o r, respondendo à noção “simples” do agente (id., p.85-86).

Examinando as características morfológicas das formações em *-tor e *-ter no avéstico, no védico e no grego, Benveniste principia por destacar que, ao contrário do que supunham seus predecessores, aquelas famílias de palavras se opõem, em primeiro lugar, por três traços (natureza mais ou menos reduzida do vocalismo radical, lugar do tom, regência nominal ou verbal), de que cada língua não conserva senão dois por vez. Reagrupados esses caracteres para definir em sua oposição formal as duas classes indo-europeias, nota-se, entretanto, que essa definição fornece apenas metade da realidade morfológica. Como sublinha Vernant: “no que o linguista denomina uma categoria [...] se encontram implicados, inseparáveis da forma, um sentido e uma função” (p.86). Sendo que, quando duas formações permanecem vivas e funcionalmente em concorrência na mesma língua elas não poderiam ter o mesmo valor. 131

Restringindo-se ao caso grego, Benveniste sublinha que os nomes de agente em -tor e em -tér encontram um rigoroso paralelo nos nomes de ação em -sis e -týs, cuja confrontação o conduz a destacar funções, valores e significações regularmente contrastadas que se ligam a duas noções bem distintas do agente e da ação. O que revela uma inteira simetria entre as duas categorias: os nomes em -tor estão para os nomes em -sis, assim como os em -tér estão para os em -týs. No lugar de uma noção “simples”, a análise traz à luz dois conceitos opostos, organizados, cada um, em um sistema inteiramente coerente (p.86), como descreve a importante síntese de Vernant: No caso dos nomes de agente em -tér, o agente se encontra imerso em sua ação, a qual é concebida como uma função; o agente se confunde com a atividade a que se dedicou e onde, por destinação, aptidão ou necessidade, ele se encontra como que fechado; -tér tende então a abolir a individualidade do agente na função que o absorve. No caso dos nomes em -tor, o agente possui, sob a forma de uma qualidade que lhe pertenceria, o ato visto como já cumprido, inteiramente efetuado; o nome em -tor transforma a performance de um ato, único ou repetido, em predicado pessoal ligado ao agente como sua posse, sua propriedade. Da mesma maneira, nos nomes de ação em -týs, a ação é vista subjetivamente (a tensão como ação de tensionar) e ela aparece ao mesmo tempo como cumprimento funcional do sujeito. Nos nomes de ação em -sis, ela é vista objetivamente (a tensão como estado do que é tensionado) e ela aparece, por consequência, como realizada em ato fora do sujeito. A dupla estrutura da ação é assim inteiramente simétrica da dupla estrutura do agente. O nome de ação, como atividade funcional, em -týs, é correlativo do nome de agente, como “funcionário”, em -tér. O nome de ação, como ato realizado, em -sis, é correlativo do nome do autor, em -tor, definido por relação a esse ato que é projetado fora dele e que o transcende (p.88-89).

Identificadas duas linhas semânticas paralelas, Benveniste relaciona a primeira, dos nomes em -tér e -týs, ao que chama de o “mundo do ser” e a segunda, dos nomes em -tor e -sis, ao “mundo da realidade”, isto é, não referido ao que se é, mas ao que se possui, ao “mundo do ter”. Sumariamente: na primeira linha, a categoria da ação aparece “governada pela necessidade interna”, desenhando a atitude geral do agente, que “se abole na função que ele tem por missão cumprir”; na segunda, a ação remete a processos objetivamente realizados, “onde as coisas existem como cumprimentos autônomos e onde o agente está, ele mesmo, objetivado como possuidor de seu ato” (p.89).

Categorias linguísticas e categorias antropológicas

No que toca à dívida de Vernant em relação às perspectivas abertas por essa abordagem, interessa destacar, em primeiro lugar, que “a análise de Benveniste opera em diversos níveis, ao mesmo tempo distintos e indissociáveis para o linguista: o das formas, o das funções e valores e o das noções”. Trazendo à luz um sistema articulado de conceitos, ela desemboca finalmente em “um grande quadro de pensamento, uma estrutura mental”, mais precisamente, no que Mauss, alguns anos antes, havia chamado “uma categoria do espírito humano”, num estudo “que tem tanto menos chance

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de ter escapado a Benveniste quanto trata do problema da pessoa, ligado do ponto de vista psicológico àquele do agente” (p.86-87). Quando o movimento da pesquisa faz passar, assim, da categoria linguística, no sentido preciso e limitado que lhe confere Benveniste, à categoria como “estrutura fundamental do espírito”, no sentido antropológico que Mauss atribui a esse termo, pergunta Vernant: não se estaria justificado a dar um passo adiante e a considerar, numa perspectiva mais ampla, a categoria do agente como “quadro geral do comportamento humano, modo de organização das atividades práticas do homem, configuração de diversos tipos de condutas de ação em que o sujeito opera sobre as coisas, sobre os outros e sobre si” (1979, p.87)? Já Meyerson, “na linha e no prolongamento do estudo de Mauss”, opta por falar “não mais simplesmente de uma ‘noção’ do eu, mas de uma função psicológica da pessoa, com sua difícil elaboração, sua história acidentada, suas diversidades e suas variações, seu necessário inacabamento” (id.). Nessa mesma perspectiva, visto que “não é apenas na língua que o historiador encontra os modos de expressão do agente; e a expressão do agente na língua ultrapassa o domínio morfológico” (p.94-95), é todo um programa de pesquisa que se desenha aos olhos de Vernant

Um programa de pesquisa

Confrontar as modalidades do agente e da ação, tais como as exprime a língua grega antiga, com os aspectos que dela apresentam, na mesma civilização, as outras “linguagens” que constituem os ritos e mitos religiosos, certas obras literárias, as instituições jurídicas, as operações de ordem técnica, na medida em que, de uma maneira ou de outra, as categorias do agente e da ação se encontram engajadas nesses diferentes níveis de práticas sociais (p.88).

Eis o que Vernant buscou desenvolver em uma série de estudos tratando das categorias da “pessoa”, da “vontade” e da “técnica”, cujas convergências procura-se agora demonstrar. Tendo se perguntado, (1) em “Aspectos da pessoa na religião grega”, até que ponto e sob que formas as potências do além aparecem como agentes no panteão grego; (2) em “O trabalho e o pensamento técnico”, que relação, o artesão entretém, na operação técnica, com o objeto que fabrica e com a atividade produtora que põe em obra por intermédio de sua tékhnē; e (3) em “Esboço da vontade na tragédia”, como esse gênero literário contribuiu para ressaltar no personagem humano os aspectos de agente voluntário, fonte e origem dos seus atos (p.88) – trata-se de indicar, a título de homenagem, como suas análises se articulavam sobre as do linguista, a fim de marcar sua dívida em relação a Benveniste dentro da inflexão que confere às lições de Mauss e Meyerson. 1. Já no domínio dos fatos religiosos se apresenta configuração análoga à das categorias linguísticas da ação e do agente: “a potência dos agentes sobrenaturais se exprime tanto pela função 133

a que presidem”, deuses e heróis encontrando-se inteiramente incluídos na esfera de sua atividade, “quanto a potência se traduz por um ato exemplar”, a façanha realizada tendo valor nela mesma e se encontrando relacionada ao agente sobrenatural como um de seus atributos. Nem os deuses, nem os heróis aparecem, portanto, como centros de decisão e agentes responsáveis, interiormente engajados na ação: A gesta heroica não diz o indivíduo agente, produtor de seus atos: ela define tipos de façanhas, de atos modelos que, no “mundo da realidade” evocado por Benveniste, existem eles mesmos como “cumprimentos autônomos”. Em contraposição, no “mundo do ser”, o agente divino, desde que exerce sua função, não está mais colocado em relação com sua atividade como produzindo-a, controlando-a, dominando-a: ele se dissolve nela. A esfera de atividade de um deus não tem na sua pessoa singular seu princípio e sua razão suficiente: o que a funda e a delimita é todo o jogo equilibrado das outras potências funcionais que compõem com ele o universo divino e de que ele precisa, conforme a uma ordem de “necessidade interna”, respeitar as atribuições, os empregos, os domínios (p.89-90).

2. Reencontra-se a mesma estrutura polar na configuração das atividades fabricadoras, concernindo ao “fazer” técnico, ao poieîn. Mas aqui, na esfera da ação humana, o paralelismo é ainda mais acentuado. Se o agente não é nem pensado nem expresso como sujeito do agir, é porque ele é visto sempre em relação ao “modelo da ação” que tem por missão cumprir – no plano do ser, identifica-se à atividade funcional a que é dedicado, no plano do ter, é colocado em face do ato cumprido que ele possui como uma coisa: Seríamos tentados a dizer, esquematizando, que os antigos bem conheceram a ação, que eles refletiram, em particular teologicamente, sobre suas formas, suas modalidades, seus regimes diversos (um panteão é um sistema de classificação de poderes, de tipos de atividade), mas que eles não conheceram o agente no sentido que nós damos hoje a esse termo. Se se examina, com efeito, o modelo grego da atividade demiúrgica, se constata que não é o artesão que “age” quando ele fabrica um objeto. O que opera através dele e como independentemente dele, o que possui, portanto, eficácia poética, tò poiētikón, é a capacidade funcional inerente a um métier, o savoir-faire profissional, a tékhnē. A atividade, vista em seu aspecto funcional, é superior ao agente, primeira em relação a ele. Quando ela se exerce, ela engloba ou atravessa o agente, em vez de emanar dele. No outro polo da dicotomia trazida à luz por Benveniste, o ato, visto em seu aspecto realizado, não é tampouco interior ao agente, nem o agente presente em seu ato. O ato, a enérgeia, não pertence à série das operações produtoras desenvolvidas pelo artesão durante seu trabalho: o ato reside no objeto efetuado, a obra produzida. Como o diz Aristóteles, em todo caso onde há produção de alguma coisa, o ato está no objeto produzido, a ação de construir, por exemplo, no que é construído, a ação de tecer, no que é tecido (p.90-92).

Assim, no contexto social e mental da Grécia antiga, encontram-se, de um lado, as “atividades produtivas” (tekhnai) e, de outro, os “produtos” dessas atividades. Mas o que, neste quadro, se inscreve em branco é o “produtor” e o ato de “produzir”, termos solidários que, contrariamente a toda perspectiva grega, supõem que, na ação, o acento está colocado sobre o agente (p.92). Esses dados convergentes sublinham que não é a categoria do agente que aparece desenhada entre os gregos, mas a da ação, sob as duas formas diferentes que Benveniste reconheceu no nível da linguagem: seja tipo de atividade, esfera funcional, seja ato efetuado, posto como um objeto. Os 134

aspectos do agente enquanto tal, como fonte e origem dos seus atos, não são destacados: ou bem o agente está imerso na função que ele assume, ou bem ele se vê atribuir um ato posto fora dele como um objeto (p.92).

3. Por fim, no ensaio sobre o esboço da vontade na tragédia, verificou-se em que medida o desenvolvimento do direito, a evolução das formas de contrato e da jurisdição do homicida, repercutindo sobre o estatuto das relações interpessoais, teriam contribuído para ampliar a categoria grega do agente, partindo da seguinte pergunta: “até que ponto o desenvolvimento das noções de responsabilidade subjetiva e de mérito pessoal modificou a maneira pela qual os gregos conceberam o comprometimento do sujeito com seus atos?” (p.93). Ampliação e modificação da categoria do agente, mais propriamente do que “esboço” da categoria da vontade, que, como vimos, apenas sublinha o aspecto problemático do saldo obtido nesse primeiro estágio da investigação. Em poucas palavras, nos termos em que Vernant sintetiza seu projeto inicial observa-se com mais nitidez o limite em que desemboca sua indagação: de um lado, não haveria na mentalidade grega antiga uma categoria equivalente à concepção moderna de “pessoa”; de outro, um de seus principais atributos, a categoria da “vontade”, em que a pessoa aparece considerada em seu aspecto de agente, teria alcançado ao menos um estado de “esboço”. Como essas conclusões contraditórias conciliamse? Não o fazem. A constatação da dualidade das categorias do agente e da ação trazida à tona por Benveniste, confirmada nos planos da tékhnē e da representação de deuses, mortos e heróis, mas questionada no âmbito jurídico e nas técnicas espirituais dos órficos e pitagóricos acentua a discrepância entre as duas ordens de conclusões a que Vernant chegara.

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3.3. Três retificações para o estatuto do sujeito arcaico

I Segunda fase da obra (1980-2000) No prefácio a L’individu, la mort, l’amour (1989) Vernant pergunta se se trata de uma preocupação nova em seu trabalho, que teria modificado a linha das pesquisas empreendidas desde um quarto de século sobre o homem grego e seu universo mental. A que responde: sim e não. Inicialmente, havia consagrado, em Mito e pensamento, um curto capítulo aos aspectos da pessoa na religião grega e em sua introdução esboçara um quadro do que deveria ser, segundo ele, “uma investigação sistemática sobre a emergência, na Grécia, entre os séculos VIII e IV a. C., senão da pessoa, ao menos de certos traços que a diferenciam do que nós chamamos hoje o eu [le moi]” (2007, p.I-II). Mas essa continuidade de interesse, diz o autor, não configura um simples retorno, mesmo porque a ela se incorpora, doravante, um elemento que teria e se imposto no curso de suas reflexões tardias sobre a figuração dos deuses e a memória dos mortos. “Minha reflexão sobre a experiência grega de um ‘si mesmo’, se encontrou, então, relançada e infletida” (id., p.II). Na figuração dos deuses, Vernant concentrou, inicialmente, o foco da pesquisa em três divindades que se destacavam por seu aspecto singular, as figuras de Ártemis, Dioniso e Gorgó, nas quais se expressa uma experiência da alteridade, do outro e da morte, de que se ocupou particularmente em La mort dans les yeux (1985) e no segundo volume de Mythe et tragédie (1986). Em seguida, por um desdobramento que se impõe como o avesso do gesto anterior. Na memória dos mortos, preservada no canto épico e no monumento fúnebre, sua análise passa a ressaltar a importância concedida ao indivíduo, à identidade singular de cada um e à experiência do “mesmo” no quadro de uma sociedade regida pela lógica da honra, em que cada um se encontra posto sob o olhar dos outros. Tema que constitui o eixo central dos ensaios reunidos em L’individu: Em uma sociedade de face a face, uma cultura da vergonha e da glória em que a competição deixa pouco espaço para o sentido do dever e ignora o do pecado, a existência de cada um é posta sob o olhar do outro. É no olho de seu vis-à-vis, no espelho que lhe apresenta, que se constrói a imagem de si. Não há consciência de sua identidade sem esse outro que o reflete e se lhe opõe, fazendo-o frente. Si mesmo e outro, identidade e alteridade vão de par, se constroem reciprocamente (id., p.II).

Daí o novo conjunto de elementos que entram em sua consideração do estatuto do sujeito na Grécia antiga e reagem sobre a pesquisa anterior, colocando-a sob um novo ângulo: (a) a consideração do outro constitutivo da experiência de si e (b) o papel do olhar em uma “sociedade de confrontação”, como Vernant passa a caracterizar a sociedade grega antiga, na configuração da categoria do sujeito. 136

Temas axiais, a que se agregam, a título de contraponto, diversos subtemas: a diferença entre o corpo dos homens e o corpo dos deuses como delimitação do papel do corpo na constituição da identidade; a relação com a morte e o estatuto singular do morto; a inscrição individual na memória coletiva do nome e do renome do herói, segundo uma lógica da honra, da glória e da vergonha. Pelas três frentes se reformula o estatuto da pessoa em relação aos deuses, aos mortos e aos heróis. Assim relançada e infletida, sob o prisma de suas relações com o outro, no interior de um quadro social marcado pelo confronto, releva, de imediato, por uma maior precisão de conceitos na questão do sujeito. Em primeiro lugar, pela caracterização do perfil societário da civilização grega no que concerne ao lugar do indivíduo. Retomando a distinção estabelecida por E. R. Dodds entre uma “cultura da vergonha” e uma “cultura da culpa”, Vernant começa por modificar os termos, deslocando seus limites temporais: não se trata mais de opor uma a outra, atribuídas respectivamente aos períodos arcaico e clássico, mas de distinguir dois sistemas de valores formados pelo par glória/vergonha, de um lado, correlato da dupla função do elogio e da reprovação, que preside à lógica do discurso dos “mestres da verdade”; e, de outro, um sistema baseado na oposição pecado/dever, correlato dos sentimentos de culpabilidade e obrigação “que remetem necessariamente, no sujeito moral, a sua consciência pessoal e íntima” (id., p.184), o que passa a caracterizar, então, uma mentalidade religiosa especificamente cristã, inteiramente estranha à cultura grega antiga, bem posterior ao advento da pólis clássica. Mas o deslocamento decisivo incidirá na mudança de perspectiva que passa a ter por eixo a identidade do eu. Numa sociedade de confrontação como a grega antiga, “o que é um homem, seu valor, sua identidade implicam que ele seja reconhecido pelo grupo de seus pares”, enquanto que, “expulso da cidade, excluído e desonrado pelo exílio, o indivíduo não é mais nada. Deixa de existir tal como era” (id., p.343). Num paralelo ilustrativo com a cena atual: numa sociedade de espetáculo “o que cada um dá a ver, nos jornais e nas telas de televisão, não é ele mesmo tal como se conhece no segredo de sua consciência pessoal, mas uma imagem fictícia”, isto é, um simulacro encenado segundo as necessidades do contexto publicitário, sendo essa imagem efêmera por definição (id., p.343-344). Ao contrário, para o grego antigo, “em uma vida humana na qual tudo é perecível, transitório, existe apenas uma coisa [...] que escapa à destruição” e que, diversamente das culturas do pecado e do dever, não é nem a alma dentro de nós, nem o corpo destinado à ressurreição, mas “a glória, que faz de nosso nome, de nossas façanhas, o bem comum de todas as gerações por vir”, nisto residindo a imortalidade para os gregos: na memória dos homens e não na ideia de uma sobrevivência individual no além (id., p.344). Donde a distância que separa a lógica grega da honra das culturas judaico-cristãs estruturadas sobre a tensão de culpa e dever:

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Quando um grego agiu mal, não tem a sensação de ser culpado de um pecado, [...] mas de ter sido indigno do que ele mesmo e os outros esperavam dele, de ter perdido a honra. Quando age bem, não é porque se conformou a uma obrigação que lhe seria imposta, uma regra de dever decretada por Deus ou pelo imperativo categórico de uma razão universal. É porque cedeu à atração de valores, ao mesmo tempo estéticos e morais, o Belo e o Bem (id., p.344).

A essa precisão sociológica vem se somar um segundo refinamento conceitual. Trata-se, doravante, de indagar não apenas a categoria da pessoa, mas de reformular a própria colocação do problema, distinguindo três noções aproximadas, que não se recobrem inteiramente: a pessoa, o sujeito e o indivíduo. Distinção que, precisando o alcance das pesquisas anteriores, marca a permanência do juízo sobre a não extensão da categoria da pessoa até o universo grego (arcaico e clássico), bem como permite refazer o percurso através de outras concepções, que teriam encontrado lá uma configuração própria. O que possibilitará a Vernant passar a uma pesquisa positiva da especificidade do homem grego, não apenas pelo prisma da “pessoa”, que eles desconheciam, mas das diferenças internas entre as dimensões do sujeito, do indivíduo e da pessoa, deslocando a ênfase para o modo como se estabelece a experiência da identidade, da individualidade e de “si mesmo” na Grécia antiga. Reformulando a questão do sujeito sob a perspectiva do outro, com as diferenças internas que permitem precisar por dentro a própria historicidade da categoria, a função psicológica do eu será retomada por Vernant como parte de uma problemática geral da identidade e da alteridade, definindo dois grandes eixos que nortearão sua pesquisa tardia: a concepção grega da visão, do olho e do olhar e a questão do indivíduo, do sujeito e da pessoa. Não mais privilegiando as relações com um “si mesmo” definido por sua dimensão interior, como supunha a categoria da “pessoa”, a partir dessa reviravolta não se trata mais fazer uma “história interior do homem grego”, mas tampouco de ver como ele se constitui por fora, senão de perseguir os nexos que os gregos estabelecem entre a identidade e a alteridade, situando a pesquisa no plano de uma análise dos limites do sujeito: na fronteira entre o “exterior” e o “interior”. Assim se desenha um novo campo a ser percorrido. Entre as formas diversas que o outro revestiu aos olhos dos gregos (as bestas, os escravos, os jovens, as mulheres...) há três que sua posição extrema no campo da alteridade designa ao investigador como particularmente significativos: a figura dos deuses, a face da morte, o rosto do ser amado. Porque eles marcam as fronteiras no interior das quais se inscreve o indivíduo humano, sublinham suas limitações, despertando, pela intensidade das emoções que suscitam, o desejo de ultrapassá-los, esses três tipos de afrontamento ao outro funcionam como pedras de toque para por à prova a identidade tal como os gregos a compreenderam e assumiram (id., p.II).

Mas antes de vir ao texto que aborda diretamente esses problemas, o que ocorre apenas no último dos dez ensaios que compõem o livro, duas observações preliminares se impõem ao nosso percurso: uma precisão sobre a noção grega de prósōpon, em que se destaca o trabalho de Françoise 138

Frontisi-Ducroux e um aporte tardio de Vernant sobre as noções de sôma e psykhḗ , reformulando as bases em que Bruno Snell havia posto classicamente o problema.

Frontisi-Ducroux e os valores gregos de prósōpon

Inscrevendo-se diretamente na linha de pesquisa de Vernant, dispomos hoje sobre os valores do termo prósōpon, na dupla acepção de “rosto” e “máscara”, da investigação exaustiva conduzida por Françoise Frontisi-Ducroux em sua tese de doutorado Prosōpon. Valeurs grecques du masque et du visage (1988), publicada em dois grossos volumes, de um total de 831 pp., mais um catálogo de 148 pp. e um volume de pranchas de 365 pp. Não fosse o bastante, a autora retoma e desenvolve o tema em dois livros posteriores, Le Dieu masque (1991) e Du masque au visage (1995). FrontisiDucroux já havia escrito a quatro mãos com Vernant o ensaio “Figuras da máscara na Grécia antiga”, publicado no segundo volume de Mito e tragédia na Grécia antiga (1986), enquanto Vernant orientava sua tese. Para o fim que nos interessa, basearemos as observações seguintes principalmente no relatório de defesa que Vernant escreve em 1987, complementando suas observações com referências extraídas de Du masque au visage. Segundo Vernant, ao interrogar-se sobre o termo prósōpon, Françoise Frontisi foi levada não apenas a questionar, de forma convincente, “a tese clássica que faz do prósōpon, no sentido de máscara teatral, o ponto de partida do desenvolvimento da categoria da pessoa no Ocidente”14, como também a explorar “o campo no qual se perfila o indivíduo grego, a seus olhos e aos olhos dos outros, enquanto prósōpon referir-se àquilo que cada um oferece de si para a vista mais do que àquilo que cobre e dissimula o rosto” (Vernant, 2001, p.337, grifo meu). Retenho os pontos centrais de seu argumento de defesa, já esquemáticos por seu caráter de suma formal, apresentada a uma banca examinadora. Do resumo, importa destacar o modo como Vernant insere, transversalmente, o tema de Frontisi no quadro de suas próprias interrogações. Em uma sociedade de confrontação, caracterizada pela reciprocidade entre o ver e o ser visto, havendo uma completa assimilação entre os raios luminosos que o sol dardeja, os raios visuais emitidos pelo olho e aqueles que, enviados por superfícies reflexas, dão a ver o objeto do olhar, o rosto-máscara, o olho, o espelho formam em sua íntima conexão as três partes de um mesmo conjunto e comandam toda a problemática grega do visível e do invisível, da vida e da morte, do real e da imagem. No limite, poderíamos dizer que o conhecimento de si e do outro, neste contexto cultural, opera segundo uma dupla relação. Em primeiro lugar, uma relação de reciprocidade: eu me vejo nos olhos do outro que está na minha frente assim como ele se vê no espelho dos meus; depois, de “Uma tradição quase unânime supõe que a máscara desempenhou um papel decisivo na evolução semântica do termo prósōpon”, entre os quais Frontisi-Ducroux destaca, com diferentes nuances, os trabalhos de Hirzel, Schlossman, Meyerson, Nédoncelle, Ghiron-Bistagne e Hadot (2012, p.118; 310). 14

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reflexividade: no espelho em que olho para mim, vejo a mim mesmo como rosto e olho que me vê (id., p.337).

Frontisi optou por centrar sua análise em torno de três temas estratégicos do ponto de vista das relações entre o visível e o invisível: o mito de Perseu e as figurações do rosto de Gorgó, com valor exemplar de imagem cuja visão é proibida e expressão do que não pode ser visto sem a mediação do reflexo em um espelho; os valores múltiplos que o espelho e a imagem nele refletida revestem nas narrativas sobre o mito de Narciso; por fim, a máscara de Dioniso e os valores particulares da alteridade que traduzem as figurações do deus. Três pontos haviam sido ressaltados em Mito e tragédia II: “o assombreamento do corpo em proveito da cabeça; a facialidade e a reciprocidade ver-ser visto; a relação com a alteridade” (id., p.339). Concluía-se, então, que, “se determinadas potências religiosas são figuradas por máscaras é porque só se pode abordá-las de frente e que, ao cruzar seu olhar, caímos sob o império de seu fascínio; elas nos lançam para fora de nós, nos possuem” (id., p.339). Em sua tese, Frontisi retoma a questão mostrando que “o que aparecia como característica da máscara é na verdade uma característica do rosto”. Com o que, diz Vernant, a pesquisa foi, de um golpe, deslocada e ampliada. Não se restringe mais à figuração de determinadas potências sobrenaturais, mas passou a recentrarse nas “relações entre o prósōpon em geral e aquilo que o define, na cultura grega arcaica e clássica”, a saber, a visão, o visível, o olhar, por um lado; a identidade, a ipseidade e a singularidade dos indivíduos que se dá a ver em seu rosto (id., p.339-340). De saída, é preciso sublinhar a oposição entre o prósōpon grego e a noção moderna de máscara: “O prósōpon dá a ver, ele mostra. A máscara cobre e dissimula”. Mas esse contraste não é tão sumário, nem absoluto como se poderia supor. Pois, “se o prosōpeîon chegou, tardiamente, a diferenciar-se nitidamente de prósōpon para marcar a distância entre máscara (teatral) e rosto, não seria por que uma certa tensão entre os dois sentidos já operava nos usos de prósōpon?” (id., p.340). Assim, o prósōpon também pode dissimular, “é virtualmente falacioso, é uma fachada às vezes enganosa”. Como a máscara que o encobre, mostrando outra coisa, a expressão do rosto guarda uma potência de engano. Contudo, sublinha Fr. Frontisi: “se o prósōpon pode dissimular, é apenas em segunda instância, como complemento de seu papel inicial de mostrar” (id.). De qualquer modo, a oposição não coincide inteiramente com o contraste entre esconder-mostrar. Os termos não constituem opções exclusivas, mas são como polos indissociáveis de um mesmo fenômeno: Em uma cultura da confrontação, o prósōpon-rosto impõe-se claramente como sinal da autenticidade do que é cada indivíduo. Mas quando a oposição aparência-realidade se torna mais visível e a consciência de uma interioridade dos sujeitos se desenvolve, o prósōpon-rosto precisa assumir, no contexto de uma função de “dar a ver”, o papel de maquiar e de mascarar. Para que a perspectiva se inverta inteiramente e que o rosto seja pensado em si como uma espécie de máscara em vez de 140

aparecer como outro rosto, será preciso que o indivíduo tenha deixado de apreender a si mesmo na confrontação com o outro, que tenha partido em busca de si no segredo de sua consciência solitária (id., p.340).

Como lembra Vernant, a oposição aparência-realidade apenas começa a se esboçar por volta do século V a.C. e a consciência de uma interioridade do indivíduo, rigorosamente falando, não encontrará lugar antes do século III d.C. De modo que, podemos acrescentar, no contexto grego o prósōpon permanece incluído num regime semelhante ao de alētheía, em sua dupla função de mostrar-esconder, partilhando, no plano do visível, de uma potência de engano (apátē) análoga à que verdade recobre no plano do lógos. Ou seja, embora a mesma tensão possa ser encontrada, em outros domínios, de Hesíodo (as musas sabem dizer verdades e mentiras parecidas com realidades) a Safo (na forte oposição entre ser e parecer do fr. 31V), enquanto a explicação mítica concilia os opostos, a ambiguidade não afeta o primado da função de prósōpon mostrar, “fazer aparecer na luz”. Não há um segundo plano oculto, mas apenas o que se vê e o que permanece invisível. Mas alguns problemas decorrem desse quadro para o observador atual. Uma vez que, na concepção grega, há circularidade do olho ao objeto da visão, relação especular entre ver e ser visto, a dificuldade, diz Vernant, não está tanto em entender “como se vê”, o que suporia as questões relacionadas do que é a luz fisicamente, do olho como dispositivo óptico que produz a imagem na retina e da instância psíquica do sujeito vidente (id., p.341). Pelo contrário, para o homem grego antigo a visão é evidente, “o único problema é a existência das ilusões de ótica, dos erros, das coisas que se vê e que não têm realidade ou que se vê onde elas não estão” (id., p.341). Nesse sentido, como aparecerá para Platão em primeiro lugar, o problema central concerne ao estatuto da imagem no contraste entre aparência e realidade, na medida em que é objeto de uma atividade mimética. Como veremos, Aristóteles constitui, também aqui, uma exceção, afastando-se do modelo tradicional da visão definida por uma relação de participação (méthexis). Já uma problemática diferente decorre das “múltiplas modalidades segundo as quais o rosto se oferece ou foge à visão”. Nesse contexto, parece especialmente pertinente a oposição entre a representação de frente e de perfil. Visto que a figuração de perfil constitui a norma da representação grega, se poderia dizer que um “efeito de máscara” é assumido pela facialidade na medida em que configura um uso desviante. Vernant vai mais longe: Entre os seres humanos, o frente a frente [...] significa contato, comunicação, conhecimento de si e do outro. A relação interindividual se estabelece pelo cruzamento de olhares. Mas a reciprocidade entre o ver e o ser visto só parece feliz entre os seres vivos. O olho dos mortais não pode contemplar o rosto dos deuses, que o cega por excesso de brilho, bem como o da morte, totalmente obscuro. Frente a essas potências, o olhar, o olho, a visão, não funcionam mais no modo da reciprocidade ou da reflexividade, eles provocam, ao contrário, o “arrancamento” de si, da luz, da vida e fazem passar para a alteridade completa ou parcial. Prósōpon, a partir de então, não traduz mais a troca de olhares, 141

mas o fascínio de um pelo outro, não preside mais à comunicação equilibrada: engole ou rejeita (id., p.341).

Nesse aspecto, a análise não poderia deixar de lado a dimensão da alteridade, e Frontisi torna a encontrá-la na facialidade dos moribundos, da embriaguez, dos estados extremos: o rosto frontal, quando se trata de uma figura humana, pode expressar plasticamente, a ruptura do laço social, a evasão para um além. Como a face de Gorgó ou de Dioniso, o rosto humano produz um efeito de máscara quando, apresentado de frente, aparece como portador de uma alteridade que isola, que põe de lado, quase sempre excluindo do grupo, às vezes – segundo Fr. Frontisi – colocando acima e fora da comunidade devido ao fato de o personagem figurado ser emblemático da comunidade inteira (id., p.341, grifo nosso).

De toda forma, conclui Vernant, “na história da pessoa, o prósōpon, em sua acepção de máscara teatral, certamente não desempenhou o papel central que lhe foi atribuído com maior frequência” (id.,340). As análises de Frontisi sobre a dualidade do termo, as relações que ele evoca entre máscara, personagem e papel mostram que “o gênero dramático não deixou de ter algum efeito sobre a elaboração da categoria da pessoa” (id., p.340). Mas a distância que assinalamos claramente, hoje, entre máscara e rosto, seguramente não está marcada no termo grego. Mesmo no teatro “o rosto do ator não existe”. Ao portar a máscara, o ator se transforma no personagem que ele encarna, mas “o ator não forma uma unidade com seu personagem, assim como o possesso não o faz com o deus que o invade no entusiasmo” (Ildefonse, 2009). Ao contrário, fora da cena dramática, o rosto é, em um ser, “o que se vê primeiro, o que transparece de cada um em sua face, o que o identifica e o faz reconhecer desde que está presente ao olhar dos outros” (Vernant, 1989, p.11-12). Importa notar, finalmente, que a acepção de prósōpon como “pessoa” não se atesta na Grécia clássica. Os gregos dispunham de dois termos principais para designar a “máscara”: prósōpon e prosōpeîon. A que as enumerações dos gramáticos acrescentam as palavras gorgóneion e mormolykeîon (Frontisi-Ducroux, 2012, p.25). Registra-se ainda a forma prósopsis (semblante, aparência visual), mas ela é extremamente rara (id., p.300). Ora, gorgóneion é um termo quase técnico, específico da máscara da Górgona e não se aplica a nenhum outro tipo de máscara, enquanto mormolykeîon se reserva principalmente à “máscara que faz medo” (id., p.29). O que torna ambos os termos muito pouco empregados, sendo os nomes mais correntes prósōpon e seu derivado prosōpeîon, que, entretanto, não é atestado antes do século III a.C. Assim, nos textos anteriores a essa data é o substantivo prósōpon que designa quase exclusivamente a máscara e a extensão da palavra permite que ela se aplique a todas as categorias de máscara, excluindo apenas de Gorgó (id., p.37). Mas, então, como se observou, trata-se da mesma palavra utilizada para designar o rosto. Ao longo da Antiguidade, o prósōpon se enriquece, de fato, com valores suplementares, até tomar a seu cargo, na época cristã, a designação de uma categoria psicológica nova, a da pessoa. As opiniões 142

divergem sobre o momento em que essa noção se constitui e sobre as modalidades de sua aparição, incontestavelmente preparada pela reflexão filosófica e pelos debates jurídicos em Roma (id., p.113).

Para o fim aqui proposto, basta notar que ainda entre os escritores gregos aparecem alguns sentidos intermediários de prósōpon: “personagem”, “papel”, “personalidade” e “indivíduo”, quase todos, atestados somente alguns séculos depois de Aristóteles e, em geral, sob a influência de autores bilíngues, como Políbio e Dionísio de Halicarnasso, que falavam e pensavam em latim (id., p.122). Destes sentidos secundários, o de “personagem” certamente já se encontra antecipado em Aristóteles, mas a noção só pode se exprimir com a ajuda da palavra êthos (“caráter”) ou pelo particípio do verbo práttein (práttontas, “agente, atuante”). De igual modo, a noção de “indivíduo” não encontra sua formulação senão na expressão kat’ hékaston e em termos relacionados. De resto, Aristóteles certamente não conheceu para prósōpon senão os sentidos de “máscara” e “rosto”. Portanto, é dentro desses limites estritos que se pode medir o alcance da reflexão de Platão e Aristóteles para a evolução semântica da categoria da “pessoa”. Se para Platão o prósōpon não se confunde com o verdadeiro “sujeito”, opondo-se a psykhḗ (Alcebíades, 130c), Aristóteles será peremptório e menos especulativo, atendo-se ao sentido literal da palavra – o “rosto” é apenas uma parte da anatomia do homem, embora privilegiada: no homem a parte compreendida entre a cabeça e o pescoço se chama prósōpon, nome que ela deve, parece, à sua função. Devido ao fato que o homem é o único animal que fica em pé, ele é também o único que olha de frente e que emite sua voz na frente (Aristóteles. Partes dos animais, III, 1, 662 b 19, grifo nosso).

Apenas se ressalta que os animais não têm, propriamente falando, um prósōpon, no sentido que o que diferencia a facialidade do homem é o fato de ele transformar seu rosto em um meio de contato frontal. Ainda que o termo não seja “próprio do homem”, como supunha o gramático Pollux, talvez influenciado por Aristóteles, contrastando-o com protomḗ , empregado especificamente para os animais, certo é que “o rosto é considerado pelos gregos como um médium privilegiado nas relações entre os indivíduos” (Frontisi-Ducroux, 2012, p.46). Ao contrário de seu equivalente latino, a etimologia do termo grego não apresenta obscuridade, nem dificuldade: *proti- ou prós- (*προτι- ou προσ-), “na frente”, “em frente de”, “diante de”, “antes de”), associado ao radical óps (ὤψ), “visão”, “olho”, “semblante”, “face”, usado com sentido equivalente a “em face de”, “de frente”, mas também “voz”, “som”, “fala”, “linguagem”; embora possua formação semelhante a métōpon (“espaço entre os olhos, testa”), sua interpretação é ligeiramente diferente, devendo significar “o que está diante dos olhos [de outro]” (apud id., p.40). Aristóteles viu, aqui, uma palavra formada sobre a própria realidade que devia designar, precisando que o nome proviria de sua função: o “rosto” se diz prósōpon porque ele é visto de frente 143

e seu portador emite sua voz na frente. Observação capital, nota Frontisi, pois ela põe em paralelismo a voz e o olhar, estabelecendo uma relação entre os dois componentes do termo, o ver e diante. Mas Aristóteles confere a essa relação um valor ativo, enquanto o primeiro componente do termo (prós-) não indica apenas uma posição espacial, como a preposição metá- (“entre, com”) na palavra meiairmã, mas comporta também um valor direcional, de orientação: o prósōpon se entende como diante em relação aos olhos de um sujeito vidente. Ele necessita de um observador e seu valor primeiro é incontestavelmente passivo. O prósōpon não é sentido como uma unidade distinta, definida por sua situação na totalidade do corpo, mas como um conjunto de elementos que “se oferecem à vista”, donde o plural, mais frequente em Homero que o singular. Ta prósōpa são os “traços” de um indivíduo enquanto se dão a ver (Frontisi-Ducroux, 2012, p.41).

O privilégio do plural em Homero não deve surpreender: ele é sintomático da visão fragmentada e dispersa do homem arcaico.15 Do mesmo modo, “tudo o que concerne à visão em grego se submete a um princípio de reversibilidade, o ver sendo inseparável do ser-visto”. Assim, o prósōpon é mais precisamente “o que se apresenta à vista [de um outro]”. E o complemento no genitivo, que o Dicionário etimológico de Chantraine põe entre colchetes, é decisivo (id., p.40-41). Ele sublinha essa dependência do eu, individualizado por seu “rosto”, a uma referência externa, mesmo quando se trata de um face a face com sua própria imagem. No uso cotidiano, entretanto, frequentemente se pode entender o sentido literal e traduzir: a “frente” de um objeto, o “aspecto anterior” de uma coisa. Nesse sentido, “o grego clássico poderia falar do prósōpon da lua ou de um navio ou de um exército”. Dessa primeira acepção a palavra teria advindo ao sentido de “máscara” por metáfora, como uma espécie de “segundo rosto”, guardando esse sentido geral mesmo após a formação do derivado prosōpeîon, para designar especificamente a máscara teatral (Nédoncelle, M: 1948, p.278-79). seria inverossímil antes da era cristã ouvir falar do prósōpon de Lysandro no sentido em que o latim de Cícero já podia dizer: persona Laelii, o que equivale a: Laelius ele mesmo, com um pouco mais de solenidade. Com mais forte razão, não se poderia perguntar: “quantas prósōpa” se encontram em uma sala de reunião (id., p.282).

É esse face a face, a relação com o olhar que define o valor de prósōpon no tempo de Aristóteles. Embora ainda não tenha relação com a persona latina, esse rosto-máscara possui um laço indissociável com o modo pelo qual se constitui a identidade do indivíduo. Como escreve Vernant, o homem grego antigo não dispõe de Frontisi propõe um contraste notável com outras sociedades arcaicas: “não é certo que todas as línguas possuam um termo para designar [o rosto]. Pode-se muito bem conceber que apenas sejam nomeadas a cabeça e seus componentes. Que uma língua possua um nome para as diversas partes como as bochechas, a testa, o nariz, a boca, o queixo, sem que exista um termo denotando o conjunto. Quanto aos valores gregos do rosto, se muitos deles nos parecem familiares, eles não são, entretanto, universais. Há muitas sociedades em que não se olha de frente, onde certos rostos, o do soberano, do feiticeiro, dos poderosos, das mulheres, são ocultos, interditos, perigosos. Nada disso parece suceder na Grécia” (2012:43) 15

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nenhum outro meio para se apreender a si mesmo na singularidade de sua fisionomia que o face a face através do espelho em que se vê vendo-se, onde se olha olhando-se. O rosto, em grego, se diz prósōpon: o que se apresenta de si ao olhar dos outros, essa figura individualizada oferecida aos olhos de quem quer que se aborde de frente e que é como o selo de sua identidade. Vendo seu rosto no espelho o homem se conhece como os outros o conhecem: no face a face, cruzando os olhares, se acede a si mesmo projetando-se para fora, objetivando-se, à maneira de um outro, na forma de um rosto examinado direto nos olhos e cujos traços à descoberto brilham com a claridade do dia (Vernant, 2007, p.118-19).

A categoria do corpo (sôma) e a experiência de si

Passando à segunda retificação, uma série de artigos dedicados à categoria grega do corpo propõe retomar a discussão do significado de sôma para além do aporte filológico estabelecido por B. Snell. Em “Corpo divino, corpo imortal” (1986), Vernant começa por recolocar alguns pingos nos “is”: o corpo não é uma categoria simples. Como já havia indicado Mauss em suas notas para uma possível história do corpo, através do estudo de diferentes “técnicas corporais” nas distintas épocas e civilizações16, em seu prolongamento, pergunta Vernant: de que “corpo” estamos falando quando nos referimos ao corpo na sociedade grega arcaica? Trata-se do corpo cristão, corpo-carne, decaído e marcado pelo pecado, “cena e centro da salvação pessoal de cada um” e de sua redenção através de um deus encarnado? Ou teremos em mente, antes, esse corpo físico, “puramente corpo porque separado da alma, oposto a ela como a matéria ao espírito, reduzido a sua aparência natural visível, sua anatomia, sua maquinaria fisiológica”? Trata-se de um “corpo unificado em seus componentes orgânicos”, que seria dado ao nascer e conservado até a morte, base orgânica da individualidade humana, “um corpo singular para cada um que, acoplado à alma, marca a pessoa e engaja seu destino religioso” (id., p.416-417)? Certamente não. Como atestam os trabalhos de filólogos, antropólogos e historiadores da religião, ao contrário das modalidades que assumiu em sua feição moderna, o corpo das civilizações arcaicas seria antes um corpo animado por espíritos, sopros e energias, habitado por ancestrais ou divindades, investido e atravessado por potências sobrenaturais: Um corpo [...] múltiplo, plural em seu papel de brasão dos estatutos pessoais endossados cada um por sua vez durante a vida – um corpo [...] que, retocado pelas tatuagens, decorações, mutilações rituais para traduzir valores sociais, estéticos, religiosos diversos, deve ser edificado, reconstruído pouco a pouco na medida em que, com a idade, outras tarefas, outras funções incumbem ao homem e em que ele adquiriu o domínio de competências e poderes inéditos (id., p.416-417).

16

Mauss, M. “As técnicas do corpo” (1934). In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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Seguindo de perto o argumento que será desenvolvido no primoroso capítulo de abertura de O indivíduo, a morte, o amor (“Mortels e immortels: le corps divin”, 1986), vejamos como a reflexão que se segue marca a virada de Vernant em relação ao tema do sujeito. Virada que se processa simultaneamente em vários níveis, principiando pelo papel do corpo no estabelecimento da identidade do indivíduo. Enquanto seu estudo inicial sobre os aspectos da pessoa na religião sequer se detinha na categoria do corpo, esta passa a ocupar, a partir de agora, uma posição central na pesquisa. Poder-se-ia, sem dúvida, começar sua indagação pelo problema que se apresenta ao historiador das religiões: “Para se representar os deuses, os gregos lhes teriam realmente atribuído a forma de existência corporal que é própria a todas as criaturas perecíveis, vivendo aqui em baixo, sobre esta terra?”. Mas colocar a questão nestes termos “seria admitir, de saída, que ‘o corpo’ constitui para os homens um dado de fato, de evidência imediata, uma realidade inscrita na natureza e sobre a qual não há necessidade de se interrogar” (Vernant, 2007, p.8). Daí ser mais apropriado tomar a questão por outro ângulo, fazendo recair o acento sobre o próprio corpo colocado não como um fato da natureza ou uma realidade constante e universal, mas como “uma noção inteiramente problemática, uma categoria histórica, “moldada de imaginário” (pétrie d’imaginaire), para retomar a expressão de Le Goff, e que se trata de decifrar, a cada vez, no interior de uma cultura particular”, investigando as formas e funções particulares que nela assume. “A verdadeira questão, portanto, se formula: que foi o corpo para os gregos?” (id., p.8). Mas é preciso começar por desfazer a “ilusão de evidência” que o conceito apresenta para o analista atual. Esta decorreria principalmente de duas razões: (i) da “oposição categórica que se estabeleceu na nossa tradição entre a alma e o corpo, o espiritual e o material”, em primeiro lugar, a que se acrescenta o fato de que, (ii) reduzido à matéria, o corpo passou a concernir a um estudo positivo, adquirindo, a nossos olhos, o “estatuto de um objeto científico, definido em termos de anatomia e de fisiologia” (id., p.9). A dificuldade se complica ao na medida que os próprios gregos preceriam ter contribuído para essa “objetivação” com (iii) o desenvolvimento de uma nova noção de alma, oposta ao corpo, elaborada nos meios das seitas órficas e pitagóricas, posteriormente retomadas e transpostas em uma linguagem filosófica por Platão, e (iv) de uma prática e uma literatura médicas, descrevendo numa perspectiva de cunho positivo os aspectos físicos do corpo. Mas, explica Vernant, tanto essa afirmação da “presença, em nós, de um elemento não corporal, aparentado ao divino e que é ‘nós mesmos’ [no caso da “alma” em Platão], bem como essa abordagem naturalista do corpo [na medicina clássica] marcam, na cultura grega, mais do que uma mudança: uma espécie de ruptura” (id., p.9). Para evitar o extravio a que poderia conduzir a concepção grega clássica de sôma, será mais adequado começar a indagação pelos valores atribuídos ao corpo no período arcaico, desvinculando146

o do sentido estrito abarcado pela categoria linguística privilegiada pelo método lexical de Snell. O que equivale a dizer: elevando-a ao plano mais abrangente de uma categorização social, de modo semelhante ao que Vernant fizera em relação às categorias do agente e da ação analisadas por Benveniste. É intencionalmente que Vernant resume as conclusões do helenista alemão antes de passar ao salto interpretativo que propõe. A começar pelo testemunho de um filósofo pré-socrático não tratado por Snell: Para cavar o fosso que separa o deus do homem, Xenófanes não é levado a opor o corporal ao que não o seria, a um imaterial, um puro Espírito; é-lhe suficiente acusar o contraste entre o constante e o cambiante, o imutável e o móvel [...]. É que na idade arcaica a “corporeidade” grega ainda ignora a distinção alma-corpo; ela não estabelece entre a natureza e o sobrenatural um corte radical. O corporal no homem recobre igualmente as realidades orgânicas, as forças vitais, as atividades psíquicas, as inspirações ou influxos divinos. A mesma palavra pode se referir a estes diferentes planos; em contrapartida, não há um termo designando o corpo como unidade orgânica servindo de suporte ao indivíduo na multiplicidade de suas funções vitais e mentais (id., p.10-11).

Retomando quase literalmente as balizas indicadas por Snell, segue um comentário sucinto sobre os termos sôma, démas, khrṓ s, guîa, mélea e kára, que resume ponto por ponto, sem citá-lo, o argumento do primeiro capítulo de A descoberta do espírito, ao termo do qual Vernant subscreve de bom grado sua “metáfora orgânica”. Mas já no final da passagem seguinte se introduz uma nota imprevista: O termo sôma designa precisamente em Homero o corpo do qual a vida foi retirada, o despojo de um ser defunto. Enquanto o corpo está vivo, ele é visto como uma multiplicidade de órgãos e de membros animados por pulsões que lhes são próprias: ele é o lugar onde se exibem e por vezes se afrontam os impulsos, as forças contrárias. É quando, com a morte, ele se encontra desertado que o corpo adquire sua unidade formal. De sujeito e suporte de ações diversas, mais ou menos imprevistas, ele se tornou puro objeto para os outros: e primeiro objeto de contemplação, espetáculo para os olhos, em seguida, objeto de cuidados, de deploração, de ritos funerários (id., p.60-61, grifo nosso).

Ao passo que o corpo vivo, inominado, disperso em uma multiplicidade de membros, não era capaz de servir de “suporte ao indivíduo”, ao adquirir, na morte, sua “unidade formal”, ao mesmo tempo que se torna objeto para o olhar dos outros, o sôma-cadáver passa a indicar uma mudança de estatuto: sem que tenha se identificado com o sujeito, ele passa a estabelecer uma nova relação entre a individualidade do morto e comunidade dos vivos. Essa transformação já havia sido brilhantemente intuída por Detienne: “enquanto o corpo vivo é fracionado nas múltiplas tensões que o atravessam, é o corpo-cadáver, suporte individualizado de ritos funerários, que é apreendido em sua unidade, mas é um corpo-objeto cuja forma lhe confere unidade” (Detienne, 1973, p.47). Ao retomá-la, Vernant vai rever a conclusão a que o filósofo belga chegava ainda na esteira de Snell: “a noção de corpo não podia, então, fundar a ‘personalidade’, pois ela ainda não havia sido descoberta” (id.). 147

Complementando essa primeira metade da retificação, Vernant encontra um apoio suplementar na reformulação da “metáfora orgânica” de Snell por James Redfield, em “Le sentiment homérique du Moi” (1985), incidindo, dessa vez, sobre o próprio corpo vivo: Para marcar esse intrincamento do físico e do psíquico em uma consciência de si que está ao mesmo tempo implicada nas partes do corpo, James Redfield escreve, de maneira impressionante, que no herói de Homero “o eu [moi] interior não é nada mais que o eu orgânico” (id., p.12).

Partindo da análise desenvolvida por Redfield, segundo a qual a consciência de si em Homero seria uma “consciência orgânica” e do insight de Detienne sobre a “unidade formal” do cadáver, Vernant se arma para propor uma drástica reavaliação do estatuto do corpo no contexto do homem homérico. Transpondo a restrição semântica de sôma e a dispersão conceitual do vocabulário arcaico para o plano mais amplo de categoria histórica, o helenista vai explorar todo um leque de aspectos até então ignorados nos sistemas de práticas e valores arcaicos diretamente relacionados à experiência de si. Reviravolta que se cumpre no trecho destacado: Esse vocabulário, senão do corpo, ao menos das diversas dimensões ou aspectos do corporal, constitui em seu conjunto o código que permite ao grego exprimir e pensar suas relações consigo mesmo, sua presença para si em maior ou menos grau, mais ou menos unificada ou dispersa, segundo as circunstâncias; mas ela conota igualmente suas relações com os outros aos quais o ligam todas as formas da aparência corporal: rosto, tamanho, porte, voz, gestual, o que Marcel Mauss chama de técnicas do corpo [...] ele engloba igualmente as relações com o divino, o sobrenatural, cuja presença dentro de si, em e através de seu próprio corpo, como as manifestações fora, por ocasião de aparições ou epifanias de um deus, se exprimem nesse mesmo registro simbólico (id., p.12-13).

Ao reinscrever o vocabulário do corpo no plano de um sistema simbólico mais amplo, como um código corporal permitindo pensar as relações consigo mesmo, com os outros e com o divino, dessa rede de relações envolvendo um deslocamento na interpretação tradicional da noção de individualidade como “consciência corporal de si”, propõe-se reter os traços pertinentes para o fio condutor do capítulo: Trata-se, grosso modo, de decifrar todos os signos que marcam o corpo humano com o selo da limitação, da deficiência, da incompletude e que faz do seu um subcorpo. O subcorpo não pode ser compreendido senão por referência ao que ele supõe: a plenitude corporal, um sobrecorpo, o dos deuses. Examinar-se-á, então, os paradoxos do corpo sublimado, do sobrecorpo divino (id., p.13).

A fim de analisar os limites da categoria grega do “si mesmo”, Vernant começa por traçar a linha fronteiriça entre homens e deuses a partir dos valores ligados ao corporal. Desde logo, invertese o privilégio tardiamente concedido à alma: para o grego arcaico “o mal dos homens não vem, portanto, de que a alma, divina e imortal, se encontra neles aprisionada no invólucro de um corpo,

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material e perecível, mas de que seu corpo não é plenamente um”, isto é, que ele não dispõe em sua plenitude dos valores atribuídos ao corpo divino (id., p.16). Nesse sentido, parece paradoxal que os deuses sejam designados athánatoi, não-mortais, e ámbrotoi, não-perecíveis, pois, “para os opor aos humanos, ela define negativamente – por uma ausência, uma privação – os seres cujo corpo e vida possuem uma inteira positividade, sem falta nem defeito”. Mas é o próprio paradoxo que fornece a pista correta quanto à orientação assumida, na medida em que permite entender que, “para pensar a vida e o corpo divinos, os gregos deviam, como referência obrigatória, partir do corpo defeituoso, dessa vida mortal de que eles faziam cada dia, por si mesmos, a experiência” (id., p.16). Daí a necessidade sentida pelo grego arcaico de partir do corpo mortal [...] para melhor se desprender dele, se distanciar dele por uma série de afastamentos, de denegações sucessivas a fim de constituir uma espécie de corpo depurado, uma idealidade do corpo, incarnando as eficiências divinas, os valores sacrais que vão, desde então, aparecer como a fonte, o fundamento, o modelo do que, sobre esta terra, não constitui mais que seu pobre reflexo, a imagem enfraquecida, deformada, derrisória: esses fantasmas de corpo e de vida que dispõem os mortais no curso de sua breve existência (id., p.17, grifo nosso).

Pela referência a um “corpo ideal”, posto como modelo, a interpretação do corpo humano se inscreve de saída numa relação mimética (Vernant não utiliza essa expressão) com o corpo divino. Mas não como seu mero reflexo invertido. Ao contrário da redução o que o leitor moderno chamaria de projeção do ideológico, o campo simbólico traçado pelo pensamento religioso arcaico impõe uma relação menos retilínea: Também é preciso retificar a opinião comum segundo a qual o antropomorfismo dos deuses gregos significa que eles são concebidos à imagem do corpo humano. Se dirá mais precisamente o inverso: em todos os seus aspectos ativos, todos os componentes de seu dinamismo físico e psíquico, o corpo do homem remete ao modelo divino como à fonte inesgotável de uma energia vital cujo esplendor, quando vem brilhar por um instante sobre uma criatura mortal, a ilumina, em um reflexo fugaz, de um pouco desse esplendor de que o corpo dos deuses está constantemente revestido (id., p.19).

Como a kháris, graça divina, “faz brilhar o corpo de um esplendor alegre e que é como a emanação mesma da vida”, todos os aspectos corporais imediatamente visíveis aos olhos dos outros – “o tamanho, a envergadura, o porte, a velocidade das pernas, a força dos braços, a frescura da carnação, a distensão, a flexibilidade, a agilidade dos membros” – e os que são captados por cada um dentro de si mesmo, em sua “consciência orgânica”, nesses “órgãos” da alma que são seu stêthos, seu thymós, seus phrḗ nes, seu nóos, seu prapídes – “a fortaleza, o ardor do combate, o frenesi guerreiro, o ímpeto da cólera, do medo, do desejo, do domínio de si, a intelecção avisada, a astúcia sutil” – todos esses traços corporais constituem signos que traduzem as “potências” de que o corpo é, a cada vez, depositário e “cujas marcas se pode ler sobre ele, atestando o que um homem é e o que ele vale” (id., 149

p.20). Na medida em que a kháris ultrapassa o indivíduo dentro dele mesmo, lá onde o homem moderno esperaria encontrar apenas uma experiência “interior”, ao contrário de uma prancha anatômica contendo a morfologia de um conjunto de órgãos, na qual figurariam as particularidades físicas de cada um, o corpo grego aparece antes como uma espécie de brasão heráldico em que se inscrevem as marcas que permitem identificar o indivíduo, assinalando seu lugar e seu estatuto no grupo, “fazendo aparecer em traços emblemáticos, os múltiplos ‘valores’ – de vida, de beleza, de poder – de que um indivíduo se encontra provido, de que é titular e proclamam sua timḗ : sua dignidade e sua posição” (id., p.20). Pela combinação dessas qualidades, potências, valores “vitais”, que comportam sempre, por referência ao modelo divino, uma dimensão sagrada e cuja dosagem varia conforme os casos individuais, o corpo reveste a forma de uma espécie de quadro heráldico onde se inscreve e se decifra o estatuto social e pessoal de cada um: a admiração, o temor, a inveja, o respeito que inspira, a estima em que é tido, a parte de honras às quais tem direito – para dizer tudo, seu valor, seu preço, seu lugar em uma escala de “perfeição” que se eleva até os deuses, instalados em seu topo e da qual os humanos se repartem, em diversos níveis, os estágios inferiores (id., p.21).

Enquanto fenômeno de classificação social e de constituição da identidade individual, o sistema simbólico visado por Vernant não se esgota, portanto, em termos de mera representação ideológica. Donde duas séries de observações que perfila para completar a reviravolta proposta pelo esquema interpretativo. Estabelecida a linha que separa o humano e o divino, cabe frisar, em primeiro lugar, as fronteiras que assinalam no interior desse quadro o estatuto do corpo vivo, para o qual Homero não possuía um nome: O corpo humano é, bem entendido, estritamente delimitado. Se perfila como a figura de um ser distinto, separado, com seu dentro e seu fora, a pele marcando a superfície de contato, a boca, o ânus, o sexo, os orifícios assegurando a comunicação com o exterior. Mas ele não é, por essa razão, encerrado sobre si mesmo, fechado, isolado, separado do resto, como um império dentro de um império. Pelo contrário, ele é fundamentalmente permeável às forças que o animam, acessível à intrusão das potências vitais que o fazem agir. Quando um homem se alegra, se irrita, se compadece, sofre, se encoraja ou sente alguma emoção, ele é habitado por pulsões que experimenta dentro de si mesmo, na sua “consciência orgânica”, mas que, insuflados nele por um deus, o percorrem e o atravessam à maneira de um visitante que lhe chega de fora (id., p.21)

Enquanto constitutivos de uma experiência humana, estados mentais e emocionais são rigorosamente localizados no corpo e ligados ao corpo particular que eles investem; enquanto “potências” cósmicas, extravasam e ultrapassam o invólucro carnal singular: “assim como o invadiram, podem desertá-lo”. Quando se diz que o espírito de um homem se cega ou ilumina, “é mais frequentemente um deus que intervém, na intimidade de seu nóos ou de seu phrḗ nes, para inspirá-lo o desvario do erro, átē, ou uma sábia decisão” (id., p.21-22). Portanto, para um grego dessa época, pensar a categoria do corpo equivale menos a “determinar exatamente sua morfologia geral” 150

do que a situá-lo entre os polos extremos do luminoso e do sombrio, do belo de feio, do valor e da vilania, “com tanto mais rigor que, sua posição definitivamente fixada, ele chega a oscilar entre os extremos, a passar de um ao outro” (id., p.24). Não que o indivíduo tenha, nesse caso, mudado de corpo, diz Vernant, senão que é próprio da “identidade corporal”, assim entendida, prestar-se a mutações súbitas: O corpo que, jovem e forte, se torna com a idade velho e frágil, que, na ação, passa do entusiasmo ao abatimento, pode também, quando os deuses o tocam, sem deixar de ser o mesmo, subir ou descer na hierarquia de valores de vida de que ele é o reflexo e o testemunho, desde o opróbio na obscuridade e a feiúra até a glória no fulgor da beleza (id., p.24-25).

A segunda ordem de observações enfeixada por Vernant, concernindo ao sôma-cadáver e às relações entre o estatuto do morto e a identidade individual exige uma atenção mais prolongada. É na morte que o corpo adquire sua “unidade formal”, na medida em que é posto sob o olhar dos outros, enquanto centro e suporte do rito funerário. Mas é na memória coletiva que o morto, em particular o herói tornado memorável na “bela morte”, pode alcançar uma forma de existência “individual”. Este será o tema central do capítulo seguinte, La belle mort et le cadavre outragé” (1982). Constatando que no procedimento ritual de ultraje do cadáver inimigo trata-se de “fazer desaparecer, sobre o corpo do guerreiro defunto, os aspectos de juventude e de beleza viris que se manifestam nele como os signos visíveis da glória”, pergunta Vernant: “por que querer desemboscar a pessoa do inimigo em um despojo de que a psykhḗ já se retirou, um trapo vazio, senão porque sua pessoa permanece atrelada a esse corpo defunto e porque ele representa, por seu aspecto, seu eîdos?” (id., p.69, grifo nosso). Recusando a “ilusão de evidência” que ligava retrospectivamente, para o observador moderno, a pessoa do guerreiro à psykhḗ do defunto, a indagação faz saltar aos olhos a relação implícita que o grego arcaico estabelece entre o indivíduo e seu sôma, a prolongar-se no pós-morte. O que leva a indagar o sistema de valores em que se inscreve o estatuto do morto, em especial do “belo morto”. Pois que significa aceder ao status de morto? O golpe fatal que atinge o herói desprende sua psykhḗ : ela se liberta dos membros, abandonando a força e a juventude. Ela não franqueou, por isso, as portas da morte. A morte não é uma simples privação de vida, um óbito; ela é uma transformação de que o cadáver é ao mesmo tempo o instrumento e o objeto, uma transmutação do sujeito que se opera no e pelo corpo. Os ritos funerários realizam esta mudança de estado: a seu termo, o indivíduo terá deixado o universo dos vivos, como seu corpo consumido se dissipa no além, como sua psykhḗ terá conquistado, sem retorno, os rios do Hades. O indivíduo terá desaparecido, então, do tecido das relações sociais com que sua existência formava uma trama; a esse respeito, ele é doravante uma ausência, um vazio; mas ele continua a existir sobre outro plano, em uma forma de ser que escapa ao desgaste do tempo e à destruição. Ele existe pela permanência de seu nome e pelo brilho de seu renome, que se conservam presentes, não apenas na memória daqueles que o conheceram vivo, mas para todos os homens por vir. Essa inscrição na memória social reveste duas formas, solidárias e paralelas: o herói é memorizado no 151

canto épico que, para celebrar sua glória imortal, seu lugar sob o signo da Memória, se faz memória tornando-o memorável; ele o é também no mnêma, o memorial que constitui, ao fim do ritual funerário, a edificação do túmulo e a ereção de uma sêma, relembrando para os homens por vir, como o faz o canto épico, uma glória assegurada de não desaparecer (id., p.69-70, grifo meu).

Se em sua história de formação a categoria da “pessoa”, como disse Pierre Hadot, aparece antes de mais nada como uma “pessoa gramatical”, dependendo da experiência das marcas do falante na linguagem, a experiência do “indivíduo” se manifestaria mais precisamente a partir da “individualidade do morto”, na experiência da memória, em função da permanência do nome próprio. Assim, como uma série de procedimentos rituais devem permitir ao herói a passagem ao estatuto do morto, inversamente, as práticas de ultraje do cadáver visam barrar ao inimigo o acesso a esse estatuto, destinando-lhe “uma infâmia mais terrível que o esquecimento e o silêncio reservados aos mortos ordinários”, que, por oposição aos “heróis gloriosos”, são chamados de ‘sem-nome’, os nṓ nymoi (id., p.75-76): O cadáver ultrajado não toma parte nem no silêncio que envolve o morto habitual, nem no canto elogioso do morto heroico; nem vivo, pois que se lhe abateu, nem morto, pois privado de funerais; dejeto perdido nas margens do ser, ele representa o que não se pode celebrar nem sequer esquecer; o horror do indizível, a infâmia absoluta: o que o exclui integralmente dos vivos, dos mortos, de si mesmo (id., p.70).

O esquema analítico aqui resumido encontra formulação desenvolvida em texto imediatamente anterior, “Mort grecque, mort à deux faces” (1981), que permite precisar a relação do “morto glorioso” com duas formas institucionais de inscrição do indivíduo na memória social. A começar pelo traço que concerne mais diretamente aos status do indivíduo na estratégia grega em face da morte. Em seu estatuto de morto, o herói não é considerado enquanto representante de uma linhagem familiar [...] nem enquanto titular, no topo do edifício social, de uma função real ou de um sacerdócio religioso. No canto que diz sua glória, sobre a estela que assinala seu túmulo, ele faz figura de um indivíduo, definido nele mesmo por seus altos feitos; ele coincide, como defunto, com a carreira de vida que lhe foi própria e que, na flor da idade, em sua plena vitalidade, encontrou seu cumprimento na “bela morte” do combatente (id., p.82-83).

Vemos nesse ponto que Vernant reconsidera seu juízo prévio sobre os aspectos da pessoa no culto aos mortos e aos heróis, formulado no ensaio de 1960. Em vez da negação global da relação com a categoria da pessoa, passa a ressaltar a importância concedida ao indivíduo em condições excepcionais: “existir ‘individualmente’, para o grego, é se fazer conservar ‘memorável’: escapa-se ao anonimato, ao esquecimento, ao apagamento – à morte, portanto – pela própria morte” (id., p.83).

152

No contexto da cultura grega arcaica, onde a categoria da pessoa é bem diferente do “eu” [moi] de hoje em dia, apenas a glória póstuma do morto pode ser dita “pessoal”. A imortalidade de um ser “invisível e ignorado” se situa fora do que constitui, para os gregos, a individualidade de um sujeito, isto é, fundamentalmente, seu renome (id., p.151).

No mesmo movimento que se abre uma brecha para a reconsideração do status individual, se reafirma sua não extensão até o reconhecimento da “pessoa”, na medida em que, pela memória do canto épico e do monumento funerário, se estabelece uma nova relação entre o indivíduo morto e a comunidade dos vivos, uma comunidade que não é mais da ordem da família e do grupo social particular: Arrancando o herói ao esquecimento, a memorização o despoja, de um mesmo golpe, de seus caracteres puramente privados; ela o estabelece no domínio público; ela o faz um dos elementos da cultura comum dos gregos. No e pelo canto épico, o herói representa os “homens de antigamente”, eles constituem para o grupo seu “passado”; eles formam assim a raiz onde se implanta a tradição cultural que serve de cimento para o conjunto dos Helenos, onde eles se reconhecem a si mesmos porque é somente através da gesta destes personagens desaparecidos que sua própria existência social adquire sentido, valor, continuidade (id., p.83).

Donde a conclusão que resume o elo mais complexo buscado por Vernant: “a individualidade do morto não está ligada às suas qualidades psicológicas, à sua dimensão íntima de sujeito único e insubstituível”. Por um lado, ela não se relaciona à categoria da pessoa, visto que, “por suas façanhas, sua vida breve, seu destino heroico, o morto encarna ‘valores’: beleza, juventude, virilidade, coragem” (id., p.83). Por outro, é justamente o rigor tenaz de sua biografia individual, “sua recusa de todo compromisso, o radicalismo de seus engajamentos, a extrema exigência que o faz escolher a morte para ganhar a glória”, que conferem à “excelência”, de que ele constitui o modelo aos olhos dos vivos, “um brilho, uma potência, uma perenidade que a vida ordinária não comporta” (id., p.83). É, portanto, através da exemplaridade, narrada pelo canto épico e figurada na estela funerária, que o personagem heroico alcança o reconhecimento individual, pelo que os valores vitais e mundanos de força, beleza, juventude, de ardor ao combate, “adquirem uma consistência, uma estabilidade, uma permanência que as faz escapar ao inexorável declínio que marca todas as coisas humanas”. Em suma, arrancando-o do anonimato e do esquecimento “é, em realidade, todo um sistema de valores que a memória social tenta implantar no absoluto para preservá-lo da precariedade, da instabilidade, da destruição, em suma, para o pôr ao abrigo do tempo e da morte” (id., p.83-84). Não menos que corpo vivo, que formava um brasão em que vêm se inscrever os valores sociais, assinalando a posição do indivíduo no grupo, o corpo morto também encarna valores que extravasam sua unidade pessoal. Retomemos, por fim, o fio de “Mortels et immortels”: uma vez desaparecido seu corpo, que resta aqui em baixo do herói? Pois bem, duas coisas. Em primeiro lugar, “o sêma, ou mnêma, a estela, 153

o memorial funerário erigido sobre seu túmulo e que recordará aos homens por vir, na sequência das gerações, seu nome, seu renome, suas façanhas” (id., p.26). Testemunho permanente da identidade de um ser que soçobrou, com seu corpo, em uma ausência definitiva – e mesmo, parece, um pouco mais que um testemunho: desde que a estela, no século VI a.C., trará uma representação figurada do defunto ou que uma estátua funerária, um koûros, uma kóre será erigida sobre o túmulo – o mnêma poderá aparecer como uma espécie de substituto corporal exprimindo em uma forma imutável os valores de beleza e de vida que um indivíduo encarnou no tempo de sua breve vida (id,. p.26-27, grifo nosso).

Paralelamente, o canto elogioso do poeta épico preserva a memória dos altos feitos e celebra as façanhas do guerreiro de antigamente, arrancando-o do anonimato e da morte em que se dissipa, na noite do Hades, o comum dos homens; por cuja constante rememoração, a individualidade do herói “reluz de um esplendor que nada pode enfraquecer: aquele do kléos áphthiton, a ‘glória imperecível’” (id., p.27). Ao passo que “o corpo mortal deve retornar, para se abismar nela, a essa natureza à qual pertence e que o faz aparecer para de novo o engolir”, rito funerário e canto épico testemunham “a permanência de uma beleza imortal, a estabilidade de uma glória imperecível”, que somente a cultura com suas instituições tem o poder de edificar, “conferindo às criaturas efêmeras, desaparecidas aqui embaixo, o estatuto de ‘belos mortos’, de mortos ilustres” (id., p.27). Com o que podemos retomar a questão que serviu de ponto de partida da análise: “O que é um sobrecorpo, como se manifesta o esplendor do corpo divino?” (id., p.27). Sobre o último ponto retenho apenas o que toca diretamente o nosso tema. Detendo-se longamente no paradoxo da visibilidade e invisibilidade do corpo divino, Vernant nota que se a visibilidade define a natureza do corpo humano, “enquanto ele tem necessariamente uma forma”, os deuses, de sua parte, têm um corpo que “eles podem, à vontade, tornar (ou deixar) totalmente invisível aos olhos dos mortais sem que ele cesse, por isso, de ser um corpo” (id., p.29-30). Ademais, sendo uma das funções do corpo humano precisamente localizar cada indivíduo, assinalando-lhe um lugar, e apenas um, na extensão, “o corpo dos deuses não escapa menos a essa limitação que àquela das formas”: eles estão aqui e lá, “sobre a terra em que se manifestam exercendo sua ação e no céu onde residem” (id., p.34). Ora, “se a natureza dos deuses parece, assim, desmentir, tanto quanto exaltar, todos os traços que definem o corporal na existência humana, por que falar do corpo dos deuses?”. Em primeiro lugar, “porque os gregos, para pensar um ser, qualquer que ele seja, não têm outros meios, na época arcaica, que exprimi-lo no quadro do vocabulário corporal” (id., p.35). Mas há outra razão, mais fundamental, que concerne à natureza mesma do politeísmo: Para os gregos, o mundo divino é organizado em uma sociedade do além, com suas hierarquias de posição, sua escala de graus e de funções, sua separação de competências e de poderes especiais; ele reagrupa, pois, uma multiplicidade de figuras divinas singulares, tendo cada uma seu lugar, seu papel, 154

seus privilégios, suas marcas de honra, seu modo particular de ação, seu domínio de intervenção reservado, em suma, uma identidade individual (id., p.36, grifo nosso).

De modo análogo ao que vimos anteriormente a propósito dos mortos e dos heróis, Vernant procede a idêntica reavaliação do estatuto dos deuses, não mais em termos de “pessoa”, senão que relacionando-o à categoria do “indivíduo”. A distinção é capital: A identidade individual comporta dois suportes (deux volets): um nome e um corpo. O nome próprio é essa marca social particular que é atribuída a um sujeito para consagrar sua singularidade no seio da espécie a que pertence. As coisas, os animais, de modo geral, não têm um nome. Todos os homens têm um [...] Do mesmo modo, o corpo é o que confere a um sujeito sua identidade, o distinguindo, por sua aparência, sua fisionomia, suas vestimentas, suas insígnias, de todos os seus semelhantes. Como os homens, os deuses têm um nome próprio; como eles, também, têm um corpo, isto é, um conjunto de traços assinaláveis que os fazem reconhecer, diferenciando-os das outras potências sobrenaturais às quais estão associados (id., p.36-37).

Mas o fundamento teológico da natureza corporal dos deuses encontra sua formulação mais acabada na Teogonia ortodoxa de Hesíodo: se os deuses encarnam a plenitude e a máxima perfeição na escala de valores corporais “é porque ao cabo desse progresso que conduziu à emergência de um cosmos estável, organizado, harmonioso, cada pessoa divina tem doravante sua individualidade claramente fixada” (id., p.38). A partir de então, eles têm necessariamente uma forma e um corpo, ainda que a primeira escape às limitações da forma e a segunda se estenda além do corpo. Se o sobrecorpo divino deve evocar, por vários aspectos, tocando de perto, o não-corpo, não pode atingilo jamais: pois “se ele passasse para este lado, se fizesse ausência de corpo, recusa do corpo, é o equilíbrio mesmo do politeísmo grego que seria rompido” (id., p.39).

A psykhḗ e a categoria do duplo

A análise anterior prepara e antecipa esse terceiro desdobramento. Pois assim como o corpo, é na morte que a psykhḗ adquire “unidade formal”, habilitando-se para servir de suporte à identidade individual, precisamente enquanto se constitui como “duplo” fantasmagórico do cadáver. Essa retificação complementar encontra-se em “Psykhḗ : duplo do corpo ou reflexo do divino?” (1991), cujo título remete para o célebre ensaio de Maurice Halbwachs “La representation de l’âme chez le Grecs. Le double corporel et le double spirituel” (1930). A primeira parte retoma o argumento anteriormente esboçado em Mito e pensamento, disposto, entretanto, não no dossiê sobre a categoria da pessoa, mas no capítulo dedicado ao estatuto da imagem, sobre “A categoria psicológica do duplo”, escrito ainda em estreita proximidade com o argumento de Snell. Considera-se bem assente que no tempo de Homero “os homens não possuem 155

psykhḗ : eles se tornam, depois de mortos, psykhaí, sombras inconsistentes que levam uma existência diminuída nas trevas subterrâneas”. Mas a psykhḗ homérica, como nota J. Redfield, não equivale propriamente à nossa noção de “alma” e sim à de “fantasma” (2001, p.427). Como tal, ela integra a categoria que os gregos da época arcaica chamam de eídōla, que, na esteira de Halbwachs, Vernant julga mais apropriado traduzir como “duplos” e não como “imagens”, aparentando-se a outra ordem de fenômenos, que se relacionam justamente à categoria do eu. Nesse estágio pré-psicológico da categoria histórica da imagem, Homero aproxima, denotando com o mesmo termo eídōlon, três modos de aparição sobrenatural: o fantasma (phásma), a imagem de sonho (óneiros) e as almas dos mortos (psykhaí), definida por sua aparência exata com aquele de é a aparição, mas dele distinta enquanto privada de existência real. Por esse estatuto ela se torna comparável a uma sombra, sonho ou fumaça (id., p.427). Essa similitude completa do eídōlon com aquilo do qual é o duplo expressa-se com palavras que pertencem ao vocabulário de éoika (parece, convém), com os verbos eḯ skō, eikázdō (assimilar), os adjetivos eikastós, eíkelos (comparável, semelhante); a esse conjunto liga-se o termo eikṓ n, imagem, em uso a partir do século V a. C. Logo, não há, de início, uma oposição entre eídōlon (ídolo) e eikṓ n (imagem); na época arcaica, o eídōlon, como duplo, assume os valores de um “simulacro”: ele é percebido ao mesmo tempo como aparição “sobrenatural” e como aparência conforme àquilo de que é o fantasma (id., p.428).

Afastando-se, nesse ponto, da tese defendida por Suzanne Saïd em “Deux noms de l’image em grec ancien: idole et icône” (1987), Vernant, procura mostrar que a unidade desses fenômenos aparentemente díspares, decorre de que eles são apreendidos da mesma forma pela mente grega arcaica, comportando todos, enquanto “aparições”, uma dimensão do além, de modo que “podemos falar a seu propósito de uma verdadeira categoria psicológica, a categoria do duplo, que supõe uma organização mental diferente da nossa” (id., p.428). Definindo-o por seus traços mais salientes, Vernant resume o já anteriormente dito: Um duplo é totalmente diferente de uma imagem. Não se trata de um objeto “natural”, mas também não se trata de um produto mental: nem uma imitação de um objeto real, nem uma ilusão do espírito [...] o duplo joga ao mesmo tempo sobre dois planos contrastantes: quando se mostra presente, revelase como não sendo daqui, como pertencendo a um alhures inacessível. [...] Logo, não há um efeito de enganação, de decepção, de mentira, apátē, no eídōlon: trata-se da presença de um amigo, mas também de um sopro, uma fumaça, uma sombra ou do voo de um pássaro (id., 428-429).

Apenas se introduz uma nota diferencial: enquanto o ensaio de 1965 supunha que o duplo implicava um efeito de apátē, este é agora afastado – como haveria engano diante de uma “aparição” a não ser que se a confundisse com uma categoria diversa de fenômenos, a categoria da mímēsis, que só será formulada no limiar da idade clássica? À correção pontual, acrescenta-se a busca de maior 156

precisão na caracterização da psykhḗ arcaica. Um exemplo tirado das práticas funerárias permite esclarecer esse jogo de presença e ausência, inscrevendo-o num plano bem diverso do que será o adequado à apreensão da imagem-eikṓ n, própria da experiência posterior da mímēsis. Nos procedimentos de ultraje do cadáver, trata-se de privar o inimigo do estatuto de morto, a mudança de estado que os ritos funerais realizam. “Desaparecido do mundo dos vivos, apagado do tecido das relações sociais do qual sua presença formava uma trama, o morto passa a ser uma ausência, um vazio”. Ausente, o morto se transmuta, através de práticas adequadas, em outra forma de presença, garantida “pela permanência do seu nome e o brilho do seu renome”. Cantados pela gesta épica, continuam presentes na memória dos homens por vir; pela edificação do mnêma, do sêma e das diversas formas de memorial funerários, garante-se ao morto “ao menos um substituto equívoco do que o corpo representava durante a vida, como suporte da individualidade e garantia de permanência do sujeito social” (id., p.430). Sêma e mnêma traduzem, portanto, a inscrição paradoxal da ausência na presença: No final dos ritos funerários, com sua entrada definitiva no campo da morte, o corpo humano adota, aos olhos dos vivos, a forma de uma realidade com duas faces, uma remetendo à outra e implicandoa: uma face visível, localizada na terra, dura e permanente como a pedra erguida sobre o túmulo; uma face no além, ubíqua, intangível e fugidia como a psykhḗ , exilada no domínio do outro mundo (id., p.430).

Assim como o mnêma constitui uma espécie de substituto corporal, a psykhḗ se define por sua semelhança com corpo. O que se atesta na figuração plástica, encontrada em certos vasos, onde a psykhḗ é representada como “um corpo em miniatura, um corpúsculo”. Nos termos de Vernant: ela é o “duplo do corpo vivo, réplica que pode ser tomada pelo próprio corpo, que tem sua aparência exata, suas roupas, seus gestos e sua voz”. Mas a estrita similitude do eídōlon é, ao mesmo tempo, o sinal de uma completa inconsistência. Daí a preferência de Platão pelo vocabulário de eídōlon quando pretende desvalorizar a semelhança do eikṓ n: “A psykhḗ é um nada, um vazio, uma evanescência intangível, uma sombra; é um ser aéreo e alado, um pássaro que voa” (id., p.430). Diversamente de um retrato ou de uma ilusão do espírito, “estela funerária e psykhḗ traduzem de duas formas complementares o novo estatuto social do morto, sua existência em um além que se manifesta ao universo humano no modo da ausência” (id.). Estabelecido o sistema de valores em que se insere a categoria arcaica do duplo, resta verificar as consequências que essa análise sobre passagem para segunda cena da psykhḗ . Diversamente do que propunha no ensaio de 1960 sobre o estatuto da “pessoa”, essa mudança já não coincide com o estabelecimento de um “ponto de partida para a edificação progressiva das estruturas do eu”. À medida que se elabora no meio das seitas filosófico-religiosas dos órficos e pitagóricos uma nova concepção de alma, diversa da psykhḗ homérica, esta aparece ligada a “exercícios espirituais 157

destinados a escapar ao tempo, às reencarnações sucessivas, à morte, ao purificar e libertar a parcela de divino que todos carregam dentro de si” (id., p.431). Mas a mudança não significa brusca ruptura: Píndaro, em um dos fragmentos conservados [treno VII, Fr. 131 (b) S], já dá provas desta mutação. Embora ainda seja definida, à moda homérica, como um eídōlon, a psykhḗ não é mais o simulacro do defunto após sua morte. Presente no homem vivo, não pode mais adotar a forma de um duplo fantasmagórico do corpo desaparecido; é o duplo do ser vital, em sua duração contínua: aiônos eídōlon. Esse duplo, de origem divina e que escapa à destruição à qual está destinado o corpo dos mortais, dorme quando os membros estão em atividade; desperta quando o corpo adormece e se manifesta na forma de sonhos que nos revelam o destino que nos espera, após essa morte, no outro mundo (id., p.431).

Já não se trata aqui de assinalar a descoberta da subjetividade, mas de acentuar, que a novidade da identificação da “alma” com a “imagem de vida” (aiônos eídōlon) em Píndaro, sem romper imediatamente com concepção homérica do duplo, consiste em deslocar o acento do “corpo”, do qual seria a imagem, para o “órgão” vital, assimilando-o à potência divina que o habita. Noutras palavras, a psykhḗ indica uma parcela do ser vivo passível de revelar menos sua singularidade neste mundo do que o destino individual que o espera no além. Somente com Platão que se processa a completa “inversão de valores atribuídos ao corpo e à alma”. Detienne já havia identificado em Homero e Platão, tomados como casos paradigmáticos do estatuto do eu na Grécia antiga, “dois esboços da noção de pessoa” antagônicos entre si (1973, p.46). Comentando sua exposição, no debate que segue à palestra, resume Vernant: De Homero a Platão se constata uma reviravolta de perspectiva em relação ao que constitui para o homem o seu autós, seu si mesmo. Em Homero é o sôma que define o ser de Héracles, a psykhḗ do herói não sendo mais que seu fantasma no além. Em Platão, é ao contrário com sua psykhḗ que Sócrates se identifica, seu sôma não sendo a seus olhos mais que um trapo exterior a seu ser íntimo. É preciso acrescentar, entretanto, que entre o século VIII e o século IV a.C., os valores e as significações de sôma e psykhḗ se transformaram. [...] É no quadro dessa dupla evolução semântica, cujo paralelismo é impressionante, que é preciso situar a mudança de valores de autós, passando de sôma a psykhḗ (Vernant, 1973, p.53).

Três décadas depois, Vernant retoma o diálogo iniciado com Detienne, para precisar que, em Homero, o indivíduo estava intimamente ligado ao corpo, através de sua “consciência orgânica”, sendo a psykhḗ tomada como eídōlon do corpo ausente; enquanto, a partir de Platão, é a psykhḗ que passa a constituir “no íntimo de cada um, durante sua vida, seu ser verdadeiro”, sendo o sôma assimilado ao eídōlon, como “duplo” da alma imortal (2001, p.431-432). O que vai implicar numa súbita desvalorização do corpo: Dessa forma, o corpo vivo muda de estatuto: torna-se, por sua vez, uma simples aparência, a imagem ilusória, inconsistente, fugaz e transitória do que somos na verdade e para sempre. No mundo 158

fantasmagórico das aparências, o corpo é “o que se mostra à semelhança da alma”. Não são mais as psykhaí que são eídōla, os fantasmas daqueles cujo corpo foi reduzido a cinzas em uma fogueira funerária, mas “os corpos dos defuntos que são os eídōla daqueles que morreram”. Assim, passamos da alma como duplo fantasmagórico do corpo para o corpo como reflexo fantasmagórico da alma (id., p.431-432, grifo nosso).

O texto das Leis é particularmente explícito sobre esse ponto: “Nesta vida mesma, o que constitui o eu de cada um não é nada além da alma” (XII, 959 a 7-8); “Para cada um de nós, o corpo é apenas a imagem semelhante que acompanha a alma” (XII, 959 b 1); “Estamos certos em dizer que os cadáveres daqueles que morreram são os eídōla dos mortos” (XII, 959 b 2-3) (apud id., p.431432)17. Como seria preciso dedicar um estudo à parte tratar especificamente da concepção de sujeito que se formula em Platão, baste-nos notar que o ganho interpretativo de Vernant resulta, sobretudo, de haver retomado e desenvolvido a tese seminal do discípulo de Durkheim: Como Halbwachs bem viu, a alma, para o grego, não se confunde com o que nós chamamos o sujeito psíquico individual. À sua origem “duplo” do corpo, a psykhḗ torna-se em seguida [...] um “duplo” espiritual: uma realidade interior ao homem, certamente, mas que permanece nele, entretanto, estrangeira, que o ultrapassa, que não cessa de comportar um elemento misterioso e sobrenatural (Vernant, 1973, p.54)

Em contraste com o corpo mortal, destinado a desaparecer, como tudo o que o liga ao mundo das aparências, a psykhḗ para Platão assume um caráter “demoníaco” (2001, p.433). A alma-daímon, que é “nós mesmos”, constituindo em cada criatura humana o “reflexo do Ser imutável imortal que nela projeta seu rastro mais ou menos apagado, imagem obscurecida, em suma, duplo ou fantasma: o eídōlon de um divino do qual o filósofo [...] guarda a nostalgia” (id., p.433). Daí a nova hierarquia que se estabelece entre o corpo humano visível e perecível, “simulacro da alma imaterial e imortal”, e a alma humana invisível, “simulacro do divino, do Ser enquanto ser, do Uno” (id., p.433, grifo nosso). Onde se lê o correlato da hierarquia entre a “imitação da aparência” praticada pelo poeta e a “imitação da Ideia” pelo artesão, na definição platônica da mímēsis. Ambos relacionados à mudança de estatuto que afeta as categorias da pessoa e da imagem na passagem para a época clássica. Traçado o esquema geral em que se insere a retomada da questão do sujeito no que chamamos de segunda fase da obra de Vernant, vejamos como esta se formula a partir da retificação sobre os três pontos cardiais de prósōpon, sôma e psykhḗ .

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Cf. variações do mesmo tema em outras passagens: Alc, I, 130 c; Féd, 115 c-d; Rep, V, 469 c. 159

II Deuses e homens No prefácio sobre “o homem grego” (1993), três núcleos são convocados para demarcar os limites da categoria do eu: sua posição em relação aos deuses, à natureza e aos outros. A começar pela fronteira entre o divino e o humano, sua caracterização supõe bem marcada a distância que separa a concepção grega das outras religiões, sobretudo a cristã. Ao contrário desta, a civilização da Grécia antiga não distingue um campo particular da experiência – o religioso – definido por sua função e estatuto em oposição a outras esferas de atividade, a política, o direito, os diversos domínios do saber: “não existe um campo do religioso [...] claramente distinto do restante das práticas sociais. Há religião espalhada por todo lugar; todos os atos cotidianos comportam, ao lado de outros aspectos, mescladas a eles, uma dimensão religiosa” (2001: 176). Do que decorre que uma série de oposições, nitidamente marcadas em outras religiões, não têm validade nesse contexto: entre o sagrado e o profano, o sobrenatural e natural, a separação entre um Deus transcendente e um mundo que lhe seria exterior, que ele teria criado e com que estabeleceria uma relação de dependência. Ao contrário, os deuses gregos são parte integrante do cosmos, não o criaram, mas nasceram nele e repartem entre si seus domínios, cada um limitado pela competência que é privilégio exclusivo das outras divindades (id., p.173). Da mesma forma, a “religião” grega não distingue crédulos e incrédulos. A própria crença se situa em um plano diverso que o propriamente intelectual: “não visa a fundar um conhecimento do divino”, deixando o terreno livre para o desenvolvimento, em outras frentes e sem conflito aberto com a religião, das “formas de pesquisa e de reflexão cujo objetivo será precisamente criar um saber e atingir a verdade como tal” (id., p.177). Esse estatuto da crença permite ao grego uma ampla gama de possibilidades: desde a extrema credulidade do supersticioso, do qual Teofrasto ri, o ceticismo prudente de Protágoras, “que julga que não se pode saber se os deuses existem ou não existem, nem conhecer nada sobre eles”, até a completa incredulidade de Crítias, “que sustenta que os deuses foram inventados para manter os homens em sujeição” (id., p.178). Não sendo objeto de nenhum credo obrigatório, a crença permite uma larga margem de interpretação, desde que não se incorra em impiedade, isto é, no crime de asébeia, que se caracteriza pelo afastamento não no que se crê, mas pela recusa em tomar parte no culto público, no desvio em relação ao cumprimento dos ritos. Na medida em que a prática cultual aparece completamente integrada à vida cívica, rejeitá-la equivaleria a “deixar de ser o que é, assim como não falar mais sua língua ou não viver mais como um cidadão livre” (id., p.75-76).

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A dúvida no plano intelectual não atinge em cheio, para arruiná-la, a piedade grega no que ela tem de essencial. Não se pode imaginar Crítias deixando de participar das cerimônias do culto ou recusando-se a fazer um sacrifício quando é preciso. Hipocrisia? É mais correto entender que, como a “religião” grega é inseparável da vida cívica, excluir-se dela significaria colocar-se fora da sociedade, deixar de ser o que se é (id., p.178).

O que torna essa formulação surpreendente senão a cisão do sujeito entre duas condutas públicas “contraditórias”, no plano do dialogo racional e na esfera cívico-religiosa? Assim também se explica que aqueles que se querem mais afastados do culto público e estranhos à religião cívica se definem, não por um maior grau de incredulidade ou ceticismo, mas justamente por sua fé e seu engajamento em movimentos sectários, de vocação mística, como o orfismo. Não por acaso, é ali, onde ele se faz religiosamente e socialmente mais discrepante, que se começa a elaborar uma nova concepção de psykhḗ , capaz de fornecer ao indivíduo uma inscrição social no interior de comunidades fechadas, constituindo um quadro que permite assinalar sua identidade como seres à parte. Ora, se não existe, para os gregos, um corte radical separando as esferas do mundano e do divino, por onde passa, então, a fronteira entre os homens e os deuses? Fundamentalmente, pela morte e pela partilha que ela estabelece: De um lado, seres incertos, efêmeros, submetidos às doenças, ao envelhecimento, à morte; tudo que dá valor e brilho à existência – juventude, força, beleza, graça, coragem, honra, glória –, tudo logo fenece para desaparecer para sempre. [...] É o contrário entre aqueles que são chamados de nãomortais (athánatoi), bem-aventurados (mákares), poderosos (kreíttous): as divindades. Cada qual, em seu próprio domínio, encarna os poderes, as capacidades, as virtudes e os benefícios dos quais os homens, durante sua vida passageira, só podem dispor na forma de um reflexo fugaz e apagado, como um sonho. Assim, existe uma distância entre as duas raças, a humana e a divina (id., p.173-174).

Mas a aceitação da finitude, com todas as deficiências que acompanham a condição humana, como um fato inscrito na natureza, acarreta uma série de consequências. Em primeiro lugar, se a distância entre homens e deuses é intransponível, ela não exclui uma forma de parentesco: como seres do mesmo mundo, eles têm em comum a pertença a uma ordem de estamentos estritamente hierarquizada na qual, “de baixo para cima, do inferior ao superior, a diferença é do menos para o mais, da privação para a plenitude, em uma escala de valores que se estende sem verdadeira ruptura” (id., p.174). Em segundo lugar, sendo vetada aos homens a possibilidade de esperar que os deuses lhes concedam alguma forma de imortalidade, que constitui seu privilégio exclusivo, “a esperança de uma sobrevivência do indivíduo após a morte [...] não faz parte da troca que o culto institui com a divindade” (id., p.174). O que explica que a ideia de uma imortalidade individual aparecesse como algo tão estranho para os atenienses do século IV a. C., “a julgar pelos cuidados que Platão precisou tomar antes de afirmar, no Fédon, pela boca de Sócrates, que existe em cada um de nós uma alma imortal”. Daí, igualmente, que essa alma, na medida em que era considerada imperecível, fosse 161

concebida necessariamente como “uma espécie de deus, um daímon: longe de se confundir com o ser humano no que faz dele um ser singular, aparenta-se com o divino, do qual é como que uma parcela momentaneamente perdida cá embaixo” (id., p.174).

Mundo e natureza

Passando à fronteira entre o homem e a natureza, uma vez que o divino está implicado em cada uma de suas partes, também a phýsis grega tem muito pouco em comum com o objeto de nossas ciências naturais: Quer faça as plantas crescerem, os seres vivos se deslocarem, os astros se moverem em suas órbitas celestes, a phýsis é uma potência animada e viva. Para o “físico” Tales, mesmo as coisas inanimadas, como uma pedra, participam da psykhḗ , que é ao mesmo tempo “sopro” e “alma” [...] Animada, inspirada, viva, a natureza está, por seu dinamismo, próxima do divino e, por sua animação, próxima do que somos como homens. Retomando a expressão usada por Aristóteles [...] a natureza é propriamente daimónia, “demoníaca” [...] e como, no centro de cada homem, a alma é um daímon, um demônio, existe, entre o divino, o físico e o humano, mais do que continuidade: existe parentesco, conaturalidade (id., p.178).

Não há, portanto, fronteiras nítidas entre o divino, o natural e o individual humano. Em consequência, o conhecimento da phýsis não supõe que o homem situe o ponto de partida da apreensão do mundo em si mesmo, “como se, para chegar às coisas, fosse preciso passar pela consciência que temos delas”, mas, ao contrário, que se incorpore a elas, fazendo-se seu semelhante – poder-se-ia dizer, por uma relação de méthexis (participação):18 Nada mais distante da cultura grega do que o cogito cartesiano, o “penso” posto como condição e fundamento de todo o conhecimento do mundo, de si e de deus [...] Representar-se o mundo não consiste em torná-lo presente dentro de nosso pensamento. Nosso pensamento é que é do mundo e presença no mundo. O homem pertence ao mundo com o qual está aparentado e que conhece por ressonância ou conivência. [...] Se esse mundo lhe fosse estranho, como hoje supomos, se fosse um puro objeto, feito de extensão e movimento, opondo-se a um sujeito, feito de julgamento e pensamento, o homem só poderia, de fato, comunicar-se com ele assimilando sua própria consciência. Mas, para o grego, o mundo não é esse objeto exterior coisificado, separado do homem pela barreira intransponível que separa a matéria do espírito, o físico do psíquico. O homem encontrase em uma relação de comunidade íntima com o universo animado ao qual tudo o liga (id., p.179).

Se a apreensão do mundo não passa pela representação clara das coisas, mas se inscreve na rede de correspondências que envolve em comum homens, natureza e deuses, não é o mundo que, 18

Embora Aristóteles represente a grande exceção do mundo antigo, questionando o princípio de que o homem conhece “o semelhante pelo semelhante”, seu desprezo pela categoria da méthexis não o exclui do quadro mental comum sobre a consciência de si.

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para ser apreendido, precisa sofrer essa transformação que faria dele um fato de consciência, mas o sujeito que precisa operar uma transformação sobre si mesmo para de ter acesso à verdade inscrita na superfície das coisas. Entretanto, como bem nota Foucault, existe exceção: A exceção maior e fundamental é a daquele que, precisamente, chamamos “o” filósofo, porque ele foi, sem dúvida, na Antiguidade, o único filósofo; aquele dentre os filósofos para quem a questão da espiritualidade [o que Pierre Hadot chama excercises spirituels] foi a menos importante; aquele em quem reconhecemos o próprio fundador da filosofia no sentido moderno do termo, que é Aristóteles. Contudo, como sabemos todos, Aristóteles não é o ápice da Antiguidade, mas sua exceção (Foucault, 2004, p.22).

Daí a diferença que caracteriza esse acesso ao mundo e à natureza. Assim como o conhecimento é interpretado e expresso no modo do ver, conhecer é uma forma de visão. Mas como os gregos não interpretam o “ver” diferenciando três níveis no fenômeno visual, o aparelho ótico, o fenômeno físico da luz e a instância psíquica do vidente, a visão só é possível se existir, entre o que é visto e o que vê, uma inteira reciprocidade, traduzindo, quando não uma identidade completa, ao menos um parentesco muito próximo. Por que ilumina todas as coisas, o sol também é, no céu, um olho que tudo vê; e, se nosso olho vê, é porque irradia uma espécie de luz comparável à do sol. O raio luminoso que emana do objeto e que o torna visível tem a mesma natureza que o raio óptico proveniente do olho e que o torna vidente. O objeto emissor e o sujeito receptor, os raios luminosos e os raios ópticos pertencem a uma mesma categoria de realidade de que ela ignora a oposição físico-psíquica ou que é, ao mesmo tempo, de ordem física e psíquica. A luz é visão, a visão é luminosa (Vernant, 2001, p.180).

O problema que se coloca, então, não é entender “como podemos ver da forma como vemos?”, pois a visão é evidente. Toda a dificuldade está em explicar “como podemos ver diferentemente do que é, ou ver o objeto além do lugar em que ele está, por exemplo, em um espelho” (id., p.182). Sendo assim, que formulação escolher para caracterizar esse estilo particular de ser-no-mundo? “O melhor jeito é, sem dúvida, defini-lo negativamente em relação ao nosso, dizendo que, nele, o homem não está separado do universo” (id.). Contentando-se, porém, com a aproximação negativa, Vernant deixa de lado uma questão mais embaraçosa: não basta dizer que o homem grego não está separado na natureza, mas é preciso acrescentar a pergunta contrária: por que a “verdade” permanece o privilégio de homens particulares, seja por sua posição, seja por uma transformação de si? Ou, para dizê-lo de outra forma: por que essas correspondências não seriam evidentes para qualquer um, senão porque não basta ser sujeito para ter acesso à verdade inscrita na superfície das coisas? Não é porque participa da natureza do objeto que o indivíduo tem acesso a ele, mas na medida que a condição de conhecimento não reside na estrutura de sujeito do eu, no sentido kantiano da palavra, que o homem grego precisa buscar fora de si o ponto de apoio de sua apreensão de mundo, no elo secreto que liga o semelhante ao semelhante. Se o homem não está separado do mundo por sua consciência individual, tampouco esta ligação é imediatamente dada na superfície das coisas: ela 163

exige uma conversão do olhar – que é, também, uma conversão do sujeito, uma transformação de seu ser, que será a condição e a meta da filosofia antiga, como mostrou Pierre Hadot.

Si mesmo e o outro

Isso não significa, entretanto, que o homem esteja confundido com o mundo exterior, mergulhado no universo, pois “o engajamento do sujeito no mundo implica, para o indivíduo, uma forma particular de relação consigo e com os outros”. O que leva à terceira fronteira assinalada por Vernant: como se define, em face do outro, a apreensão de si mesmo? Sua expressão formular se encontra na famosa inscrição do oráculo: a máxima de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo” não prega, como estaríamos tentados a supor, uma volta sobre si mesmo para atingir, por introspecção e autoanálise, um “eu” oculto, invisível aos outros, e que seria posto como puro ato de pensamento ou como o campo secreto da intimidade pessoal. O cogito cartesiano, o “penso, logo existo”, não é menos estranho para o conhecimento que o homem grego tem de si do que para sua experiência do mundo. Nenhum dos dois, conhecimento e experiência, está dado na interioridade de sua consciência subjetiva. Para o oráculo, “conhece-te a ti mesmo” significa: conhece teus limites, saiba que é um mortal, não tentes igualar-te aos deuses (id., p.183).

Sublinhando a distância entre os homens e os deuses, a máxima délfica do gnôthi seautón atualiza, a propósito do “si mesmo”, princípio análogo ao que preside à apreensão do mundo da phýsis: “o semelhante só pode ser conhecido pelo semelhante”. Mesmo para Platão, que vai retomar a máxima para conferir-lhe outro sentido, se há uma evidência incontestável é de que “o olho não pode ver a si mesmo: ele sempre precisa dirigir seus raios para um objeto situado no exterior” (id.). Pois da mesma forma que o sinal visível de nossa identidade, o rosto-prósōpon jamais pode ser contemplado por nós mesmos, “a não ser que fôssemos buscar nos olhos do outro o espelho que nos remeta de fora nossa própria imagem” (id.), assim também “a identidade de cada um se revela no contato com o outro, pelo cruzamento de olhares e pela troca de palavras” (id., p.184). Mas há uma razão mais fundamental para que o conhecimento de si não possa se estabelecer diretamente, sem essa mediação do outro. Permanecendo limitada pela reciprocidade do ver e do servisto, que decorre de uma característica das culturas da vergonha e da honra, por oposição às culturas da falta e do dever, em uma sociedade de confronto na qual, para ser reconhecido é preciso vencer os rivais em uma competição incessante pela glória, cada um encontra-se colocado sob o olhar do outro, cada um existe por esse olhar. Somos o que os outros veem de nós. A identidade de um indivíduo coincide com sua avaliação social (id., p.184). 164

Estabelecendo, em seu contexto social e mental, os limites em que se pode falar de uma categoria grega do sujeito, Vernant nos conduz finalmente ao quadro que ocupa seu ensaio mais importante, centrado no contexto da pólis clássica. Tendo em vista que mesmo na Atenas democrática do século V a.C., “os valores aristocráticos de competição pela glória continuam dominantes”, com a diferença de que nela “a rivalidade se exerce entre cidadãos considerados, no plano político, como iguais” (id., p.185), sintetiza Vernant:

O indivíduo ocupa na cidade antiga, um lugar muito particular, e esse aspecto privado de existência encontra seus prolongamentos [i] na vida intelectual e artística na qual cada um afirma sua convicção de fazer diferente e melhor do que seus antecessores e vizinhos; [ii] no direito criminal no qual cada um deve responder por suas próprias faltas em função do maior ou menor grau de sua culpabilidade; [iii] no direito civil com a instituição, por exemplo, do testamento; [iv] no campo religioso em que são os indivíduos que, na prática do culto, dirigem-se à divindade. Mas esse indivíduo jamais aparece como encarnando direito universais inalienáveis, ou como uma pessoa, no sentido moderno do termo, com sua vida interior singular, o mundo secreto de sua subjetividade, a originalidade fundamental de seu eu. Trata-se de uma forma essencialmente social do indivíduo marcada pelo desejo de se ilustrar, de adquirir aos olhos de seus pares, por seu estilo de vida, seus méritos, sua generosidade, suas proezas, renome suficiente para fazer de sua existência singular o bem comum de toda a cidade, e até mesmo da Grécia inteira (id., p.185-186).

Uma vez que, também aqui, o sujeito aparece como “inseparável dos valores sociais que lhe são reconhecidos pela comunidade dos cidadãos” e se constata que, “no que faz dele um indivíduo, o homem grego permanece engajado no social como o é no cosmos” (id., p.187), resta esclarecer como essa valorização do indivíduo se coaduna com a ausência de seu estatuto como “pessoa”. Trata-se de verificar, no texto seguinte, como o maior relevo concedido ao eu no âmbito da pólis democrática se concilia ou em que medida supõe uma transformação das condições de emergência do sujeito na Grécia arcaica.

165

III

O sujeito antigo na modernidade: uma alternativa à morte do homem

A fim de oferecer algumas coordenadas para o último remanejamento que a obra tardia de Vernant opera sobre a pesquisa da concepção de “pessoa” na Grécia antiga, no capítulo L’individu dans la cité” (1986), é preciso destacar, em primeiro lugar, a importância da matriz teórica esboçada no célebre ensaio de Marcel Mauss “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’” (1939) como seu antecedente remoto. Embora o antropólogo não abordasse os gregos, limitando-se a assinalar a pré-história do “eu” a partir do vocabulário da persona na Roma antiga e sua apropriação pelos estoicos, Mauss diferenciava o emprego tardio de prósōpon no período helenístico da noção de “personagem” mítica característica das sociedades “primitivas”, aproximando-o, antes, da acepção jurídica de “pessoa moral” no período imperial e do conceito teológico de “pessoa divina” no cristianismo antigo. Conforme a tese central de Mauss, as constatações etnológicas “conduziram a pensar que foi pelo aspecto do personagem que o homem acedeu à noção de pessoa” (Meyerson, 1995, p.158). Haveria, mesmo numa civilização arcaica como a dos Zuñi, um princípio de organização da noção de indivíduo a partir dos usos característicos da máscara e da classificação social dos membros do grupo, mas não uma dimensão da persona, no sentido que o termo adquire com os romanos: confundido com seu clã mas já destacado dele no cerimonial, pela máscara, por seu título, sua posição, seu papel, sua propriedade, sua sobrevivência e seu reaparecimento na terra num de seus descendentes dotados das mesmas posições, prenomes, títulos, direitos e funções (Mauss, 2007, p.375).

Em linhas bastante gerais, seu estudo estabelece três cortes sincrônicos: (1) principiando pela caracterização etnográfica das sociedades Pueblos e Zuñi (México), dos Kwakiutl e Winnebago (noroeste americano) e dos Arunta e Loritja (Austrália), e pela concepção igualmente diversa de outras sociedades antigas no caso das grandes civilizações orientais da Índia e da China, a pesquisa de Mauss concentra-se, em seguida, principalmente na (2) evolução que se processa desde o fim da época imperial no direito romano, tendo como marco remoto (3) a transformação sofrida pela categoria de “pessoa” no interior do cristianismo primitivo, tomado como ponto de partida para a consolidação da noção moderna do “eu”, de Descartes a Kant e terminus ad quem da análise. Privilegiando o momento latino na formação da ideia de pessoa, e visando situar a unificação da noção da pessoa no cristianismo primitivo, como se explicaria a tese do último ensaio de Mauss sem uma referência explícita ao consenso partilhado sobre a afirmação da “unidade do eu” desde Platão? Por isso, a exclusão dos gregos não deixou de suscitar reações: 166

A direção era voltada para Kant, e a filosofia grega intervinha apenas como contribuição à interiorização da concepção de pessoa no mundo Tardo-Antigo. A ausência de todo o pensamento clássico da exposição de Mauss impressiona, tanto mais quanto Mauss tinha uma educação clássica profunda. É também, paralelamente, notável que falta qualquer referência ao judaísmo [...] torna-se necessário pôr-se a claro porque Mauss, um hebreu, e seu tio e mestre Durkheim, não apenas hebreu mas rabinicamente educado, mantiveram fora toda a tradição bíblica em matéria de pessoa e preferiram elevar a máscara dos assim chamados primitivos a distante ancestral do conceito kantiano de pessoa responsável (Momigliano, 1987, 180-181).

No mesmo ensaio “Marcel Mauss e il problema della persona nella biografia grega” (1985), Momigliano não se contenta em atacar Mauss, mas estende a crítica a seus continuadores franceses, notadamente a “Meyerson e sua escola”: Não apenas Meyerson descurou da biografia grega no seu volume Les fonctions psychologiques et les oeuvres (1948), mas quando organizou depois o grande colóquio sobre Problèmes de la personne, em torno de 1960, ele e seus colaboradores deixaram inteiramente fora a biografia. Lá, os ensaios concernentes ao pensamento grego e cristão de J.-P. Vernant, M. Detienne, J. Daniélou e P. Hadot examinaram aspectos essenciais da pessoa que Mauss havia mais ou menos negligenciado [...] mas a biografia grega foi mantida de fora (Momigliano, 1987, p.180)

Contrapondo à escola de Mauss “toda a introspecção que, de Montaigne a Merleau-Ponty, está por trás do interesse francês pela ‘pessoa’”, o historiador italiano recorre à tradição alemã de W. Dilthey e seu aluno G. Misch (id., p.182), que por sua vez, seria professor de Snell, para defender a importância desses dois “gêneros literários”, da biografia e da autobiografia, na antiguidade. Embora Vernant tivesse advertido que “Meyerson não teve a possibilidade ou a pretensão, durante o colóquio, de abordar todas as dimensões da questão”, mostrando-lhe que este havia sido, ao contrário, um dos temas priorizados nos seus seminários na École des Hautes Études, onde reservara uma atenção privilegiada ao surgimento da autobiografia, das memórias e do diário íntimo, “que ele analisara [em] suas formas e suas significações diversas mostrando que seria ilusório considerar esses gêneros literários novos como revelação do indivíduo autêntico” (Vernant, 2001, p.132-133, grifo nosso). Consequentemente, desde que o período compreendido entre os séculos VIII a.C. e IV a.C. da Grécia antiga, compreendendo a passagem da época arcaica para o clássica, aparece disposto entre dois estágios evolutivos da história da categoria de pessoa no esquema de Mauss, tende-se a identificar o homem grego, dentro dessa tradição antropológica francesa, com o estágio logicamente anterior do estatuto do sujeito nas “sociedades primitivas”. É claro que o problema, nestes termos, simplesmente não se colocava para Mauss. Mas é significativo que uma primeira aproximação nesse sentido seja feita por M. Detienne a propósito da evolução semântica de psykhḗ :

167

Sua fortuna data do momento em que ela penetra na província do demônico, pois é nesse setor do pensamento religioso que se traçam alguns dos mais finos esboços da noção de pessoa. [...] Daímon, entretanto, põe em causa não apenas o indivíduo, mas também o personagem que, após as páginas clássicas de Mauss, precede a noção de pessoa. Demônio e máscara estão estreitamente ligados na Grécia. Se a máscara, em geral, cria uma disponibilidade e substitui o rosto – meio de comunicação unívoca – por um ser anônimo que escapa às determinações do grupo, a máscara pode também ser o signo de um pertencimento e fundar um estatuto social (Detienne, 1973, p.48)

De sua parte, Vernant oferece em “Aspectos da pessoa na religião grega” uma justificativa indireta para a exclusão de Mauss. Mas aqui desponta um paradoxo. Limitando-se a uma abordagem negativa, o analista se depara com uma dificuldade em relacionar essa elaboração conceitual da psykhḗ -daímon com o avanço do reconhecimento do indivíduo a partir do século VIII a.C., que já distingue o “homem homérico” de Snell do horizonte conceitual do eu como “personagem” mítico, sem que, por outro lado, a noção tardia de “agente” na época clássica configure plenamente um equivalente da noção latina de persona jurídica. Concordando fundamentalmente com Mauss quanto à inexistência da noção de “pessoa” na Grécia antiga, será, assim, a partir da competência filológica de Snell, Fränkel e Dodds que vai se introduzir na reflexão de Vernant uma interrogação na direção oposta. Pois embora também registre a ausência de um sujeito psicológico no período mais antigo do “homem homérico”, Bruno Snell acentua o papel crescente da individualidade a partir dos poetas mélicos, colocando obstáculos para o historiador da categoria. Publicado poucos anos depois da última conferência de Mauss, o livro de B. Snell (1946) depara com uma dificuldade inversa: postulando como télos da história do espírito a descoberta do sujeito no século V a.C., cumpria demonstrar que o “homem homérico” se distanciava da “mentalidade primitiva” caracterizada por Lévy-Bruhl, obrigando Snell a uma solução de compromisso. Por isso, embora Vernant corrija a tese de Snell, negando a hipótese da existência de um sujeito autocentrado na antiguidade grega, a crescente valorização do indivíduo permanece um problema constante em sua pesquisa: se o homem grego antigo não cabe na noção moderna de sujeito psicológico, nem se integra à configuração própria das civilizações arcaicas de sujeito heterodirigido, conforme os polos contrários de atração dos modelos interpretativos de Snell e Mauss, o que, então, o singulariza? Uma segunda coordenada que se pode indicar para a inflexão adotada pela última fase da obra de Vernant é mais pontual. No célebre artigo “Da subjetividade na linguagem” (1958), complementando o ensaio de Mauss, Émile Benveniste assinalou a importância de uma distinção conceitual, mostrando que “sujeito” e “pessoa” não pertencem à mesma classe de fenômenos, mas constituem duas categorias linguísticas diversas dentro do que o antropólogo ou psicólogo chamaria a mesma função psicológica. Basta acentuar que, partindo desse dado, Vernant teria diante de si o esboço de um novo programa de pesquisa, análogo do que extraíra do estudo do linguista sobre as 168

categorias da “ação” e do “agente”: caberia conduzir a distinção encontrada no registro da linguagem até o nível das categorias sociais. Por fim, explorando o alcance da ruptura iniciada por Mauss e sistematizada por Meyerson, vale notar as consequências mais importantes de seu ensaio: (a) a primeira, decorrente da historicização da categoria da pessoa, implica que não havendo uma noção “verdadeira” e permanente do “eu”, o sujeito tampouco se define em termos de substância. Sua falha estaria, no entanto, em identificar a pessoa com o “fato da consciência”, como o terminus ad quem de sua análise; em segundo lugar, (b) dentro da própria concepção de sujeito heterodirigido, Mauss permite distinguir diversas configurações de “pessoa”, em tempos e culturas diferentes. Do que ressaltam duas consequências importantes para Vernant: (c) a constatação de que distintas modalidades históricas do “eu” podem coexistir num mesmo tempo cronológico, atestando o que Ernst Bloch chamou de “simultaneidade do não-simultâneo”; (d) que o advento do sujeito autocentrado não implica a automática suspensão de determinações externas que ultrapassam o sujeito no interior de sua própria consciência. No ponto de cruzamento destas duas grandes linhas interpretativas, portanto, a herdada de Mauss, Meyerson e Benveniste, de um lado, e a de Snell, Fränkel e Dodds, do outro, a obra tardia de Vernant reindaga o pressuposto da categoria da pessoa, objetivando responder às dificuldades que não puderam ser resolvidas pelos analistas anteriores. Mas será sobretudo a partir do trabalho do último Foucault na direção das “técnicas de si” na antiguidade greco-romana e da formação de uma “hermenêutica de si” nos primeiros séculos do cristianismo antigo, que Vernant vai conceber uma reviravolta sobre a categoria histórica de sujeito: “considerando-se suas três últimas obras: não teria escrito o que escrevi sobre a noção de indivíduo se não tivesse lido Foucault. Segui por uma trilha balizada por ele”19 (apud 2001, p.234-35). Incorporando as contribuições não menos importantes de Pierre Hadot20 e Peter Brown21, o eixo da discussão elege como fio condutor o debate com um novo oponente, sintomaticamente mais próximo de sua área de interesse, pertencente à linha de Mauss: o antropólogo Louis Dumont. Em seus estudos sobre a gênese do individualismo moderno22, Dumont distinguiu duas formas opostas de indivíduo: o “indivíduo fora do mundo” e o “indivíduo no mundo”. O modelo do primeiro seria fornecido pelo renunciante indiano, que, para se constituir em sua singularidade, “deve se excluir de todos os laços sociais, se desprender da vida tal como é vivida aqui em baixo”, pois numa J.-P. Vernant, “Anthropologie historique et Grèce ancienne”, Raison Présente, 1989. P. Hadot, “De Tertullien à Boèce. Le developpement de la notion de personne dans les controverses théologiques” (1960), in: Meyerson, I. (org.) Problèmes de la personne, 1973; Excercises spitiruels et philosophie antique, 2002. 21 P. Brown, The Making of Late Late Antiquity, 1978; Society and the Holy in the Late Antiquity, 1982. 19

20

22

L. Dumont. Homo hierarchicus. Essai sur le système des castes (1966), Homo Aequalis. Genèse et épanouissement de l’idéologie économique (1977) e Essai sur l’individualisme (1983), especialmente o capítulo “De l’individu hors du monde à l’individu dans le monde”, publicado em Le Débat, nº15, 1981. 169

sociedade de castas fortemente hierarquizada como a Índia antiga o “advento do indivíduo” não encontra espaço para se produzir no quadro da vida social, mas implica que se tenha saído dele (Vernant, 2007, p.211). Na outra extremidade, o modelo do segundo encontra sua realização exemplar no homem moderno, “que afirma e vive sua individualidade, posta como um valor, no interior mesmo do mundo, o indivíduo mundano: cada um de nós” (id., p.211-12). Como teria nascido esse segundo tipo de individualidade, pergunta Vernant? Para Dumont, ao invés de se contrapor ao primeiro, o segundo tipo de indivíduo seria derivado e dependente daquele. Ao menos, no curso da história no Ocidente, sempre que os primeiros germes de “individualismo” se manifestaram numa sociedade tradicional, teria sido por oposição a essa sociedade, sob a forma do individu hors du monde. Assim, no ideal da época helenística, maximamente representado na doutrina estoica, o sábio se define por oposição à vida mundana: “aceder à sabedoria é renunciar ao mundo, desprender-se dele”. Nesse sentido, o cristianismo primitivo não implicaria uma ruptura, mas um deslocamento de acento em relação ao pensamento pagão: “o indivíduo cristão existe na e pela relação com Deus, quer dizer, fundamentalmente, por sua orientação para fora do mundo, pela depreciação da existência mundana e seus valores” (id., p.212, grifo meu). Por outro lado, a passagem de um a outro se faria progressivamente: À medida que a vida mundana se deixa contaminar pelo elemento extramundano, passando a ser concebida como podendo ser inteiramente conformada ao valor supremo, o indivíduo fora do mundo se tornará no moderno indivíduo no mundo (apud id.).

Partindo de uma análise rigorosa e sistemática das “condições que permitem ao indivíduo emergir desprendendo-se, pela prática da renúncia, das injunções sociais”, elaborada a propósito da Índia antiga, Dumont teria aplicado esse modelo de explicação, em seguida, às sociedades “hierárquicas” ou “holísticas”, que comportam um sistema de castas e em que o indivíduo “possui realidade somente em função do todo e em relação a ele”, sendo “inteiramente definido pelo lugar que ocupa no conjunto social, por sua posição em uma escala de estatutos separados e interdependentes”. Finalmente, num terceiro momento, o autor procurou estender essa concepção a outras sociedades, incluindo as do Ocidente, convertendo-a, finalmente, em uma “teoria geral do nascimento do indivíduo e do desenvolvimento do individualismo” (id., p.212-13). É a validade dessa explicação geral que Vernant pretende examinar e contestar a propósito da Grécia arcaica e clássica, “a Grécia das cidades, entre os séculos VIII e IV antes da nossa era” (id., p.213). Para isso, duas observações preliminares permitem situar o tema. Em primeiro lugar, o politeísmo grego se define como uma religião de tipo intramundano: “não apenas os deuses estão presentes e agem no mundo, mas os atos cultuais visam integrar os fiéis à ordem cósmica e social à qual presidem as potências divinas”, de modo que “não há lugar, nesse sistema, para o personagem 170

do renunciante” (id., p.213). Uma vez que a sociedade grega adota um regime igualitário, e não de tipo hierárquico, que ela define o grupo dos que a compõem (dos homoîoi, dos ísoi) situando-os num mesmo plano horizontal: Todo aquele que não tem acesso a esse plano se encontra fora da cidade, fora da sociedade, no limite, fora da humanidade, como o escravo. Mas cada indivíduo, se ele é cidadão, em princípio, está apto a ocupar todas as funções sociais, com suas implicações religiosas. Não há casta sacerdotal, não mais que casta guerreira. Todo cidadão, assim como é apto para fazer a guerra, é qualificado, desde que não esteja contaminado de mácula, para cumprir o ritual do sacrifício, em sua casa ou em nome de um grupo mais largo, se seu estatuto de magistrado o autoriza para tal. Nesse sentido o cidadão da pólis clássica, mais que ao homo hierarchicus de Dumont, se aparenta ao homo aequalis (id., p.21314).

Vernant já havia apontado em sua aula inaugural no Collège de France, “Religion grecque, religions antiques” (1975), para as diferenças entre os dois modelos, sublinhando a dificuldade particular que encontra o helenista: Na Grécia, o sacrificiante enquanto tal permanece fortemente incluído nos diversos grupos domésticos, civis, políticos em nome dos quais sacrifica. Essa integração na comunidade até na atividade religiosa confere aos progressos da individualização um aspecto inteiramente diferente: eles se produzem dentro do quadro social em que o indivíduo, quando começa a emergir, aparece, não como renunciante, mas como sujeito do direito, agente político, pessoa privada no seio da família ou no círculo de seus amigos (id., p.214).

À diferença dos contextos grego e indiano acrescenta-se uma segunda ordem de observações relativas à própria noção de sujeito. Será, finalmente, no diálogo com a obra tardia de Foucault que Vernant redefinirá seu objeto e suas categorias de análise. Michel Foucault, em O cuidado de si, havia observado, a propósito da categoria de “indivíduo”, que costumam-se misturar três realidades distintas sob a noção genérica de “individualismo” (Foucault, 1985, p.47-48). Na glosa de Vernant, o termo poder-se-ia referir a três planos distintos: a) O lugar reconhecido ao indivíduo singular e seu grau de independência em relação ao grupo do qual é membro e às instituições que o regem; b) A valorização da vida privada em relação às atividades públicas; c) A intensidade das relações de si para si, todas as práticas pelas quais o indivíduo assume a si mesmo, nas suas diversas dimensões, como objeto de sua preocupação e de seus cuidados, a maneira pela qual orienta e dirige para si mesmo seu esforço de observação, de reflexão e de análise: cuidado de si e também trabalho de si sobre si, formação de si através de todas as técnicas mentais de atenção a si mesmo, de exame de consciência, de provação, determinação, elucidação e expressão de si. (2007, p.214-15).

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Assim como os três sentidos não se recobrem, seus laços ao longo da antiguidade não seriam nem constantes, nem necessários: numa aristocracia militar, como a grega antiga, o guerreiro pode se afirmar como indivíduo à parte, “na singularidade de sua valentia excepcional”, sem possuir nenhum cuidado com sua vida privada ou exercer uma forma de trabalho sobre si pela autoanálise. Inversamente, na vida monacal do ascetismo cristão “a intensidade de relações de si para si pode vir de par com uma depreciação dos valores da vida privada e mesmo uma rejeição do individualismo” (id., p.215). Em vista dessa não-simultaneidade das práticas de si dentro da própria categoria de sujeito, Vernant propõe desenvolver a análise na perspectiva de uma antropologia histórica, esboçando uma nova classificação em torno de três conceitos, a partir da qual trata-se de distinguir:

a) O indivíduo, stricto sensu: seu lugar, seu papel no seu ou em seus grupos; o valor que lhe é reconhecido; a margem de manobra que lhe é deixada, sua relativa autonomia em relação ao seu enquadramento institucional; b) O sujeito: quando o indivíduo, exprimindo-se ele mesmo na primeira pessoa, falando em seu próprio nome, enuncia certos traços que fazem dele um ser singular; c) O eu [le moi], a pessoa: o conjunto de práticas e atitudes psicológicas que conferem ao sujeito uma dimensão de interioridade e unicidade, que o constituem dentro dele como um ser real, original, único, um indivíduo singular cuja natureza autêntica reside inteiramente no segredo de sua vida interior, no coração de uma intimidade à qual ninguém, fora dele, pode ter acesso, pois ela se define como consciência de si mesmo (id., p.215-16).

Numa comparação “muito esquemática” com os gêneros literários de expressão do eu, (a) ao “indivíduo” corresponderia a biografia, “no sentido que, por oposição à narrativa épica ou histórica, ela é centrada sobre a vida de um personagem singular”; (b) ao “sujeito” corresponderia a autobiografia e as memórias, “quando o indivíduo conta ele mesmo sua própria carreira de vida”, dizendo “eu” [je], mas também inúmeras outras formas de elocução na primeira pessoa, como veremos a seguir; (c) ao eu [moi] e à “pessoa” corresponderiam as confissões e os diários íntimos, “onde a vida interior, a pessoa singular do sujeito, na sua complexidade e riqueza psicológica, sua relativa incomunicabilidade, formam a matéria da escrita” (id., p.216). Os gregos, desde a época clássica, conheceram certas formas da biografia e da autobiografia. A. Momigliano, ainda recentemente, seguiu sua evolução para concluir que nossa ideia de individualidade e do caráter de uma pessoa encontrou lá sua origem. Em contrapartida, não apenas não há, na Grécia clássica e helenística, confissões e diários íntimos – a coisa é impensável –, mas, como o observou G. Misch e o confirma A. Momigliano, a caracterização do indivíduo na autobiografia grega ignora a “intimidade do eu” (id., p.216).

Como o paralelo das duas séries de categorias, literária e antropológica é particularmente relevante para nossa pesquisa e encontra um precedente nas pesquisas de Arnaldo Momigliano e 172

Georg Misch, vale à pena resgatar, para concluir essas coordenadas preliminares, alguns aspectos que distinguem a expressão do eu nas formas antigas que o autor chama de “gêneros literários” da biografia e da autobiografia. O que poderá nos dar um bom ponto de contraste para a presença do eu na poesia grega arcaica: não devemos supor a priori que bíos invariavelmente significou a descrição de uma vida individual como tal, de um homem enquanto este difere dos demais. A noção de personalidade se encontra seguramente nos idiomas europeus modernos, mas duvido que haja uma tradução adequada para ela no grego antigo. Se nos ativermos a fatos elementares, nos dá o que pensar o fato de que os biógrafos helenísticos e romanos com frequência escreveram séries de biografias de homens da mesma classe – generais, filósofos, demagogos – e, por conseguinte, parece que se interessaram pelo tipo mais do que pelo indivíduo (1986, p.24).

Como reconhece Momigliano, “a biografia nunca foi considerada como história no mundo clássico” (id., p.24). Porém, mesmo porque se compunha de “uma mescla de fatos e fantasia” (id., p.74), em que categoria o analista irá situar esses textos senão ao lado da chamada “literatura”? “Nem a biografia, nem a autobiografia chegaram a ser gêneros literários salientes na Grécia durante o século V a.C.” (id., p.53). Não obstante, a cada caso examinado, se constata a mesma reserva diante da expressão do eu: em Tucídides, nota-se um claro “desdém aristocrático pelos detalhes pessoais” (id., p.49); para a maioria dos historiadores, “o valor do indivíduo [radicaria] na sua contribuição ao bemestar do Estado” (id., p.57). Donde a anotação que estabelece um sugestivo paralelo com horizonte grego dos valores ligados à lógica da honra, expressa em termos de elogio e reprovação, com suas formas inversas, da exortação e da defesa: Se a terminologia é incerta, a relação entre autobiografia e biografia assume no curso da civilização greco-romana um curioso aspecto dialético de contraposição que não parece jamais ter sido observado. No século IV a.C. existiam já, como se diz, memórias pessoais (sic); mas a mais típica autobiografia se encontra nos discursos, verdadeiros ou fictícios, pronunciados diante do tribunal: discurso verdadeiro como “Sobre a coroa” de Demóstenes, ou discurso fictício como “Sobre a troca” de Isócrates. A saber, o escritor se defende diante de um público dando conta de sua vida. A esse caráter apologético, defensivo, da autobiografia, faz contraponto o caráter elogiativo, encomiástico, da biografia no quarto século, como se reconhece no “Agesilau” de Xenofonte e na “Euagora” de Isócrates, dois escritos de celebração em forma biográfica (1987, p.185, grifo nosso)

Não sendo aqui o lugar para discutir a “posição ambígua entre a realidade e a imaginação” (1986, p.63) que a biografia e a autobiografia ocupariam no universo grego, apenas cabe perguntar sobre esse “gênero” de escrita, cujo relato se destinava menos a captar o individual que integrá-lo na descrição de “modos de vida” (bíos), a coleções de “exemplos” (paradeígmata) ou a veicular uma mensagem filosófica, como esses discursos submetidos ao regime do elogio e da censura, característico de uma lógica da honra, poderiam antecipar a “nossa ideia de individualidade”, como supõe o autor italiano? 173

Se pode discutir quanto se quiser sobre este ponto: resta que a nossa ideia de caráter, de individualidade e, enfim, de pessoa, tem sua raiz na biografia greco-romana. Plutarco permaneceu o biógrafo modelo até o fim do século XVIII, inclusive (id., p.187).

Para Momigliano esse privilégio da biografia antiga se deve justamente ao fato de dar forma a uma individualidade, não como retrato de uma vida interior, mas como um caráter exemplar que se estende bem além do estritamente pessoal: Na biografia antiga [...] o esforço do escritor é de construir um caráter, uma individualidade permanente, sob a variação dos eventos. O caráter será congênito, será devido à educação, se expressará em virtudes e vícios específicos, terá episódios indicativos, de fato exemplares, se refletirá em lemas, em anedotas, talvez, mas mais frequentemente em cartas. [...] O objetivo, em todo caso, é dar uma impressão de um indivíduo no seu elemento durável: assim era Cesar, assim Virgílio (id., p,186-187).

Embora sumário, o confronto é bastante para verificar que, apesar de manter o pressuposto de um ego permanente extensível até a antiguidade, a pesquisa empírica de Momigliano com as formas precursoras da biografia e da autobiografia confirmam a ausência de um “eu” (moi): elas desconhecem “o elemento de intimidade, de reflexão sobre o moi de boa memória francesa, ou de responsabilidade no sentido kantiano” (1987, p.186). Vejamos, então, como Vernant retoma essa tradição moderna de reflexão sobre o sujeito antigo e propõe analisar cada um dos planos da categoria do “eu” identificados por Foucault relacionando-os a distintas formas da experiência de si na Grécia antiga.

Indivíduo “Não terá chegado o momento, após quarenta anos de pesquisas [...] sobre o que chamei de história interior do homem grego, de me aventurar a fazer um balanço, arriscando algumas conclusões gerais?” (2001: 172). Começando pelo prefácio que Vernant escreveu para a obra coletiva, organizada por ele, sobre O homem grego (1993), nela encontramos um bom testemunho da reviravolta que o autor propôs operar sobre o problema da pessoa na Grécia antiga. Vindo bem depois da síntese teórica de “L’individu dans la cité” (1985), tomo-o a título de introdução retrospectiva, fornecendo a moldura dentro da qual o ensaio presente introduz três diferenciações internas no estatuto da categoria do sujeito. Como veremos agora, sua análise se ramifica até o ponto de adequar seu instrumento conceitual à expressão de uma simultaneidade de tempos diversos na história das práticas de si: assinalando formas diversas da experiência do “eu” como indivíduo, sujeito e pessoa, cada feixe conceitual delimitado a seguir corresponde a ritmos diferenciados dentro da mesma “categoria”.

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A fim de circunscrever a configuração histórica da categoria grega do indivíduo, Vernant propõe três vias de acesso: (1) o reconhecimento do indivíduo como tal, em sua singularidade, desde a época arcaica; (2) sua valorização na esfera privada, com o crescente destaque desta, frente ao domínio do comum; (3) a emergência do indivíduo na esfera pública, “nas instituições sociais que, para seu próprio funcionamento, são levadas a lhe conferir, desde a época clássica, um lugar central” (id., p. 216). 1. Como representativos do primeiro quadro, Vernant destaca dois tipos de homens “fora do comum”, exemplares do papel concedido ao indivíduo já na época arcaica: o herói guerreiro, cujo modelo seria Aquiles, e o mago inspirado, nas figuras paradigmáticas de Hermótimo, Epimênides e Empédocles (id., p.217). Quanto ao primeiro, sua retomada implica uma retificação do juízo formulado em “Aspectos da pessoa”, passando a sublinhar o reconhecimento individual que distingue a categoria grega do herói: este se caracteriza pela “a singularidade de seu destino, o prestígio excepcional de seus feitos, a conquista de uma glória que é inteiramente sua, a sobrevivência através dos séculos de seu renome na memória coletiva”. Ao passo que os homens ordinários dissipam-se, após a morte, no esquecimento do Hades, tornando-se nṓ nymoi, “sem-nome”, somente o indivíduo heroico, que aceitou enfrentar a morte na flor da juventude, vê seu nome se perpetuar em glória. Para isso, certamente, “lhe foi preciso isolar-se, opor-se mesmo ao grupo dos seus, subtrair-se em relação a seus iguais e seus chefes”. Mas essa distância, diz Vernant, ao contrário da tese de Luis Dumont, “não faz dele um renunciante, abandonando a vida mundana”: Forçando a seu ponto extremo a lógica de uma vida humana dedicada a um ideal guerreiro, ele arrasta os valores mundanos, as práticas sociais do combatente para além deles mesmos. Às normas usuais, aos costumes do grupo, ele confere, pelo rigor tenaz de sua biografia, por sua recusa de compromisso, por sua exigência de perfeição até a morte, uma dimensão nova. Ele instaura uma forma de honra e de excelência que ultrapassam a honra e a excelência ordinárias. Aos valores vitais, às virtudes sociais próprias deste mundo, porém sublimados, transmutados na prova da morte, ele confere um brilho, uma majestade, uma solidez de que elas são despidas no curso normal da vida e que as fazem escapar à destruição que ameaça todas as coisas sobre esta terra. Mas essa solidez, esse brilho, essa majestade, é o próprio corpo social que os reconhece, os faz seus e lhes assegura, nas instituições, honra e permanência (id., p.217).

Como os heróis, os magos também se definem como “indivíduos à parte”, afastados do comum dos mortais, “por seu gênero de vida, seu regime, seus poderes excepcionais”. Através do que Vernant chama de “exercícios espirituais”, de certas práticas ascéticas, estes homens teriam desenvolvido algumas técnicas de si destinadas a conferir-lhes um domínio sobre sua psykhḗ , permitindo-lhes desprender-se do corpo e viajar no além, para purificá-la e libertá-la do ciclo de reencarnações sucessivas. Mas tampouco esses “homens divinos” (théoi ándres) se confundem com

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a figura do renunciante, “mesmo se, em seu rastro, vai tomar corpo uma corrente de pensamento cujos adeptos se proporão fugir daqui de baixo”: Pelo contrário, em razão mesmo de sua singularidade e da distância que os mantêm afastados do grupo, estes personagens vão desempenhar, nos períodos de crise, nos séculos VII e VI, um papel comparável ao dos nomotetas, de legisladores como Sólon, para purificar as comunidades de suas máculas, apaziguar as sedições, arbitrar os conflitos, promulgar os regulamentos institucionais e religiosos. Para regular as tarefas públicas, as cidades têm necessidade de recorrer a esses indivíduos “fora do comum” (id., p.217-18).

Em ambos os casos, o destaque do individual não coincide com a prática de uma renúncia ao mundo, nem confere dignidade à sua dimensão interior. Se o indivíduo já encontra um lugar na comunidade é apenas na medida em que sua diferença o torna exemplar para toda a cidade ou permite identificá-lo a uma potência divina, o daímon que o habita, sem se confundir com sua pessoa. 2. Passando ao segundo modo de inscrição individual: desde as formas mais arcaicas da cidade, no fim do século VIII a.C. e já em Homero, se desenham correlativamente os domínios do que concernem ao público e ao privado. Tò koinón, o comum, envolve todas as atividades “que devem ser partilhadas, quer dizer, que não devem ser privilégio exclusivo de ninguém, indivíduo ou grupo nobilitário, e aos quais é preciso tomar parte para ser cidadão”. Tò ídion, o próprio, “é o que não tem que ser partilhado e não pertence senão a cada um” (id., p.218). Mas a história das fronteiras recíprocas do “comum” e do “próprio” (no que distingue essas noções da partilha moderna entre “público” e “privado”) não encontra sempre a mesma configuração conforme a cidade ou a época considerada: “em Esparta, a educação dos jovens e os banquetes, sob a forma do agōgḗ e das syssitías, [...] encontram-se atreladas à esfera do comum; são atividades cívicas”. Inteiramente diverso é o caso de Atenas, onde a emergência de um plano do político distinto de outras esferas de atividade opera num nível mais alto de abstração, referindo a pólis ao que é comum aos cidadãos livres, de sua parte, a educação das crianças e os banquetes são vinculados à vida doméstica, integrando-se à esfera do oîkos. Aqui, “o grupo dos parentes e familiares vai definir uma zona onde as relações privadas entre indivíduos podem se desenvolver, ganhar mais relevo e adquirir uma tonalidade afetiva mais íntima” (id., p.218-19). Não por acaso, o simpósio vai desempenhar um papel importante como local de cultivo de relações individuais e espaço privilegiado para a performance da poesia mélica arcaica. Numa das raras passagens em que Vernant se refere diretamente à “lírica grega”, esta aparece, então, favorecida menos pela “emergência do indivíduo” na consciência pública, que pela valorização da esfera do “próprio” face ao domínio em que predominam as normas coletivas da pólis. Mas tampouco no simpósio o “eu” se afirma por oposição à “cidade”. Senão que, nas palavras de Florence Dupont, citadas abaixo, o “banquete” desenvolve suas práticas numa espécia de analogia com a “assembleia”: 176

O sympósion, quer dizer, o uso, difundido desde o século VI a.C., de se reunir em casa após a refeição, para beber junto, conversar, se divertir e se alegrar entre homens, com amigos e cortesãs, cantar a elegia sob o patrocínio de Dioniso, de Afrodite e de Éros, marca a aparição na vida social de um comércio interpessoal mais livre e mais seletivo, onde a individualidade de cada um é levada em conta e cuja finalidade é da ordem do prazer, de um prazer controlado e partilhado com respeito à lei do “bem beber”. Como escreve Florence Dupont: “O banquete é o lugar e o meio para o homemcidadão privado de aceder ao prazer e ao gozo, paralelamente à Assembleia que será o lugar e o meio para o homem-cidadão público de aceder à liberdade e ao poder” (id., p.219).

Paralelamente à importância crescente que adquire a esfera do “próprio”, com os laços afetivos que unem o indivíduo a seus próximos, face ao domínio “comum”, se manifesta a mudança que atinge as práticas e monumentos funerários. Assim, em Atenas, até o fim do século VI a.C., os túmulos eram geralmente individuais, prolongando a ideologia do indivíduo heroico: A estela porta o nome do defunto e se endereça indistintamente a todos os passantes. A imagem gravada ou pintada, ao mesmo título que o koûros funerário erigido sobre o túmulo, figura o morto em sua beleza juvenil como representante exemplar de valores, de virtudes sociais que ele incarnou (id., p.219).

Já a partir do século V a.C., ao lado destes funerais públicos em honra de guerreiros caídos em combate, “em que a individualidade de cada defunto é como submergida na glória comum da cidade”, se estabelece o uso de túmulos familiares: as estelas passam a associar os mortos e vivos da família, com epitáfios que celebram “os sentimentos pessoais de afeição, de pesar, de estima entre marido e mulher, pais e filhos” (id., p.219-20). 3. Por fim, o indivíduo faz sua terceira entrada na cidade grega, no plano da própria “esfera pública”, através do surgimento de algumas instituições que vão lhe conceder um lugar central, por exemplo, na religião e no direito (id., p.220). No plano das instituições religiosas, destaca-se a difusão do culto de mistérios. Colocados ao lado da religião cívica sob o patrocínio oficial da cidade, os mistérios dela se diferenciam por serem “abertos a quem quer que fale grego, estrangeiro como ateniense, mulher ou homem, escravo ou livre”, dependendo a sua participação nas cerimônias, até a iniciação completa, apenas da livre decisão de cada um, e não do estatuto social ou de sua função no grupo. “Ademais, o que o iniciado espera de sua entronização, é, para ele mesmo, individualmente, uma sorte melhor no além”, a singularidade de um destino póstumo. Ora, toda essa “promoção individual do iniciado nos mistérios não faz dele em nenhum momento um indivíduo fora do mundo, destacado da vida aqui em baixo e dos laços cívicos” (id.): terminadas as cerimônias, obtida a consagração, nada em seu costume, em sua maneira de viver, sua prática religiosa, seu comportamento social distingue o iniciado do que ele era antes, nem daquele que o não é. Ele ganhou uma espécie de segurança íntima, está religiosamente modificado por dentro 177

pela familiaridade que adquiriu com as duas deusas23. Permanece socialmente inalterado, idêntico (id.).

Um segundo exemplo desse “individualismo” religioso é o surgimento, a partir do século V, de um tipo de culto e de grupamento em que o indivíduo toma inteiramente a iniciativa, fundando e reunindo em torno de si, “em um santuário privado, consagrado a uma divindade, adeptos desejosos de se reservar o privilégio de celebrar entre si um culto particular”. Seus fiéis são synousiastaí, coassociados, que formam uma “pequena comunidade religiosa fechada” e se comprazem em se encontrar “na prática de uma devoção onde cada um, para participar, deve ter feito sua demanda e ter sido pessoalmente agregado pelos outros membros do grupo”. Escolhendo seu deus para lhe render uma forma de devoção singular, bem como sendo ele mesmo escolhido pela pequena comunidade de fiéis, o indivíduo faz sua entrada na organização do culto, mas o lugar que ocupa não o põe fora do mundo, nem fora da sociedade. Sua aparição marca, por oposição aos papéis religiosos predeterminados e como programados pelo estatuto cívico de cada um, o advento, na vida religiosa, de relações mais flexíveis e mais livres entre os particulares, a criação, na esfera religiosa, de uma forma nova de associação, concernindo ao que se pode chamar uma “socialidade seletiva” (id., p.220-21, grifo nosso).

Mas é, sobretudo, no desenvolvimento do direito que se verifica, de modo mais evidente e com consequências mais imediatas, o aparecimento do indivíduo no âmbito das instituições públicas. Seguem dois exemplos, no direito civil e no direito criminal (id., p.221). Para Vernant, a emergência da ideia de “indivíduo criminal”, que aparece simultaneamente como “sujeito do delito” e “objeto do julgamento”, marca, no âmbito dos crimes de sangue, a passagem do pré-direito ao direito: Entre a concepção pré-jurídica do crime, visto como míasma, uma mácula, contagiosa, coletiva, e a noção que o direito elabora da falta, que é a de uma pessoa singular, e que comporta graus correspondendo a tribunais diferentes segundo o crime seja “justificado”, que tenha sido cometido “malgrado seu”, ou que tenha sido feito “de bom grado” e “com premeditação”, há uma ruptura. Com efeito, é o indivíduo que, na instituição judiciária, é posto em causa na relação mais ou menos estreita que ele entretém com seu ato criminal. Essa história jurídica tem uma contrapartida moral; ela engaja as noções de responsabilidade, de culpabilidade pessoal, de mérito; ela tem igualmente uma contrapartida psicológica: ele põe o problema das condições, coação, espontaneidade ou projeto deliberado, que presidiram à decisão de um sujeito, e também o dos motivos e móveis de sua ação (id., p.221-22).

Essa transformação encontra uma expressão privilegiada no “fato social total” que constitui a tragédia grega aos olhos de Vernant. Mas, agora, não se trata de assinalar, sob a ruptura que sublinha a emergência do sujeito do delito, o “esboço” de um traço da “pessoa”, com a função psicológica da vontade. A institucionalização do sujeito criminoso impunha um paradoxo: é essa distinção que

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Perséfone e Deméter, deusas patrocinadoras dos mistérios de Elêusis.

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permite que o agente seja ao mesmo tempo responsável, em seus atos, por uma decisão que o ultrapassa. Mas como veremos agora, o reconhecimento de um crescente papel do indivíduo no direito clássico não pressupõe que esta diferença conduza a uma noção de “pessoa” ou de “vontade”. O outro exemplo da promoção social do indivíduo, cujas condições e modalidades de aparecimento foram finamente analisadas por Louis Gernet no âmbito do direito civil, consiste na instituição do testamento: De início, na adoção entre vivos, o indivíduo não está concernido enquanto tal. Trata-se, para um chefe de família, se ele não tem filhos, de zelar, adotando em sua velhice um próximo, um parente, para que seu lar não fique deserto e seu patrimônio não seja dispersado entre as mãos de colaterais. O uso da adoção testamentária se inscreve na mesma linha: é sempre da casa que se trata para assegurar sua manutenção: o oîkos está em causa, não o indivíduo. Em contrapartida, quando, a partir do século III a.C., no prolongamento, dessa vez, da doação em causa de morte, se institui a prática do testamento propriamente dito, ele se torna uma coisa estritamente individual permitindo a livre transmissão de bens, segundo a vontade, formulada por escrito e que deve ser respeitada, de um sujeito particular, senhor de sua decisão para tudo o que ele possui. Entre o indivíduo e sua riqueza, qualquer que seja sua forma, patrimônio e aquisições, móveis e imóveis, o laço é doravante direto e exclusivo: a cada um pertence propriamente uma posse (id., p.222).

De todos os exemplos enumerados por Vernant de promoção social do status do indivíduo, vemos que somente o último, já em data avançada, coincidindo com o declínio da época clássica (a partir do século III a.C.), implica o reconhecimento jurídico da vontade individual. Mas em nenhum momento, em suas múltiplas formas, o lugar do indivíduo leva a destacar sua interioridade pessoal. É sempre em função de algo externo que a individualidade faz sua emergência na pólis e jamais implica uma forma de reflexão ou um trabalho de si sobre si mesmo.

Sujeito

Passemos ao segundo quadro geral de experiência de si. Conforme o critério da classificação de Vernant, nesse plano trata-se, fundamentalmente, de interrogar a relação que o “eu” estabelece com a página escrita ou, mais precisamente, com as formas de elocução oral na primeira pessoa. Embora o critério possa parecer, à primeira vista, excessivamente restritivo, é a própria amplitude de discursos abarcados que apresenta, de saída, um problema: O emprego da primeira pessoa em um texto pode ter sentidos muito diferentes segundo a natureza do documento e a forma do enunciado: édito ou proclamação de um soberano; epitáfio funerário; invocação do poeta que se põe, ele mesmo, em cena, no começo e ao longo de seu canto como inspirado pelas Musas ou detentor de uma verdade revelada; narrativa histórica durante a qual o autor

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intervém em pessoa para dar sua opinião; defesa e justificação de si, nos discursos “autobiográficos” de oradores como Demóstenes ou Isócrates (id., p.223).

Todos esses exemplos mostram, pela heterogeneidade de escritos circunscritos, que, sem se confundir com uma categoria estritamente linguística, relacionando-o a situações enunciativas discrepantes entre si, “o discurso em que o sujeito se exprime dizendo ‘eu’ [je] não constitui uma categoria bem delimitada e de alcance [portée] unívoco” (id., p.223). Embora Vernant não coloque a questão, se pode acrescentar: não é a categoria do sujeito que confere unidade a estes discursos, mas estes é que implicam a quebra de sua pretendida univocidade. Há tantos “sujeitos” quanto modos de assumir a instância do discurso que diz “eu”. Para sua exposição, Vernant se restringe ao caso privilegiado, desde Snell, para colocar o problema do sujeito na Grécia antiga, que responde a um tipo de poesia em especial, grosso modo, à chamada lírica, “em que o autor, pelo emprego da primeira pessoa, confere ao eu um aspecto particular de confidência, exprimindo a sensibilidade que lhe é própria e conferindo-lhe o alcance geral de um modelo, de um topos literário” (id, p.223). Já pelos termos com que descreve a poesia arcaica (confissão, expressão da sensibilidade, modelo) é forçoso constatar que Vernant se mantém nos parâmetros herdados de Snell, basicamente, dentro da definição hegeliana de lírica: Fazendo de suas emoções pessoais, de sua afetividade do momento, o tema privilegiado da comunicação com seu público de amigos, de concidadãos, de hetaîroi, os poetas líricos conferem a essa parte, em nós indecisa e secreta, do íntimo, da subjetividade pessoal, uma forma verbal precisa, uma consistência mais firme. Formulado na língua da mensagem poética, o que cada um experimenta individualmente como emoção em seu fundo interior toma corpo e adquire uma espécie de realidade objetiva (id.).

A identificação com a categoria moderna de lírica é tão plena que chega a subscrever o contraste entre poesia e sociedade, em um tempo em que dificilmente o poeta teria condições de se opor a seu grupo, levando, em última instância, à afirmação da relatividade de valores decorrente de um “eu” capaz de colocar a si mesmo como centro de referência de um “juízo pessoal”, ambos supostos por Snell e apoiados nos mesmos exemplos do filólogo: É preciso ir mais longe. Afirmada, cantada, exaltada, a subjetividade do poeta põe em causa as normas estabelecidas, os valores socialmente reconhecidos. Ela se impõe como pedra de toque do que, para o indivíduo, é o belo e o feio, o bem e o mal, o bom e o mau. A natureza do homem é diversa, constata Arquíloco; cada um compraz seu coração com uma coisa diversa [Fr.25W]. E Safo proclama, em eco: ‘Para mim, a coisa mais bela do mundo, é, para cada um, o que ele ama’ [fr.16V]. Relatividade, portanto, dos valores comunitariamente admitidos. É ao sujeito, ao indivíduo, no que ele experimenta pessoalmente e que compõe a matéria de seu canto, que cabe, em última instância, o papel de critério de valores (id., p.223-24).

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Vernant chega a subscrever um exemplo sintomático da tese de Snell. P. C. Corrêa cita a leitura que Snell faz do fr. 25 W como “exemplo triste (mas instrutivo) dos enganos a que se está sujeito na interpretação dos fragmentos” de poesia grega arcaica, e como demonstração de “por que é arriscado servir-se deles para a elaboração de uma história do espírito”, pois Snell o leu como um “desenvolvimento” de passagens homéricas (Od. 14.228; 8.166 ss.; 4.548 ss.), chegando a reconhecer a “diversidade de pontos de vista”, ideia que na Ilíada ainda não se expressaria com tal clareza. Ocorre que “a publicação do Papiro de Oxirrinco 2310 (fr.1 col.i, 40-48) em 1955 revelou que os versos pertenciam a uma sátira erótica (iambo), talvez com referência à pederastia” (Corrêa, p.59) Se a manutenção de uma concepção meta-histórica de lírica por si mesma já é bastante estranha em um autor preocupado em evitar anacronismos como Vernant, que dizer dessa ênfase no papel do juízo individual no estabelecimento do verdadeiro – belo e bom é o que egṓ considera como tal –, senão que ela supõe a plena afirmação de um sujeito autocentrado? Mas será isso o que estes poemas querem dizer? Para que se confirmasse seria necessário que o juízo se fizesse acompanhar de um estado de introspecção, de reflexão, extraindo de seu foro íntimo a razão de uma decisão inteiramente pessoal. Não será exatamente o que pretende significar o realce de um “tempo interior”, condição de uma forma de reflexividade diversa da memória social, como prossegue Vernant? Um outro traço deve ser assinalado: ao lado dos ciclos do tempo cósmico e da ordem do tempo socializado, em oposição a eles, a aparição do tempo tal como é vivido subjetivamente pelo indivíduo: instável, cambiante, mas conduzindo inexoravelmente à velhice e à morte, tempo suportado em suas inversões súbitas, seus caprichos imprevisíveis, sua angustiante irreversibilidade. O sujeito faz, dentro de si, a experiência desse tempo pessoal sob a forma do pesar, da nostalgia, da espera, da esperança e do sofrimento, da lembrança dos prazeres perdidos, das presenças apagadas. Na lírica grega, o sujeito se experimenta e se exprime como essa parte do indivíduo sobre a qual ele não tem controle, que o deixa desarmado, passivo, impotente, e que é, contudo, nele, a vida mesma, esta que ele canta: sua vida (id., p.224, grifo meu).

A frase decisiva é, evidentemente, a ressalva feita no final do argumento: “Na lírica grega, o sujeito se experimenta e se exprime como essa parte do indivíduo sobre a qual ele não tem controle”. Pois o destaque de um “tempo pessoal” não conduz à descoberta de uma função ativa do “eu”, senão, como já notava Snell, ao sentimento contrário de amēkhanía, de impotência, que coincide com o realce de uma passividade do sujeito. Como a tragédia, que supõe um estágio de elaboração da faculdade da vontade em que o sujeito da prâxis aparece como agente responsável de uma decisão de que ele não ocupa plenamente o centro, a lírica seria correlata a um estágio de elaboração da faculdade da sensibilidade em que o sujeito do páthos aparece como centro de um juízo que estende além dele. Em ambos os casos o paradoxo que acompanha a enunciação de Vernant caminha pari passu a uma adesão parcial à tese de Bruno Snell sobre o “surgimento do indivíduo”. Se esta recebia uma correção drástica em “Esboço da vontade na tragédia”, é nas linhas gerais de seu argumento sobre o 181

nascimento da lírica concomitante à formação de uma nova imagem do homem que Vernant se atém mais aferradamente à letra de A descoberta do espírito, inclusive quando se trata de afirmar a solução contrária. Pois também Snell, devido à solução de compromisso que estabelece, era forçado a constatar o paradoxo apontado por Vernant: O abandono do ideal heroico, o advento de valores diretamente ligados à vida afetiva do indivíduo e submetidos a todas as vicissitudes da existência humana [...] têm por corolário uma expressão do tempo que não se enquadra mais no modelo do devir circular. Na concepção arcaica [...] o tempo dos homens parecia integrar-se na organização cíclica do cosmo. Quando o indivíduo se volta para sua própria vida emocional e, entregue ao momento presente, com o que ele comporta de prazer e de dor, situa, no tempo que passa, os valores aos quais está desde então ligado, ele próprio se sente levado em um fluxo móvel, cambiante, irreversível. Dominado pela fatalidade da morte que orienta todo o seu curso, o tempo no qual se desenrola sua existência aparece-lhe como uma força de destruição, arruinando irremediavelmente tudo o que a seus olhos significa o preço da vida. A tomada de consciência mais clara, pela poesia lírica, de um tempo humano esvaindo-se sem retorno ao longo de uma linha irreversível, revela a ideia de uma ordem inteiramente cíclica, de um renovamento periódico e regular do universo (Vernant, 2008a, p.157-158, grifo meu).

Ao invés de conduzir à dissolução do tempo mítico, a experiência do tempo humano, “instável, cambiante, mas conduzindo inexoravelmente à morte”, com a inevitável relativização que ele introduz na perspectiva dos valores vitais, se converte, na lírica, na busca de uma nova ordem homogeneizadora, na afirmação de uma diversa concepção cíclica, que remete a individualidade a um ritmo periódico que tudo abarca, regulando o perpétuo rejuvenescimento do cosmo. Por isso, embora Vernant chegue a falar na descoberta de um “tempo pessoal interior”, a própria noção de “pessoa” se apresenta diversa da nossa.

Pessoa

Do homem considerado em si mesmo, em sua singularidade, na esfera pública e privada, como indivíduo, mas sempre referido a partir do exterior, conforme o lugar que lhe é assinalado pelo grupo; em seguida como sujeito, tal como se exprime por si mesmo e se mostra para os outros; finalmente, chegamos ao homem como pessoa, tal como se constitui dentro dele mesmo, em sua consciência de si. Vimos que esse terceiro grande quadro da experiência de si na Grécia, Vernant recusava em bloco sua existência, tanto na época arcaica como no período clássico, em plena concordância com Marcel Mauss. Posteriormente, a partir da indagação da categoria do “corpo” e da noção de “consciência orgânica” de James Redfield, relacionadas ao papel do outro e do olhar na experiência de si, Vernant ensaia uma aproximação positiva. Esta terceira abordagem da categoria de “pessoa” procura conferir um contorno histórico preciso: 182

Bem entendido, os gregos arcaicos e clássicos têm uma experiência de seu eu, de sua pessoa, assim como de seu corpo, mas essa experiência é organizada de modo diverso da nossa. O eu não é nem delimitado, nem unificado: é um campo aberto às forças múltiplas, como disse H. Fränkel. Sobretudo, essa experiência é orientada para fora, não para dentro. O indivíduo se procura e se encontra no outro, nesses espelhos refletindo sua imagem que são para ele cada alter ego, pais, filhos, amigos. [...] O indivíduo se projeta, também, e se objetiva no que ele cumpriu efetivamente, no que ele realizou: atividades ou obras que lhe permitem se apreender, não em potência, mas em ato, enérgeia, e que não estão nunca em sua consciência. Não há introspecção. O sujeito não constitui um mundo interior fechado, no qual ele deve penetrar para se reencontrar ou, mais precisamente, se descobrir. O sujeito é extravertido. Do mesmo modo como olho não se vê a si mesmo, o indivíduo, para se apreender, olha para alhures, para fora. Sua consciência de si não é reflexiva, dobrada sobre si, enclausuradamente interior, face a face com sua própria pessoa: ela é existencial. A existência é primeira em relação à consciência de existir. Como se o notou com frequência, o cogito ergo sum, “penso logo existo”, não tem nenhum sentido para um grego (id., p.224-25, grifo meu).

Ao contrário do cogito, o mundo da individualidade grega não toma a forma de uma consciência de si (syneidénai heautôi), definindo a pessoa de cada um como um universo interior. Se “a existência é primeira em relação à consciência de existir” é precisamente porque egṓ se apreende em ato (enérgeia): “eu existo porque tenho mãos, pés, sentimentos, porque ando, vejo e cheiro”. A consciência é sempre atada ao exterior: “tenho consciência de ver tal objeto, de ouvir tal som, de sofrer tal dor”. Conforme à célebre formulação da Ética a Nicômaco: Aquele que vê, sente que vê, aquele que ouve, que ele ouve, aquele que caminha, que ele caminha e da mesma forma, por toda parte há alguma coisa que sente que nós exercemos uma atividade, que sente, por consequência, se nós sentimos, que sentimos, se nós pensamos, que pensamos. Mas sentir que sentimos ou pensamos é sentir que nós somos (EN, 1170 a 29-32).

Bernard Groethuysen resume numa fórmula lapidar esse estatuto da pessoa antiga: nela, a consciência de si é “a apreensão em si de um ele, não de um eu” (id., p.226-27). Extraindo as conclusões dessa tipologia, sintetiza Vernant: por um lado, “o que chamamos de ‘pessoa’ não é central na religião grega”. Não se coloca o problema da relação do indivíduo com um deus pessoal, nem de sua salvação individual após a morte: “a religião está centrada de outra forma”. Por outro lado, “é verdade também que existe um indivíduo desde a época arcaica”. Assim, “em toda uma série de planos, percebemos que as instituições sociais atribuem ao indivíduo um lugar cada vez maior. Ao indivíduo, mas talvez não ao eu ou à pessoa”. Por fim, é preciso distinguir entre o que é relativo ao indivíduo e o que é relativo ao que Vernant chama de sujeito. “O sujeito não é uma categoria única” e unívoca. Não é a mesma coisa quando Homero ou Hesíodo dizem “eu” ou quando Demóstenes ou Isócrates colocam a si mesmos em cena para defender uma causa, ou ainda quando Heródoto ou Tucídides intervêm em sua narrativa para opinar ou manifestar dúvidas (2001, p.69-70). Sem falar no “eu” da lírica grega, que interessa particularmente a Vernant, na medida que 183

expressa o surgimento de uma forma de sensibilidade que o sujeito atribui a si mesmo (Alceu, Safo e tantos outros) e na qual ele comunica a um círculo estreito de amigos suas emoções, suas saudades, seus desejos, seus prazeres, ou seja, uma parte que, nele, pela comunicação poética, aparece como essencial e sobre a qual ele não tem controle, diante da qual está desarmado (id., p.70).

Conclusões

Nos três casos traduz-se o estatuto singular do homem grego com uma expressão precisa: o sujeito grego é extravertido. Sua organização mental e psíquica é tal que ele desconhece a introspecção e a autoanálise, no sentido moderno: Em nenhum momento o grego da época clássica pratica o que Foucault chama de um trabalho de si sobre si mesmo, ou então trata-se de um trabalho de tipo platônico, puramente noético, que consiste em se tornar puro pensamento (id.).

Essa ideia, que Platão toma emprestado das tradições órfica e pitagórica, segundo a qual o verdadeiro Sócrates não é seu corpo, mas sua alma, sua psykhḗ , “terá consequências decisivas do ponto de vista da descoberta das forças psicológicas, do trabalho de si sobre si mesmo” (id.). Ela encontra sua “disposição inicial” nestes “exercícios de saída do corpo, de fuga para fora do mundo, de evasão para o divino, cuja intenção é uma busca de salvação pela renúncia à vida terrestre” (id., p.227). Mas ao menos no quadro da cultura grega arcaica e clássica, nenhuma seita, nenhuma prática cultual, nenhum grupo organizado expressou com pleno rigor e com todas as consequências essa exigência de saída do corpo, de fuga para fora do mundo, de união íntima e pessoal com a divindade. A religião grega não conheceu o personagem do “renunciante”. Foi a filosofia que, ao transpor para seu próprio registro os temas da ascese, da purificação da alma, da imortalidade desta, assumiu essa tarefa (2006, p.88)

Entretanto, mesmo em Platão, para quem a nova concepção de psykhḗ vai assumir um conteúdo mais propriamente pessoal, “esta abertura em direção ao psicológico se efetua através de práticas mentais engajadas na cidade e orientadas para este mundo aqui” (id., p.228). Pouco importa, nesse sentido, se ela implica uma clara depreciação dos valores ligados ao corpo e ao mundo sensível. Todo esse trabalho, como Foucault mostrou muito bem, não é um trabalho de fuga para fora do mundo, ele só é compreensível no contexto da cidade grega. Trata-se de aplicar a si mesmo as mesmas normas e as mesmas concepções que aplicamos aos outros. É porque quero ser um homem livre, porque o ideal do cidadão é não ser escravo de alguém, que procuro não ser escravo de mim mesmo. Como diz Foucault, o trabalho sobre si é a mesma coisa que a paideía para tornar-se um bom cidadão. Há nisso toda uma história da interioridade e da unicidade do eu que ainda está por se fazer (id., p.70, grifo nosso). 184

É no diálogo com a própria psykhḗ , com o “verdadeiro eu”, no sentido que Platão confere a essa palavra, que o indivíduo vai começar a trabalhar sobre si mesmo. Não para fugir do mundo, mas “para realizar, dentro de si, um estado de liberdade análogo àquele do cidadão na cidade”. (id., p.229). Como escreve Vernant: “Essa prática contínua de áskēsis moral nasce, se desenvolve e não tem sentido senão no quadro da cidade. Treinamento para a virtude e educação cívica preparando para a vida de homem livre vão de par” (id., p.229). Mesmo quando essas técnicas de controle de si tiverem adquirido relativa independência, formando parte, com o estoicos, de uma verdadeira “cultura do cuidado de si”, nos primeiros séculos da nossa era, “não se terá deixado o mundo nem a sociedade” (id,. p.229-30). Como anota Foucault sobre essa espécie de anacorese praticada por Marco Aurélio: “essa atividade consagrada a si mesmo constitui, não apenas um exercício de solidão, mas uma verdadeira prática social” (id,. p.230). Constata-se, finalmente, com Vernant, que mesmo a diferenciação mais rigorosa atingida pelo helenista a propósito do “eu” na Grécia arcaica permanece um problema quando se trata de indagar as formas de elocução na primeira pessoa que incluem, ao lado da poesia mélica, uma multiplicidade de “finalidades” irredutíveis a um princípio homogêneo, pois, ao contrário das categorias de “indivíduo” e “pessoa”, a noção de sujeito não é unívoca. O que isso significa senão que a investigação a propósito da categoria grega de “sujeito”, para atingir o grau desejado de precisão conceitual, ainda depende de uma segunda diferenciação, sobre este primeiro quadro, entre as práticas dos discursos do eu? Com o propósito de atingir uma delimitação mais detalhada acerca do sujeito nas formas da poesia grega arcaica, o capítulo seguinte se concentra em um fragmento de Safo e investiga as relações entre mélica e mímēsis na Grécia antiga como pano de fundo para a releitura de alguns problemas do poema.

Rio das Ostras, ago-dez, 2014

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Mélica e mímesis em Safo

1. Problemas de classificação De um lado, a precariedade das informações disponíveis sobre os autores, suas obras e contextos torna quase impossível determinar com alguma segurança a posição social do poeta e as funções assumidas pela poesia grega posterior ao declínio das estruturas que sustentavam as antigas funções do poeta sacerdote, mago e adivinho, como “mestre da verdade”, na conhecida tese de Marcel Detienne. Embora a noção clássica de mímēsis em Platão e Aristóteles facilite a admissão da épica e, sobretudo, da tragédia, pelo intérprete contemporâneo, como produto ficcional, que seguramente não seriam mais lidos com valor pragmático-religioso no século IV a.C., a falta de uma noção de plásma como “ficção” no pensamento grego torna mais difícil a interpretação da poesia mélica, sobretudo em vista de duas lacunas irreparáveis: a ausência de menção à “lírica” na Poética e a inexistência de uma teoria do “grande gênero” da melikḗ na antiguidade, como refere Claude Calame o conjunto das formas mélicas, iâmbicas e elegíacas, de que apenas nos chegaram alguns esboços da classificação alexandrina. Costuma-se destacar o impacto provocado pelo desenvolvimento da sofística e do teatro e sua importância para a reflexão sobre a mímēsis na Grécia clássica como o fator decisivo na mudança da categoria grega de “poesia”. Nesse sentido, J.-P. Vernant chega a afirmar que uma “tomada de consciência do ficcional” foi o resultado mais notável do desenvolvimento da tragédia. Mas a propósito da poesia grega arcaica, abrangendo as formas épicas e mélicas, o helenista se pergunta: como saber se se trata de um produto religioso ou literário? se a poesia se encarrega […] do conjunto das afirmações que um grego se crê fundamentado a sustentar sobre os seres divinos […] constitui a enciclopédia dos conhecimentos de que o grego dispõe em relação ao além, conviria considerar essas narrativas poéticas […] documentos de ordem religiosa, ou atribuir-lhes apenas um valor puramente literário? (2006, p.17)

A questão é difícil. Pois como delimitar a fronteira entre a função religiosa, ou dito de modo mais amplo, as funções pragmáticas do poema, numa cultura oral, e sua prática plenamente ficcional dentro do período arcaico, se não dispomos, na maioria das vezes, de nenhum outro testemunho senão dos próprios poemas frequentemente tomados como fontes históricas e biográficas? Bruno Snell havia estabelecido uma linha divisória entre uma poesia “pré-literária” praticada por Calino e Tirteu – caracterizando canções ligadas a ocasiões de performance precisas, dotadas de um valor pragmático determinado: sacrifício, procissão, prece, celebração religiosa, casamento, funeral, marcha militar e práticas cotidianas, regulando desde a colheita até a cadência dos remos e o 186

movimento dos ginastas, característica dos carmina popularia – e uma monodia “literária”, plenamente lírica, inaugurada por Arquíloco, centrada no “eu”. Produzindo uma poesia de compasso militar, Calino e Tirteu certamente já estão a uma distância razoável da função mágico-religiosa do poeta-sacerdote e mais próximos do uso laico da palavra na assembleia de guerreiros. Mas o problema não está no termo “literário” e, sim, na divisão em si. Por um lado, se é certo que dentro do horizonte da mímēsis, que inclui retrospectivamente a épica homérica, a elegia marcial de Calino e Tirteu aparece investida de uma função pragmática – não como ato de culto, mas com a função de fabricar sujeitos dispostos a se sacrificar em nome de certos valores inquestionáveis: trata-se de produzir o “guerreiro corajoso” pelo elogio da “bela morte” e da “glória imperecível” do combatente morto na flor da juventude. A dificuldade se impõe à divisão de Snell a partir do outro lado, como mostra Paula C. Corrêa: pois parece inverossímil que Arquíloco fosse um poeta “profissional”, como o foram Píndaro e Simônides de Ceos, que viviam em cortes sustentados por tiranos; e ainda que seus poemas “marciais” não tivessem uma função bélica séria, outros podem ter sido produzidos justamente para integrar práticas religiosas “oficiais”, associadas aos cultos de Deméter e Dioniso (Corrêa 2009: 92-3). Assim também Hipônax (fr.153 W) relata que o poeta elegíaco Mimnermo costumava executar o chamado nómos krádias, “que, segundo Hesíquio, era executado na Targélia durante o açoitamento de bodes-expiatórios humanos com ramos de figueira” (Corrêa, 2008: 99). A simples aproximação entre práticas musicais rituais e a elegia erótica e exortativa que conhecemos de Mimnermo é bastante para sugerir uma contemporaneidade de práticas e concepções de canção e formas de culto muito diversas no período arcaico, que podiam ter estado presentes simultaneamente no mesmo poeta. Por outro lado, como negar que mesmo os epinícios de “poetas profissionais” como Píndaro, Baquílides e Simônides tivessem uma função pragmática, na medida que sua ocasião de performance encontrava-se a serviço da propaganda de poderosos que os empregavam em suas cortes? Nesse sentido, é sintomática a recepção moderna: “em 1918, o jovem Eliot admitia que Píndaro o aborrecia, a ele e a seus companheiros de geração. Pound, em cartas de 1915-16, já havia chamado a ‘águia tebana’ de ‘a dam’d rhetorician’, ‘o mais palavroso orador de todas as eras’” (p.114). Comentando a recusa de Pound a ajudar o prof. Rouse na tradução do mélico grego, Haroldo de Campos, no artigo que cunha o termo “transcriar” a propósito da Ode Pítica I, aproxima o poeta da dicção barroca, censurando Pound por excluir Gôngora de seu paideuma, e acrescenta que Robert Brasillach, em sua Anthologie de la Poésie Grecque (1954), considera Píndaro igualmente “o mais afastado de nós de todos os poetas gregos” na medida que “sua obra é, em geral, prodigiosamente tediosa”, indo buscar na fria solenidade dos parnasianos Leconte de Lisle e Herédia seu equivalente francês (p.114). 187

Realmente, não é fácil simpatizar com um poeta oficial, que fazia odes comemorativas para atender a encomendas de tiranos e poderosos do tempo, celebrando vitórias de quadrigas das quais estes não eram os efetivos condutores, mas tão somente os proprietários. Na coordenada do mundo grego, esta função pública do poeta “profeta-sacerdote” (como a si mesmo se denominava Píndaro) era revestida de quase sacralidade e comportava uma certa e definida margem de independência que uma alta conta da missão celebrativa do poeta permitia. Basta que o espírito moderno considere, paralelamente, os dilemas do poeta alistado, que canta eventos ou personagens da atualidade política em que vive, sob a pressão do “encargo social” (Campos, H.: 1977, p.114-15).

No entanto, observa Haroldo de Campos, um dos poetas mais marcados por Píndaro foi Hölderlin, “este grande antecipador da modernidade” (p.115). “É significativo, por outro lado, que o estilo do mélico tebano fosse tachado de obscuro pelo racionalismo estrito de Malherbe e Voltaire (o primeiro chegou a falar em ‘galimatias’, enquanto Boileau, para rebater a acusação, introduzia o argumento, que no fundo a aceita, da ‘desordem bela’)” (p.115). Pois, na conclusão do poeta-tradutor: Para mim, a impressão que me fica após esta forma privilegiada de leitura que é a tradução, é a de que, com sua estrutura sonora tersa e coesa; com seu uso invocativo e evocativo do elemento mítico; com sua urdidura temática menos lógica do que musical [...]; com seus giros “gnômicos” reflexivoexistenciais, esta poesia pindárica – posto de lado o ingrediente meramente comemorativo e de circunstância (aliás reduzido na técnica da composição a um simples fio condutor) – tem, no horizonte de nosso século, como sua parente mais próxima, a de Valéry24 (id., p.115-116).

Mas há outros casos limítrofes, como lembra Paula da Cunha Corrêa. Os mesmos poemas de Xenófanes são incluídos pelos editores modernos ora entre os “pensadores jônicos”, ora entre os “poetas iâmbicos e elegíacos”. Outros acreditam que ele não se encaixa em nenhuma categoria geral (2008: 11). Por isso, à autora parece mais prudente manter a questão em aberto: “ a própria natureza da poesia grega arcaica e de alguns poemas pré-socráticos dificulta as tentativas de classificação. Onde firmar as fronteiras?” (p.10), mas sugere que os poemas pré-socráticos “provavelmente destinavam-se a um público específico (grupos seletos, ou de 'iniciados') que buscavam 'instrução', não entretenimento” (p.19). Um caso diverso, podemos acrescentar, é o de Sólon, para quem o poema seria uma forma de discurso em metro, e que Hermann Fränkel considera menos poeta que orador. Seus fragmentos ainda seriam um produto da mímēsis ou, antes, um caso do que Aristóteles chamou de kath' hékaston, que declara apenas o particular? Se o seu poema se caracteriza antes como uma peça de retórica em verso que visa produzir a persuasão, o chamaremos de “poeta elegíaco”, pelo uso metro, ou de orador político, por se afastar do campo da mímēsis? Do mesmo modo, Dionísio de Halicarnasso teria escrito sobre Alceu, embora o poeta seja citado entre os autores que se devem imitar, que “em muitas ocasiões, se alguém suprimisse o metro, descobriria um texto de retórica política” e não um poema , sendo nesse caso recomendado ao bom orador, como modelo a ser rivalizado, sobretudo pela forma

que cita, na epígrafe de seu Cimetière marin, a III Ode Pítica: “Não aspires, alma, à vida imortal, mas esgota o campo do possível” 24

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como Alceu trata os caracteres políticos, com “grandeza de espírito, brevidade, doçura e veemência, além da linguagem figurada e clareza de expressão – quando esta não seja obscurecida pelo dialeto” (Perì miméseos, B.VI. 2.421, p.205.16-21 Usener). Como nosso propósito não é estabelecer uma taxonomia para uma “definição” de poesia, mas indagar a própria história das classificações do poema na prática e na teoria antigas, essas questões só podem chegar a um resultado satisfatório na análise de peças individuais. Como bem nota Corrêa (2008: 12), a própria distinção proposta por Aristóteles entre Homero e Empédocles, dizendo que seria mais correto chamar o primeiro de poeta e o segundo de fisiólogo, não seria tão simples se houvesse comparado Empédocles a Hesíodo, ao invés de Homero. Mas isso não seria decorrente do fato de Hesíodo colocar, no plano da narrativa épica, dificuldades semelhantes à que deparamos com a poesia mélica, iâmbica e elegíaca: por nela predominar o modo hōs autòn, em que o poeta fala “como o mesmo”, nas formas da primeira pessoa, e pela ausência de uma nítida distinção entre mito e ficção na prática da poesia arcaica? Pois se, por um lado, a experiência pessoal não era digna por si mesma de ser cantada, por outro, como diz Costa Lima sobre a poesia da Baixa Idade Média, aqui também, devido à ausência de uma noção de ficção, inexiste uma clara “linha divisória entre a narração de fatos reais e de fatos inventados, desde que esses fossem verossímeis” (Lima, L. C.: 2007, p.462). Por fim, se considerarmos os Hinos Homéricos, geralmente associados às ocasiões de performance épica, mas bastante próximos da mélica coral e mesmo da monodia hínica para permitirem uma fronteira nítida, talvez tenhamos o melhor exemplo do quadro a ser analisado. Por um lado, visto que uma das atestações mais antigas de mimeîsthai se encontra no Hino a Apolo, considerado um dos mais antigos do conjunto, por outro, sendo verossímil que essa canções fossem integradas a atos de culto às divindades celebradas em cada proêmio, não será razoável cogitar que durante o período arcaico, marcado por inúmeras transições que precedem a formação das cidadesestado gregas, em certas ocasiões de performance, a poesia de caráter pragmático e celebratório conviveu lado a lado com o horizonte em formação da mímēsis? Portanto, como delimitar a fronteira entre uma poesia performativa de tipo ritual, própria do que Detienne chamou de “discurso eficaz”, na qual o poeta desempenha o papel do profeta-sacerdote, e uma poesia desprovida da função de declarar a alḗ theia, sem função pragmática, que chamaríamos hoje de “ficção”, mas para a qual os gregos não dispunham de uma categoria precisa? Se a poesia mélica arcaica não se confunde com as noções tardias de “lírica” e de “literatura”, mas tampouco se identifica plenamente com a função do antigo “mestre da verdade”, o que caracteriza o poema grego arcaico senão sua inclusão no horizonte da mímēsis que começa a se delinear justamente no espaço aberto pela perda de prestígio do aedo homérico? 189

É conhecida a situação precária do poeta na época arcaica, desde o declínio da sua antiga função religiosa no império micênico: “os aedos homéricos [já] pertencem a um palácio no qual sua única função é entreter os convivas com canto e música; os menos afortunados são forçados a vagar de cidade em cidade, oferecendo seus serviços em troca de alimento e abrigo” (Correa, 2009: 92). Isso significa que com o desmoronamento da estrutura política micênica, “do ponto de vista de seu relacionamento com a verdade, o canto do aedo deixara de estar se antemão legitimado” (LCL, HFL, 170): “o aedo se punha em uma posição instável: por um lado, a sua palavra não é uma 'palavra eficaz' […] por outro, tampouco se confunde com a palavra instrumental” (p.169). Sem se confundir com a persuasão, de um lado, nem com o mero divertimento, por outro, (p.171), nesse momento, diz Costa Lima, três traços o identificam: (a) deslegitimação do poeta como “funcionário da realeza”, que no período micênico o convertia em “mestre da verdade”: perda de prestígio assinalada entre finais do séc. VIII a.C. e começo do séc. VII a.C., quando a Ilíada era composta, acompanhada da assunção do direito à palavra na assembleia militar; (b) perda de status do aedo: que deixa de encarnar a autoridade do profeta para exercer o papel secularizado de professor;

(c) ausência de vida interior do heróis (H. Fränkel), correlata da ausência de sombras e segundos planos na narrativa (E. Auerbach).

Assim, a palavra do poeta só vai se distinguir mais tarde, no século IV a.C., do discurso do historiador, de um lado, e do discurso retórico, de outro, mas “antes de Aristóteles, a questão permanece indecidida” (p.169). De toda forma, o primeiro dado a ressaltar, no estatuto do poeta arcaico, é que para o antigo mestre da verdade, dizer a alḗ theia ainda não é dizer o oposto do falso: a única oposição significativa é entre alḗ theia e léthe, “lembrança” e “esquecimento” (Detienne, 29). Sua “verdade” não é de tipo histórico, nem visa reconstituir um passado individual (p.53). Na função de arauto da Memória, a palavra do poeta é assertórica: declara “o que foi, é e será”. Enquanto perdurou a função religiosa de mestre da verdade, no pensamento mítico que a legitimava, os valores opostos de léthe e alḗ theia não eram sentidos como contraditórios, mas como complementares. Inicialmente, o discurso do poeta produz o esquecimento das desditas, a trégua dos cuidados, das misérias, das preocupações, phármakon (remédio-veneno) que dissolve os males. Mas apenas “pronunciada, a palavra não só resgata do esquecimento, mas provoca outro: o esquecimento das dores e das trevas [...] entre o sistema polar alḗ theia/léthe se instaura uma zona intermédia, onde, de início, […] se deposita um esquecimento positivo, o do abrandamento do infortúnio, a ser posteriormente ocupado pela catarse” (LCL, MM, 33). não há de um lado alḗ theia (+) e de outro léthe (-), mas entre esses dois polos se desenvolve uma 190

zona intermediária em que alḗ theia desliza para léthe e vice-versa. A negatividade [o não-ser], portanto, não está isolada, apartada do ser; ela orla a 'verdade', é sua sombra inseparável (LCL, MM, 77-78).

Enquanto o lógos do mestre da verdade era unívoco, quando não se permitia a diferenciação discursiva, “o próprio termo 'poeta' nada tem a ver com a figura de mesmo nome, contemporânea ao advento do pensamento racional […] assim unívoca […] incapaz de distinguir o assertórico do apodítico, não é então possível falar-se de uma palavra em estado de mímēsis” (LCL, MM, 33). Nesse momento, a noção de “ficção”, como diverso do verdadeiro e do falso simplesmente não existe. No entanto, já em Hesíodo a ambivalência começa a constituir um problema: o mestre da verdade também será, então, potencialmente, um mestre do engano. Pois se o lugar do poeta não tem limites reconhecíveis antes de Aristóteles, as musas já sabem dizer verdades e mentiras. Do ponto de vista lógico, diz Costa Lima, quando o lógos do poeta deixa de ser identificado com o lugar de onde é proferido, já se pode falar em condições para a teorização da mímēsis. Mas nesse momento, a diversidade de razões ainda não causa problema, pois o mito se funda na lógica dos contrários. Será preciso esperar que apareçam outras condições sociais capazes de ler, na ambiguidade do mito, a contradição da razão (LCL, 34). Nesse intervalo, vigora a situação descrita por Costa Lima: espera-se do poeta que ele explique o desacerto notado no mundo dos homens. Mas uma vez que a lógica do mito não é mais unívoca, cria-se uma dificuldade. O paradoxo é que “explicar a diferença de seus destinos em função da bondade ou grosseria dos agentes seria conceder ao humano uma autonomia que tornava os deuses dispensáveis. De outro, lado, explicar a fortuna ou desastre em termos de mandato divino seria, ao invés, eliminar a autonomia do agente” (LCL, MM, 35). De modo que “é a própria necessidade de oferecer uma explicação convincente para a concepção cósmica arcaica que introduz os elementos capazes de combater aquela explicação” (MM, 35). Mas, então, à medida que se converte num performativo despragmatizado, com a laicização da palavra eficaz o discurso do poeta arrisca se transformar num ato de fala parasitário. Por isso Detienne extrai a única conclusão esperável na falta de uma categoria definida de mímēsis: na época arcaica, mesmo depois do declínio de sua função litúrgica, que coincide com o desaparecimento da função de realeza, ele [o poeta] continua sendo […] um personagem todopoderoso: só ele concede ou nega a memória [...] Mas, nesse momento, o sistema de pensamento que consagrava a primazia da palavra cantada como poder religioso já não passa de anacronismo, cuja força de resistência reflete o poder obstinado de certas elites [...] em última análise, o poeta não passa de um parasita, encarregado de devolver à elite que o sustenta a sua imagem (Detinenne, 28-29).

Ou seja, de Hesíodo a Píndaro, apesar da permanência de práticas tradicionais, a palavra do poeta não é mais assertórica. Não porque revele o que o eu oculta, mas na medida que verifica a experiência de um engano ante de uma ordem que não oferece uma resposta suficiente para o 191

desacerto do mundo. A partir daí a palavra do poeta deixa de ser una para se tornar equívoca: enquanto oposta a léthe, alḗ theia é uma palavra unívoca, desconhecedora das sombras e, como tal, bloqueadora de qualquer reflexão sobre a mímēsis. Contudo, a ambiguidade do mítico atrai os termos polares que deixam de se identificar com o positivo e o negativo, respectivamente, e assim lógos passa a ser visto como uma entidade capaz de manipulação da peithó e formada por dois patamares: o que manifesta e o que guarda, a apáte. Dentro dessa concepção, já haveria condições para que a mímēsis constituísse um problema (LCL, MM, 36).

Para Detienne, é na poesia de Simônides que se pode observar mais claramente a mudança na história da categoria do poema arcaico. Pouco antes de Píndaro atestar alguns dos usos mais antigos de mimeîsthai, associados à dança e à música, no poeta de Céos o discurso (lógos) já teria passado a caracterizar uma “imagem” (eikṓ n) dos acontecimentos (fr.47a PMG), a partir de uma comparação entre a pintura e a poesia (fr. 47b PMG), onde Max von Treu localiza o “primeiro testemunho da doutrina da mímēsis”. Conferindo valor positivo a apáte, como “semelhante ao verdadeiro”, a mudança no estatuto da imagem e a secularização da poesia atestados em Simônides abrem caminho para a prática do sofista como “mestre do engano” e para a reflexão sobre a palavra como meio de acesso ao ser. testimonia fr. 47a PMG [Mich. Psellus περὶ ἐνεργ. δαιμ. (P. G. cxxii 821)] Κατά τὸν Σιμωνίδην ὁ λόγος τῶν πραγμάτων εἰκών ἐστιν De acordo com Simônides, o discurso é a imagem das coisas

testimonia fr.47b PMG [Plutarco, De gloria Atheniensium 3.346f] Πλὴν ὁ Σιμωνίδης τὴν μὲν ζωγραφίαν ποίησιν σιωπῶσαν προσαγορεύει, τὴν δὲ ποίησιν ζωγραφίαν λαλοῦσαν. ἃς γὰρ οἱ ζωγράφοι πράξεις ὡς γιγνομένας δεικνύουσι, ταύτας οἱ λόγοι γεγενημένας διηγοῦνται καὶ συγγράφουσιν. Mas Simônides chama à pintura poesia silenciosa e à poesia pintura falante. Pois as ações que os pintores representam como se estivessem a acontecer, as palavras narram-nas e descrevem-nas em pormenor depois de terem acontecido. (trad. Luíza Nazaré Ferreira)

192

Diante desse quadro suscintamente esboçado, a tese mais recente, compartilhada por Gregory Nagy e Claude Calame, de que a poesia grega arcaica se caracteriza como um tipo performativo-ritual contrasta fortemente com a linha divisória tradicional entre uma poesia “pré-literária” (anterior a Arquíloco, Safo e Álcman) e uma poesia plenamente identificada à categoria da “lírica”, visto que a mélica não distingue o advento de um locutor pessoal. No entanto, a questão se complica na medida que essa concepção pragmática, pondo a ênfase na categoria de performance, tende a apagar os limites entre o “poético” e o “não-poético”. Identificando a obra mélica a um fenômeno de “antropopoiésis”, esta se define como objeto de uma etnopoética. Mas considerar toda a poesia grega arcaica como um discurso performático-ritual não equivale a deixar entre parênteses a questão com que se defrontava Aristóteles, a saber: por que chamamos esses textos de “poemas” ou, inversamente, por que apenas alguns desses poemas “rituais”, extraídos de seu contexto performativo, seriam capazes de ser recebidos como “poesia” pela posteridade imediata, enquanto outros se convertem em documento mítico? A própria extensão do conceito privilegiado pelo intérprete contemporâneo, que abrange desde o ato de culto até o engano do sofista, bem como a falta de testemunhos capazes dar sustentação a essa leitura, obrigam o crítico atual a se perguntar: essa indefinição de fronteiras não seria um indicador de que a reflexão sobre a poesia grega arcaica permanece insatisfatória enquanto não for amparada por uma discussão sobre a relação entre as formas mélicas e as categorias da mímēsis e do sujeito? Se pudermos reservar o termo etnopoesia para aqueles poemas que, numa determinada configuração de sociedade “primitiva”, se definem por seu valor pragmático e fora desse contexto performativo apenas excepcionalmente seriam reconhecidos como “poesia”, na medida que deixassem de ser lidos como ato de culto (mito) para serem recebidos como ficção ou literatura, inversamente, parecerá adequado chamar de “poemas”, independente de sua configuração histórica específica (mélica, lírica ou antilírica), aqueles que se distinguem dos demais discursos contemporâneos na medida que configuram produtos da mímēsis verbal. No que concerne ao nosso tema, a questão imediata que se coloca é: alguma dessas duas hipóteses seria válida para a mélica grega? Como o maior obstáculo para o enfrentamento do tema vem da ausência de uma noção de “ficção” entre os gregos e do silêncio de Aristóteles sobre a mímēsis do poeta mélico, passemos a uma breve olhada sobre estas duas dificuldades prévias, antes de virmos ao poema de Safo que será objeto central da análise.

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a. plásma e a pré-história da “ficção” O que, em grego, se separa como poíēsis e mímēsis, se reúne no conceito latino de fingere e fictio. Mas fictio não é bem uma síntese de poíēsis e mímēsis, mas antes uma designação que tanto pode corresponder, em sentido amplo a poíēsis como, em sentido restrito a mímēsis, sendo, por fim, uma superposição de ambos os sentidos, de modo que, a cada momento, um deles pode se atualizar no horizonte do outro. A correspondência grega a fictio não seria nem poíēsis, nem mímēsis, mas sim plásma. Enquanto tal, ela é usada nos textos da Antiguidade tardia e bizantina para a descrição do gênero do romance (Stierle, 2006, p.12).

Isso é tudo que Stierle informa sobre plásma e o estatuto do ficcional entre os gregos no seu verbete sobre Der fiktion. O termo não encontra nenhuma ocorrência na Poética e a palavra só adquire tardiamente o sentido de “ficção poética”. Wolfgang Iser dedicou algumas páginas de O fictício e o imaginário aos idílios de Teócrito, tomados como primeiro esboço e fio condutor para a história da noção do estatuto ficcional do poema, na tradição bucólica latina e renascentista. Em uma abordagem diversa, Karlheinz Stierle e Costa Lima, traçando um quadro mais detalhado sobre a diferenciação entre fingo e fingere nos poetas latinos, localizam em Ovídio a emergência da ficção como produto consciente da escrita.25 Apenas por volta do século II d.C., na chamada “segunda sofística”, o termo plásma passaria a designar o gênero do romance, englobando o conjunto das obras de Petrônio (c.2766 d.C) Satiricon, Luciano (125-181 d.C.) História verdadeira, Longo (s. II d.C.) Dáfnis e Cloé, Apuleio (125-170 d.C.) Metamorfoses ou O asno de ouro e seus congêneres. No entanto, dentro dessa estrita concepção do romance como “ficção narrativa”, cuja função a princípio limitava-se a divertir um público refinado, o próprio termo “romance” adquire inicialmente um aspecto depreciativo que não se descola da posteridade destes textos e determina a vida curta do “novo gênero”. Daí a preservação apenas fragmentária do Satiricon. De origem latina, a categoria da fictio tem na Antiguidade tanto uma acepção negativa, de “embuste, fraude” (sinônimo de pseûdos), quanto positiva de ato de “criar”, fabricar, modelar, formar, (mais próxima de plásma). Embora o grego mímēsis recebesse o mesmo grau de ambiguidade na época clássica, com um sentido dominantemente negativo, de imitação, reprodução, simulação, emulação, impostura, charlatanice, fingimento, acentuado em Platão, e outro positivo, de representação, encenação e fabricação de imagens, valorizado por Aristóteles, sequer em suas acepções positivas mímēsis e fictio se equivaliam. Antes, estariam mais próximas por suas respectivas cargas negativas, que confinam com o falso, o engano, a mentira (LCL, 2006: 208 ss.).

25

Para uma perspectiva meta-histórica que defende a plena existência da categoria da ficção entre os gregos: W. Rösler, “Die entdeckung der Fikitionalität in der Antike”, in: Poetica, 12 (1980), pp.283-319; H. R. Jauss, “Zur historischen Genese der Scheidung von Fiktion und Realität”, in: D. Henrich; W. Iser (eds.), Funktionen des Fiktives, Munique, 1983, pp.423-431. Para uma visão contrária: sobretudo K. Stierle, “Die Fiktion”, in: K. Barck (ed.) Ästhetischen Grundbegriffe, Stuttgart-Weimar, 2000-2005, e Costa Lima, História. Ficção. Literatura, 2006. Cf. também Mímesis e modernidade

194

Uma reflexão mais detalhada sobre o vocabulário pré-ficcional de plásma é feita por Barbara Cassin. Formado a partir da raiz *plath-ye/o (*πλαθ-υ) > plássō, que significa “estender uma fina camada, revestir, recobrir” (daí “gesso” [em francês, plâtre], “emplastro”), plássō fornece a princípio, nas palavras de Chantraine, o vocabulário específico do trabalho em argila e da modelagem, em terra ou cera, donde os empregos relativos à fabricação e à imaginação com todas as suas nuances: da criação do homem por Deus até a mentira. Nessa acepção demiúrgica primeira, segundo Cassin, o termo serve especialmente para descrever a atividade de Prometeu, “que, segundo se diz, nos modelou, bem como aos outros seres vivos” [Filêmon, 89, 1], e a de Hefestos, que, exatamente para vingar Zeus da hýbris e dos engodos prometeicos (banquete de tolos ou roubo do fogo), modela a terra encharcada de água à semelhança de uma virgem plena de respeito [TD 70 ss.]; mas no belo seio de Pandora, Hermes “prepara palavras enganadoras e astuciosas, com um caráter traiçoeiro” [TD 78], para que a mulher – em outras palavras, o jarro de argila e seus “lábios” – deixe nos homens as preocupações funestas e que assim a modelagem encontre, de uma vez por todas, o paradigma de sua duplicidade (Cassin 2005: 218)

Assim, a princípio o verbo plássō, com sentido de moldar, modelar, dar forma (ac. algo; dat. com algo; ek- + gen. de algo), é usado em particular para a modelagem de terra, argila ou cera, como em Hesíodo: “da terra plasmou-a [a Pandora] o ínclito coxo” (ek gaíēs plásse, TD 70). Por outro lado, assim como as “mentiras e palavras sedutoras” (pseúdea th’ haimylíous te lógous, TD 78) que Hermes prepara dentro da estatueta, o pastor hesiódico já sabe que as Musas podem entoar “mentiras bem parecidas com realidades” (pseúdea [...] etýmoisin homoîa, Theog. 27), mesmo que elas saibam “entoar verdades” quando querem (alēthéa gērýsasthai, Theog. 28). “É o próprio problema suscitado pelo ‘verossímil’ aristotélico”, diz a autora, que aparece ligado a esse primeiro esboço do campo de psêudos: Homero, diz Aristóteles (Poética, 24, 1460 a 18-20), acima de tudo “ensinou os outros a dizer mentiras como se deve” (pseudê légein hōs deî). [...] Homero é o mestre do “paralogismo”: sabe apresentar um fato ou um acontecimento que sabemos ser verdadeiro, para que dele concluamos a existência de um primeiro que seria a causa e que, no entanto, nunca ocorreu (tò prôton pseûdos, a23) (Cassin, p.216-217).

Uma das primeiras aparições de plássō com esse novo sentido, segundo Cassin, se encontra no Elogio a Helena (11) de Górgias: Logo antes da passagem acerca do tempo, Górgias evoca as artes gêmeas, ou duplas, da feitiçaria e da magia (goēteías kaì mageías, 10), em que uma é “erros da alma” (psykhês hamartḗ mata), a outra “ilusões da opinião” (dóxēs apatḗ mata), e que foram geralmente identificadas: uma, como poesia; a outra, como retórica. Ele evoca, então, todos os que persuadiram e persuadem “modelando”, “plasmando”, plásantes, um pseudê lógon (Cassin, 2005: 218).

Portanto, no sentido mais antigo, o substantivo plásma designa basicamente o resultado de plássō, a obra modelada de argila (Aristóf. Av. 686) ou cera (Plat. Hipp. ma. 298 a), particularmente 195

uma “estatueta”. Mais tarde, o termo se estende, por analogia, ao discurso (lógos), podendo desginar “invenção, falsificação”, e também, segundo Chantraine, “estilo, ornamentos em música”.26 Nas palavras precisas de Barbara Cassin, “a poesia é, de fato, o primeiro ponto de fricção ou de junção entre pseûdos e plásma”. (p.216). Enquanto originalmente, na acepção referida ao domínio manual, o termo plásma tende a se identificar com poíēsis; transportado para o domínio oral, no sentido figurado (allótriou) relacionado a discursos (lógous), com Górgias, Sófocles e os oradores do século V a.C., passa a predominar a proximidade com pseûdos e apáte.27 A propósito, os dicionários registram um dos usos mais antigos de plásma como sinônimo de “ficção” no fr. 1.22 DK de Xenófanes. No entanto, o termo não pode ter essa acepção ali. Pois o filósofo e poeta elegíaco está claramente rejeitando as narrativas épicas como sinônimo de “mentiras fabricadas, moldadas, forjadas” pelos antigos. Será mais correto dizer que Xenófanes (c.570-475 a.C.) atesta um dos usos mais antigos de plásma como sinônimo de pseûdos, antecipando o uso figurado de Górgias (c.484376 a.C.) e Sófocles (c.498-406 a.C.) com relação ao lógos. Em seguida, com Platão (c.428-348 a.C.) ainda se encontra o verbo no sentido básico de moldar (Tim. 50a, Leg. 746a), mas o filósofo já o estende a um maior número de matérias, por um lado, identificando seu emprego ao campo de uma tékhnē poiētikḗ especializada, por outro. Nos dois casos, a mudança é significativa. Platão emprega o verbo com sentido de “modelar os corpos (sômata)” (Tim. 42 d) e, por analogia, no figurado de “modelar as almas” (pláttein tàs psykhàs, Rep. 377 b-c; cf. Leg.671e). Num caso, como resultado de exercícios e treinamento, mas em sentido pejorativo: “os que cuidam (mélei) da própria alma (heautôn psykhês) e não vivem apenas para modelar o corpo” (mḕ sṓ mati pláttontes, Fédon 82 c). No outro, como uma operação que permite distinguir a mímēsis útil ao legislador, particularmente através de discursos (mýthois) em ajuste a um modelo (týpos/paradeígma) que regula a conduta adequada do “eu”. O que se desdobra na expressão análoga “moldar a si mesmo” (autoîs plasámenoi, Pol. 297e), com sentido de compor a própria a figura (skhêma), amoldando sua conduta a um padrão, que está na origem de um topos de grande fortuna na antiguidade, a “escultura de si”. Nas palavras de Plotino:

Seguem algumas acepções antigas registradas por Bailly e Chantraine, ligadas à família de plásma. A partir do radical plath- (πλαθ-): koroplásthos, “artesão que fabrica estatuetas de forma humana” (Plat., Isocr. 310b, Luc. Lex.22), khytropláthos, “fabricante de jarros” (Poll.), logopláthos, “autor de fábulas” (Phryn.); plátha, “imagem, retrato, modelo” (palavra lacedônia, segundo Plu. 191 d); pláthanon, “prato para cozinhar ou amassar pão ou bolo” (Teócrito 15.115, Poll. 7.22). Nomes de ação (sufixo em -s): plásis, “formação, invenção” (Aristt., Sor., Hp.). Com préverbos: anaplasmós, “fato de imaginar” (Plu.); epiplássō, “pintar (recobrindo com uma camada de revestimento)” (Hdt.); emplássō, “envolver” (Hdt.2.73); kataplastýs, “pasta, unguento” (Hdt. 4.75); metaplássō, “remodelar, transformar” (Plat. Tim. 50a, 92b, Luc. Halc. 4), ekplássō, “moldar exatamente” (Hippiatr. p.42.21). Nomes de agente: plástēs, “modelador, escultor” (Pl., Plu.), theoplástēs (Ar.), keroplástēs (Archil.), “pessoa que faz cachos nos cabelos”; koroplástēs, “fabricante de estatutetas” (helen.), kēroplástēs, “que modela cera” (Pl.); apoplástor, “que copia” (Man. 4.343). 27 Como sinônimo de imaginar, fingir, simular, “forjar discursos” (Sófocles, Áj. 148), imaginar falsas causas (pseudeîs aitías) (Isócrates 238e); forjar falsidades, mentiras (pseudêi) (Xenofonte, An.2.6.26); imaginar pretextos (propháseis) (Demóstenes 778.21, Plut. Mar.43); contrafação, falsificação, imitação (Dem. 1110.18); fazer filantropia (Dem.304.26). 26

196

Se tu não vês ainda tua própria beleza, faze como o escultor de uma estátua que deve ser bela: tira isto, raspa aquilo, deixa tal lugar liso, limpa tal outro, até fazer aparecer uma bela aparência na estátua. Da mesma maneira, tu também tira tudo o que é supérfluo, corrige o que é torto, purificando tudo o que é tenebroso para torná-lo mais brilhante, e não cesses de esculpir tua própria estátua até que brilhe em ti a luz divina da virtude [Enéadas, I, 6 (1), 9, 7 ss.].28

Como explica Pierre Hadot: “para os antigos, com efeito, a escultura era uma arte que ‘subtrai’, por oposição à pintura, que é uma arte que ‘acrescenta’: a estátua preexiste no bloco de mármore e é suficiente se extrair o supérfluo para fazê-la aparecer” (2002, p.62). Assim também, repete Simplício, ecoando Platão: “que lugar terá o filósofo na cidade? Será o de um escultor de homens e de um artesão que fabrica cidadãos leais e dignos” (apud. id., 2011, p.303). Em relação a discursos (lógous), o vocabulário de plássō recebe dois novos sentidos com Platão: ao lado da acepção de “narrativa forjada” (plasthénta mŷthon, Tim. 26 e 4), passa a referir o de tékhnē análoga à do escultor, como um “fazer com cuidado, modelar com arte” e com aspecto pejorativo de “falar com requinte e afetação” (pláttonti lógous, Ap.17c). Mas em todos esses casos, a referência pela qual se mede o campo semântico de plássō e plásma é bem marcada: de arte de modelar figuras em terra, cera e argila, o termo passou a designar a plastikḗ , as artes plásticas, distinguindo a estatuária (Plat. Tim.50c, 50e, 55e, Leg.697a.) por oposição à pintura, graphikḗ (Plat. Rep. 510e). Em Aristóteles também se encontra o sentido básico de “modelar”, em particular em relação às abelhas que fazem favos de cera (pláttousi, H.A. 9.40.7 = 623 b). Mas no filósofo já predomina o emprego da família de plásma com referência ao campo do pseûdos. Assim, na Retórica, basicamente se registram variações do “falso”: como “fingir, dissimular” para os outros (plattoménous pròs autoús, Rhet. 1381 b 28); “parecer artificial” (peplásthai dokeî, Rhet. 1408 b 22) e “falar com artificialidade” (dokeîn légein peplasménōs, Rhet. 1404 b 19). É sempre no momento em que o orador “poetiza demais”, como Górgias, que ele exerce a atividade de plássō em detrimento da persuasão, deixando à mostra o artifício, a técnica da manipulação do lógos. Mas a acepção forte e mais frequente do termo em Aristóteles designa o fictício, como fonte ou produto de erro e engano.29 Assim, na famosa passagem da Metafísica (M [XIII], 7, 1082 b 3-4): “entendo por fictício o que é aduzido de modo forçado para sustentar uma hipótese”, plasmatôdēs se define claramente como sinônimo de embuste, como um pressuposto falso (pseûdos) aduzido à força para vencer uma disputa argumentativa, o que novamente aproxima o termo do discurso do sofista. No entanto, se Aristóteles já emprega plastikḗ com referência às artes plásticas (P.A. 1.5.5.), nele ainda não há nenhuma ideia

28

apud. Hadot 2011: 274-275. Que a família de plásma assume um sentido quase técnico como sinônimo de “fictício” (e não ficcional) em Arsitóteles, demonstra a recorrência de expressões análogas: “fingimento, fictício” (plásmati, Cael. 289 a 6); fabricado, fictício (plasmatías, Met. M, 1076 a 39; G.A. 734 a 33, 769 a 36); fictício (plasmatôdēs, G.A. 764 b 10). 29

197

de “ficção poética”. Apenas negativamente, plásma se aproxima do “fazer” próprio do poeta e sempre através da referência ao sofista e ao sofisma. Por isso, conclui Cassin: “poesia e sofísitca são indiscerníveis quando se fica na posição aristotélica” (p.217). Mas se, do ponto de vista do filósofo, “plásma é o nome logológico do psêudos” (p.218), do ponto de vista da sofística, é preciso lembrar que “apáte é o nome da relação entre aquele que fala e aquele que ouve, implicando o reconhecimento do pseûdos como plásma” (p.220). Noutras palavras, segundo a autora, o engano do sofista pressupõe um reconhecimento prévio do “como se”, como uma diferença consciente quanto ao verdadeiro e ao falso. Portanto, não seria mera coincidência que o vocabulário de plássō não tenha se firmado em relação à poesia após a derrota filosófica do sofista. Embora tenha deixado marcas no debate entre Górgias, Platão e Aristóteles, como o termo não recebe o sentido de “ficção”, a história imediata da palavra se confunde com o pseûdos, o “fictício”, no mesmo destino: como se sabe, foi em nome da verdade que ela [sofística] foi de início e sempre condenada: a principal acusação formulada por Platão bem como por Aristóteles pode ser inscrita no termo pseûdos. Pseûdos objetivo, o “falso”: o sofista diz o que não é, o não-ser, e o que não é verdadeiramente ente, os fenômenos, as aparências. Pseûdos subjetivo, a “mentira”: o sofista diz o falso na intenção de enganar, utilizando, para obter êxito rentável, todos os recursos do lógos, simultaneamente linguísticos (homonímia dos termos), lógicos (raciocínio falso, sofisma), e racionais propriamente ditos (inaptidão para o cálculo e para a estratégia, tolice do outro) (Cassin, 2005: 215-216).

Somente mais tarde, o termo vai ser reabilitado. Primeiro, com os alexandrinos, plásma passava a designar o “estilo” e o “trabalho de composição” (sýnthesis) de um discurso de modo geral. Mas por volta do séc. II d.C. seu uso se expande. Com Plutarco (45-120 d.C.), a palavra plásma será usada para a “modulação da voz” (Plut. M.711c, Per.9), para a elocução do orador ou ator (Plut. Dem.11) e também para as inflexões efeminadas, afetadas, da voz (Plut. M.41b, Quint.1.8.2) semelhantes às modulações “moles” da flauta (Th. H.P. 4.11.5). Mas é significativo que o substantivo seja usado, então, particularmente para a ação de “imitar a voz de um outro”, moldando a voz para parecer com um outro (Plut. Brut.34). Díon Cássio (155-235 d.C.) também emprega, ao lado do sentido mais frequente de “fingir, pretextar” (DC.35.13, 67.7), o termo como sinônimo de simular, contrafazer, falsificar, na expressão “fingir ser Nero” (Nérōn eînai plasámenos, DC.64.9), fazendose passar por outro. Com isso, apenas no helenismo tardio o vocabulário de plásssō se aproxima definitivamente do sentido pré-conceitual de mímēsis, atestado desde o Hino a Apolo e as Coéforas de Ésquilo, que Platão e Aristóteles já designavam sugestivamente pela cláusula “como se” (hōs + particípio): “falar como se fosse outro”. Para esse segundo momento, em que plásma vem se identificar tardiamente com o sentido amplo de mímēsis como “fazer-se semelhante”, seja pela voz-som ou pela figura, pelo modo de se vestir ou falar, mas também pela modelagem de discursos, particularmente do discurso forjado, Flávio 198

Filóstrato cunhou a expressão “segunda sofística”, em sua Vida dos sofistas (231-237 d.C.), referindo um despontar da tradição grega no século II d.C., que se manifesta em Plutarco, Díon Cássio, Pausânias, Ateneu, entre outros, e que possuía, do lado grego, Díon de Prusa, Élio Aristides, Luciano de Samósata, Élio Aristides, e do lado romano, Frontão, Aulo Gélio e Apuleio. Uma linhagem de escritores que se caracteriza, segundo Cassin, por promover uma “retórica mimética” (mímēsis rhetorikḗ ). “Será fácil verificar a importância terminológica de plásma para toda a segunda sofística. É a palavra usual para designar ‘o roteiro inventado de uma declamação sem história específica’, ou essa própria declamação” (Cassin 2005: 223). Pois é nesse contexto que o termo plásma se habilita para designar o “novo gênero” do romance. Ainda conforme Barbara Cassin, os próprios Diálogos de Platão teriam deixado para a posteridade o modelo desse “novo gênero literário”, retomado e incluído na categoria incipiente de “ficção”. Assim como Aristóteles havia incluído os diálogos socráticos (de Alexâmeno de Teo, Zenão de Eleia, Platão), ao lado dos mimos (de Sófron e Xenarco), entre as formas da mímēsis e justamente segundo esse modelo prévio da Poética. Mas é preciso examinar mais de perto as elaborações diferenciais da noção de plásma em sua relação com a historía enquanto disciplina que diz tà ginómena, “o que aconteceu”, a fim de caracterizar seus desenvolvimentos na segunda sofística. A mais explícita se encontra em Sexto. Enquanto Asclepíades (124 a.C.-40 a.C.) distinguia três grupos em função do verdadeiro e do falso: a história (historía), que trata do factual; o mito (mŷthos) e as ficções (plásmata), que tratam do falso; e a comédia e as pantomimas que tratam do que é “como verdadeiro” (apud. Cassin, 2005: 225-226), Sexto Empírico (150-220 d.C.) propõe um remanejamento da classificação. Apropriando-se da noção para seus fins céticos, plásma será entendido como uma espécie do gênero dos historioumena, se opondo, no interior desse gênero, a duas outras espécies: o mŷthos e a historía propriamente dita. Suas diferenças se expressam em termos de verdadeiro, falso e verossímil: a história narra “coisas verdadeiras e que aconteceram” (alēthon tinon [...] kaì gegononton ekthesis); o mito narra “coisas que não aconteceram e que são falsas” (prágmaton ageneton kaì pseudon); e a ficção narra “coisas que não aconteceram, mas que são narradas como as que aconteceram” (prágmaton mè gegómenon mèn homoíos dè toîs gegómenois legomenon). Doravante, escreve Barbara Cassin, “o plásma não está mais do lado do falso, como em Asclepíades, mas do lado do verossímil, do ‘como verdadeiro’” (2005: 226). Ele se põe, primeiro, do lado da comédia e da pantomima. Cícero (106 a.C.-34 a.C.) e Quintiliano (35 d.C.-100 d.C.) oferecem um equivalente latino da classificação de Sexto: historía (historia), são coisas verdadeiras e que aconteceram; mŷthos (fabula), as coisas nem verdadeiras, nem verossímeis; plásma (argumentum), as “coisas fictícias, mas que poderiam ter sido feitas” (ficta... fieri, Cícero), “coisas falsas mas verossímeis” (falsum... fingunt, Quintiliano). Nos três casos, a tragédia, que, para Aristóteles, se caracterizava como verossímil, 199

passou a se identificar com os “mitos tradicionais”, espécie particular de tà genómena, que não se refere ao verdadeiro, objeto do historiador, mas ao falso, pura e simplesmente (B. Cassin, p.229). Importa notar, portanto, a consequência que decorre da ausência da noção de plásma (ficção) na distinção que a Poética 9 estabelece entre tà ginómena (o que aconteceu) e hoîa àn génoito (o que poderia ter acontecido). Partindo da ambiguidade que o próprio termo mŷthos conserva na Poética, onde designa ora o “argumento” ou “roteiro” ou “intriga” ou “enredo” (sentido técnico), ora as “narrativas tradicionais”, o velho fundo mítico legado pela tradição (sentido comum), a distinção introduzida pela segunda sofística entre plásma e mŷthos, como correspondentes aos equivalentes latinos argumentum e fabula, produz um imprevisto: com a elaboração da noção de plásma, ausente da Poética que possuímos, produz-se uma cisão entre poesia trágica e comédia. A tragédia é projetada para o lado do mŷthos [...] passa inteiramente para o lado do falso e do inverossímil: do “mítico”, como para nós. A comédia, ao contrário [...] se torna o exemplo privilegiado do fictício ou do falso verossímil, do dito “como” verdadeiro (Cassin 2005: 229-231).

A ambiguidade de mŷthos implicava (ou dela decorria) a conversão da inverossimilhança da narrativa mítica numa das formas de verossimilhança do enredo poético: ‘é verossímil que se produza o inverossímil’ (eikòs gàr parà tò eikòs gínesthai, 25, 1461 b 15)” (Cassin, p.230). A única diferença entre tragédia e comédia, do ponto de vista do “que aconteceu”, é que “a primeira se refere frequentemente a nomes “que existiram” (tôn genoménōn onomátōn, 1451 b 15) ao passo que a segunda dá como ‘suporte’ à sua narrativa (é a ‘hipótese’ ou o caso hypotithéasin, 1451 b 13) nomes ‘tomados ao caso’; mas isso só fortalece mais o liame entre tragédia e verossimilhança” (Cassin, p.229-230). Pois, “ao dizer o que ocorreu, o poeta satisfaz à exigência primeira de dizer [...] o que poderia ocorrer na ordem do verossímil e do necessário” (id.). Assim, o que os gregos reúnem em plásma, os latinos distinguem mais claramente entre fictio e argumentum: enquanto no sentido usual plásma designava “o roteiro inventado [argumentum] de uma declamação sem situação histórica específica” (apud. Cassin, p.223, grifo meu); no sentido estrito, como fictio, a noção vai se investir de uma análoga duplicidade de sentidos que já habitava a mímēsis grega. Mas para nosso tema será importante registrar o sentido que plásma recebe no Tratado do Sublime de Pseudo-Longino, que nos transmitiu o fr. 31 V de Safo, e no De compostione verborum de Dionísio de Halicarnasso, que preservou o fr.1 V, o célebre Hino a Afrodite. Em ambos o termo aparece plenamente identificado com um sentido de “estilo” e “trabalho de composição” (De comp.4 [Roberts p.90.6]; De subl.15.8 [Roberts p.88.15]), aproximando-se da noção de sýnthesis, o “arranjo” e “composição” das palavras e das peças do poema com a finalidade de representar (emimḗ santo) uma tema (lḗ mmata), o que situa a noção de plásma no âmbito de ressonância da recepção antiga da Poética, assim como a segunda sofística e a recepção latina: identificando plásma com o hoîa án 200

génoito, “o que poderia ter sido”, os três usos tardios o convertem em termo-chave para caracterizar o romance grego tardio. Por isso, “a inexistência do termo plásma em Aristóteles tinha uma simples razão histórica, e não conceitual. Sabê-lo está longe de resolver qualquer dilema, mas evita equívocos. A questão que se põe é se o ato da mímēsis implica a negação do ficcional ou se, de algum modo, o cerceia” (Lima, 2006, p.209). No nosso caso, mais restrito, trata-se de saber se a mímēsis aristotélica implica a exclusão da mélica. Mas se a própria constituição do mŷthos épico ou trágico, não ancorado em um lastro documental, não diz “o que aconteceu”, mas “o que poderia ter acontecido”, pressupondo a imaginação ficcional, “por que o mesmo não se diria do lírico?”, pergunta Costa Lima. Ao menos do ponto de vista da mímēsis repensada pelo teórico contemporâneo, o básico será partir do princípio de que “para todos os gêneros poéticos vale o mesmo princípio: é o papel neles desempenhado pela faculdade da imaginação que articula mímēsis e ficção” (Lima, p.209).

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b. categorias da melikḗ e o silêncio da Poética

Dentro daquilo que o texto de Aristóteles não nos diz é preciso distinguir, em primeiro lugar, o que é excluído, o que é omitido e o que pode estar perdido. Pois não é apenas a “lírica” antiga que está apagada. São muitos os silêncios da Poética. Correta ou não, a hipótese mais difundida para explicar essas elipses entende que o tratado se compõe de diversas casas vazias como um “esboço” ou “esquema”, num livro de apoio para explanações orais, de uso interno no Liceu. Sem dúvida, no texto que conhecemos faltam completar exemplos e raciocínios que nos chegaram como omissão e abreviação, por um lado. Por outro, no quadro das formas (eidè) e categorias que a Poética apresenta na base do tratado (caps. I-V), saltam aos olhos, de imediato, cinco grandes lacunas, ao lado de omissões menores e indicações de temas deliberadamente excluídos em função do princípio da mímēsis. Mas a mélica não está presente neste último grupo. Os três silêncios mais famosos, sobre três “formas de mímēsis” omitidas, perdidas ou, supostamente, excluídas no manuscrito, correspondem a espécies da tékhnē poiētikḗ que o tratado permite localizar com precisão. Mas apenas um desses temas é prometido para um momento posterior: (1) a espécie que usa todos os meios (lógos, rhythmô e harmonía) não alternadamente, como a tragédia e a comédia, mas ao mesmo tempo, à qual correspondem logicamente as formas mélicas, mas que o texto ilustra apenas com “nomos e ditirambos”; (2) a espécie que usa todos os meios alternadamente, no modo hōs práttontas, porém representando ações “baixas” (phaúloi), nomeadamente, a comédia, a que o texto dá maior atenção, e que o filósofo promete tratar posteriormente, mas de que nos chegaram apenas testemunhos indiretos no ms. Parisinus Graecus Coislinianus 120 (séc. X), editado por Cramer em 1839; (3) as espécies que utilizam apenas o lógos, sem o rhythmô (metro). Nesse caso, entre as formas da mímēsis em prosa (lógois psiloîs), apenas mencionam-se os mimos e diálogos socráticos, sem referência a um desenvolvimento posterior, embora, logicamente, pertençam à área delimitada pelo tratado: o conjunto das artes que usam o lógos como meio (en hoîs) da mímēsis, que chegaram até o séc. IV a.C. anṓ nymos, “sem nome”, incluindo as formas em prosa e “a representação que se pode fazer em trímetros (iâmbicos), em metros elegíacos ou em outros metros deste tipo” (Poét. I 47 b 11-13). Se a elegia e o iâmbo são declaradamente incluídos na mímēsis, por que a mélica seria a única exceção das formas de poesia arcaica, que não participa da mímēsis? Por outro lado, deve-se notar que, ao lado das duas grandes formas miméticas do “elocutório” (epangeltikòn), narrativo ou enunciativo, comportando dois modos, hōs autón (como o mesmo) e hōs héteron (como outro), e do “dramático e atuado” (dramatikòn kaì praktikón), comportando quatro subgêneros (comédia, tragédia, mimo e sátira), o Tractatus Coislinianus enumera ainda duas grandes formas do “poema amimético” (tês poiḗ seōs hē mèn amímētos): o poema “histórico” (istorikḗ ), 202

dividido em “didático” (hyphēgētikḗ ) e “teorético” (theōretikḗ ), e o poema “instrutivo” (paideitikḗ )30, que aparentemente teriam sido incluídos no plano geral da Poética, a título de contraste com as formas da mímesis propriamente ditas, mas também como objetos de estudo dignos de atenção por si mesmos, tanto por sua léxis (elocução, estilo) metafórica, como por sua gnóme (saber). Quanto ao hipotético livro II e ao diálogo Perì poiētôn que alguns leitores reivindicam para justificar a ausência da “mélica”, da “comédia” e dos “diálogos socráticos” no texto conhecido, acredita-se que o próprio Aristóteles se refira ao diálogo “Sobre os poetas” numa passagem da Poética (1454 b 15-18) e alguns fragmentos importantes citados por Diógenes Laércio e Ateneu, entre outros, atestam que a obra ainda era conhecida na Antiguidade tardia. Quanto ao livro II, as referências sobre a comédia (Poét. VI, 1449 b21; Rhet. I, 1372 a 1; III, 1419 b 5) e a catarse (Pol. VIII, 1341 b 38), mas sobretudo a menção feita na Retórica III 1419 b 5 não parece deixar dúvidas sobre a existência de um texto perdido. Pelo menos, os catálogos antigos de obras de Aristóteles que chegaram até nós, de que o mais importante é preservado por Diógenes Laércio, cuja fonte provavelmente remonta ao peripatético Hermipo de Esmirna ou ao peripatético Áriston de Quios, e numerosos indícios doxográficos, o mencionam. Mas dois testemunhos eloquentes seriam o que se encontra no final do cod. Parisinus Riccardianus Graecus 46 que, ao contrário da vulgata (cod. A e apógrafos) termina com o parágrafo corrente e, após dizer que tratou da tragédia e da epopeia, acrescenta: “dos iambos e da comédia escreverei”, sendo interrompido logo a seguir, na palavra grápsō, quase apagada. Em seguida, embora seja um testemunho tardio, o cólofon da tradução latina de Moerbecke (1278) subscreve: Primus Aristotelis de arte poética liber explicit, “primeiro livro”. De sua parte, Lucas (1968, p.xiii) considera que “mesmo sem essas evidências externas, haveria razão suficiente para crer que a Poética consistiu de dois livros ou [...] de que uma parte substancial da obra foi perdida” (p.xiv), seja pelas menções feitas pelo próprio filósofo, seja, como sustentam Gudeman e de Montmollin, porque o tratado é “demasiado inacabado, mesmo para a circulação limitada que era pretendida pelas as obras esotéricas” (p.xiii). Porém, ainda que tivesse efetivamente existido o livro II, o autor da versão siríaca do séc. VII d.C. em que se baseiam as traduções e paráfrases árabes seguramente já o desconhecia. E, ao contrário das referências feitas pelo próprio Aristóteles a um posterior desenvolvimento sobre a comédia (dado como já feito na Retórica), o iambo e o conceito de catarse; não existe nenhuma alusão quanto às espécies mélica e elegíaca, às formas em prosa ou às espécies do “poema amimético”, e nada permite supor que o filósofo reservaria um terceiro livro ou parte do hipotético livro II à poesia mélica, aos diálogos socráticos ou aos “poetas-filósofos”. Com a mesma incerteza que nada assegura que

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Como a Poética, o Tractatus Coislinianus não dá exemplos. Mas a contar pela silimaridade com a classificação de Diomedes (séc. IV d.C.), pode-se supor que Empédocles, Xenófanes e os physiologoí da linhagem do antigo poeta-filósofo ilustrassem o “poema instrutivo amimético”.

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excluísse a “lírica” do plano da Poética ou do diálogo Sobre os poetas, como defende Rostagni (1926). Em seguida, não são apenas a mélica e a comédia que “brilham por sua ausência”, como escreve Guerrero, mas também as próprias definições das categorias centrais de mímēsis e kátharsis no texto do livro I que conhecemos.31 A que se somam outros silêncios: (i) as formas primitivas da poesia antiga (palaîon) posteriores a Homero, que “representam ações” baixas ou nobres através de hinos e encômios (epaínos) ou censuras (psógos), (ii) a espécie que utiliza apenas o modo hōs autón ou em que este é predominante (como Hesíodo, os poetas arcaicos e os Hinos homéricos), (iii) e as espécies que usam outras “figuras de elocução” além da diḗ gēsis, como o iambo e a elegia, todos mencionados no tratado, sem exemplos. Se sobre nenhuma dessas espécies pesa a exclusão declarada, pelo contrário, são claramente excluídos os casos seguintes: (a) as tékhnai que utilizam ou podem utilizar o lógos e rhythmô sem a mímēsis, como medicina, filosofia da natureza, história, retórica; (b) as formas que tratam do particular, kath’ hékaston; (c) todas as artes que não usam o lógos. Portanto, seria apressado deduzir do silêncio da Poética sobre a mélica, como uma lacuna entre outras, que só mostram a dificuldade de leitura do texto elíptico que nos chegou, que o tema estaria previamente excluído da mímēsis por alguma razão. Seja porque dispusessem de textos menos mutilados ou de um corpus mais abrangente, seja porque adotassem um ponto de vista diverso para o conjunto da classificação genérica, nem os alexandrinos, nem os escritores do período imperial ou da época imediatamente posterior parecem ter sentido a ausência de uma categoria explícita para designar a mélica como um obstáculo ou embaraço para a leitura da Poética. Contento-me em anotar alguns exemplos mais afastados. A começar por dois testemunhos de grande fortuna e ainda relativamente próximos dos alexandrinos: tomando suas categorias emprestadas de Aristóteles, Horácio não encontra dificuldade em enumerar a “lírica” ao lado das outras espécies, definidas de maneira não sistemática, segundo o ritmo métrico, o modo de execução musical e o conteúdo, enquanto “categorias práticas” (Calame: 1998, p.96); de sua parte, Cícero, menciona explicitamente, em De optimo genere oratorum, “os poemas trágicos, cômicos, épicos, mélicos (melici) e ditirâmbicos, espécies todas que Aristóteles também enumerou em sua Poética” (apud. Guerrero, p.77, grifo meu). A passagem destacada é nada menos que espantosa para um leitor moderno. Sobretudo quando sabemos que para os Renascentistas a ausência de referência à lírica no tratado de Aristóteles será sentida não apenas como um problema, mas se tornaria um verdadeiro cavalo de batalha. Com uma argumentação que será frequente entre os teóricos da época, Francesco Lovisinus (1554), em seu

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A contar pela referência feita pelo próprio Aristóteles na Poética, a questão da catarse já teria sido suficientemente discutida “nos escritos publicados”, i.e., supostamente, no diálodo Sobre os poetas. No entanto, a Retórica e a Política remetem a um desenvolvimento feito no próprio tratado.

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comentário à Ars de Horácio, sente necessidade de justificar a afirmação de Cícero: “na realidade, aqueles que Cícero chama mélicos, ele os denomina citarodia, já que se modulavam ao som das flautas e da cítara” (id., p.77); numa combinação dos textos de Aristóteles, Horácio e Cícero, e baseado numa interpretação errônea do capítulo I da Poética (que só refere a prática instrumental da citarística), o poetólogo ainda não dá o passo decisivo que consiste em tomar o silêncio de Aristóteles como o ponto de partida para a problematização retrospectiva de Horácio, e contemporânea, de Pertarca e da forma soneto. O importante a notar é que ainda para os primeiros leitores da Poética na abertura dos tempos modernos, mesmo que a lacuna do tratado já fosse materialmente presente, a deslegitimação da lírica que ela acarretava e da afirmação da individualidade que se entrevia em Petrarca não constituía problema imediato, como será a partir de Minturno e Scaligero. Pois se o respaldo oferecido pelos antigos era suficiente para suplantar a falta do texto da Poética, não é senão porque havia uma longa tradição que considerava “evidente” a inclusão dos poetae melici entre as espécies dos gêneros mimētikón e do diēgēmatikón. O que contraria toda a expectativa do intérprete moderno, para quem mímēsis e mŷthos ou diḗ gēsis seriam precisamente as causas da exclusão da mélica! Os casos mais representativos da recepção antiga das categorias genéricas elaboradas por Aristóteles e Platão são as classificações de Diomedes e Dídimo-Proclo, que podem lançar uma luz retrospectiva sobre o possível lugar da mélica no sistema da Poética. Entre os gramáticos do século IV d.C. que incluem a poesia lírica no paradigma genérico, Diomedes ocupa indubitavelmente um lugar à parte, pois sua obra é uma das fontes principais de transmissão do nome genérico. Não é arriscado afirmar que a influência determinante que há de exercer na Idade Média e no Renascimento garante em boa medida a subsistência da categoria lírica (Guerrero, p.55).

Partindo da divisão modal cunhada por Platão, a classificação em árvore de Diomedes distingue três grupos ou species de genera poemati. O genus activum vel imitativum (dramatikón ou mimētikón), no qual os personagens falam sozinhos, sem intervenção do poeta, abarca quatro espécies gregas e quatro latinas correspondentes: tragédia, comédia, satírica e mímica, praetextata, tabernaria, atelana e planipes. Em seguida, o genus enarrativum vel enuntiativum (exēgētikón ou apangeltikón), em que fala o próprio poeta e só ele, cujas espécies principais são três: a poesia gnômica (Teógnis), a poesia histórica (genealogias de Hesíodo no Catálogo das mulheres) e a poesia didática (filósofos naturalistas como Empédocles, moralistas como Lucrécio, Arato e Cícero e as Geórgicas de Virgílio). Por fim, o genus commune vel mixtum (koinón ou miktón), no qual as falas do poeta se alternam com as dos personagens, e compreende apenas duas espécies: a heroica (Ilíada e Eneida) e a lírica (Arquíloco e Horácio). Para surpresa do intérprete habitual de Platão e Aristóteles a poesia lírica é incluída por Diomedes no modo misto a mesmo título que a épica, conforme uma linha de raciocínio que, segundo 205

Gustavo Guerrero, teria sido “constante ao longo da Antiguidade”. Mais relevante, porém, é a observação de que essa aproximação comprova que “a ideia de que a poesia lírica corresponde a um tipo de enunciação reservado ao poeta”, no sentido da lírica subjetiva atual, “parece assim [...] completamente alheia ao pensamento antigo” (p.56). Mas como tanto em Platão como em Aristóteles a mélica “brilha por sua ausência” e o único exemplo que neles parece associado ao modo enunciação reservado ao próprio poeta concerne ao ditirambo, cuja indeterminação genérica nos deixa na mais completa obscuridade sobre o que os dois pensadores entendem, respectivamente por haplê diḗ gēsis (narrativa simples) e apangelía hōs autón (locução como o mesmo), Guerrero não vê base para questionar sua exclusão. Mas assim deixa de notar um dado importante para nossa leitura: que a formulação de Platão, que aparentemente teria servido de modelo ao gramático latino, não explica por si só a terminologia de Diomedes. Embora sua divisão remeta explicitamente à tripartição do livro III da República, as notas divergentes quanto à estrita nomenclatura platônica não são menos notórias. Platão se refere certamente a três espécies de “narrativa” (diḗ gēsis), classificando-as, conforme seu grau de participação mimética, em narrativa “simples”, narrativa “através da mímēsis” e narrativa “mista”, que a ordenação dos genera poematis pelo gramático reproduz fielmente. Mas todo o resto da classificação é manifestamente aristotélico e derivado do capítulo 3 da Poética: o gênero activum corresponde literalmente ao modo hōs práttontas, com ênfase da atuação dramática; o gênero enuntiativum / apangeltikón traduz o modo da “locução” (apangelía) que Aristóteles distingue do primeiro, restringindo-o à enunciação “como o mesmo” (hōs autón), sem nenhuma menção à espécie “simples” (haplê) de Platão, mas sublinhado, como este, o contraste entre imitativum e enarrativum; por fim, a inclusão da lírica e da épica no genus commune transparece ao mesmo tempo como o correlato da dupla alternativa que Aristóteles confere à apangelía, que pode assumir os modos hōs héteron e hōs autón e da “mistura” platônica de narrativa haplê e diá mimḗ seōs. Ao passo que da perspectiva estrita da República a lírica não pertenceria ao modo misto e, sim, ao simples, amimético. Dessa síntese entre as classificações modais de Platão e Aristóteles operada por Diomedes ressaltam pelo menos três observações importantes. O gramático não distingue nem opõe os dois quadros conceituais, servindo-se de um para interpretar o outro e passando ao largo a contradição de objetivos dos dois filósofos. O que atua em detrimento da réplica aristotélica em sua tentativa de incluir todas as espécies “poéticas” como modos da mímēsis. Por outro lado, embora Guerrero sublinhe, com razão, que tanto na diḗ gēsis platônica quanto no mŷthos aristotélico, a “ascensão de um critério narrativo” constitui um “princípio de exclusão” para muitas composições mélicas, a inclusão da lírica no quadro de Diomedes não manifesta nenhum indício dessa oposição. Pelo contrário, seja do ponto de vista platônico, seja do aristotélico, o critério da “narrativa” (a diḗ gēsis propriamente dita) simplesmente não tem papel distintivo na classificação de gêneros. Tanto que 206

Aristóteles praticamente reserva o termo para a épica, distinguindo o “modo” (en hoîs) por um conceito mais abrangente, apangelía, “elocução”, que pode abarcar desde a “narração” até a “enunciação”, que o latim distingue claramente. Porém, o decisivo é o que evidencia a própria inclusão da lírica numa classificação que se pretende platônico-aristotélica: ainda que Diomedes não tivesse tido acesso a nenhum manuscrito diverso dos que conhecemos, para ele simplesmente não havia lacuna na classificação modal dos gêneros em Platão ou Aristóteles. Como Cícero e Horácio antes dele, Diomedes não acusa sinal de nenhum silêncio que excluiria a lírica da mímēsis no pensamento antigo. O segundo exemplo mais representativo do nosso conhecimento sobre a classificação dos gêneros na antiguidade fica a meio caminho de todas as tradições. Acredita-se que Proclo, o autor da Chrestomatia, foi um gramático do século II d.C., embora também possa ter sido o neoplatônico do século V d.C. Mas de sua obra só conhecemos o resumo que foi transmitido pelo patriarca de Constantinopla e lexicógrafo Fócio, através da síntese, não se sabe se total ou parcial, que registrou em sua Bibliotheca, no século IX d.C. (Ragusa: 2010, p.38). Por outro lado, considera-se que o verdadeiro autor da repartição genérica que aparece no texto foi Dídimo Calcêntero e que Proclo teria tomado o esquema geral de sua classificação e a definição dos distintos tipos de poesia do famoso tratado sobre os poetas líricos (Perì lyrikôn poiētôn) do gramático alexandrino. Uma outra hipótese, baseada na concordância do manual com as edições de Píndaro, levou a postular uma origem ainda mais remota no labor editorial de Aristófanes de Bizâncio. Em todo caso, as duas genealogias da classificação de Proclo apontam igualmente para sua origem alexandrina e “pela frequência com que foi reproduzida, gozou sem dúvida de certo prestígio durante a Antiguidade” (Guerrero, p.38) Apesar dessa transmissão acidentada na qual se sobrepõem uma enorme quantidade de camadas históricas, o manuscrito de Proclo, citando Dídimo ou Aristófanes de Bizâncio, resumido por Fócio, terminou constituindo o testemunho mais importante que chegou até nós do sistema de classificação da poesia mélica do período alexandrino e o testemunho mais abrangente que dispomos para dar acesso ao que se presume ter sido o maior esforço de teorização da mélica na antiguidade. Como nota Calame, é provável que as edições alexandrinas constituam a base de uma primeira discussão genérica sobre a poesia lírica. Mas os tratados alexandrinos não sobreviveram para termos conhecimento deles. Em contrapartida, anota H. W. Smyth, “a única divisão aproximativamente exata da mélica grega que chegou até nós foi feita em Alexandria e foi transmitida, através do Perì lyrikō n poiētō n de Dídimo, para Proclo” (1900, p.xxiv-xxv). Proclo listou 28 tipos de poesia divididos em 4 categorias: épos, iambo, elegia e mélica, esta subdividida em religiosa (aos deuses), secular (aos homens) e mista. Ao contrário de Diomedes, sua classificação em árvore parte de uma divisão modal “de clara extração aristotélica”, na opinião de Guerrero. Por outro lado, Calame a considera uma retomada da distinção platônica entre os modos 207

mimético e diegético “en laissant tomber le mode mixte”. Na verdade, ambos os argumentos são equivocados porque igualmente parciais. Após um breve preâmbulo sobre o estilo (plásma), Proclo reparte as espécies em duas classes principais: (i) imitativa (mimētikón), incluindo tragédia, drama satírico e comédia e (ii) narrativa (diēgēmatikón), abrangendo epopeia, iambo, elegia e mélica. Em seguida, concentrando-se na poesia narrativa, dedica alguns parágrafos às três primeiras espécies (épica, elegia e iambo), mas o grosso do manual é consagrado à melikḗ poíēsis e suas subdivisões. Após classificá-la segundo o modo de enunciação, a caracterização dos (sub)gêneros mélicos se faz distinguindo três classes que cobrem a oposição poesia religiosa/poesia profana, através do eixo do critério da destinação; com uma quarta classe que exclui expressamente do campo da melikḗ poíēsis, considerada simples capricho de poetas: a)

Poemas dedicados aos deuses (eis theous): hino, prosódio, peã, ditirambo, nomo, adonídio, ióbaco e hipórquema.

b)

Poemas dedicados aos homens (eis ánthrōpous): encômio, epinício, escólio, himeneu, silo, treno e epicédio.

c)

Poemas dedicados aos deuses e aos homens (eis theous kaì ánthrōpous): partênio, dafnefórico, tripodefórico, oscofórico e êuctico.

d)

Poemas para “conjunturas eventuais” (prospiptousas peristaseis): pragmático, empórico, apostólica, gnomológico, geórgico e epistáltico.

Como observa Guerrero, a classificação de Proclo forma um quadro bastante heterogêneo: “dentro deste ingente aparato, a descrição das numerosas subcategorias se estende sobre um registro que vai desde um só traço definitório até a combinação de várias notas distintivas” (p.39): destinação, modo de execução, ritmo, metro, estilo, modo harmônico, circunstância e lugar de execução, constantes temáticas, função do poema, raízes mitológicas ou históricas. Com essa multiplicação de critérios, as subcategorias se formam a partir de princípios dissímiles em que inclusive os limites iniciais das três classes englobantes se tornam imprecisos. E se remontamos até o grau superior que constitui a melikḗ poíēsis, resulta ainda mais difícil distinguir qual possa ser o fator comum do conjunto (p.40). Do ponto de vista que nos interessa, a definição de um critério homogêneo é menos relevante do que a própria multiplicidade de categorias da poesia mélica que Proclo registra – nada menos que trinta! – e a expressa dificuldade que autores antigos e modernos sentem ao tentar reduzi-las a um “fator comum”. Pois como observa Calame, “tanto a partilha entre os modos de enunciação quanto a multiplicidade de espécies principais de poesia impedem igualmente a constituição de uma tríade [análoga à divisão moderna] bem como a construção de um gênero lírico autônomo” (1998, p.1078). Mas seria tão equivocado tentar reduzi-los a um “fator comum” definidor do gênero mélico (como 208

a ocasião de performance), quanto associar essa multiplicidade a uma suposta inclassificabilidade essencial da lírica, como terminam sugerindo Calame e Guerrero. Pois não ser passível de uma definição, não quer dizer que a mélica não possa ser pensada, desde logo, em sua heterogeneidade interna. Nota-se que tanto em Proclo como em Diomedes a identificação da mélica com a “narrativa” (diḗ gēsis/apangelía), simples ou mista, não constitui nenhum embaraço para que tenhamos que tomar a presença do critério em Platão ou Aristóteles como um princípio de exclusão das formas mélicas a priori. Sobretudo, chama a atenção na classificação de Proclo que tanto a mélica quanto a elegia e o iambo parecem expressamente excluídas do gênero mimético. Mas não devemos tirar uma conclusão precipitada. Pois a tomar a divisão inicial da Chrestomatia ao pé da letra também deveria se excluir da mímēsis a epopeia – o que não seria compatível nem com o quadro de Platão, nem com o de Aristóteles, em que o autor se apoia! Seu entendimento, portanto, deve ser outro. Para explicitá-lo bastaria ver aqui também uma tentativa de fusão entre os modelos dos dois filósofos. De fato, a terminologia é platônica (mimētikón / diēgēmatikón), como bem viu Calame, mas o sentido da bipartição é aristotélico (dramatikón / apangeltikón), como sublinha Guerrero. O que supõe uma plena sinonímia entre a diḗ gēsis do primeiro e a apangelía do segundo, mas cria uma assimetria entre dois níveis da mímēsis: como termo abrangente e no sentido especificamente “dramático” de falar/agir “como se fosse outro” (hōs héteron), que sendo comum à épica, à mélica e ao drama, permite a fusão dos dois quadros na categoria do “gênero misto”. Para terminar, importa reter que, para os antigos, (a) a mélica não estava ausente do quadro teórico da Poética, (b) a ideia de uma poesia mélica ou lírica caracterizada pela enunciação do próprio poeta no sentido de uma declaração pessoal era completamente desconhecida, ao passo que, (c) a inclusão da mélica/lírica seja no modo misto de Platão ou na locução alternativamente “como o mesmo e como outro” (hōs autòn kaì hōs héterón), de Aristóteles, era uma constante durante a Antiguidade; e, finalmente, que (d) a manutenção de um critério narrativo na delimitação do campo poético não era sentido como um princípio de exclusão da mélica, por mais estranho que possa parecer ao leitor moderno. Assim, mesmo mantendo a leitura habitual do tratado, Guerrero não pode deixar de perceber que a “falta” não era sentida como problema para os leitores imediatos da Poética, registrando a distância que os separa da recepção moderna de Aristóteles: Mas isto não parece ter colocado um verdadeiro problema durante a Antiguidade, já que, ainda baseando-se em princípios aristotélicos, os teóricos antigos não hesitaram em ampliar o número de classes textuais para dar guarida aos distintos tipos de textos omitidos. Pelo contrário, os homens do Renascimento, que farão da teoria genérica uma obsessiva paráfrase da Poética, sim, terão que enfrentar-se com as limitações do tratado e, em especial, com este silêncio de Aristóteles, que, como veremos, há-de converter-se em um ponto chave na elaboração renascentista do conceito de “poesia lírica” (p.32) 209

c. interpretação moderna de Aristóteles

Depois do romance, a lírica é o gênero que recebe a definição mais tardia, apenas no século XVI, com A. Sebastiano Minturno (L’ arte poetica, 1564). Mas se a própria tríade só é introduzida na Alemanha por A. G. Baumgarten, Meditationes philosophicae (1735), pouco depois os irmãos Schlegel (1794, 1801, 1802) já atribuem sua origem a Platão, que teria distinguido três gêneros fundamentais: épico, puramente objetivo e exterior; lírico, puramente subjetivo e interior; e dramático, mistura e síntese dos dois. Pouco diferente será a definição da Estética de Hegel (1835), de cunho igualmente platonizante: a épica como consciência ingênua totalizante de um povo, lírica como desdobramento do eu individual e drama como síntese de objetividade e subjetividade (Calame, 1998, p. 93). Mas desde que o critério da mímēsis é substituído, na tríade moderna, pelo sujeito, a inversão é completa quanto à classificação modal de Platão, em que o caso misto não podia ser o drama, que configura o mimético pleno, senão a épica, que é o semi-mimético. No início dos tempos modernos, quando o sujeito ainda não era uma categoria suficiente, para o humanista do cinqueccento a própria demanda por uma legitimação do “eu” equivalia a explicitar a dependência de um gênero legítimo ao princípio da imitatio. Quando a classe lírica foi estabelecida inicialmente como resposta ao problema criado em torno do silêncio da Poética, a atribuição retrospectiva da tríade dos gêneros a Platão e Aristóteles não era evidente. Para introduzir a categoria lírica dentro da classificação dos gêneros os poetólogos Renascimento tiveram que travar um debate sem fim com o texto de Aristóteles, convertendo a “exclusão da lírica” na Poética em dinamizador da teorização dos gêneros nos tempos modernos. No final desse processo, o resultado também será uma inversão do quadro antigo: ao contrário de Aristóteles, não serão mais Homero e Sófocles os representantes máximos da imitatio, mas a poesia de Horácio e Petrarca. Passando à cena mais próxima, que inverte a situação inicial dos tempos modernos, o quadro será bem diverso quando a atribuição retrospectiva dos primeiros românticos não for mais evidente, desde que a própria “lírica” se torna um problema para o intérprete contemporâneo. Este não parte de uma tentativa de preencher a lacuna do quadro de Aristóteles, como os renascentistas. Mas tampouco pressupõe uma tríade fundamental dos gêneros que existiria desde Platão. Pelo contrário, a tendência dominante será, então, mostrar que a lacuna não era imotivada: Reagindo contra as projeções da partilha entre épica, lírica e drama sobre as distinções enunciativas propostas por Platão e Aristóteles, a crítica contemporânea não deixou de ressaltar a ausência da poesia dita “lírica” no esforço de classificação antigo. As propostas de interpretação dessa estranha lacuna foram numerosas. Se a justificou sucessivamente pela constatação histórica de que as formas da lírica tinham desaparecido no tempo de Aristóteles [L.E. Rossi, 1971, p.78];32 pelo fato de que a Anota L. E. Rossi (1971): “sabe-se que na Poética se fala apenas do epos e sobretudo do teatro: substancialmente é ignorada a lírica (a exceção do ditirambo e do nomo), e me parece que o fato seja significativo. A lírica a esta altura está 32

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lírica grega não era mimética e que ela era, por consequência, não representativa e não fictícia [K. Hamburger, 1957; Génette, 1977, p.392-4 e 1979; D.-Roc & Lallot, 1980, p.21-22]; pela afirmação de que Aristóteles, concentrando a Poética essencialmente na tragédia, não pretendia dar uma classificação exaustiva e não se sentia concernido pela lírica [Th. G. Rosenmeyer, 1985, p.74-84]; pela hipótese de que esta última não se inscreve no esquema evolutivo desenhado na Poética [Halliwell, 1986, p.277-284] ou pela suposição de que a lírica, no seu componente “pessoal”, não era considerada como narrativa por Aristóteles [W. R. Johnson, 1982, p.76-83; cf. G. F. Else, 1957, p.567-8]. (Calame, 1998, p.99).

Por via independente, Guerrero amplia o cotejo de leituras modernas da Poética: Desde a exumação da Poética no Renascimento, a omissão das formas líricas tem sido, [...] um enigma aberto às mais variadas conjecturas [...] não faltou quem tivesse jurado de pés juntos que os poemas da Idade Lírica ocupavam o famoso segundo livro do tratado, hoje provavelmente perdido para sempre; tampouco carecemos de exemplos de filósofos que tenham visto na lacuna um signo da escassa sensibilidade literária de Aristóteles. Outros intérpretes, mais sérios, têm recorrido à história da cultura grega em busca de respostas e argumentam pela desaparição do lirismo tradicional no século IV a.C. [como causa do silêncio de Aristóteles], ou bem sua presumida transformação em uma arte estritamente musical [Ross, 1964, p.290; Atkins, 1952, vol. I, p.75; Rostagni, 1945, p. LXXX; House, 1956, p.41; Bywater, 1909, p.97] ou em um difuso gênero de retórica [Potts, 1953, p.67-68] (Guerrero: 1998, p.28).

Visto que “seria um labor ingrato deter-se em cada uma destas hipóteses e examinar a carga de falsos pressupostos e más leituras que arrastam tanto no que concerne à interpretação da Poética como na reconstrução de seu contexto histórico” (p.29), Guerrero se restringe a eliminar as hipóteses mais frequentes. Não se sustenta a ideia de que a exclusão seria decorrente da desaparição da mélica da poesia viva no séc. IV a.C., como argumenta Luigi Rossi, do contrário se deveria indagar por que Aristóteles trata de outra forma não menos “extinta” como a épica. Nem mesmo o lugar privilegiado de Homero na cultura grega explicaria essa exceção, pois como mostrou S. Halliwell, “Hesíodo não parece ter gozado de um prestígio menor” e, não obstante, Aristóteles não o menciona em nenhum momento. Por outro lado, embora a mélica tenha perdido bastante de seu prestígio após a morte de Píndaro, sendo substituída por outros gêneros e práticas artísticas que passaram a ter a primazia durante a época clássica, seria inexato supor que a mélica “tenha se convertido em uma espécie de música ou em um ramo da retórica” (p.29). Pois Aristóteles não só estabelece uma clara distinção entre os âmbitos da Poética e da Retórica como uma tal hipótese de que a mélica tivesse se convertido em um ramo do discurso epidítico (elogio/censura) não encontra respaldo na Retórica. Pelo contrário, do ponto de vista estritamente aristotélico, um discurso retórico demasiado poético atua em detrimento da finalidade própria deste que é a persuasão.

morta há algum tempo em suas formas originárias e Aristóteles volta seu interesse aos gêneros que conservaram um certo grau de vitalidade” (1971, p.78). E acrescenta em nota: “a lírica interessa a Aristóteles apenas para alguma notação histórica: ditirambo e nomos (cap.I), aos quais vão se juntar os psógoi improvisados, hýmnoi, enkómia (48 b 27, cf. 23). A lírica já havia se tornado fato literário, elemento de remota tradição já no curso do século IV” (p.90, n.43).

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Em suma, embora a Poética testemunhe a ascensão de uma “civilização da escrita” e o próprio filósofo opere uma clara separação entre texto e performance (execução), considerando que a mera leitura é meio suficiente para apreciar a qualidade de uma tragédia (62 a 10-12), mesmo esse dado, que o autor venezuelano considera suficiente para fazer do tratado uma peça que “mal podia acolher a arte da Idade Lírica”, não lhe parece bastante para explicar “por si só, o silêncio de Aristóteles, nem se deve interpretar de maneira isolada” (p.29). Portanto, se há uma razão interna para a exclusão da mélica, diz o autor, esta deve ser buscada no próprio aparato teórico do tratado Porém o que Guerrero não considera é o valor heurístico da redução ao lógos, ao menos como operada por Aristóteles: o princípio postulado no livro I da Poética, de que é preciso voltar ao próprio lógos para compreender a mímēsis, pondo entre parênteses o espetáculo, a atuação e inclusive a performance vocal, implica no caso da mélica, que o próprio mélos poderia ser objeto de uma indagação à parte, se é que se trata, no poema mélico, de mímēsis verbal. Ou pelo menos, se é isso que se trata de descobrir como traço distintivo comum aos demais gêneros de poesia. Assim, embora o crítico conclua que a exclusão da mélica seja uma consequência necessária do primado da mímēsis práxeōs e do predomínio de um critério narrativo (mŷthos), Guerrero não deixa de registrar, por outro lado que, no livro X da República, Platão atribui aos melè um caráter imitativo, incorporando-os a uma definição de poesia como mímēsis. ainda que no final da discussão sobre o destino da arte poética só se admitam na cidade ideal os hinos aos deuses e os encômios aos homens de bem (X, 607 a), é evidente que não se trata senão de duas exceções à regra geral que expulsa os melopoioi e aos demais poetas por sua condição perniciosa de “imitadores de imagens” (mimètes eidolon) que os afasta do caminho da verdade (p.25).

Notando as mesmas exceções que se repetem nas Leis (VII, 801 e), é significativo que Guerrero chegue a contra-argumentar a favor da leitura correta das passagens em que Platão resgata apenas autores de hinos e encômios da censura contra os poetas em geral, lembrando que, em ambos os casos, a identificação de mélica e mímēsis não favorece a primeira: A tese de Collingwood (1938, p.48), que postula que Platão só expulsa a poesia “representativa” e que, portanto, admite na cidade Píndaro e os outros líricos, passa por alto os fragmentos finais da passagem em que se condena também aos melopoioi (607 a-d) e não tem em conta a censura precedente do livro II (379 a). A interpretação de Donohue (1943, p.89) parece muito mais apropriada: “Mesmo se isso significa a ode encomiástica formal, entretanto, a admissão de duas formas líricas como os hinos e encômios não constitui um simples endosso da lírica” (p.25)

Finalmente, contestando a tese da mútua exclusão dos conceitos de lírica e mímēsis na Poética, proposta por Kate Hämburger e Gérard Génette, igualmente aceita por Guerrero e Calame, entre outros, em Lírica e lugar-comum, Francisco Achcar observa, com razão, que essa concepção amplamente difundida “não leva em conta as referências ao mélos no livro X da República, onde, inistindo na impossibilidade de aceitar em sua pólis a poesia mimética, o filósofo inclui os líricos 212

entre os banidos” (p.34). Por que o faria se o filósofo não considerasse o poeta mélico um indesejável “imitador”? Ademais, “é difícil imaginar que, para Platão ou Aristóteles, a mélica não fosse mimética, seja porque a música e a poesia eram assim consideradas, seja porque a mímēsis não se referia apenas à relação da obra com seu objeto, mas também a sua relação com outras obras e com o receptor” (p.34). Afinal, como bem nota Achcar, na contramão dos principais intérpretes modernos da Poética: “estranharia que Aristóteles, se quisesse de fato excluir a lírica do campo das artes miméticas, não o fizesse explicitamente e já de início”.

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d. mélica e as categorias da mousikḗ (nómos e harmonía)

Por um lado, se a mélica não aparece nominalmente no texto da Poética, a própria noção genérica de melikḗ poiētikḗ não estava disponível antes dos alexandrinos. Ainda que Aristóteles refira alguns gêneros e subgêneros como elegia, iambo, nomo e ditirambo, não há, em todo o tratado, nenhuma menção efetiva à mélica. As únicas ocorrências de mélos designam o “canto” no sentido estritamente musical do termo, como um dos meios (en hoîs) da mímēsis, mas nunca como espécie (eidé) da tékhnē poiētikḗ ou mousikḗ . Embora a menção a nomos e ditirambos possam ser entendidos como subgêneros da mélica coral, ambos colocam uma dificuldade interpretativa pela própria falta de informação sobre estes gêneros. Por sua vez, as menções a hinos e encômios não referem nenhum gênero específico. Dentro desse quadro, ao lado da tese predominante de que a lírica não seria mimética, opondose ao primado do mŷthos aristotélico33, uma linha interpretativa um pouco anterior que se destaca no mesmo sentido,34 defende que a mélica seria excluída da mímēsis particularmente por integrar o campo da música, como resume Käte Hamburger: Tem-se referido geralmente o caráter fragmentário de sua obra ao fato de ter tratado na sua Poética somente a epopeia e o drama, mas não o gênero lírico, ou presumiu-se que Aristóteles não tenha incluído a grande lírica do VI e V séculos, por pertencer esta poesia “cantada”, isto é, acompanhada de música instrumental, ao domínio da música [I. Brehens, 1940]. Aristóteles, porém, menciona a poesia cantada [...], a saber, o ditirambo e até a música inteiramente instrumental como tais, mas justamente o contexto em que isso acontece indica que ele não a incluía na lírica, mas precisamente na poíēsis e que, precisamente aquilo que designamos como poema lírico e até como “poesia”, para Aristóteles não era “poesia”, ou seja, poíēsis, mas pertencia a um outro domínio das “obras literárias” (Hamburger, p.2-3).

Esse argumento não é de sustentação imediata: a não ser que a música seja excluída da mímēsis, o que é expressamente desmentido pelo livro VIII da Política e pela enumeração inicial da Poética, que menciona entre as espécies da mímēsis próxima, as formas instrumentais da “aulética” e a “citarística”, já que toda espécie de poema tinha algum acompanhamento musical e o conjunto da própria poesia se designava nos tempos mais antigos pelo termo mousikḗ . A dificuldade aqui é saber o que Aristóteles pretende ao dizer que só a maior parte (hē pleístē) seja mimética, pois que parte da mousikḗ seria excluída da mímēsis? Ainda que se suponha que a mélica pertença a essa “menor parte”, a dificuldade da passagem é apenas aparente, pois Aristóteles está se referindo apenas à música instrumental (Lucas 1968: 55). Ademais, em que sentido a mélica seria considerada um gênero da mousikḗ , senão no sentido que todas as demais espécies são chamadas de artes das musas?

33 34

Hambuger (1957), Genette (1977), Dupont-Roc & Lallot (1980), Calame (1998), Guerrero (1998). Bywater (1909), I. Brehens (1940), Rostagni (1945), Atkins (1952), House (1956), Ross (1964).

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É certo que, o parco conhecimento que temos sobre os gêneros poéticos arcaicos não permite excluir a hipótese de que a mélica fosse particularmente diferenciada das outras espécies poéticas pelo suporte cantado, uma vez que todo o campo da “lírica” arcaica parece coincidir com três gêneros musicais claramente definidos: corodia (mélica coral), citarodia (mélica monódica e iambo) e aulodia (elegia e iambo). Mas a relação entre os gêneros musicais e os gêneros poéticos não é tão simples nem tão direta, como veremos. Uma rápida recapitulação da classificação das formas musicais gregas mostra, desde logo, que citarodia e aulodia correspondem a uma distribuição diversa dos gêneros poéticos, sem um paralelismo estrito. Segundo Théodore Reinach (p.136-145) os principais gêneros de composição musical gregos seriam: 1. citarodia, 2. aulodia, 3. aulética (ou aulese, que inclui a synaulía) “árvore de mil galhos”, 4. citarística (ou citarese), 5. gêneros mistos (énaulos kithárisis), 6. o lirismo coral (khoroidía), 7. um gênero singular, do poema simplesmente declamado, com acompanhamento musical, a paracatáloga, reservada inicialmente aos iambos, cuja invenção era atribuída a Arquíloco; 8. as composições dramáticas, na tragédia, na comédia, no ditirambo e na pantomima: anapestos do coro, a paracatáloga dos atores, as partes líricas do coro (estásimo), o kômos alternado entre o coro e os atores, o prelúdio. A começar pela citarodia, solo vocal acompanhado pela cítara, não se confunde com a mélica monódica, senão que inclui em seu repertório, além das formas das mélica monódica, fragmentos de epopeia precedidos por proêmios (prooímion) como os que conhecemos através dos Hinos homéricos; o nomo (nomós), “peça de resistência da citarodia” e, segundo Reinach, uma parte reservada à poesia iâmbica, ora cantada, ora declamada, ao som do clepsiambo. O próprio iambo aparece igualmente associado ao gênero distinto da paracatáloga, como uma espécie apenas declamada com acompanhamento instrumental. Reservado de início ao iambo, depois ampliado a outras métricas, sendo encontrado na tragédia, no ditirambo e na pantomima. Por fim, os cantos militares espartanos (embatería), recitados em coro pelos soldados em marcha ao som do aulo ritmando a cadência dos versos e dos passos obedeceriam ao mesmo princípio. Ao contrário da citarodia, a aulodia naturalmente exigia o concurso de dois intérpretes. Mas o cantor era a “estrela” e no concurso, quem recebe o prêmio único. A ela se reserva o lugar adequado para a poesia elegíaca, mas não de modo exclusivo: “A aulodia teve seus nomos, como a citarodia, compostos inicialmente em hexâmetros e, sobretudo, em dísticos elegíacos; mais tarde, também como na citarodia, os ‘ritmos livres’ prevaleceram” e ainda se encontram aulodias dentro de peças trágicas (p.138). Mas somente a corodia parece se identificar de modo mais ou menos exclusivo com um gênero poético particular que são as formas da mélica coral. Acompanhadas de aulo ou cítara ou de ambos. Como se vê, as duas classificações não se superpõem, nem se restringem à mélica, ao iambo e à elegia. 215

No entanto, dentro de todas as espécies musicais que abragem as formas mélicas, destaca-se um termo agrandente: nomoi também designavam-se composições fixas em geral, havendo nomos citaródicos, aulódicos e coródicos (cf. Roland de Candé). Por isso a forma musical não se confundia com o gênero poético de mesmo nome, como modalidade específica da mélica coral. Fixada desde o século VII a.C., comportava sete partes: I. início (arkhá) ou preâmbulo (éparkha), II. segundo início (metarkhá), III. transição (katatropá), IV. centro (ómphalos), V. volta (metakatratopá), VI. desfecho ou final (sphragís) e VII. epílogo (epílogos) ou saída (exórdion), exórdio. “O léxico Suda define o nómos como uma espécie de melodia que tem harmonía e ritmo determinados” e segundo Pseudo-Plutarco (De musica 1133 b-c) “os padrões rítmicos e melódicos (= harmoníai) destas canções tradicionais, que se chamavam nómoi, eram como ‘normas’ a serem observadas” e atribui seu nome a esse caráter (Corrêa, p.87). No entanto, o Suda como Platão só refere o nomos citaródico. Mas é sabido que havia pelo menos cinco categorias de nómoi: citaródicos, aulódicos e coródicos, de um lado, citarísticos e auléticos, de outro. Visto que os dois últimos, puramente instrumentais, citados na enumeração inicial do livro I da Poética, distinguiriam especificamente o nómos aulético e citarístico, como as espécies miméticas da mousikḗ , é possível que Aristóteles esteja se referindo ao “nomo cantado”, no sentido amplo, como espécie da poiētikḗ que faz uso de “todos os meios ao mesmo tempo”, lógos, rhythmós e harmonía e o contexto de sua menção ao lado do ditirambo indica que o termo é usado como designação poética, em paralelo com o texto dos Problemata XIX, de Pseudo-Aristóteles. A dificuldade aqui é saber se podemos relacionálo a alguma espécie em particular ou se se trata de um termo genérico. Não é possível determinar se a noção aparece na Poética exclusivamente em relação à mélica coral ou se pode ser referida à monodia, ou mesmo se abrange a elegia e o iambo, como designação geral emprestada das formas musicais. De todo modo, o termo atesta uma referência bem delimitada por esse grupo de canções que distingue uma variedade de formas mélicas. Na Poética o nomo é citado apenas nos caps. 1 e 2, em ambos como uma espécie da mímēsis caracterizada por utilizar “todos os meios ao mesmo tempo” e por ter como objeto a representação de “agentes” (práttontas). Mas no texto apócrifo dos Problemas musicais atribuídos a Aristóteles, os nomos são vistos preponderantemente como canções corais (ōidaì khorikaì) e claramente relacionados à mímēsis práxeos: “porque os nomos não eram compostos de antístrofes, como outras canções corais? Será por que os nomos eram próprios dos profissionais, capazes então de imitar (mimeîsthai) personagens e sustentar suas partes, cuja canção tornava-se longa e variada (polyeidḗ s)?” (XIX.15). No comentário de Paula Corrêa: “apenas os músicos profissionais, capazes de sustentar uma longa imitação, acompanhada de letra e música, executavam nómoi [...] pois eles não eram estróficos, como os cantos corais, mas longos, multiformes (polyeidḗ s) e elaborados” (p.89). Características que podem ser observadas no que restou de um nomo de Timóteo (Persas) do período 216

clássico. E sublinha a helenista: a descrição que Píndaro faz do nómos policéfalo na Pítica XII revela “a importância que a mimese já havia assumido nos nómoi mais antigos” (p.90), que é também um dos primeiros testemunhos que possuímos do vocabulário de mimeîsthai, anterior à sua especialização como categoria poética. Em seguida, na mesma passagem dos Problemata XIX, a observação sobre o nomos se estende ao ditirambo: “também os ditirambos, depois de se tornarem imitativos (mimētikoì egénonto) não mais possuem antístrofes, mas antes as possuíam” (trad. Maria Luisa). E o motivo é explicado: “nos tempos antigos, os homens livres, eles próprios, participavam dos coros, e era difícil para um grupo grande cantar de maneira competitiva (agōnistikôs). Portanto, eles cantavam as canções em uma só harmonía” (trad. Corrêa, p.38). Reaparece aqui, então, a tese de Aristóteles de uma evolução das formas poéticas, fazendo a tragédia derivar da mélica coral: por isso compunham-se melodias mais simples para eles [os coros]. E a antístrofe é mais simples [...] E é também pelo mesmo motivo que as partes cênicas (apò tês skēnês) não são antistróficas, mas as do coro o são; com efeito, o ator é artista profissional e imitador (mimētḗ s), todavia, o coro é menos imitativo (hêtton mimeîtai) (XIX.15. 25-30)

O importante é que a expressão “mais mimético” em relação ao uso de nómoi nas partes musicais da poiētikḗ , tem como correlato a capacidade de fazer mais modulações e variações, pois é “mais mimetés” aquele que consegue representar uma maior diversidade de “caracteres”, tanto pelas palavras como pela música e pelo ritmo. Por isso será crucial acompanhar a pesquisa de Paula Corrêa sobre a história do conceito de harmonía como pressuposto da representação de êthe (caracteres) na teoria musical grega. Mas o termo nómos também possui um sentido mais abrangente, referindo o “canto dos pássaros”, como em Álcman, na medida em que se pode reconhecer neles certos “padrões rítmicos e melódicos”, sendo o termo sinômimo de “canto”, no sentido mais amplo do termo. Segundo Corrêa, é nesse sentido que se deve entender a referência dos fragmentos 39 e 40 PMG, onde se atesta que o poeta se serviu dos nómoi dos pássaros “como material para suas próprias canções miméticas”. Dou a seguir a tradução crítica de Corrêa ao lado da transcriação por Haroldo de Campos, que resgata essa nuance semântica por uma “traição” significativa: Álcman Fr.40 PMG οἶδα δ’ ὀρνίχων νόμους παντῶν e conheço os nómoi de todos os pássaros

Fr.39 PMG ἔπη τάδε καὶ μέλος’ Αλκμὰν εὗρε γεγλωσσαμέναν 217

κακκαβίδων ὄπα συνθέμενος. estes versos e melodia, Álcman os descobriu, a sonora voz das perdizes ouvindo

(Paula C. Correa)

cantam um por um os distingo pássaros temas & timbres: álcman inventa em mimolíngua o canto das perdizes (Haroldo de Campos)

Ao contrário da suposição moderna de que a mélica seria excluída da Poética por pertencer à mousikḗ , é o próprio canto do poeta, enquanto tékhnē, que se define de saída como uma espécie de mímēsis phýseōs, como afirma o fr.154 DK de Demócrito, geralmente considerado como a primeira atestação do termo mímēsis, designando as “aves canoras” significativamente pelo termo lyrikôn, das quais o poeta aprende a arte do canto (ōidêi) “imitando a natureza”:

fr. 154 DK (Plut. De sollertia animalium 20. 974A) μαθητὰς ἐν τοῖς μεγίστοις γεγονότας ἡμᾶς· ἀράχνης ὑφαντικῆι καὶ ἀκεστικῆι, χελιδόνος ἐν οἰκοδομίαι, καὶ τῶν λιρικῶν, κύκνου καί ἀηδόνος, ἐν ὠιδῆι κατὰ μίμησιν nós, nas coisas grandes, fomos discípulos: da aranha, na tecelagem e na remendagem; da andorinha, na construção de casas, e dos pássaros líricos – o cisne e o rouxinol – no canto, segundo a mímesis.

Passando à investigação dos sentidos do termo harmonía, concentro-me na pergunta de Paula Corrêa: “seriam os fundamentos do éthos musical uma mera construção de filósofos?” (2008, p.52). embora não se saiba ao certo como e quando os caracteres convencionais das harmoníai foram estabelecidos, é significativo que as primeiras evidências de sua existência se encontrem entre poetas da tradição dórica, do Peloponeso e das colônias dóricas do oeste: Prátinas, Laso e Píndaro. É provável que a prática desses poetas/músicos tenha sido divulgada e, posteriormente, formalizada [...] pelos teóricos que se interessavam pela paidéia musical (p.71).

Com efeito, “há evidências de que as antigas harmoníai exibiam certas preferências por determinadas gamas tonais, às quais as melodias se restringiam, e que, pelo menos até a época de 218

Laso, elas eram associadas a um tom característico (tessitura). Mais tarde, com a sistematização dos teóricos e os aperfeiçoamentos técnicos que aumentaram a gama dos instrumentos, tornou-se possível tocar as harmoníai em tons diferentes, a modulação entrando em voga nas performances dos solistas” (p.41). Com a entrada em cena da modulação, as conotações “éticas”, convencionalmente atribuídas a cada harmonía, diz Corrêa, devem ter sido afetadas cada vez que o tom tradicional não era observado, pois “embora ele não fosse o único, o tom era um elemento importante para sua caracterização” (p.42). Através da análise de vários poemas que mencionam explicitamente determinadas harmoníai relacionando-as a cargas semânticas específicas, Correa observa que “as harmoníai podem ser associadas ao conteúdo narrativo, dependentes da escolha do nómos, adequadas ao destinatário ou, ainda, à ocasião e à forma da execução” (p.71), de modo que o éthos convencional fixado pela tradição seria geralmente resultante de associações feitas entre a música, a letra e o modo de execução (p.75). A que se soma “a concepção da alma como uma harmonía e do corpo como instrumento”, uma metáfora que teria raízes muito antigas, embora seja atribuída a Pitágoras, que teria se tornado posteriormente “um dos fundamentos do éthos musical” (p.83). Em um de seus fragmentos, Prátinas já estabelecia uma relação entre música e “caráter” na forma de uma “conveniência” ou “propriedade”, que se expressa com o termo prépon:

Fr. 712 b PMG πρέπει πᾶσιν ἀοιδολαβράκταις Αἰολὶς ἁρμονία Convém a todos, que em canções se vangloriam, a harmonía eólica (Paula C. Corrêa)

Do mesmo modo que Píndaro, em suas canções, atribui a cada harmonía um caráter convencional que será compartilhado com os filósofos posteriores (p.71), posto que os próprios poetas expressam uma opinião semelhante sobre a necessária adequação entre o éthos representado e a harmonía da música (p.50) é de supor que “as associações éticas atribuídas às harmoníai poderiam ter-se originado”, incialmente, “a partir da associação feita entre as letras das músicas – com todas as suas conotações – e as harmoníai em que eram cantadas”, somente a posteriori vindo a receber significados convencionais (p.52, grifo meu). A contraprova é observada por Paula Corrêa nas Leis (669 b 70), onde Platão bane a música puramente instrumental por uma série de razões, mas em particular porque “os juízes têm dificuldade em avaliar o caráter de uma música quando ela não tem 219

letra” (p.52-53). É verdade que a isso se acrescenta uma crítica à especialização e o recurso frequente à modulação na música instrumental competitiva “deveria ser causa de maior dificuldade no julgamento do éthos” (p.53). Mas ao fazer o gesto do censor depender da contiguidade de hamonía e lógos Platão põe a descoberto um elo metonímico que estaria na base da correlação entre música e a mímēsis de determinado éthos. Pois como um elemento predominantemente sintático como a música poderia ser dotado de uma semântica coletivamente reconhecível se não dispusesse do investimento de um lógos compartilhado pelos juízes? outros fatores que teriam contribuído para a caracterização das harmoníai seriam a ocasião de execução (religiosa ou laica) e os preconceitos étnicos que existiam entre os povos entre os quais eram mais praticadas, ou aos quais suas origens eram atribuídas. Por exemplo, os espartanos do quinto século a.C. gozavam da reputação de serem severos, conservadores e viris. Portanto, suas músicas, assim como a harmonía dórica, eram qualificadas nos mesmos termos (p.53).

Assim, também, “Heráclides externa o seu grande preconceito com relação ao caráter dos eólios que considera ‘insolentes, arrogantes, intrépidos e orgulhosos’, e transfere essas mesmas características para a harmonía eólica, citando Prátinas (fr.712 b PMG) como confirmação de seu julgamento” (p.40-41): “em suma, as harmoníai podem ter adquirido um caráter específico por serem associadas ao conteúdo da composição literária, aos ‘traços étnicos’ convencionalmente atribuídos aos seus poetas e músicos, ou ao propósito ou à função da performance” (p.53). O que mostra que remetendo a uma semântica compartilhada, Aristóteles prioriza uma descrição das expectativas geralmente associadas a cada metro, harmonía, etc. O que não significa que ele as tomasse como obrigatórias (como Platão, antes dele, ou como Horácio, depois), nem que julgasse negativamente a transgressão da “regra”. Pelo contrário, admite o uso de uma variedade de harmoníai, e sua admiração por inovadores como Timóteo, Eurípedes e Ágaton mostra que não considerava “leis” os traços descritos na Poética como pertencentes à ousía de cada gênero. Portanto, se confirma a ausência de uma referência específica à mélica monódica na Poética. Por outro lado, ela comparece em negativo, circunscrita por todos os lados pela menção de gêneros paralelos, como o iambo, a elegia e a mélica coral (hinos e encômios, nomos e ditirambos) e de gêneros musicais puramente instrumentais, como a citarística e a aulética, todos mencionados como espécies da mímēsis. Não há motivo para suspeitar de uma exclusão da mélica em particular. Essa cisão seria, por si mesma estranha, já que os autores de monodias, corodias, elegias e iambos eram considerados como praticantes de uma mesma espécie de tékhnē, compondo em diversos gêneros de uma linhagem comum. Na falta de uma noção abrangente de melikḗ poiētikḗ , que surge tardiamente, até onde sabemos, por uma necessidade de classificação das edições alexandrinas, os poetas e escritores mais antigos, de Homero a Platão, só a designam justamente enquanto multiplicidade fragmentária de tipos de canção. 220

2. Análise do fr. 31 V: breve histórico e fontes de transmissão O fragmento 31 V de Safo ocupa um lugar privilegiado na história da categoria de poesia. Não apenas como uma das peças mais bem preservadas da poeta de Lesbos, mas por sua própria história de transmissão, como o fragmento mélico mais comentado, traduzido e parafraseado que chegou até nós, o poema Phaínetaí moi apresenta uma circunstância excepcional. Recriado por uma linhagem de poetas-tradutores, a cada vez, de acordo com a concepção de poesia própria da época que o reescreveu, segundo Laurence Lipking (1988), “uma história da poesia lírica poderia ser escrita seguindo os caminhos pelos quais os poetas posteriores adaptaram suas linhas a seus próprios propósitos”. No mesmo sentido, Rosanna Warren (1989) descreve a história de tradução do fr. 31 V como “uma pequena instância da linhagem lírica, um tipo de modelo para o perpétuo reengendramento da lírica por si mesma” (apud Prins 1999: 41). Em consequência dessa posteridade excepcional, só comparável à de Homero e à Bíblia em termos de influência na literatura posterior, a história das traduções do poema Phaínetaí moi coincide com a história do próprio conceito de poesia. Um caso único que permite ao analista verificar como cada época interpretou o mesmo poema de modo diverso e como essa variação corresponde a um distinto modo de conceber o poético no poema.35 Embora tenha sido muito citado na Antiguidade, com numerosas fontes indiretas, a transmissão do poema Phaínetaí moi de Safo coincide praticamente com o destino do tratado de Pseudo-Longino Sobre o Sublime (final do séc. I ou III d.C.) e com a recepção da tradução de Catulo (Carmem 51). Preservado basicamente através dessa única citação (Subl.10.1-3), as demais fontes contendo trechos menores limitam-se a confirmar ou introduzir variantes de versos e partes de versos, que retificam ou põem em dúvida algumas passagens, sem ampliar nem reduzir a extensão do texto presente no manuscrito principal. 35

LIPKING, Laurence. Abandoned women and poetic traditions. Chicago/London: University of Chicago Press, 1988, p.57-126, faz um exame da descendência e ascendência de Safo em várias traduções e imitações do fr. 31, de Catulo em diante; WARREN, Rosanna. “Sappho: translation as elegy”. In: Warren, R. (ed.). The art of translation: voices from the field. Boston: Northeastern University Press, 1989, pp.199-216. cf. outras referências citadas por Y. Prins: BARNSTONE, Willis. The poetics of translation: history, theory, practice. New Haven: Yale University Press, 1993, cf. pp.98-105, que compara inúmeras traduções do fragmento em inglês para ilustrar a tradução poética e GREER, Germaine. Slip-Shod Sibyls: recognition, rejection and the women poet. London: viking, 1995, pp.132 ss., que traça uma “tradição erótica fundada por Safo” seguindo versões do fr. 31 do Renascimento ao séc. XIX. Para uma história das traduções do fr. 31V, cf. também BRUNET, Philippe. L’ Égal des dieux: cent versions d’ um poème de Sappho, recueillies par Ph. Brunet. Paris: éditions Allia, 2004 e os livros indicados por William H. Race: COX, E.M. The poems of Sappho, with historical and critical notes, translations, and a bibliography (London, 1924), 33-37, 70-73 e RÜDIGER, H. Geschichte der deutschen Sappho-Übersetzungen. Germanische Studien 151 (Berlin, 1934). Para o tópos ut vidi e outras imitações de Safo: TURYN, Alexander. Studia Sapphica. Eos Supplement 6 (Paris 1929); TIMPANARO, Sebastiano. “Ut vidi, ut perii”. In: Contributi di filologia e di storia della língua latina, 219-287. Richerche di storia della língua latina, 13, Rome: Edizioni dell' Ateneo & Bizarri, 1978; BONNANO, M. G. “Per una grammatica del coup de foudre (da Saffo a Virgilio, e oltre)”. In: Arma virumque. Scritti in onore di Luca Canali, a cura di E. Lelli, Pisa-Roma 2002, 5-17; BRIAND, Michel. “Les (en)jeux du regard et de la vision dans la poésie mélique grecque archaïque et classique”. in: Études sur la vision dans l'antiquité classique, réunies par L. Villard, Mont-Saint-Aignan 2005, 57-79.

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Na forma que nos chegou, possuímos seguramente o início do poema, marcado pela corônis, constituído por quatro estâncias sáficas completas em dialeto lésbio-eólio, e um verso isolado no qual se interrompe o fragmento como o conhecemos. Sem que seja possível estimar ao certo quantas estrofes estariam faltando e como seria o encerramento do poema, que não acredito estar completo, como supõem alguns intérpretes, pode-se apenas imaginar que haveria pelo menos uma ou duas estrofes inteiramente perdidas para nós. Ainda assim, o texto está surpreendentemente bem conservado e compõe um todo dotado de certa integralidade. Só rompida pelo último verso (linha 17), que assinala uma continuação além da cena destacada entre os dois verbos “parece” (phaínein) das linhas 1 e 16, com uma aparentemente brusca mudança de tom e perspectiva. Para uma visão abrangente do texto atual na edição rigorosa de Eva-Maria Voigt (1971), que tomaremos como base, e uma seleção de traduções representativas das diversas camadas históricas de leitura do fr. 31 V, o leitor pode consultar o anexo “Safo: desafio à tradução”, onde se destaca em português a versão de Giuliana Ragusa, como melhor referência para a proposta crítica que se segue e onde ofereço uma versão do chamei de “tradução crítica” como operador de leitura, que não pretende recriar um poema em português, mas emprega a poíēsis a serviço da crítica. Antes de fazermos um breve resumo das fontes e da transmissão do poema, tenha-se em mente alguns dados sobre o conjunto da obra de Safo resumidos por Paula Corrêa: dos 9 livros da poeta de Lesbos compilados pelos alexandrinos, “sabemos que apenas o primeiro continha 1.320 versos, dispostos em provavelmente 60 a 70 poemas […] de tudo restou-nos um único poema na íntegra, a célebre Ode a Afrodite (fr. 1 V) […] e uma dúzia de textos mais substanciais dentre os 200 e poucos fragmentos menores” (apud. Ragusa: 2005, p.15). A recordação visa ressaltar o dado destacado por Martin West. Com a descoberta, em 2004, do papiro de Colônia (P. Köln. 21351), permitindo reconstituir quase integralmente a “Canção sobre a velhice” (fr. 58 b V), passamos a dispor do quarto poema de extensão suficiente para ser apreciado como uma composição mais ou menos completa, ao lado dos fragmentos 1 V, 16 V e 31 V (West: 2005, p.5). A que se acrescenta recentemente a descoberta de um novo conjunto de fragmentos em 2014, somando a esse corpus um quinto poema em excelente estado, até então desconhecido, batizado de “Poema dos irmãos”, além de suprir lacunas de outros fragmentos conhecidos (Obbink: 2014). 36 No caso do fr. 31 V, além do texto preservado quase integralmente no Tratado do Sublime e de um comentário anônimo em um pedaço de papiro do século III d.C. (= fr. 213bV), que permitiu reconstruir a linha 16, muito danificada no ms. de Pseudo-Longino.[, que constituem as fontes principais, a transmissão do poema Phaínetaí moi depende exclusivamente de fontes indiretas (via 36

Os fragmentos identificados com os poemas 5 V, 9 V, 16 V, 16a V, 17 V, 18 V e o inédito 18a, contidos no P. GC (papiro pertencente à Green Collection de Oklahoma City), foram publicados por Burris-Fish-Obbink em ZPE 189 (2014) 1-28; o novo fr. 26 V e o inédito “Poema dos irmãos”, contidos no chamado P. Obbink (adquiridos por um colecionador anônimo de Londres) foram publicados por Obbink em ZPE 189 (2014) 32-49.

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citações, paráfrases, traduções e não através de papiros, óstracos ou inscrições). Geralmente corruptas, dependentes da prática por definição falível e seletiva da citação feita de memória, quase sempre motivada por interesses extrínsecos, recortando-se os textos de modo a fornecer exemplos bastante sumários, convenientes à necessidade de gramáticos, lexicólogos, etc.; nesse conjunto, destacam-se duas citações do primeiro verso em Apolônio Díscolo (Pron.75 a, Pron.106 a = fr.165V); dois apógrafos do início do verso 9 do ms. de Longino (Vat. 2 e Vat. 3); duas variantes dos vv. 9-10 em “Excertos diversos” (An. Par. i 399.27-29 Cramer) e Plutarco, “Sobre o progresso na virtude” (De prof. virt. 81 d); duas variantes do v.13 nos “Epimerismos homéricos” (An. Ox. i 208. 15 Cramer) e em Hélio Herodiano, “Sobre as declinações dos nomes” (Hdn. Gr. II 763.23-27 Lentz); e, por fim, a importante citação dos vv. 14-16 no comentário em prosa já referido fr. 213bV (PSI 1965, 16s.) que se sobrepõe ao manuscrito principal. Entre as demais fontes, é significativo que maior parte das paráfrases seja feita por poetas e prosadores que chamaríamos hoje “literários”, de diversas épocas da antiguidade: Teócrito, Apolônio de Rodes, Nicandro, Calímaco, Lucrécio, Catulo, Horácio, Virgílio, Ovídio, Apuleio, Longo, Plutarco, Luciano de Samóstata, Ruffino. Importa notar que até o século XIX, a única fonte de transmissão de Perì hýpsous foi um códice do séc. X d.C. (Parisinus 2036 [p.184-185]), o único de que derivam todos os manuscritos que conhecemos. Apenas em 1809 se descobriu um manuscrito da Biblioteca Vaticana (Vaticanus 285) com um pormenor que pôs em questão a autoria do tratado, sem modificar o texto conhecido. Mas inversamente à fama do poema mais célebre da Antiguidade, o tratado que o conservou teria passado basicamente ignorado durante a Idade Média, só recebendo sua editio princeps em 1554, Basileia, por Francesco Robortello. A partir da redescoberta renascentista do Tratado do Sublime, o fr. 31V será a seguir, sucessivamente, reeditado e traduzido, primeiro em latim, depois em diversas línguas vernáculas. Segue, então, um breve resumo da recepção inicial do poema, segundo R. Aulotte. Em março de 1554 aparece em Paris um pequeno livro cuja repercussão logo seria considerável: as Odes de Anacreonte Teano, de Henricus Stephanus. “Nessa coletânea, que provinha da antologia reunida no século XI d.C. por Constantino Cephalas, em que figuravam sobretudo pastiches de Anacreonte compostos do século II a.C. ao IV d.C., a jovem Pléiade [...] acreditou, de boa fé, ter em mãos, enfim, a obra autêntica do sábio de Téos” (Aulotte, 1958, p.107). Ronsard, “queimando os deuses que havia adorado”, cede primeiro à sedução do novo gênero ligeiro: “em menos de seis meses, ele tinha parafraseado ou imitado vinte e cinco poemas e seu entusiasmo não devia cessar tão cedo” (p.107). Conforme Aulotte, “um exemplo vindo assim de tão alto só poderia ser contagioso”. Pois na sequência entram em um verdadeiro “concurso de traduções”, Belleau, Dorat, Baïf, Tahureau, Passerat, Olivier de Magny. “Não há, então, a bem dizer, praticamente nenhum poeta contemporâneo que não aflore, mais ou menos, a veia anacreôntica ou pseudo-anacreôntica” (p.107108). 223

Mas o poetas contemporâneos da Pléiade não se contentam apenas em imitar estas peças, preocupam-se em traduzi-las. Em 1556 Belleau verte todos [os poemas do livro de Estienne] em versos franceses” (p.108). A influência dessa tradução, junto com as adaptações de Ronsard, será tão grande que se pode dizer que a imitação de Anacreonte se tornou, então, junto com a de Pertraca, “um dos fatos mais marcantes da nossa poesia no século XVI” (Aulotte, p.108). Será portanto, dentro desse horizonte em que a prática tradutória se regula pelo princípio da imitatio veterum que o fr. 31V vai ser inicialmente transposto para as línguas vernáculas. A fortuna de Anacreonte no Renascimento é bem conhecida. Mas se insistiu bem menos, diz Aulotte, sobre o fato de que o belo volume de Henri Estienne comportava, além das peças anacreônticas, quatro poemas de Alceu e dois de Safo: o Hino a Afrodite (fr.1V) e o fragmento “em torno a Selene esplêndida” (fr. 34 V). No entanto, estes dois fragmentos serão basicamente negligenciados nesse primeiro momento, com poucas exceções. Du Bellay, Baïf, La Gessée imitaram ou traduziram o primeiro, Ronsard incluiu o segundo em livro. Em janeiro de 1556, apareceu uma segunda edição do livro de Estienne: Ανακρέοντος, καὶ άλλων τινὼν: λυρικῶν ποιετῶν μέλε (Anakréontos kaì állōn tinṑ n: lyrikôn poietôn méle). Quanto aos poemas de Alceu e do pseudo-Anacreonte, o editor se limitou a retomar o texto grego da primeira edição. Mas, agora, acrescentava um terceiro poema de Safo, miraculosamente conservado pelo autor anônimo do tradado do Sublime. Essa ode, louvada e utilizada na Antiguidade, não figurava nem na Antologia Grega, nem no Florilégio de Estobeu, que podiam ser conhecidas pelo leitor renascentista. Henri Estienne reencontrou o poema muito corrompido na edição princeps de Longino, publicada por Robortello (De grandi sive sublimi orationis genere, 1554) no mesmo ano da primeira edição do seu Anacreonte. Daí porque só pôde incluir o poema na segunda edição de 1556. Mas então sua apresentação terá uma particularidade que distingue o poema do restante do livro: é o único que recebe como tradução latina uma versão já consagrada, o carmen 51 de Catulo, apenas com os últimos versos criados por Helias Andreas. Pouco antes, Baïf e Du Bellay já citavam e traduziam o poema de Catulo. Mas após a redescoberta, o poema será traduzido e recriado, diretanemente do grego, por Ronsard, Belleau, Baïf e legião. A percepção de Aulotte sobre a tendência predominante nesse primeiro momento é valiosa: se é certo, portanto, que “a presença de Safo na nossa poesia do Renascimento foi talvez mais importante do que geralmente se acredita [...] a Ode à Amada foi imitada, parafraseada e traduzida, desde sua publicação e durante muito tempo pelos maiores poetas da época e por um dos mais ilustres prosadores do século” (p.122), por outro lado, não se pode ignorar que o tradutor renascentista substitui o efeito patético do original pelo bel esprit. Nesse sentido se destaca a célebre versão francesa de Boileau, que se torna rapidamente a principal via de acesso ao livro de Pseudo-Longino na Europa Ilustrada e cuja tradução do poema de Safo terá uma longa influência na recepção moderna de Safo. A versão francesa do Traité du sublime por Boileau contém a tradução modelar do fragmento de Phaínethaí moi dentro da concepção de lírica 224

da época. Pouco mais de um século depois da publicação do poema por Estienne (1556) e do debate iniciado por Minturno (1559) com a Poética de Aristóteles sobre a ausência da poesia lírica no tratado, o poetólogo fabrica sua versão dentro de uma concepção estritamente lírica do poema, que se afirma justamente nesse período de Ronsard a Boileau, sem que ele mesmo dê grande atenção à categoria do gênero em sua L’Art poétique (1674). Como escreve Gustavo Guerrero, a classe do gênero lírico ainda vai dormir um sono de um século antes de se tornar o paradigma da revolução romântica. Recorte e proposta de leitura Pound distinguiu quatro momentos fundadores na história da poesia ocidental, marcados por uma significativa alternância de poesia vocal e escrita, assinalando as principais etapas do que ele chama de “poesia de invenção” na literatura ocidental: (1) a mélica grega, (2) a lírica latina, (3) a lírica torvadoresca medieval e (4) a lírica clássica. Esta última iniciando a “era da fioritura” (a partir de 1450) na idade moderna, quando a poesia passou a ser considerada sinônimo de “linguagem elevada e florida”, coincide com a época da Pléiade, encabeçada por Ronsard, “emasculando a língua francesa”. Até o dia em que Monsieur Stendhal notou que a “poesia” era “uma chateação dos diabos” e observou que “a poesia, com suas perucas e seus caracóis, suas pantorrilhas acolchoadas e seus chinós, seu ‘aranzel à la Luiz XIV’, era muitíssimo inferior à prosa quando se tratava de transmitir uma ideia clara dos diversos estados de nossa consciência (‘les mouvements du coeur’). E, nesse momento, a arte séria de escrever ‘passou para a prosa’” (Pound, 1976: 44). Uma boa síntese do esquema interpretativo de Pound é formulada por Eduardo Sterzi: Isto que hoje abarcamos sob a designação comum de lírica divide-se em pelo menos quatro grandes fases, numa curiosa alternância entre períodos de predomínio da oralidade e períodos de predomínio da escrita. À “lírica” grega inicial, mais propriamente dita melos ou melopoiós (sempre em conexão com a mousikè), sucede-se a lírica escrita dos alexandrinos e dos romanos. Na Idade Média, a lírica é novamente vocal-musical, até que, na Itália, com o soneto, anuncia-se aquela que podemos chamar de lírica moderna, distinguida pelo fato de ser escrita. Em alguma medida, estas quatro fases podem ser reduzidas a duas tradições concorrentes, cada uma delas compreendendo um movimento da vocalidade originária em direção à escritura tardia; Ezra Pound viu com clareza o fosso entre uma tradição e outra: “As duas grandes tradições líricas que mais nos concernem são aquela dos poetas Mélicos e aquela de Provença. Da primeira proveio praticamente toda a poesia do “mundo antigo”, da segunda praticamente toda aquela do moderno” (Sterzi: 2012, p.8).

Esses quatro momentos de ruptura na história da categoria de poesia podem ser acompanhados in loco na história das práticas de tradução e interpretação do poema 31 de Safo, a partir de três cortes privilegiados. Reorganizando as categorias de Pound em função de uma problemática diversa, proponho distinguir três camadas temporais para leitura do fr. 31 V, como um palimpsesto da categoria histórica de “poesia”: o momento mélico-lírico antigo de Safo e Catulo, o momento lírico 225

renascentista de Ronsard e Boileau e o momento crítico moderno com Augusto de Campos. Visando uma indagação do conceito meta-histórico de “poesia”, em sentido próximo ao apontado por Haroldo de Campos: “a arte da poesia, embora não tenha uma vivência função-dahistória, mas se apóie sobre um continuum meta-histórico que contemporaniza Homero e Pound, Dante e Eliot, Góngora e Mallarmé, implica a ideia de [...] metamorfose vetoriada, de transformação qualitativa” (HC, TPC, p.43), a reformulação do quadro de Pound pelo poeta concreto permite assinalar mais precisamente, em Dante e Mallarmé, os cortes abrangentes que orientam nossa leitura, ao notar que “o Un coup de Dés de Mallarmé está para a civilização industrial como a Comédia de Dante para o Medievo”: quatro anos antes da publicação do Lance de dados, ou seja, em 1883, Engels escrevia: “O fim da Idade Média feudal e o início da era capitalista moderna foram marcados por uma figura gigantesca: trata-se de um italiano, Dante, que é ao mesmo tempo o último poeta medieval e o primeiro poeta moderno. Hoje, como em 1300, uma era nova está em marcha”. E Sartre, em 1952, prefaciando uma edição das Poésies de Mallarmé: “[...] pouco antes do desenvolvimento gigantesco das técnicas, ele inventa uma técnica da poesia; no momento em que Taylor se dava conta de mobilizar os homens para dar a seu trabalho a plena eficácia, ele mobiliza a linguagem para assegurar o pleno rendimento das palavras” (1977: 152).

Um breve restrospecto será suficiente para o enquadramento necessário do itinerário proposto. Embora Catulo já seja classificado como liricus e sua poesia tenha nuances próprias da lírica latina, com predomínio da logopeia no poema escrito, Safo e Catulo contemporizam com um horizonte prédantesco, anterior à formação do paradigma do sujeito. Na história da recepção e da transmissão antiga do poema 31, nem nas versões de Safo e Catulo, nem nas paráfrases de Plutarco e outros escritores antigos, os signa amoris, sintomas da paixão (pathémata) da persona loquens expressam uma dimensão psicológica do “eu”. Eles não decifram uma intimidade, não são o veículo de uma hermenêutica de si. Como diz Hermann Fränkel, numa formulação próxima do ensaio de Auerbach sobre a cicatriz de Ulisses, tudo está no primeiro plano: “Safo não expressa sentimentos, mas informa sobre processos”. Não há nada por trás de suas palavras, os tremores que a transpassam “não são o signo de algo, isto é, do amor, senão que são o próprio amor” (Fränkel 2004:175-176). Num segundo momento, no renascimento francês, quando o poema de Safo for redescoberto junto com o Tratado do Sublime de Pseudo-Longino, particularmente nas versões de Ronsard e Boileau, paradigmáticas de uma concepção plenamente lírica, assoma a prática subjetiva da poesia moderna. Passando a colocar em primeiro plano a voz pessoal do "eu", o poema passa a se centrar no estado de alma da locutora e do sujeito amoroso na primeira e na terceira pessoa, ele/ela está “feliz”: “Hereux! Qui près de toi, pour toi seule soupire” (Boileau). De modo mais enfático em Ronsard, o “eu” assume plenamente o lugar do modelo, como terceiro expulso de cena: “Je suis un Demi-dieu” (Ronsard). Não há mais triângulo amoroso. Só duas pessoas: “eu” e “a amada”. Se o amante sofre 226

um desejo não correspondido, ele não é mais o exemplo de uma impotência (amēkhanía) ou de uma resistência (tlēmosýne) diante de uma força inelutável de éros. Também não é o sábio conselheiro que, nos versos finais, exorta o ouvinte a uma atitude modelar de “paciência na adversidade”, de “resignação corajosa” na linha de Ulisses (Od. XX), Arquíloco (fr. 13W e 128W) e Teógnis (355, 442, 445, 555, 591, 658, 696, 1029, 1162b, 1162e). O “eu” lírico está quase estendido aos pés da amada e os sinais de amor não compõem nada além do seu apelo e seu drama pessoal, em forma de enaltecimento da amada. Um tópos inesperado penetra no poema através da tradução latina de Helias Andreas para a edição de Henri Estienne (1556) que serviu de base aos poetas franceses: exanimata. O “eu” não está apenas “parecendo quase morto”, mas efetivamente quase “sem alma”. Todo um vocabulário característico desloca a ênfase para a psicologia do sujeito amoroso. Graças a uma lacuna no verso 16 no manuscrito de Robortello: phaínomai[ , o molde lírico da época deixou sua assinatura nesse espaço vazio, com um suplemento sugestivo: φαίνομαι ἄπνους, sem pneûma, como último “sintoma amoroso”, a alma (sopro vital) se esvai. Também não há mais o tom geral, exemplar, da parênese ética em Safo e Catulo. Os sinais se deslocaram do “amor” e do “olhar” para a relação entre o “corpo” e a “alma”. Boileau encerra: “mas quando não se tem mais nada, é preciso tudo arriscar” (il faut tout hasarder). O contrário de Safo: “mas tudo é suportável” (tólmaton). Ou pelo menos de Catulo: “O ócio, Catulo, te é pernicioso [..] o ócio já perdeu reis e cidades”. Pois as dualidades que fazem o poema de Safo oscilar entre a aparência e o sentido, tornam mais difícil decidir a leitura: afinal, é preciso ousar ou suportar? Ao contrário tanto de Boileau, quanto de Catulo, em Safo a parênese final não segue uma clara determinação unívoca. Finalmente, na cena atual, o poema é recriado, transcriado, intraduzido, via Safo e via Catulo, por Augusto de Campos no seu "Pseudopapyros” (Despoesia, 1994) e em “olhos noite” (Outro, 2015). Incorporando um diálogo com Pound (poema “Papyrus”, publicado em Lustra, 1916), aqui o poema não tem mais a ancoragem no sujeito, como a lírica renascentista, mas tampouco se trata de uma poesia "sem sujeito", no sentido da lírica ou mélica antiga. Senão que assume uma feição plenamente moderna, permitindo uma exploração de outro tipo de mímēsis, onde o “eu” penetra no poema para “se experimentar como outro”, na própria persona de Safo, revertida a máscara de linguagem. Tomando como fio condutor o fr. 31 V procurarei situar mais precisamente o estatuto de um poema mélico individual, a partir desses postos de observação privilegiados que são as traduções que a peça recebeu, como exemplar privilegiado não só da poesia mélica grega, mas igualmente da poesia lírica latina, renascentista e da poesia crítica moderna. De Safo a Catulo, passando por Píndaro e pelos alexandrinos, dois momentos da poesia antiga, mélica grega e lírica latina, nos quais não temos uma teoria abrangente da mímēsis poética. De Ronsard a Boileau, o poema retorna como lírica, num momento que se pode circunscrever esquematicamente como pós-Dante e pré-Baudelaire, em que a 227

própria categoria da “imitação lírica” vai ser colocada sub judice. Finalmente, de Pound a Augusto de Campos, a peça se afirma plenamente, junto com a própria “intradução”, como obra de ficção. Com essa leitura transversal do poema de Safo, a ideia é ao mesmo tempo concretizar a temporalidade das diversas concepções de sujeito e poesia de cada um dos três momentos (mélico / lírico / crítico) e fazer ressaltar, como fio comum, a categoria da mímēsis.

2.1. Colóquio amoroso 228

parece um sujeito As duas palavras iniciais, que costumam ser referidas como título do poema, destacam dois elementos importantes: o verbo phaínein e a presença do “eu” na forma do pronome dativo de primeira pessoa moi. Juntos os dois termos colocam o poema sob a perspectiva de uma “aparência” percebida por um “eu”, sugerindo para muitos leitores uma forte carga pessoal ancorada na impressão e no juízo da persona feminina. Por isso, a variante do primeiro verso, citada em Apolônio Díscolo (Pron.106 a = Safo fr.165V) a propósito do pronome woi (forma eólica de hoî), diferindo do texto de Pseudo-Longino pela inversão da 1ª para a 3ª pessoa, só pode desconcertar o leitor habituado ao modelo da lírica. Especialmente na medida que a mudança admite duas leituras:

Fr. 165 V (Ap. Dysc. Pron. 106 a) Αἰολεῖς (τὴν ‘οἷ’) σὺν τῷν Ϝ:

φαίνεταί Ϝοι κῆνος Σαπφώ.

Os eólios dizem hoî37 com um dígamma (Ϝ):

Parece para si mesmo aquele ... Parece para ela aquele ... Safo.

Alguns críticos chegaram a acreditar que esta seria a leitura correta do primeiro verso, sendo preciso corrigir o texto do manuscrito. Algumas páginas antes, entretanto, no mesmo tratado Περὶ ἀντωνυμίας (Sobre os pronomes), ao referir o demonstrativo masculino κῆνος (= ἐκεῖνος, “aquele”), presente no mesmo verso, Apolônio cita na íntegra o texto idêntico ao de Longino e à paráfrase de Catulo (ille mi... videtur) para exemplificar novamente o dialeto eólio (Pron.75 a = Safo fr. 31.1 V): φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν ἔμμεν' ὤνηρ Parece-me, aquele, semelhante dos deuses ser o homem

“Ϝοι” (woi) forma eólica de “οἷ” (hoî), pron. refl. de 3ª pess. dativo masc. e fem.: “para ele (mesmo)”, “para ela (mesma)”, “para si (mesmo/a)”. A presença do dígamma no pronome de terceira pessoa em eólio é uma das raras exceções registradas por Edgar Lobel e segundo a tese de Milman Parry, a presença da letra obsoleta não significa que fosse ouvida. O remanescente de uma dicção arcaica poderia atestar apenas uma letra muda, escrita ou lida, mas não pronunciada. 37

229

Gallavotti (1947) introduziu a leitura phaínetaí woi em sua edição38, justificando-a com a suposição de que o demonstrativo tó, “isso”, na linha 5, faria referência a toda a declaração anterior, não apenas aos verbos da cláusula subordinada (“falando” e “rindo”), mas particularmente a phaínetaí na oração principal. Mas a emenda está longe de ser verossímil. Dela resultaria que o “eu” sente o coração estremecer porque “ele/ela parece a si mesmo/a...”. Ainda que se mantivesse a leitura phaínetaí moi, como C. Del Grande (1959) e G. Wills (1967, p.183), a equação seria insustentável: “o fato do homem sentado ali parecer para mim semelhante aos deuses me atordoa...”. Como adverte Marcovich, “é altamente improvável que Safo seja atordoada por sua própria declaração” (1972: 2425). Em defesa da opinião comum de que phaínetaí woi seja proveniente de outra ode, Privitera lembra que Safo não desdenhava repetir-se, usando fórmulas semelhantes em mais de um poema, como já havia notado Max von Treu (cf.1969a: 38), e que a presença do verso com pronome de primeira pessoa (moi) em Longino, Catulo e no próprio Apolônio seria suficiente para invalidar a tese de Gallavotti. Por outro lado, a citação das duas formas no mesmo tratado não permite decidir qual seria a origem da segunda expressão: uma variante do mesmo poema, como supõe Adrados (1980: 380)? Um poema diverso que apenas utiliza fórmula semelhante, invertida, como propõe Privitera? Seja como for, o mais provável é que o fr. 165 V coloque problemas relativamente independentes, sem afetar diretamente a leitura do fr. 31 V. Mas, como veremos, a existência de um duplo, admitindo duas leituras, é altamente significativa para a compreensão do poema, se não for motivada ou prevista pela própria composição deste. Em data mais recente, mantendo a ideia de que a variante pertença a outra canção, Gregory Nagy propõe aproximar ambos os fragmentos como exemplares de “canções de casamento”. Traduzindo a versão de Apolônio com a terceira pessoa do feminino, “parece a ela aquele”, Nagy sugere que o verso poderia ter a noiva ou a própria Afrodite como sujeito da enunciação (2007: 290). Mas além de se apoiar apenas na hipótese do autor sobre o caráter “ritual-performativo” da mímēsis na poesia arcaica, sua proposta depende de uma controversa interpretação do fr.31V por Wilamowitz e Snell. Contra essa abordagem, William Race objetou que “a despeito do esforço de B. Snell para ler o verso em consonância com sua teoria do poema como um epitalâmio”, há pouco espaço de dúvida sobre o que essas palavras podem significar: “a ênfase está na aparência, na conjectura. Safo não está estabelecendo um fato; ela está dando uma impressão” (p.94). Em sua leitura da sentença inicial como um makarismós,39 Snell havia proposto que phaínetaí no primeiro verso não deveria ter o sentido de

38 39

Solução compartilhada por Voss, Bekker e Ahrens. Exaltação, celebração, ação de elogiar proclamando alguém mákairos, “bem-aventurado”.

230

“parecer”, mas de “mostrar, revelar”. Para Race, o próprio fato da aparência do homem “semelhante a um deus” estar subordinada esse “ponto de vista”, como um juízo da locutora, argumentaria contra a visão postulada pelo crítico alemão (Race, p.94). A correção tem a seu favor a restituição do verso 16 com descoberta do papiro florentino (1965), que segundo G. Lanata seria suficiente para eliminar a hipótese do verbo com sentido de “é revelado”. Mas ao relacionar a ênfase na aparência com a forte afirmação de um “ponto de vista” individual, Race não dá razão a Snell sob outro ângulo? Ao contrário de “estabelecer um fato” a locutora estaria formulando apenas um juízo individual. A dúvida enunciada nos conduz a uma divergência maior que divide os especialistas. Enquanto uma forte linha interpretativa, representada por B. Snell (1953) e W. R. Johnson (1983), vê em Safo e no poema 31 V em particular um “registro de nascimento do eu lírico”, outros críticos, mais recentemente, como P. A. Miller (1994) e M. Williamson (1995), enfatizam a emergência de um “eu” comunal e a construção de uma voz coletiva na poesia de Safo, com ênfase em sua função pública,40 como notou Yopie Prins (1999: 31). Embora a autora não se detenha na oposição, ambas as linhas de interpretação colocam dificuldades semelhantes: que função social poderia ser atribuída ao fr.31V uma vez que não sabemos nada a respeito de sua ocasião de performance? Como relacionar o “eu” do poema com a pessoa histórica de Safo uma vez que as informações pseudo-biográficas sobre a poeta derivam circularmente dos próprios poemas? As duas leituras esbarram, assim, no mesmo obstáculo: como não há nenhum traço no poema 31 V que sugira o contexto de uma celebração de casamento ou qualquer outro claramente relacionado a uma função educativa ou iniciática-ritual (de cunho cívico-religioso ou “político”, de transmissão de valores da pólis), não há, tampouco, rigorosamente falando, um “eu” textualmente formulado capaz de “dramatizar a emergência individual da subjetividade”, pois “se olharmos para os pronomes de primeira pessoa em uma reconstrução do fragmento grego, é difícil identificar Safo, mesmo gramaticalmente” (p.30). Com efeito, do ponto de vista gramatical, a primeira pessoa aparece apenas obliquamente no fr. 31 V: como objeto indireto (dativo moi nas linhas 1, 5 e 13), em seguida como objeto direto (acusativo me na linha 7 e no objeto implícito de ágrei na linha 14) e, finalmente, em forma reflexiva (dativo ém' aútai na linha 16), mas nunca na posição gramatical “forte” de sujeito, o nominativo egṓ . Somos informados que se trata de uma locutora feminina apenas nas linhas finais da quarta estrofe, pelas marcas de gênero em dois adjetivos do verso 14, “toda” (paîsan) e “mais verde que” (khlōrotéra), e no pronome “mes[ma” (aút[ai, v.16), dependendo de um suplemento de editor. Em todo o poema, a locutora ocupa no máximo o lugar de um sujeito elíptico ou oblíquo (desinencial) em quatro verbos: “vejo” (ídō, v.7), “nada vejo” (oudèn órēmmi, v.11), “sou/estou” (émmi, v.15) e “pareço” (phaínomai, v.16). Como é comum na poesia grega arcaica, as marcas de sujeito são 40

Sobre essa segunda linha de interpretação, Prins remete aos trabalhos de P. A. Miller, Lyric texts & lyric consciousness, 1994 e M. Williamson, Sappho's immortal daughters,1995.

231

suficientemente representadas pelas desinências (ptṓseis) das palavras. Dispondo em um diagrama essas marcas do falante (gênero, número, pessoa e função de sujeito e objeto), teríamos o seguinte quadro das posições do “eu” ao longo do poema:

§

sujeito oblíquo

objeto

I

(ele parece) para mim [O.I. dat. moi]

II

(isso atordoa)-me [O.I. dat. moi] (eu) olho para ti ésídō

III

adjetivo feminino

(não) me (é possível falar) [O.D. acus. me]

(eu) nada vejo oudèn órēmm(i)

IV

(água escorre) de mim [O.I. dat. moi] (tremor toma)-me [O.D. implícito sc. acus. ] (eu) estou / sou émmi (eu) pareço morrer tethnákēn d’ olígō ’pideúēs phaínom’ ém’ aút[ai

toda [O.D. acus. paîsan] mais verde que [Pred. Suj. nom. khlōrotéra]

(pareço) para mim [O.I. dat. emoí]

mesma [O.I. dat. aútai]

Depois de uma presença maior na segunda estrofe, na quarta o “eu” se manifesta de modo enfático e somente no último verso do quadro central a locutora aparece em todas as posições ao mesmo tempo: como sujeito, objeto e marcada pelo gênero feminino na primeira pessoa do singular. A implicação interessante, diz Prins, é que “no fragmento 31 o nascimento de um sujeito lírico parece coincidir com o momento de sua morte” (p.29). Cabe notar que as marcas de enuciação do “eu” no poema informam um sistema de referências dobradas, introduzidas sempre em pares: primeiro e último dativos (vv.1 e 16) ligados pelo verbo phaínein; dativo e acusativo da segunda estrofe (“atordoa em mim”, v. 5 e “não me é possível falar”, v.7) em paralelo com o dativo e acusativo implícito da quarta estrofe (“escorre de mim”, v.13 e “tremor [me] toma”, v.14); verbos “ver” da segunda e da terceira estrofe, sobre a mesma raiz de horáō (vv.7 e 11); dois adjetivos femininos na quarta estrofe (v.14); dois verbos “ser/estar” (v.15) e “parecer” na quarta estrofe (v.16) em paralelo 232

com os mesmos verbos na terceira pessoa (v.1-2). Note-se, por fim, que “sou/estou” (émmi) está virtualmente contido em “vejo” (órēmmi), estabelecendo uma fina sintonia de som e sentido entre todos os verbos da primeira pessoa. Essa distribuição das peças e dos papeis conta a favor de moi no primeiro verso, sublinhado pelo paralelismo dos pronomes ao longo do poema. Mas destaca, em contrapartida, a ausência do “eu” na terceira estrofe, com uma dificuldade particular para o tradutor: entre a impessoalidade da cena e a pressão gramatical para inserir pronomes inexistentes no texto grego (minha língua, minha pele, meus olhos, meus ouvidos), costuma-se reforçar a aparência de um “eu lírico” como eixo de gravidade do poema. Mas ao fazê-lo, além de quebrar a delicada simetria de termos paralelos, perdese a estranheza causada pela exterioridade formulação. Em linguagem tipicamente moderna, Prins fala, aqui, ao contrário, num efeito de descentramento do eu: a língua se quebra / é quebrada, um fogo corre sob a pele, os ouvidos zumbem, suor escorre, um tremor se apodera – “essas construções estranhamente impessoais apresentam 'Safo' antes como objeto que como sujeito das sensações corporais” (Prins, p.31). A locutora converte os órgãos e os próprios efeitos (língua, fogo, ouvidos, água, tremor) em sujeitos na terceira pessoa, assumidos como agentes verbais nos versos 9-15. Na verdade, o “eu” só aparece uma vez em toda a terceira estrofe, no verbo privativo “nada vejo”, justamente como sujeito de uma impossibilidade de agir, remetendo à noção cara à poesia grega arcaica de amēkhanía (impotência). Por sua vez, enfatizada pelo paralelo com a impossibilidade de “nada falar” (phṓnēs' oudèn, v.7-8 / oudèn órēmm', v.11) no final da estrofe anterior, que introduz o primeiro termo da lista dos pathémata com um verbo impessoal, eíkei, “(não) é possível”. Tudo se passa como se a perspectiva tivesse mudado subitamente e a locutora passasse a se olhar de fora, observando os sintomas em um outro. Esse efeito de ekstásis ou “saída de si” foi percebido pelos leitores antigos, como mostra o destaque dado no comentário de Longino: oὐ θαυμάζεις, ὡς, ὑπὸ τὸ αὐτὸ τὴν ψυχὴν τὸ σῶμα τὰς ἀκοὰς τὴν γλῶσσαν τὰς ὄψεις τὴν χρόαν, πάνθ' ὡς ἀλλότρια διοιχόμενα ἐπιζητεῖ não admiras como, no mesmo momento, ela procura a alma, o corpo, a audição, a língua, a visão, a pele, como se tudo isso não lhe pertencesse e fugisse dela? (de Subl. X.3, grifo meu)

Em contraste com a impessoalidade dos signa amoris, as marcas propriamente verbais da 1ª pessoa, assinalando os termos fortes que pontuam cada estrofe, informam, portanto, um sistema de paralelismos repetido ao longo de todo o poema, que se inverte apenas no primeiro verso: I II III IV

phaínetaí / émmen(ai) ído oudèn óremm(i) émmi / phaínom(ai)

[ele] parece ser (semelhante aos deuses) [eu] vejo (a ti) [eu] nada vejo [eu] sou /estou , [eu] pareço (perto de morrer)

233

Fornecendo uma espécie de “moldura” para o bloco central do fragmento, a partir do esquema de composição em anel (ring-form),41 a repetição do verbo phaínein nos versos 1 (“parece”, phaínetaí) e 16 (“pareço”, phaínomai), como nota Ragusa, relativiza toda a cena, demarcando, de saída, um nítido distanciamento entre experiência erótica e sua representação poética (2013, p.111). O que supõe esse duplo phaínein senão que essa moldura funciona como um análogo da fórmula “como se”? Embora a noção de “ficção” não tivesse equivalente na época de Safo, é significativo que a cláusula se explicite no comentário de Ps.-Longino, pela reiteração do advérbio ὤς (“como”), formando com dioikhómena, a locução hṓs + particípio: “como se”, sobretudo tendo em vista o fato do Tratado do Sublime ser um dos primeiros exemplos de uso de plásma como “estilo” e resultado de um “trabalho de composição” (sýnthesis) que a redação tardia aproxima do horizonte conceitual de plásma como “ficção”, podendo designar o gênero do romance grego. Construído sobre a mesma raiz de pháos (“luz”) e phaeinós (“claro, luminoso”), o termo central do fragmento nos introduz diretamente no âmbito de uma visão luminosa. Como escreve J. B. Fontes, “na abertura do poema, o recitante vê o outro na pura claridade”, o que poderia ser exposto numa paráfrase etimológica: “(ele) surge na luz, diante de mim, como...” (p.189-190). Tendo por base o indo-europeu *bh(e)ǝ2-, que significa “brilhar, iluminar”, mas também “explicar, falar” com clareza, o verbo phaínein reúne ambos os sentidos de “fazer brilhar, iluminar” e “tornar visível, fazer aparecer claramente na luz”. Com uma peculiariadade: no caso da voz média, utilizada aqui, que supõe a inclusão do sujeito no próprio processo verbal, significa particularmente “mostrar-se como”, “aparecer como”, contendo a ideia de “parecer” por oposição a “ser”. Comentando essa enfática oposição entre “ser” (émmenai, v.2; émmi, v.15) e “parecer” (phaínetaí, v.1; phaínomai, v.16) que marca a abertura e o fechamento do poema tal como chegou até nós, Mary Lefkowitz destaca, então, o elemento obscurecido pela leitura de Snell: o senso de ilusão que ela cria na abertura “ele parece” e seu eco “eu pareço para mim mesma” na quarta estrofe é uma das primeiras expressões do que vai se tornar mais tarde uma das preocupações primordiais da poesia e da filosofia: os efeitos da imaginação. A deliberada generalidade do poema, a ausência de nomes próprios e específicas referências a tempo e espaço, indicam que o poema não pretende trazer à mente nenhuma ocasião ou lugar particular (1973: 122).

Sublinhando o papel preponderante assumido pelo “como se” da fantasia, ligada ao verbotítulo pela mesma raiz luminosa, a analista estabelece uma aproximação entre as dimensões do “geral” (kathólou), da “imaginação” (phantasía) e da “aparência” (phaineîn) que oferece uma primeira base para a abordagem do poema como obra da mímēsis. Mas, por enquanto, trata-se apenas de um elo distante, que devemos reter até que a interpretação do fragmento nos permita indagar o estatuto do poema mélico em Safo. 41

Utilizado por Safo igualmente nos frs. 1 V e 16 V.

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semelhante aos deuses Em sua versão francesa do Traité du sublime (1674), Boileau recriou o início do poema 31 V com as célebres palavras: Heureux! qui prés de toi, pour toi seule soûpire, “Ditoso! que a teu lado, só por ti suspira”. Há (entre outras) duas coisas a serem notadas aqui. Primeiro, o enfático phaínetaí moi de Safo foi inteiramente apagado, e o que é colocado em primeiro plano é o estado da mente do homem. Para Boileau, e dúzias de tradutores depois dele, ísos théoisin descreve a emoção de “aquele homem”: ele está feliz. Para a maior parte, aquela permaneceu a glosa padrão (Race, p.95).

Que ísos théoisin implica o sentido de “afortunado, feliz ou privilegiado como os deuses” é uma crença tão antiga que Marcovich chega a sugerir que remonta até Catulo (carmen 51), em vista do contraste entre ille... par esse deo (v.1) e misero... mihi (v.5). Embora a hipótese tenha sido negada por W. Kroll (1929) em sua edição do poeta latino (p.20), no comentário erudito de Turyn publicado no mesmo ano (Studia sapphica), o modelo lírico de Boileau ainda era adotado: Beatus deorum instar ille vir mihi videtur esse, “Bem-aventurado este que me parece ser como um deus”, com ênfase em beatus (“cumulado de bens”). O primeiro a contestar a presunção de que o epíteto formular épico ísos théoisin pudesse ter esse sentido foi F. G. Welcker (1816), que propôs em seu lugar “forte como um deus” ou “semelhante aos deuses em poder”. Mas sua voz, teria sido, a princípio, “tímida e ineficaz” (Marcovich p.20) e a sugestão ficou relegada a uma Nachtleben, levando uma “vida noturna” até que fosse resgatada por Wilamowitz (1913), que a endossou e desenvolveu por conta própria a sugestão de que o homem poderia ser um noivo no dia de seu casamento (bridegroom), combinando o sentido de Götterkraft com sua teoria do poema como um epitalâmio (Race, p.95). Desde que C. F. Neue (1827) saiu em defesa da glosa padrão, “por anos os estudiosos aderiram ou à interpretação de Welcker ou à de Neue” (Privitera, p.47). A objeção mais frequente seria um argumento cumulativo e quase canônico contra sua interpretação de ísos théoisin. Alguns diziam que a expressão não precisa significar necessariamente “semelhante aos deuses em força”, a maioria, que ele não pode (Wills, p.174). Esta última posição se formou em três etapas principais, sendo estabelecida por Neue e reforçada sucessivamente por F. Dornseiff (1930) e Snell (1931), consolidando-se, mais uma vez, como a leitura corrente.42 Embora a tese de Welcker tenha sido severamente criticada desde cedo, a objeção decisiva foi formulada por Snell, que adotou a teoria do casamento de Wilamowitz e se esforçou para demonstrar em bases formais que o poema seria uma epitalâmio. Invertendo seu ponto de partida, Snell equaciona 42

Compartilhada, entre outros, por Perrota (1935), Setti (1939), Lobel e Page (1955), Jachmann (1964), G. Bonelli (1977) e M. West (1993).

235

a expressão ísos théoisin com eudaímon, “feliz” e mákairos, “bem-aventurado” (Race, p.94-95), defendendo que (a) a frase não poderia referir nada mais específico do que uma “bem-aventurança olímpica”; que (b) phaínetaí não poderia significar “parece (ser forte como um deus)”, mas deveria ser entendido como “é revelado (visivelmente desfrutando a alegria de um deus ao lado de sua noiva)”; (c) que o contexto não é heroico mas epitalâmico, desde que um eikázdein-tópos é regular no makarismós endereçado ao noivo, como se atesta em outros fragmentos de Safo; (d) o que seria particularmente confirmado pela expressão equivalente, íkeloi théois e theoeikélois, usada no fr. 44V a propósito da felicidade de Heitor e Andrômaca, em que Safo narra a cena de seu casamento (Wills, p.177-178). Quando Garry Wills (1967) se propôs reavaliar a tese de Welcker, que considerou “uma das mais engenhosas” leituras do poema (p.171), esta ainda era dominantemente rejeitada (p.173). Wills começa por observar que maioria das objeções levantadas se endereçava menos à tese original que “à bordadura (embroiderings) que Wilamowitz teceu em volta dela” (p.173). Não tocando o ponto central da interpretação de Welcker, sua visão poderia ser mantida mesmo se se objeta sua motivação moral, “que para ele envolvia a demonstração de que o homem no poema não é um rival” (Wills, p.174). Na década de 60, a leitura do epíteto como “afortunado” era compartilhada tanto pelos que acreditavam que o poema era um epitalâmio, quanto pelos que defendiam o motivo do ciúme como chave de compreensão da cena à três. Wills foi, então, o primeiro a investigar em detalhe, depois de Welcker, os testemunhos para o sentido de ísos théoisin. Embora procure mostrar o acerto do filólogo oitocentista em sustentar a proveniência épica da expressão como Götterkraft, o próprio Wills opta pelo termo mais vago “heroico” (Race, p.95). Das inúmeras vantagens que a retificação de Welcker oferece, o autor destacava que (1) ela oferece uma base para “as transições do particular para o geral” que se processam dentro do poema: ressalta que “aquele homem (kênos) é apenas o exemplo do que revela o poder de qualquer um […] que seja capaz de sentar perto da menina”, assim como “aquele ato […] poderia atordoar Safo, desde que toda vez que ela olha para a menina, uma reação em cadeia de sintomas quase a destrói” (p.172-173). Em seguida, (2) sua interpretação ainda não seria pressionada pelos polos do debate posterior em torno do ciúme ou do epitalâmio: “ao contrário de Snell, ele entende que o homem permanece importante ao longo de todo o poema, que ele não é gradativamente eliminado […] ao contrário de Page, ele nega que o único papel proeminente que o homem possa desempenhar seja o de um rival” (Wills, p.173). Asim, a defesa teria liberado a tese de Welcker “com argumentos bastante convincentes”, segundo Privitera (1969 b: 47), repropondo-a integralmente. Sua adoção quase imediata por Miroslav Marcovich (1972), no artigo que W. Race considerou “o artigo mais importante escrito sobre este poema” (1983: 94), garantiu que fosse recolocada em circulação. Em sua argumentação contra o 236

pressuposto de Page de que o homem é chamado “semelhante aos deuses” porque é “afortunado como um deus” e seria assim considerado por Safo na medida que é favorecido pela atenção da jovem (p.21), Marcovich recorda as teses de Welcker e Wills a fim de demonstrar que o sentido “heroico” é não apenas mais verossímil, mas seria suportado pelo seguinte raciocínio: desde que a leitura permite lançar uma nova luz sobre a oposição entre os versos 1 e 16, como já haviam percebido Wilamowitz e Bowra, ela evidencia um contraste intencional entre “parece-me ele...” e “...pareço eu mesma” implicando que “quase morta” no verso 15 deve estar em simetria com “quase um deus” no verso 1, e o contrário de “morrer” só poderia ser “sobreviver”, prerrogativa divina daqueles que eram chamados athánatoi (imortais). “Enquanto Safo está sendo levada pela aparência irresistível da menina quase à beira da morte, o homem prova ser forte o bastante para sobreviver, suportando o charme e a fala da menina” (Marcovich , p.23-24). Uma vez que ele é capaz de permanecer sentado e escutando, enquanto a locutora se mostra incapaz de manter a compostura, sendo derrubada por um breve lance de olhos, não haveria outra explicação para essa diferença senão que “aquele homem deve possuir uma força sobrehumana” (p.24). Mas a análise mais lúcida da complexa trama de teses e contra-teses em torno do epíteto épico encontra-se no rigoroso balanço de William Race (1983). “Tornou-se traço padrão na interpretação desse poema que se deveria escolher entre dois sentidos, 'feliz' ou 'forte', dos quais resultam leituras muito diferentes” (Race, p.95). Em primeiro lugar, diz Race, essa é uma falsa dicotomia. “Muitas interpretações possíveis resultam se se considera o homem 'feliz' porque ele está em uma posição 'privilegiada', enquanto Safo (ciumenta ou não), está 'miserável'” (p.95). É muito improvável que a frase ísos théoisin possa significar “feliz” neste poema, a menos que Safo seja a única a tê-lo usado com esse sentido antes (no mais cedo) do século quarto. Pode ser impossível determinar com alguma acuidade o que exatamente a frase ísos théoisin significa, mas é improvável que signifique “bem-aventurado” (mákairos), “afortunado” (ólbios) ou “feliz” (eudaímon), ou que descreva os sentimentos internos [inner feelings] de alguém (particularmente emoções de amor) (p.96, grifo meu)

Por um lado, não se encontra “nenhum exemplo dentro de dois séculos a partir de Safo em que tal significado seja claramente indicado para ísos théoisin e suas expressões cognatas43 […] uma revisão dos usos homéricos e tardios mostra uma grande quantidade de sentidos, mas 'feliz' não é um deles” (p.96). Por outro lado, uma vez que também há numerosas passagens onde o sentido certamente não é “forte”, “a mais segura generalização parece ser que ísos théoisin (em suas várias formas) indica simplesmente uma qualidade sobre-humana e que o contexto especifica o aspecto” –

43

Vale acrescentar um detalhe que passa desapercebido pelo ensaio de Race: embora a expressão ísan theoisin apareça no feminino no fr. 68 (a) V em possível correlação com máka[ir]a, também no feminino, os termos estão separados por quatro versos e o estado do fragmento é muito precário para estabelecer a relação sintática entre eles. Mas a possibilidade de uma conexão direta não pode ser descartada na própria poesia de Safo.

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“força”, “aparência”, “voz”, “honra”, “pensamento” ou “intenção”, “respeito” ou mesmo “crescimento”, “em muitos casos o epíteto é apenas um vago título honorífico” (p.95). Retificando a tese de Welcker, Race destaca, enfim, sua vantagem mais saliente: no sentido genérico de Götterkraft, ser “semelhante aos deuses” significaria apenas “exibir algum atributo sobrehumano, e não possuir um estado interior ou sentimentos de alegria. Não há simplesmente nenhum exemplo antes ou longo tempo após Safo em que ísos théoisin seja equivalente a eudaímon” (p.9697). Tanto a aparência hiperbólica do homem, quanto “a doçura e o charme na voz e no riso da garota estão igualmente no juízo de Safo [...] não há nenhuma necessidade de concluir que 'aquele homem' os experimente de modo semelhante” (Race, p.93, grifo meu). Portanto, o epíteto não descreve nenhum sentimento interno do homem, mas apenas como se manifesta para um outro, precisamente em sua “aparência exterior”. Mas isso não equivaleria a apenas mudar o problema de lugar, transferindo o estado interior de “aquele homem” para a impressão pessoal da locutora? Não é o que propõe Race, ao menos propositalmente. Uma vez que “o sentido concreto de ísos théoisin deve emergir da interpretação do poema,” (Race, p.97), a expressão receberia seu sentido a partir do contraste entre a aparência do homem e a da própria locutora. Nessa dualidade o “homem” passaria a funcionar como uma “figura de contraste”, permitindo realçar a diferença entre as reações de “eu” e “ele” diante da mesma situação. A oposição significativa seria, dessa forma, como bem viu Marcovich, entre “estar sentado diante, escutando” (com óttis na linha 2 implicando uma generalização: “quem quer que seja”), de um lado, e não ser capaz de suportar a visão da amada um instante apenas (com tó na linha 5 introduzindo uma regra iterativa, referindo o antecedente imediato, “riso desejável”). Numa palavra, enquanto a leitura de ísos théoisin como “afortunado” (de Boileau a Snell e Page) pressupunha uma noção meta-histórica de sujeito, na tese mais recente, de ísos théoisin como “forte” (Welcker), “heroico” (Wills, Marcovich) ou referindo uma genérica “qualidade sobrehumana” especificada pelo contexto em contraste com a reação do “eu” (Race), a expressão aparece como uma técnica regular dentro de um tópos amatório impessoal, identificando-se com uma hipérbole retórica. Reduzindo o homem a mera figura do discurso, sequer seria correto falar-se em triângulo na cena: ele ocupa apenas um lugar vazio. Mas a retificação carrega um equívoco. Desde logo, em que o encômio mélico diferiria de uma peça de aúxesis (amplificação retórica), como precursora do gênero epidítico? Por isso, antes de passar adiante, procuremos ampliar o aparato de leitura. Além da fonte de transmissão do Tratado do sublime, o epíteto formular épico ísos théoisin no poema 31 V possui pelo menos mais duas fontes tardias indiretas que o citam num contexto ligeiramente modificado. A paráfrase de Luciano de Samósata (séc. II d.C.), no diálogo Amores §46, seguramente não refere nem um contexto de ciúme, nem uma cena matrimonial. Embora não seja 238

citada por Race, nela também parece se confirmar sua tese sobre o papel de figura de contraste e a ausência de um triângulo particularizado: τίς οὐκ ἂν ἐραστὴς ἐφήβου γένοιτο τοιούτου; τίνι δ’ οὕτω τυφλαὶ μὲν αἱ τῶν ὀμμάτων βολαί, πηροὶ δὲ οἱ τῆς διανοίας λογισμοί; πῶς δ’ οὐκ ἂν ἀγαπήσαι τὸν ἐν παλαίστραις μὲν Ἑρμῆν, Ἀπόλλωνα δὲ ἐν λύραις, ἱππαστὴν δὲ ὡς Κάστορα, θείας δὲ ἀρετὰς διὰ θνητοῦ διώκοντα σώματος; ἀλλ’ ἐμοὶ μέν, δαίμονες οὐράνιοι, βίος εἴη διηνεκὴς οὗτος, ἀπαντικρὺ τοῦ φίλου καθέζεσθαι καὶ πλησίον ἡδὺ λαλοῦντος ἀκούειν [...] Quem não se tornaria amante de um tal efebo? Quem seria cego a esse ponto? Quem teria um tão fraco poder de raciocínio? Como não amaria esse outro Hermes nas palestras, esse outro Apolo como tocador de lira, esse outro Castor como cavaleiro, esse jovem que, com corpo mortal, persegue as virtudes divinas? Pela minha parte, ó deuses celestes, oxalá a minha vida fosse continuamente esta: estar sentado em frente de um tal amigo e escutar de perto a sua doce voz [...] (trad. Custódio Manguejo, 2012)

É notória a diferença quanto a Safo. Desde logo, o epíteto, aqui em paráfrase, passou a caracterizar o próprio amado e não a figura de contraste: esse efebo é triplamente “semelhante aos deuses” (Apolo, Hermes, Castor) precisamente porque é desejável. Não obstante, a configuração da cena permanece simétrica. A presença do tópos apontado por Race também evoca um “outro” impessoal (“quem não o amaria?”) como realçador (foil); apenas, esse contraste não se esgota na amplificação retórica do encômio feito pelo eu, senão que introduz um modelo na forma de uma regra vertical: quem não desejaria (como eu) “estar sentado em frente de um tal amigo e escutar de perto a sua doce voz?”. Mas seria apressado concluir que a “regra” seja determinada pela preferência do eu em contraposição aos outros. Pelo contrário, a leitura impessoal da cena e da terceira figura como um modelo exemplar é ainda mais explícita no epigrama de Ruffino (séc. IV-V d.C.) que parodia o poema de Safo: AP. V. 94 Gow Ὄµµατ' ἔχεις Ἥρης, Μελίτη, τὰς χεῖρας Ἀθήνης, τοὺς µαζοὺς Παφίης, τὰ σφυρὰ τῆς Θέτιδος. εὐδαίµων ὁ βλέπων σε, τρισόλβιος ὅστις ἀκούει, ἡµίθεος δ' ὁ φιλῶν, ἀθάνατος δ' ὁ γαµῶν. Tens, Melite, os olhos de Hera, as mãos de Palas Atena, os seios da deusa Páfia, os tornozelos de Tétis. E feliz é quem te vê, mais sortudo se te escuta, um semideus o que te ama, imortal se te desposa. 239

(trad. Luiz Carlos A. M. da Silva, 2011)

Embora faça conexão inequívoca com os sentidos de “feliz” (eudaímōn) e “afortunado” (ólbios) no epigrama escrito cerca de oito séculos depois de Safo, a uma distância pouco maior de Boileau, a ênfase ainda não recai sobre o “estado interior”. Também não há menção a ciúme e, apesar da referência a um casamento (gámos) possível, o contexto paródico do poema dificilmente seria epitalâmico. Assim como em Luciano, ressalta, antes, o nexo entre o símile “como um deus” e um segundo tópos ao mesmo tempo mais preciso e mais abrangente, ao lado do tópos do olhar: bemaventurado é qualquer um que desfrute da cena ideal de uma oaristýs, o colóquio amoroso, no qual, tanto se pode dizer que a amada é “semelhante a deusas” (Hera, Atena, Páfia, Tétis), quanto o sujeito indefinido de philôn, “o que” a ama, se torna comparável a um hēmithéos na medida que pode desfrutar de um éros recíproco. Mas, frisa Ruffino, esse semideus só é dito plenamente athánatos se goza de um éros consumado, ponto culminante da metáfora divina. A importância dessa restrição deve ser vista no poema de Safo. Tendo em conta esses dois paralelos tardios, não mencionados pelos intérpretes de “aquele homem” como figura de contraste, pode-se tentar uma leitura mais satisfatória do poema 31 V. Desde logo, a oposição metafórica de Safo entre “mortal” e “imortal” pode implicar, como sugerem Luciano e Ruffino, o contraste entre um amor não-correspondido, no plano da “realidade”, e a plena realização erótica, situada no plano “ideal”, apresentada na forma de uma visão. Donde decorrem duas consequências: se “aquele homem” proporciona um efeito de contraste na medida que integra uma aúxesis (amplificação) negativa, não seria correto inferir dessa função que se trata de uma mera figura vazia de retórica. Mas tampouco seria preciso expurgar o poema de uma cena triangular para objetar a teoria do ciúme. Antecipando uma hipótese que será retomada ao longo da análise: na medida em que a sitting scene aparece no prosador e nos poetas antigos como uma cena tópica do desejo, evocando a ocasião ideal de uma oaristýs, a caracterização de “aquele homem” como ísos théoisin vai além da função de contraste aparente. Situado no vértice de um triângulo imaginário, condicionado pela claúsula fictiva “parece”, esse outro está precisamente onde e como a locutora gostaria de se ver. Não há lugar para ciúme ou rivalidade: “aquele homem” aparece como um “eu ideal” apenas na medida que figura um modelo coletivo. Trata-se da encarnação viril da tlēmosýne, a que a poeta dedica a parênese gnômica do último verso.

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três leituras Antes de prosseguir na identificação dos problemas textuais que o fr. 31 V apresenta, é preciso esclarecer por que “as mesmas questões que surgiram após a publicação de Sappho und Simonides (1913) de Wilamowitz, no qual se introduziu a hipótese de que a ocasião do poema fosse um casamento, permanecem ainda bastante sub iudice”, segundo William Race, quando escreve seu artigo (1983: 92). Para Race, que discorda que o poema tenha relação com um casamento: A questão surgiu porque Wilamowitz estava preocupado com a dificuldade “histórica” de uma garota conversando livremente com qualquer homem fortuito na sociedade grega/lésbia. Por isso ele argumentou que o homem devia ser um noivo e que a ocasião seria o casamento da moça que estava deixando, agora, a tutela de Safo. Essa interpretação pode ajudar a solucionar um problema histórico, mas em compensação cria um problema literário, pois não há uma única palavra ali que sugira um casamento (Race, p.92-93, grifo meu).

A tese do noivo tornou-se moda depois de Wilamowitz. Embora a noção de que o poema seja um epitalâmio tenha sido abandonada alguns anos depois pelo próprio B. Snell, na reimpressão do artigo de 1931 em seus Gesammelte Schriften (1966), e por C. M. Bowra, na segunda edição de Greek Lyric Poetry (1961), após a refutação de Denys Page (1955) a bridegroom-theory continuou tendo seus defensores, como L. Rydbeck (1969) e J. H. Finley (1979). Vamos reencontrá-la no excelente trabalho de H. Fränkel sobre poesia e filosofia na Grécia arcaica, na análise de Paul Veyne sobre a elegia erótica romana (“o famoso fragmento, imitado por Catulo, no qual Safo descreve um amor súbito, é muito provavelmente um remanescente de um hino nupcial” apud Fontes, p.188) e mesmo nos estudos mais recentes de Gregory Nagy e Claude Calame. A maioria dos intérpretes que segue a linha proposta por Wilamowitz parte da “suposição de que Safo presidiria um thíasos ou seria tutora e mestra de meninas antes de estas contraírem o matrimônio” (Sofia Gil, p.44). Desenvolvendo a sugestão de Welcker, o helenista concluiu que apenas uma hipótese poderia se enquadrar “numa ocasião em que mulher e homem se encontrariam em tão cúmplice relação publicamente: na celebração do seu matrimônio” (p.45) e deduziu que “Safo se encontra no casamento de uma das suas alunas ou companheiras” (p.44). Desse modo, explica-se a cena triangular pelo fato de que a locutora estaria cantando “o casamento de uma das suas alunas que agora se separa dela para começar a sua vida adulta junto do seu esposo. E o seu sofrimento advém precisamente da constatação da separação concretizada na cerimônia” (p.45). Portanto, “Safo estaria presente na cerimônia pronta para honrar mais uma das suas antigas pupilas” (p.45). Dois aspectos levaram a desconsiderar a tese: o primeiro prende-se à questão da leitura biográfica (a menina como aluna de Safo, a poeta como regente de uma escola), o segundo relacionase com a figura do homem e seu papel na composição (p.47).

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A concepção de Safo como diretora de escola […] proliferou entre o século XVII (Madame Dacier [1681]) e o século XIX. Como observa Page, a sobrevivência desta teoria deve-se em grande parte a Wilamowitz, que a corrobora no sentido de desmistificar o nome de Safo e de lhe atribuir um estatuto digno e honrado. Ao considerar Safo uma figura importante na educação das donzelas de Mitilene, os seguidores desta proposta atribuem uma posição social, moral e cívica muitíssimo importante à poeta, afastando-a, por um lado, dos retratos menos dignos que dela foram sendo feitos e, por outro, atribuindo à sua obra valor não só literário como também histórico e sociológico. Todavia não existem provas, registros ou testemunhos fiáveis que corroborem satisfatoriamente esta hipótese (Gil, p.47).

Procurando “salvar” o caráter da poeta, o mais influente promotor da teoria do thiásos (círculo ritual) e da escola presididos por Safo e “grande defensor da castidade e do caráter moral da poeta e de seus seguidores” se tornou o principal responsável pela interpretação do fr. 31 V como um epitalâmio, na mesma medida que se esforçava para negar o “indiscutível erotismo de seus versos em que predomina a figura feminina”. Como adverte Ragusa, buscar provas do homoerotismo sáfico nos seus fragmentos ou tecer teorias sobre o grupo de meninas de Safo “configura-se, quase sempre, em armadilha pouco relevante à apreciação de suas canções que […] acabam ofuscadas por discussões tangenciais que acabam por torná-las provas ou contra-provas de alguma hipótese” (Ragusa, 2005: 227-229). Em objeção à estrita ortodoxia sociológica do alemão, Sofia Gil recorda uma explicação mais plausível proposta por John Addington Symonds (1920): os costumes dos eólios permitiram uma maior liberdade doméstica e social do que era comum na Grécia. Mulheres eólias não eram confinadas ao harém como as jônicas, ou subjugadas à rigorosa disciplina dos espartanos. Enquanto se misturavam livremente com a sociedade masculina, elas eram altamente educadas […] as donzelas lésbias aplicavam-se com êxito à literatura (apud Gil, p.47).

O que permitiria considerar “possível o convívio entre homens e mulheres em Lesbos sem que para tal fosse necessária uma cerimônia como um matrimônio” (p.47). Em reação contra essa tese que Wills chamou de uma explicação “de fora”, recorrendo a uma occasio ex machina (Wills, p.168), para explicar a presença do homem não a partir do poema, mas pela ocasião de performance (casamento) e pelo gênero (epitalâmio), Tsagarakis lembrou que se poderia citar “inúmeras situações, precedendo ou seguindo um casamento, nas quais um homem poderia ser visto sentado próximo de uma garota. A ocasião poderia ser um colóquio particular entre amigos próximos e familiares ou mesmo um encontro formal (engagement)” (p.99). Page simplifica: “não temos razão para supor que em Lesbos, no começo do século VI a.C., um homem não poderia sentar oposto a uma mulher e conversar com ela, quer ele a ame ou não e quer ele estivesse casando com ela ou não” (apud id., p.99). No mesmo sentido Curtis Bennett considera que “deve ter havido um raro grau de igualdade sexual e cultural em Lesbos para que Safo emergisse, florescesse e alcançasse proeminência como poeta por toda a Grécia”, pois “para tornar-se uma poeta, Safo teve de ser treinada, em expressão e 242

composição, e nós naturalmente suporíamos que tal treino era aquele de outras meninas aristocráticas de Mitilene” (apud Ragusa, 2005: 60). O que é reforçado por uma passagem da História variada (livro VII.15) do grego de Eliano (séc. II-III d.C.) que se refere ao período em que viveu Safo, durante o governo do tirano Pítaco: À época em que as pessoas de Mitilene tinham a supremacia sobre o mar, estabeleciam esta punição aos aliados que desertavam: proibiam as crianças destes de aprender a ler e a escrever e de receber uma educação musical. Eles consideravam, com efeito, que esta era a mais pesada das punições: viver na ignorância e afastado das Musas (apud 2005: 61).

Embora seja preciso colocar sob suspeita a referência a escolas antigas em fontes helenísticas tardias, sobretudo quando não se pode confiar na informação sobre o uso da escrita na época de Safo, o relato reforça a informação sobre a condição excepcional da mulher na Lesbos do séc. VII a.C. inserindo-a num contexto mais amplo. Na falta de uma plena refutação “sociológica”, entretanto, será suficiente a contestação da teoria de Wilamowitz a partir de dentro do próprio poema: Setti, Page e Jachmann entre outros, mostraram quão frívolas são as suposições de que a sociedade lésbia não permitiria conversação íntima entre sexos exceto após o casamento, que óner significaria “marido”, que as emoções expressas aqui seriam a um epitalâmio. Poderíamos acrescentar a observação de que se fosse um poema de despedida da noiva que deixa o círculo de Safo, então o iterativo ōs... ídō [“sempre que te vejo”’] anularia o propósito de Safo (Wills, p.173).

Segundo William Race, a noção de que Safo exibe um “amor ciumento”, por outro lado, já pode ser encontrada em comentários do século XVIII, como o de F. Fawkes (1789). Essa outra leitura do fr. 31 V como um “poema de ciúme” foi proposta por H. J. Heller (1856) (Marcovich, 20), que compreendeu incorretamente o homem como falando e rindo e aduziu como primeira prova de ciúme a expressão “mais verde que a erva”. Embora seu pressuposto fosse equivocado, a interpretação do ciúme foi endossada primeiro por E. Kalinka (1909), em seguida por três scholars italianos, G. Perrota (1935), W. Ferrari (1938), A. Barigazzi (1942). A par da difusão dessa segunda linha de interpretação, o argumento de Wilamowitz logo seria forte e convincentemente rejeitado por Page (1955), secundado por G. Jachmann (1964) e G. Kirkwood(1974)?44 Antes deles, A. Setti (1939-1940) havia sido o primeiro a argumentar vigorosamente contra a teoria do noivo, mas reteve a ideia de que Safo experimenta inveja pela “alegria” do homem, interpretando a frase ísos théoisin de um modo que atraiu outros críticos, como G. Bonelli (1977) (Race, p.92-93). O debate é complicado por “alguns, como Snell, pensarem quem o poema de Safo não exprime ciúme, mas o de Catulo sim; e outros, como Barigazzi e E. Bickel (1940), pensarem que o de Safo é um poema de ciúme, mas não o de Catulo” (Wills , p.170-171). À medida que se desenvolve, essa linha se ramifica numa sintomática multiplicação de leituras Compartilhada, entre outros, por A. J. Beattie (1956), A. R. Burn (1960), G. Jachmann (1964), R. Bagg (1966), F. Will (1966) e K. J. Dover (1978). 44

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conflitantes: Heller viu o amor ciumento como homossexual; Beattie o viu como heterossexual; Devereux diagnosticou a “paciente” com ataque de ansiedade; para Sinos, tudo não passa de uma fantasia autoerótica do “eu”. A convergência entre os pontos de vista do ciúme e do casamento é notória quando vemos que Snell lê o poema de Catulo como de ciúme e o de Safo como de casamento. Para Denys Page, o maior defensor da jealousy, a tese do epitalâmio deveria ser abandonada sobretudo “em nome do bom senso”, pois negar o ciúme de Safo seria “ignorar totalmente a incontestável resposta da 'natureza humana' a esse tipo de situação” (apud Fontes, p.189). Page começa por lembrar que no comentário mais antigo que nos chegou sobre o poema, feito por Longino, “não consta qualquer referência a uma celebração de casamento” (Gil, p.48) e destaca “a objetividade incomum” da poeta “em relação à extremidade de sua própria paixão; a acurada definição dos seus sintomas físicos; o raro dom de uma vívida, breve e precisa expressão” (apud p.48). Para ele não haveria artifício na linguagem de Safo, ao contrário do que ressalta Longino (cf. Johnson, 40-41; cf. Di Benedetto, p.148). Mas como o tratado do Sublime também não faz nenhuma referência ao ciúme, Page se pergunta: “se os versos quisessem descrever apenas os 'efeitos' da paixão, por que escolheriam precisamente aquele momento? Eles são uma resposta emocional à cena contemplada” (apud Fontes, p.198). se Safo quisesse descrever nada mais que os sintomas de sua paixão pela menina, que motivo ela teria para conectar esta descrição tão intimamente com a ocasião em que a menina está comprometida em uma alegre conversação com um homem? […] Safo ama a garota: e está claramente sugerindo que esta não está, ao menos neste momento, particularmente interessada nela (apud Gil, p.50).

Dizer que a poeta não sente ciúme seria, então, admitir que o homem e sua interação com a menina têm um valor meramente ornamental, já que não constituem a causa dos sintomas de Safo (Gil, p.50). Contra esse argumento, Wills e Marcovich defenderam, posteriormente, que a causa não precisa ser outra além da presença da mulher e que o homem poderia ter outra função sem se tornar supérfluo. Mas por ora, o que importa notar é que no que concerne à polêmica entre a linha de Wilamowitz e a de Page, os versos 6-16 não causam maiores discórdias. Estas se concentram particularmente na primeira estrofe e nas relações que se estabelecem, na cena inicial, entre o homem, a mulher e a locutora. Daí a solução de compromisso de T. McEvilley (1978), que argumenta a favor da teoria do noivo para a primeira estrofe, mas alega que o resto do poema seria alheio aos problemas da leitura que busca relacioná-lo a realidades sociais convencionais (Race, p.93). A aparente tensão entre as três figuras levou muitos intérpretes a se interrogarem até a exaustão sobre a figura do homem e seu papel na composição (Gil, p.49). Page procura demonstrar que a figura do homem não retrata um noivo (p.48), ao contrário do que supõe Wilamowirz, mas mantém com Snell a tradução de ísos théoisin como “afortunado”, contra a leitura de Welcker, “forte” como um deus. A fim de contestar a tese de que o epíteto formular da linguagem épica ísos théoisin seria uma 244

chave para a compreensão do texto, implicando: “considero igual dos deuses o homem que pode te admirar sem descontrole, pois se eu te vejo por um instante apenas, pouco me falta para morrer” (Fontes, p.188), o editor inglês contra-argumenta: o pensamento expresso é de que a pessoa e a condição do homem, mesmo genericamente considerado […] ou com referência a algum ponto particular […] parece ser elevada acima da média dos simples mortais. Aqui, o significado é, em termos mais gerais, “afortunado como os deuses”. Dois equívocos devem ser evitados: (i) que expressões desse tipo sejam especialmente associadas com contextos de himeneu […] (ii) que o significado aqui seja: “ele me parece ser forte como os deuses, visto que ele é capaz de olhar para você sem perder o autocontrole, enquanto eu necessariamente desfaleço até estar quase morta se eu apenas olho de relance para você” […] o senso comum rejeita, embora não possa refutar, essa espantosa interpretação do clichê (apud p.49).

Page assume a conotação mais difundida de ísos théoisin como “bem-aventurado” e rejeita que esteja associada a qualquer honra ou canto matrimonial (p.49). Mas por que o “senso comum” não pode refutar as teses de Snell e Wilamowitz, senão, porque, a identificação do homem como um rival mantém a “espantosa intepretação do clichê” que destaca seu estado interior como ponto de referência inquestionável da leitura? Lars Rydbeck (1969) põe em evidência o pressuposto comum ao criticar Page: já se observou com frequência que “a poesia lírica arcaica não dirige o olhar para dentro do eu, nem retrata a mente do poeta” (p.162). A interpretação de Page propõe, ao contrário, entender o poema 31 V como “expressando sentimentos profundos”. Em seu comentário, ele “faz uma varredura (clean sweep) da teoria do epitalâmio, baseando sua interpretação numa natural reação moderna: ciúme” (p.162). A refutação de Page à tese do epitalâmio é eficaz, sendo seguida pela maioria dos leitores. Mas a importância dada ao homem como motivo de ciúme permanece problemática e o psiquiatra vem em defesa do filólogo. Produzindo uma “evidência clínica” que propõe ler o poema como o “diário de uma paciente homossexual e não como uma peça de literatura” (Tsagarakis 1979:105), o argumento de Devereux caminha mais ou menos assim: “Alguns A's são B; nós temos um B, logo temos um A. Mas a etiologia da ansiedade (A) é tão múltipla que o fato de que homossexuais (B) a experimentem não prova nada” (1979:105). Em consequência, o artigo de Marcovich em resposta à redução ao absurdo de Devereux constitui o mais forte ataque à tese de Page. Para Marcovich, ambos partem de três suposições improváveis, e reduz sua refutação a estes pontos que seriam suficientes para demonstrar como ela é insustentável: (1) que o demonstrativo tó (“isso”) na linha 5 se refere à voz e ao riso da garota; (2) que o verbo eptóaisen (“atordoa”) na linha 6 é ingressivo e concerne a uma crise de amor (não de ciúme); que (3) ísos théoisin implica “forte como os deuses” (não “afortunado”). Ademais, como Marcovich demonstrou, a própria leitura de Page atesta que o autor teve “segundos pensamentos” sobre a causa da reação da locutora. Pois o editor só endossa a tese do ciúme no começo de sua monografia: no final, muda subitamente de opinião, referindo tó às palavras imediatamente 245

precedentes (à voz doce a ao sorriso adorável) e o pronome s(é) (“tu”) ao charme pessoal da interlocutora, interpretando o poema como concernindo ao amor de Safo pela menina (p.20). Por fim, contra a tese do ciúme pode-se usar o mesmo argumento de Page: Longino não menciona nenhum casamento, mas também não menciona ciúme. Não há nenhuma evidência no poema de nenhuma das duas “causas” (ciúme ou sofrimento pela despedida da pupila) e em nas numerosas paráfrases antigas o poema não aparece relacionado a nenhum desses contextos. Assim, “embora a ideia de que a reação de Safo inclua ciúme seja bem mais velha que a teoria do noivo, a dificuldade que ela encontra é a mesma: não há evidência no poema para a zdelotypía” (Race, p.93). H. W. Smyth já o havia observado sucintamente, citando como reforço o testemunho de Plutarco: “A ode é uma imagem (picture) patológica da paixão tumultuosa experimentada por Safo na presença de uma mulher que ela ama (tês erōménēs epiphaneísēs, Plut. Amator. 18, p.763 A). Não é uma expressão de ciúme” (1900, p.233-34). Refutando essas leituras, uma sugestão interessante proposta por Race, no entanto, poderia realocar de modo mais satisfatório a tese de Page: “eu suspeito – embora seja impossível de provar – que a influência da literatura erótica tardia, especialmente helenística e a elegia amorosa latina, seja largamente responsável pela leitura com a qual muitos críticos detectam ciúme neste poema” (p.93). Pois, como já havia apontado M. Ragone em seu Contributto alla interpretazione di Saffo, fram. 31 LP (1968), o próprio tema do ciúme erótico é marcadamente um tema helenístico. É possível que a leitura do poema ganhasse muito se a sugestão fosse desenvolvida. Que “os sintomas de Safo revelam paixão amorosa” já havia sido entendido dessa forma na Antiguidade por Longino e Plutarco e, recentemente, mesmo por D. L. Page, “o mais influente proponente moderno do [motivo do] ciúme”, como bem notou Marcovich. Também já foi observado, que “as emoções apropriadas à inveja ou ciúme seriam de ódio expresso na inventiva, mas no fr. 31 V nenhum sentimento do tipo está presente ou dirigido a 'aquele homem'” (Race, p.94). Tsagarakis também observa que sintomas físicos de emoção claramente ocorrem na poesia “lírica” e em Homero, mas “em nenhum lugar tais sintomas descrevem um ciúme erótico de qualquer tipo” (p.105). Em contrapartida, “o ciúme erótico […] não é incomum na canção folclórica grega” (p.107). Mas pretendendo dirigir o olhar para o fundo de uma tradição popular “ao qual monodistas, incluindo Safo, seriam devedores em vários aspectos”, Tsagarakis seleciona seu material do passado mais recente, considerando que haveria uma continuidade ininterrupta da cultura popular “desde o fim do mundo antigo até os dias atuais” (p.107). Mesmo aí, no entanto, Tsagarakis reforça o argumento de Race, mostrando que no cancioneiro popular grego mais recente o ciúme costuma suscitar expressões de hostilidade (p.113) e também sublinha que isto está ausente no poema 31 V. Pelo contrário, se as canções populares são instrutivas, em alguma medida, a expressão “par dos deuses” deve ser de admiração (p.109), ao passo que o competidor é sempre visto como um inimigo 246

e é notável que também não há hostilidade contra a garota (p.115). Mas diversamente da situação comum na tradição folclórica atual, “em Safo a situação é mais delicada, uma vez que envolve duas pessoas do mesmo sexo” (p.113). O que chamou a atenção de outro intérprete que se deteve no mesmo ponto. Em defesa o motivo do ciúme, Sinos sugeriu que uma latente expressão de agressividade estaria inibida pela presença do homem: Se seu papel fosse desempenhado por uma mulher em quem Safo estivesse romanticamente interessada, poderíamos justificavelmente imaginar o reverso da reação dramática da poeta na cena: sintomas de medo se tornariam sintomas de raiva, e a passividade poderia ser substituída pela agressão. Mas o papel é desempenhado por um homem, um lembrete [reminder] da ortodoxia social. Talvez fortalecido pelo costume, ele tenha perturbado a delicada balança entre mulher e mulher, exilando a observadora para as sombras com a bravura de seu modelo irreprochável e a afronte com sua mera passividade. Safo mais frequentemente exibe inventiva em relação a rivais femininos, mas aqui talvez pela única vez ela aponta seus dardos para um macho em uma situação similar (Sinos, p.28).

Como nota Sinos, se houvesse expressão de ciúme, também seria provável que se manifestasse semelhante tom de inventiva não apenas contra “aquele homem”, mas contra a interlocutora. Na falta de ambas, o intérprete precisa buscar referências irônicas indiretas ao longo do poema e sentimentos ocultos por trás dos sintomas. Assim, o zumbido nos ouvidos seria uma “repetição paródica” da voz doce da amada, a perda da visão indicaria um evento “que ela não quer ver”, do mesmo modo que a surdez trairia um desejo de não mais ouvir a manifestação de afeto da mulher por “aquele homem”. Todas essas tentativas de encontrar pensamentos profundos e sentimentos internos, no entanto, caem por terra desde que Gary Wills indicou claramente o limite das duas ramificações mais fortes nessa segunda linha de interpretação. O problema com a tese do ciúme é que ela não toma a sério a declaração geral ōs... ídō, “sempre que te vejo” (p.170), e o problema com a tese do poema de amor é que ela não é capaz de explicar a função do homem que é elogiado nas impressivas linhas iniciais (p.171). Para Wills restam duas alternativas: ísos théoisin pode significar “forte como um deus” ou ter uma conotação “heroica” se o contexto demandar – “e o contexto o faz”. Quer dizer, o homem pode sentar ali ou porque é um amante bem-sucedido (e Safo ciumenta é excluída da companhia da menina), ou ele pode sentar ali porque é capaz de suportar sua deslumbrante proximidade (e Safo não). Para Wills a segunda alternativa seria a mais correta (p.181-182). Assim, sua leitura suporta a dualidade amor / ciúme e evidencia sua íntima solidariedade. Mas ao mesmo tempo já aponta para um novo modo de focalizar o poema. Na medida que retoma a tese de Welcker para explicar as transições do particular para o geral, a fim de se opor tanto à teoria do epitalâmio, quanto à tese do ciúme, Wills antecipa a abertura de uma terceira linha interpretativa que será desenvolvida a partir do final dos anos 70. A teoria do noivo já havia sido contestada vigorosamente por Page em meados dos anos 50 e mesmo seus principais promotores a abandonam no início da década seguinte. Mas então a leitura do poema se deparou com 247

a alternativa assinalada por Tsagarakis: seus intérpretes se dividiram entre os que destacam o motivo do ciúme e os que defendem o poema de amor. Uma bifurcação que já estava presente no próprio Page, como mostrou Marcovich. Por isso, não há surpresa em notar que, no fundo, a dicotomia amor/ciúme apenas oferece outra variante para o mesmo pressuposto compartilhado por Snell. Como bem nota Tsagarakis, enquanto os antigos pensam o poema de Safo em termos de sua tékhnē, o scholar moderno tende a pensá-lo em termos de uma experiência pessoal (Tsagarakis, 1979: 118). É com Marcovich, na medida em que sua contestação de Page e Devereux põe uma pá de cal na tese da jealousy, que se abre uma nova trilha para a interpretação do poema. O que não quer dizer que as teorias do ciúme e do noivo não continuem tendo seus defensores. Nem que o pressuposto comum entre as teses rivais tenha sido abandonado de imediato pelos proponentes da terceira via. A começar pelo próprio Marcovich, como veremos. Mas não é acidental que apenas na medida que se afasta pouco a pouco da ideia de um sujeito meta-histórico o poema comece a ser pensado como obra de ficção. William Race registra com precisão a mudança de horizonte de recepção do poema: a pressão exercida por uma linha interpretativa [strain of interpretation] noticiável nos últimos anos, diz ele, parece estar no rastro correto: a leitura avançada por Marcovich e S. L. Radt, secundada por G. Kirkwood, considera que “aquele homem” tem a função de uma “figura de contraste” (contrastfigure) (Race, p.94). Nessa medida, o trabalho de Marcovich se afirma como “o artigo mais importante escrito sobre o poema” (p.94) e Race procura desenvolver sua via combinando-a com o termo cunhado por Kirkwood. Enquanto os proponentes das teorias do casamento e do ciúme, junto com os que consideram que o homem seja “afortunado”, veem um contraste entre Safo e o homem, o termo figura de contraste, é usado, aqui, para significar que “aquele homem” existe como realçador (foil) – que Safo não está intrinsecamente interessada nele e que tão logo tenha cumprido sua função como contraste ele será abandonado pelo verdadeiro ponto de interesse. Tal uso de um realçador é consoante com a prática da poesia “arcaica” em Safo (p.ex. fr. 16 V) e Píndaro (cf. E. L. Bundy [1962]) (Race, p.94).

Uma vez que “tó na linha 5 refere àquela ardilosa 'pedra de toque', a doce voz e o irresistível sorriso”, sustentar, contra Page, que não há ciúme não significa privar a introdução do homem e sua relação com a menina de significado. Simplesmente, seria preciso constatar que “não há 'triângulo amoroso' no poema: Safo usa a presença casual do homem apenas como ponto de contraste, para expressar melhor seu próprio amor profundo pela menina” (Marcovich, p.24). A fim de explicitar o modo como retifica o entendimento do poema, Marcovich formula em paráfrase o resumo da lição de Welcker recuperada por Wills: Forte como os deuses ele me parece, aquele homem que é capaz de ambos, manter-se sentado bem diante de ti e permanecer escutando, tão perto de ti, tua doce voz e teu sorriso encantador. É isso, nada mais, eu juro [i.e., sua voz e sorriso irresistíveis], que deixa meu coração palpitando no peito [desde a primeira vez que te vi]. Pois sempre que olho para ti (para sua face), seja por um momento apenas, não posso mais ter forças para falar... (e os primeiros sinais de todos os sintomas possíveis 248

de amor me dominam por completo até a beira do desfalecimento) (p.25).

A partir daí a “mensagem” do poema poderia ser “ou 'você é uma menina irresistivelmente charmosa' (i.e., a peça não passa de um instrumento de hipérbole), ou: 'eu não posso evitar estar amando você' (i.e., o poema reflete uma experiência pessoal). A segunda opção parece bem mais provável para mim” (p.25). Independente das interpretações, deve-se observar a ênfase colocada na “mensagem” do poema. Para Race, nem a estreiteza do primeiro ângulo, nem a assimilação a um modelo lírico pelo segundo parecem constituir problema, uma vez que “os que consideram o homem como figura de contraste evitam as armadilhas da teoria do casamento e do ciúme” (p.97). A premissa é satisfatória na medida que essa interpretação “põe as peças do poema juntas tão plausivelmente quanto possível […] a aparência 'sobre-humana' do homem é, pois, resultado de sua efetiva falta de qualquer emoção, em contraste com a captura apaixonada de Safo” (Race, p.98, grifo meu). Apenas restaria definir melhor a natureza exata do contraste, “para tornar o poema inteligível” (p.97). A leitura de Marcovich, entretanto, revela dois limites, claramente indicados no parágrafo anterior: a leitura biográfica, que mantém, ou a leitura retórica, que sinaliza. Esta será desenvolvida sobretudo por Lidov. Mas antes de ser retomada pelo scholar, numa perspectiva estritamente hegeliana da mímēsis como reflexo, seguindo de perto o crítico sérvio, Race propõe uma reconsideração da estrutura circular (ring-form) do poema: O que é importante notar é que em cada instância phaínomai qualifica uma sentença hiperbólica (“aquele homem me parece semelhante aos deuses”, “eu pareço estar quase morta”). Cada qualificação […] pretende atenuar a exageração e acrescentar uma nota autoconsciente, senão jocosa, ao poema. Em outras palavras, ela sabe que está exagerando [...] mas ao mesmo tempo ela se sente tão aturdida quanto declara (Race, p.95).

Combinando as duas alternativas apontadas por Marcovich, o crítico, sem perceber, tira com uma mão o que dá com a outra. Ao contestar a tese do epitalâmio, depois abandonada pelo próprio Snell, sua argumentação é eficaz contra o elemento herdado de Wilamowitz, mas tende a dar mais razão ao próprio núcleo da tese duradoura de Snell. Deslocando a ênfase para o “juízo de Safo”, reintroduz o pressuposto, igualmente mantido por Page, postulando uma noção meta-histórica de sujeito como condição da crítica que dirige contra as teorias do noivo e do ciúme. Não surpreende que, para o intérprete, a via correta já fosse anunciada por Longino: trata-se de revalidar sua leitura da peça como um “poema de amor” (Race, p.98). O que vai se cumprir por um acordo, na medida que o encômio mélico é absorvido na leitura retórica como exemplo de uma amplificação do elogio à amada. Assim, Race começa a explorar, dentro da via da “figura de contraste”, o tópos amoroso do contraste que serve de base para a hipérbole. Um expediente “impessoal”, já que os poetas arcaicos frequentemente iluminam as paixões amorosas contrastandoas com cenas tranquilas e indivíduos impassivos. Como resume sua conclusão: 249

eu quis mostrar que a abertura do fr. 31 de Safo é uma variação de um tópos amatório [...]que não há rival no poema, que não há inveja nem ciúme da parte de Safo; que o homem inominado é intencionado a permanecer anônimo, que ele está ali unicamente para prover um background contra o qual a paixão de Safo possa ser medida […] talvez nunca saberemos quem ele é, ou como está relacionado com a garota; ele não está em estado de êxtase ou de amor. Ele está ali meramente como um observador impassivo (Race, p.101).

Depois de desarmar algumas dúzias de leituras que atribuíam afetos imaginários a “aquele homem”, Race cai na própria armadilha: deriva do mesmo silêncio de Safo que o homem não expressa nenhum sentimento. Como Marcovich já havia inferido que o homem está “unimpressed”, indiferente à doçura e ao charme da mulher, recai sobre ambos a objeção de Tsagarakis: “hypakoúei [‘escuta atento’] não seria prova suficiente de seu interesse, para não falar do lugar que ele toma (certamente ninguém o forçou a sentar ali) perto da garota?” (1979: 104). Mas se é sobretudo a partir da aproximação do fr. 31 V de Safo com o fr.123 S de Píndaro que Race defende que o homem aparenta uma “resistência sobre-humana” (p.100), cabe perguntarmos: como isso seria possível? A que ele “resiste” se sua aparência resulta de sua very lack of any emotion? Com o acordo operado entre a ausência de “expressão da subjetividade” e a permanência da centralidade do “eu” na técnica da figura de contraste, Race prepara o terreno para Lidov, que assume plenamente a alternativa apontada por Marcovich: “estudiosos modernos esclareceram que o homem é uma figura retórica, um realçador (foil) como o homem hipotético no encômio de Píndaro que pode olhar para o atraente Teoxeno nos olhos e permanecer indiferente (fr.123 S)” (p.505). Lembrando que a comparação entre os poemas de Safo e Píndaro remonta a Turyn,45 para Lidov não há dúvida sobre o acerto da leitura, desde que Anne Pippin Burnett traçou a história do reconhecimento do homem como uma “hipótese” a sir Herbert W. Smyth, fazendo a tese da hipérbole retroceder até o início do século (p.505). O filólogo que rompeu com a prática comum de designar a poesia arcaica pelo termo moderno “lyric”, no título da sua edição, havia anotado em Greek Melic Poets, a propósito do caráter genérico de “aquele homem” referido pelo pronome indefinido óttis, que ele “portanto, não é um rival de Safo, mas uma criação da sua fantasia, talvez o homem que pode ganhar sua adorável estudante” (1900: 235). Embora mantendo a suposição de Wilamowitz de que a mulher seria uma aluna da “escola de Safo”, Smyth introduzia uma nota estranha na leitura do poema, defendendo o caráter imaginário da cena a três. Mas Lidov não vê dificuldade em dobrar a citação a seu favor. Opondo-se ao “teor generalizante” do poema defendido por Burnett, ele encerra o debate com uma afirmação que neutraliza por dentro a aproximação do poema como produto da mímēsis: “eu penso que isso contradiz sua correta insistência no poema como uma ficção [...] pois uma ficção é uma imitação de uma ocasião particular, não uma generalização” (p.508).

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cf. a mesma aproximação em Lanata (1966: 76) e Calame (2013: 11-12).

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aquele homem Segundo Race, a identificação de “aquele homem” no mais conhecido poema de Safo provou ser “um dos mais complexos e difíceis problemas da interpretação de sua poesia supérstite” (1983: 92). Sua importância, no entanto, não deriva de alguma dificuldade textual – o verso não está corrupto, não há lacunas ou problemas com a sintaxe – senão por conta de uma divergência hermenêutica que se impôs à própria recepção do poema, sobretudo depois que a teoria do “noivo” de Wilamowitz foi refutada por Setti (1939) e Page (1955). Pouco antes de Race dedicar seu artigo à função que “that man” poderia desempenhar no poema, Tsagarakis resumia o estado da disputa: “os intérpretes modernos do fr. 31 [...] podem ser divididos em dois grupos principais: há os que vêem kênos ṓ nēr como um rival pessoal de Safo e argúem que ela está com ciúmes do homem e os que rejeitam o ciúme e dizem que o poema expressa o amor de Safo pela menina” (1979: 97). Mas deve-se notar que a própria indecisão não é imotivada: Safo é uma autora difícil. A não ser que o estado fragmentário das suas canções nos engane, elas mostram, entre outros aspectos problemáticos, um alto grau de intrincamento no que concerne ao pronunciado uso dos pronomes, que, comparado aos padrões detectáveis nos poetas arcaicos masculinos, são mais enredados, numa série de trocas quase contrapontísticas (Yatromanolakis, 2008).

O ponto que concentra a maior divergência dos intérpretes a propósito da determinação de kênos ṓ nēr acumula, aqui, uma dificuldade gramatical retrospectiva, quanto ao sentido atribuído ao pronome relativo óttis na oração subordinada “que diante de ti senta e de perto tua doce fala escuta, e teu riso atraente” (óttis enántios... gelaísas iméroen, vv.2-5): trata-se de um pronome definido ou indefinido? Em geral, o termo é usado como indefinido (óttis = hóstis), mas também pode referir um antecedente definido, como simples relativo (óttis = hós46) (Tsagarakis 1979: 98), do que resultam leituras diametralmente opostas. Se a expressão remete a um antecedente definido, com sentido de “o qual”, kênos ṓ ner denota um indivíduo particular presente neste momento: “o homem que está sentado diante de ti”. Mas se se lê um sujeito indefinido, como seria mais provável, o verso significa não um certo homem, mas qualquer um: “quem quer que diante de ti se senta”. Embora atestado, o uso de kênos óttis como equivalente de kênos hós seria desaconselhado, nas palavras de Privitera, pela “extrema raridade da construção”. Ao passo que a segunda solução (com hóstis) seria excluída pela crase do artigo em ὤνηρ (ṓ nēr = o ánēr, “o homem”) (1969 b: 50), que indicaria uma presença bem definida. Mas ainda que seja mais verossímil, a admissão do indefinido cria uma dificuldade suplementar que não deixa de embaraçar muitos intérpretes: como se 46

Não confundir o pronome hós (com vogal breve ὅς), relativo absoluto de identidade, com a conjunção hṓ s (com vogal longa ὥς, assinalada pelo mákron na transliteração), equivalente a hóte, advérbio de tempo “quando”, no verso 7, a que nos referiremos depois.

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explica o tempo verbal de “senta” e “escuta”, “rindo” e “falando” no presente do indicativo se se admite que o pronome apresenta o homem na forma genérica de uma hipótese, como um “homem em geral”? Page cogitou três leituras possíveis para óttis (Rydbeck, 1969: 163): i) pode referir um indivíduo particular, mas também a todos que se encontrem na mesma situação: “that man is fortunate, inasmuch as he sits opposite you (and so would anyone else be who did the same)”; ii) pode referir um sujeito indefinido: “any man who sits opposite you is fortunate”; iii) ou como propõe Page, pode denotar um indivíduo particular, de identidade definida ou definível, mas cuja identificação é assunto de pouca importância no contexto (Sofia Gil p.50): “that man, whatever his name may be, who is sitting opposite you, is fortunate”. Nesse caso, o verso significaria: “aquele que está à tua frente, seja ele quem for... é como um deus”.

Com a terceira alternativa, Page propõe uma solução de compromisso. O entendimento que o editor inglês considera “mais natural” (“Aquele homem, qualquer que seja seu nome, que está sentado...”), opta de imediato pelo antecedente definido, referindo uma cena particular. Pois é precisamente a presença deste homem que tornaria impossível reduzir o poema a uma declaração de amor e excluir o elemento do ciúme. Porém, a escolha do pronome definido, de acordo com Page, é justamente aquela aceita pela tese de que o homem é um noivo (1979: 99). Daí que o uso de óttis como indefinido se explique “naturalmente” como um signo de indiferença pela identidade efetiva do suposto rival. Visto que a solução admite e combina as duas alternativas (hóstis e hós), Page pode concluir, em suma, que a passagem é inconclusiva: “não há uma chave para a escolha correta” (apud id., p.100), deixando diplomaticamente a decisão a cargo do leitor. A escolha seria a que o leitor preferir... Como bem pontua Lefkowitz: “não há nenhuma evidência no texto de que 'aquele homem' seja um marido, ou a garota uma pupila de Safo, ou que Safo dirigiu uma escola de meninas. Page […] está consciente das limitações da crítica de Wilamowitz, mas ainda retém as mesmas suposições básicas sobre o poema” (Lefkowitz, 1973: 117). Diversamente do editor inglês, para Rydbeck e Tsagarakis haveria uma chave precisa e bem determinada para o entendimento do poema, concluindo pela leitura de óttis como pronome definido (hós) relativo a um indivíduo particular. Como observam os autores, a primeira opção, é gramaticalmente improvável, mas ajuda a resolver uma estranheza semântica: se a situação fosse genérica o uso dos verbos isdánei (senta) e (h)ypakoúei (escuta) no presente do indicativo “seria inexplicável” (L. Rydbeck, 1969: 163) e, desde que kênos ṓ nēr seja um indivíduo definido, seria forçoso inferir que “a força generalizante de óttis […] confere trivialidade ao poema sem acrescentar nada vital” (p. 165). Donde se conclui que o poema deve ter sido “inspirado” por um evento particular (p.166). Mesmo porque, a leitura do indefinido, para Tsagarakis, “destroi a situação poética criada por isdánei” (1979: 99). Numa palavra, o uso habitual de óttis como 252

um indefinido precisa ser expurgado em nome do realismo da cena. Do contrário, a construção verbal atestaria uma falha de representação por inépcia (da poeta!). Retomando a objeção levantada por Rydbeck, Tsagarakis defende que a evidência para o uso de óttis = hós é mais copiosa do que se costuma presumir, e no presente contexto deve-se entender que “óttis se refere retrospectivamente a kênos ṓ nēr que está sentado […] diante da garota”. Uma leitura que seria atestada literariamente e suportada pela composição de Safo (1979: 98-99), uma vez que “a posição do homem é central; ele domina a situação poética, mesmo se […] nenhuma referência direta é feita a ele depois da primeira estrofe. O homem não é uma figura de sombra. Ele está tão vivo quanto a garota e sua presença é ainda mais efetiva” (1979, p.104). É verdade, reconhece Tsagarakis, que aqueles que enfatizam a presença do homem costumam ver nele um rival de Safo e falam de seu ciúme pela menina (p.104-5). Mas para o crítico este elemento está ausente, e, ao contrário de Page, a passagem não seria inconclusiva: desde que não há indicação de que a locutora surpreendeu os dois ou interrompeu algo, podemos seguramente inferir que a sitting scene permaneceu por algum tempo no presente e que ela foi testemunhada por mais pessoas [pois] não há uma situação imaginável na sociedade grega antiga […] envolvendo um jovem casal e outra mulher os observando, e Safo não poderia criar uma situação sem relação com a vida social. Que iria entendê-la? (1979: 102).

Portanto, é em nome da semelhança com uma cena particular, concebível numa hipotética “realidade histórica”, que Tsagarakis propõe ler o fragmento como poema de amor e chega a imaginar que haveria outras pessoas com “Safo” assistindo o colóquio entre o casal. Mas a cena seria evocada na memória, pois “a locutora feminina não poderia, é claro, se expressar na presença de outras pessoas, nem mesmo na presença do casal sozinho. Ela apenas sentiu o que é descrito no poema e declara seus sentimentos como alguém faria numa carta muito pessoal, visualizando a situação novamente” (1979: 102). No entanto, se a locutora visualiza novamente uma cena que na realidade é passada, como Tsagarakis explica o tempo presente dos verbos na cena? Por via diversa, Privitera e Dale Sinos também defendem a leitura do pronome referido a um indivíduo particular. Mas ao contrário dos intérpretes anteriores, entendem que o aspecto generalizante do indefinido atesta uma alta perícia artesanal da poeta. Para Privitera, a própria divergência em torno do pronome óttis seria uma “prova” de que ambiguidade é funcional e deliberadamente buscada pela poeta. Uma prova de fato (quid facti) decorrendo de que “as interpretações propostas se reduziram a duas: para uns seria um puro indefinido, para outros um simples relativo” (1969 b: 50). Como ambas apresentam problemas, o crítico recomenda cautela, pois a pretensão de identificar a situação com base em kênos... ṓ ner, óttis conduz a uma operação metodologicamente arriscada e aproximativa no resultado: mas nisto consiste precisamente a habilidade poética de Safo, em ter criado um organismo semântico não de todo solucionável no plano lógico (p.51). 253

No entanto, pouco adiante, o autor não hesita diante de um sentido unívoco: “kênos e ṓ nēr delimitam óttis, o quanto basta para indicar que a ocasião é uma ocasião particular” (p.55). Novamente, não há consenso quanto à cena particular. À diferença do diálogo entre o homem e a mulher, que concerne a uma ocasião particular e “real” no poema (p.55), o diálogo de Safo se apresenta como um “monólogo fictício” (p.53): não o amor tout court ou a admiração de Safo pela garota ou seu amor pelo homem ou seu ciúme em relação a ele ou a ela é o movente da ode, mas o seu amor ainda agora secreto e já infeliz porque atormentado pelo temor de que a garota não deva retribuí-lo: o amor no momento inicial da solidão (1969a: 71).

Sinos também defende que óttis atesta a habilidade poética de Safo, mas não por uma ambiguidade rapidamente erigida em virtude poética. Ao invés de uma falha de representação, o termo caracteriza justamente um “incremento de verossimilhança”: na medida que produz uma generalização progressiva (Sinos, p.26-27), integrando uma sequencia pronominal significativa, “aquele... o homem... quem quer que”, o uso do indefinido não afeta o entendimento de kênos ṓ nēr como presente numa ocasião “real” dentro do poema. Pois tendo sido introduzido pelo demonstrativo de “terceira pessoa” kênos (= ekeînos, “aquele”), que implica uma ideia de distância (“lá”), a identidade do homem, na verdade, já começaria sofrer uma primeira degradação de distinção no artigo definido “o” na linha 2 e terminaria de se dissipar no indefinido óttis (= hóstis, “quem quer que”): Embora possa ser arguído que kênos... ṓ nēr é uma expressão gramatical padrão, penso que, ainda assim, estamos justificados pela posição predicativa de kênos, bem como pela possibilidade gramatical de omissão de o, a postular que o artigo demonstra uma verdadeira força semântica e representa uma consciente e parcial ofuscação da identidade do homem. Tendo sido introduzido como “aquele homem”, ele já assumiu a identidade genérica de “um homem”, e começa a desaparecer do poema (Sinos, p.27, grifo meu).

Como bem nota Sinos, embora o artigo geralmente funcione como um particularizador, aqui é sua presença que sublinha o apagamento da identidade do homem na medida que a substitui por um simples artigo.47 Como Page, ele defende ao mesmo tempo o caráter particular de kênos ṓ nēr e a força generalizante do indefinido óttis. Mas estabelece uma conexão diferente entre os termos. Na cena de abertua, como disse Tsagarakis, o homem é, de fato, o “foco visual de atenção”, sendo referido três vezes apenas nos dois primeiros versos. Na primeira referência, pelo demonstrativo kênos (v.1), ele aparece “claramente identificado como um homem específico tomando parte em uma situação real” (p.26), embora sua atitude seja “desconhecida e incognoscível” (p.26-27). O poema sequer “fala explicitamente da calma do homem; não sabemos nada mais além de que ele está sentado diante da

47

Embora o grego não possua artigo indefinido, sendo a indefinição expressa precisamente pela ausência do artigo, aqui, a omissão do artigo não alteraria o sentido definido de ánēr.

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mulher” (Sinos, p.26). Em seguida haveria uma generalização progressiva até seu desaparecimento a partir do momento em que não precisa mais ser mencionado no poema. Nesse caso, a admissão de óttis = hóstis não converteria kênos ṓ nēr num homem qualquer. No entanto, o autor não descarta o pressuposto que acompanha o sentido particularizante da situação verbal: no nível dramático, “aquele homem” era necessário para conferir um tom de realidade corrente à cena de abertura […] Cumprida a função dramática do homem, a poeta introduz sutilmente a garota e, junto com Safo, não olhamos mais nem para o homem nem para a mulher separadamente, mas antes para os dois juntos, o casal (Sinos, p.27).

Ao passo que sua particularização inicial teria uma função “realista”, a generalização final teria por efeito realçar a figura feminina e mostrar que Safo não está particularmente interessada em sua identidade, indicando o verdadeiro centro de interesse do poema: é mais importante concentrarmo-nos na reação da poeta. “Poderia ela, nessa ocasião, ter a pretensão de manter a compostura na presença da menina, desde que ela explicitamente estabelece na linha 7 que, sempre que olha para a amada, fica perturbada?” (Sinos, p.27). Em suma, não há falha de representação desde que a mudança de cena opera um acréscimo de realismo, passando a descrever um “monólogo interior” (p.29). Melhor caminho encontramos se voltarmos à tese de Welcker para o epíteto ísos theoisin que consistia em fornecer, com o sentido de Götterkraft, um antecedente para a primeira transição do particular para o geral operada no poema pelo pronome óttis: na medida em que “aquele homem” seria “apenas o exemplo do que revela o poder de qualquer um […] que seja capaz de sentar perto da menina” (Wills, p.172). Retomada por G. Wills, essa leitura tende a prevalecer entre os intérpretes que vêem “aquele homem” como uma “figura de contraste” e ressaltam o tom generalizante da canção. Os problemas que complicam nosso entendimento da presença do homem decorrem não tanto do que é dito quanto do que Safo deixa de dizer. A cena de abertura é tão sumária que não sabemos nada sobre kênos ṓ nēr exceto que há nele algo sobre-humano e que está sentado e escutando uma garota. Safo não nos diz que ele é forte, feliz, privilegiado ou bem-aventurado; que ele é um parente, amigo ou noivo. Não sabemos se ele é jovem ou velho, se está sozinho ou em um grupo, como ele olha ou como sente. Gostaríamos de ter toda esta informação, mas não pode ser que Safo não tivesse nos falado propositalmente, porque o homem não seria de interesse intrínseco para ela (e para nós)? […] deveríamos pensar que Safo quer que ele permaneça tanto quanto possível não-descrito, para não distrair nossa atenção do que realmente importa no poema: a prolongada descrição do seu amor irresistível (Race, p.97)

Mas, assim como as soluções de Page e Sinos, tampouco a tese da foil figure, confirmando o acerto de óttis como indefinido, elimina a dificuldade da cena. Pois como as ações de kênos ṓ nēr podem estar no presente do indicativo e manter o caráter hipotético de um “homem qualquer”? Antes de enfrentar o problema tentemos concluir a situação formulada na cena de abertura. Em defesa da conclusão de que é preciso ler aqui um pronome indefinido, me parecem suficientes os paralelos com 255

o mesmo uso em outros poemas de Safo. No fr. 16 V, que apresenta inúmeros pontos de contato com o fr. 31 V, como a estrutura em anel (ring-form), a mesma técnica de contraste (foil figure) utilizada na abertura em priamel, onde a predileção “dos outros” serve de realçador do próprio elogio da locutora; o uso da correlação mèn... dè marcando o paralelismo na enumeração dos vv.1-3 (o]i mèn... oi dè... oi dè... égō dè, “uns... outros... outros... mas eu...”), semelhante ao polissídeto dos vv. 9-15 do fr. 31 V (iniciado com “allà... mèn... dè... dè...”) e a preferência por imagens metonímicas da amada, o “adoravel caminhar” e o “brilho luminoso do rosto” de Anactória (vv.17-18), equivalentes à “doce fala” e ao “riso adorável” da anônima do fr. 31 V. No mesmo fragmento, o pronome ὄττω junto com o indefinido τὶς (vv. 3-4, “o que quer que”) é empregado na célebre resposta sobre “o mais belo”: Fr. 16 V (vv.1-4) Ο]˻ἰ μὲν ἰππήων στρότον, οἰ δὲ πέσδων, οἰ δὲ νάων φαῖσ᾽ ἐπ[ὶ] γᾶν μέλαι[ν]αν ἔ]μμεναι κάλλιστον, ἔγω δὲ κῆν᾽ ὄττω τὶς ἔραται· U]ns, renque de cavalos, outros, de soldados, outros, de naus, dizem [s]er, sobr[e] a terra neg[r]a, a coisa mais bela; mas eu (digo), o que quer que se ame. (trad. Giuliana Ragusa)

Não menos significativo, o uso de ὄττιν[α (v.2, “quem quer que”) no começo fr. 26 V, cuja primeira estrofe pôde ser quase integralmente restaurada pela recente descoberta de um papiro com fragmentos inéditos de Safo em 2014, permtindo suplementar o precário P. Oxy. 1231: Fr. 26 V (vv.1-3) πῶς κε δή τις οὐ ˹θαμέω˺̣ς ἄ ̣ σαιτ̣ο Κύπρι, δέσπ̣ο̣ιν̣ ̣’, ὄ˹τ̣τ̣ιν̣ ̣˺˻α˼ [δ]ὴ̣ φι̣λ̣[είη καὶ] θέλοι μά˹λιστα π̣ά˺̣ λ̣ιν̣ ̣ κάλ̣[εσσαι; Como pode alguém não estar cego ˹novament˺e Cípris, soberana, por q˹uem quer qu˺e [verd]adeiramente am[a e] quer cha[mar] de vol˹ta acima de t˺udo?

Assim como a locutora do fr. 31 V “nada vê com os olhos ”, aqui, o “eu” é tomado por átē, a “cegueira” enviada pela divindade, e o próprio sujeito é referido por um simples indefinido tis, “alguém”, como o objeto do fr. 16V, “algo”. Assim, os dois paralelos sugerem o uso de óttis como um procedimento recorrente em Safo para introduzir uma passagem do particular para o geral, como viu G. Wills. Mas como essa leitura só torna mais desconcertante a força particularizadora dos tempos 256

verbais no presente, empregados na cena de abertura do poema, aproveito a observação de uma leitora inteligente para colocar o próximo tópico sob a perspectiva desejada. Lembrando a famosa passagem da Poética em que se afirma: “uma vez que o poeta é um mimētḗ s, como o pintor ou qualquer outro fazedor de imagens (eikonopoiós), é preciso que represente necessariamente uma de três coisas possíveis: as coisas como eram ou são, ou como dizer ser e parecem ou como deveriam ser” (1460 b 7-11), Anne Carson relaciona a distinção da Poética diretamente com o uso do pronome óttis e aponta para o que vem a seguir: Safo procede no fr. 31 V como se ela tivesse em mente esses mesmos três registros de discurso: o real, o aparente, o ideal. Ela dispõe a idealidade relativamente cedo no poema. “Aquele homem semelhante aos deuses, quem quer que ele seja” […] o resto do poema é uma busca através da aparência pela realidade, começando e terminando […] com formas do verbo phaínesthai e emoldurando a revelação no seu núcleo (p.150)

257

cena da oaristýs: um colóquio com vazios

Já se observou diversas vezes que o homem ocupa uma posição de destaque na primeira estrofe. Referido três vezes somente nos dois versos iniciais pelos pronomes kênos, ṓ nēr e óttis, ele também “atua” como sujeito dos verbos phaínetai e émmen(ai), por um lado, que marcam seu contraste com a locutora, e dos verbos isdánei e (h)ypakoúei, por outro, que estabelecem sua relação com a figura feminina na segunda pessoa. A presença do homem é reforçada ademais pelas marcas de gênero masculino, nos três pronomes, no adjetivo ísos e nos advérbios enántios e plásion, todos no nominativo, sublinhando a posição do sujeito. Comparada com ele, a mulher parece uma figura secundária: referida apenas uma vez, no final da segunda linha, pelo pronome dativo de segunda pessoa toi, sabemos que se trata de uma mulher somente pelas marcas de gênero feminino dos verbos phōneísās e gelaísās. E assim como “aquele homem” desaparece depois da primeira estrofe, a última menção que será feita à mulher pelo pronome acusativo s(é) no verso 7, estabelece um segundo paralelismo: na primeira referência, o pronome toi a situa diante do homem; na segunda menção, o pronome sé a posiciona diante dos olhos do “eu”. Como nota Anne Carson, o poema começa por estabelecer uma cena triangular, sendo o elenco reduzido, a seguir, para “eu” e “tu” na segunda estrofe e, então, para “eu” sozinho nos versos seguintes. A composição triangular da cena inicial é bastante controversa, mas podemos concordar com Carson que está carregada de significado, uma vez que “os fenômenos duplos e triplos persistem ao longo de todo o poema” (p.149). Sobretudo os fenômenos duplos, como destaca a minuciosa análise que Aurelio Privitera desenvolve em Ambiguità, antitesi, analogia (1969). Sendo a dualidade asseverada no som e na sintaxe pela complexa trama de respostas verbais (repetições, paralelismo e oposições), como marca ostensiva, por vezes sublinhada pela mesma posição métrica dos termos duplicados, a alta elaboração formal do poema, entretanto, não afeta a composição oral do verso e mesmo sua “aparência” próxima do coloquial, na opinião de Page e Di Benedetto. Como veremos, ela desdobra uma segunda camada acústica que precisa e modifica a própria representação, uma vez que a duplicidade em Safo afeta a própria configuração da cena a três. Para que o leitor possa avaliar a importância das estruturas duplas no poema, ofereço uma lista bastante sumária da técnica empregada no fr. 31 V. Uma rápida comparação de qualquer tradução disponível com a lista abaixo mostra o quanto se perde em rigor formal, mesmo nas versões mais literais:

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phaínetaí (v.1) – phaínomai (v.16) ísos (v.1) – olígō 'pideúēs (v.15)48 théoisin (v.1) – tethnákēn (v.15) émmenai (v.2) – émmi (v.15) toi (v.2) – sé (v.7) kaì (v.3) – kaì (v.5) phōneísās (v.3-4) – phṓ nēsai (v.7-8) (hyp)akoúei (v.4) – ákouai (v.12) hyp(akoúei) (v.4) – hyp(dedrómāken) (v.10) màn (v.5) – mèn (v.9) kardían (v.6) – stḗ thesin (v.6) ōs... ṓ s (v.7) ídō (v.7) – órēmmi (v.11) brókhea (v.7) – aútika (v.10) oudèn (v.8) – oudèn (v.11) phónes' oudèn (v.7-8) – oudèn órēmm' (v.11) allá (v.9) – allá (v.17) kàm... éage (v9) – ékade (v.13) – kakkhéetai (v.13)49 dé...dé (vv. 9-15)50 epi(brómeisi) (v.11-12) – epi(deúēs) (v.15) paîsan (v.14) – pā̀ n (v.17)

Deixo de fora apenas os pronomes de 1ª pessoa, já mencionados, e o conjunto dos pathémata, que serão analisados à parte. Mas pode-se notar ainda outros paralelismos na composição dos tempos verbais. A começar pelos dois primeiros verbos, que são retomados pelo avesso nos dois últimos: phaínetaí (v.1) – émmenai (v.2) tethnákēn (v.15) – phaínomai (v.16)

[pres. indic. médio e infinitivo presente] [infinitivo perfeito e pres. indic. médio]

O poema começa e termina com a voz média, havendo apenas mais dois verbos com diátese

média-passiva identificados pelo pré-verbo katá (kàm... éage51 e kakkhéetai). Dentro do quadro central (vv.1-16), destaca-se uma sequência de duplas temporais “únicas”: isdánei (v.3) – hypakoúei (v.4) phōneísās (v.3-4) – gelaísās (v.5) eptóaisen (v.6) – ídō (v.7) kàm... éage (v.9) – hypadedrómāken (v.10)

[pres. indic. imperf. ativo com sujeito óttis] [particípio pres. imperf. genitivo fem. ativo] [aoristo indicativo e aoristo subjuntivo] [pres. indic. perfeito méd.-passivo]

Em seguida, toda a lista dos pathémata está no presente imperfeito do indicativo, sendo seis verbos na 3ª pessoa (eíkei, kàm... éage, hypadedrómāken, epibrómeisi, kakkhéetai, ágrei) e dois na 1ª pessoa (órēmmi, émmi). Finalmente, fazendo a transição entre o aoristo predominante na segunda estrofe e o presente perfeito e imperfeito dos versos subsequentes, uma dupla formada por ambos os

Bem observado por Privitera: assim como tethnákēn se opõe pontualmente a théoisin, ísos e olígō 'pideúēs se equivalem, formando uma oposição semântica entre “quase um deus” e “quase morta” (1969b: 68) 49 Apócope e assimilação de katá antes de “m”, “d” e “k”, respectivamente, havendo paralelismo entre os verbos katá+ágnymi e katá+khéō e duplicação de katá no mesmo verso 13 (ékade / kakkhéetai), que parece replicar a tmese do verso 9 (kàm... éage). 50 Em paralelismo, introduzindo os pathémata em grupos de 4: allá kám mèn... dé...dé...dé // ékade... dé...dé...dé. 51 A diátese ativa de katéage tem, aqui, sentido médio-passivo. 48

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tempos, com forte acento impessoal: phṓ nēsai (v.7-8) – eíkei (v.8)

[aoristo inifinitivo e pres. indic. imperf.]

No total, quatro verbos na primeira pessoa, assumidos pela locutora (ídō, órēmmi, émmi, phaínomai), e quatro verbos na terceira que se ligam ao homem em posição de sujeito (phaínetai, émmenai, isdánei, hypakoúei). Dos três inifinitivos no fragmento, um está ligado ao homem e dois à locutora, de grande carga significativa: “ser”, “falar” e “morrer”, todos precisados por um segundo verbo que os delimita pela “aparência”: émmenai, formando par com phaínetai (parece ser); phṓ nēsai, acompanhado de eíkei ([não] é possível falar); e tethnákēn, restringido por phaínomai (pareço morrer). Acrescente-se, por fim, a dualidade mais abrangente assinalada por Marcovich. Para o crítico, haveria ainda um contraste intencional entre o aspecto durativo (imperfeito) do tempo presente em “senta e... escuta”, governando os particípios da primeira estrofe, de um lado, e o inceptivo (incoativo) do aoristo eptóaisen, junto com a série subsequente de praesentia iterativa, por outro (Marcovich, p.24). É claro que o quadro poderia ser ligeiramente modificado se tivéssemos o poema inteiro, como especula Joel Lidov: “a primeira estância ocorre no presente indefinido de uma hipótese; a segunda registra o evento iniciante, que é parte da ocasião, no aoristo; a terceira e quarta mostram o tempo presente (perfeito e progressivo)52 da própria ocasião. A quinta presumivelmente visaria o futuro” (Lidov, 510). Mas o sistema de paralelismos notado é suficiente para nos guiar numa melhor apreciação da cena de abertura. Lançando um olhar retrospectivo, vemos, agora, que a lógica polar se instaura na própria sequência de ações que constitui o colóquio a dois. Dois personagens, com duas ações para cada um, cada par conectado pela mesma conjunção “e” (kaì): o homem “senta” e “escuta”, a mulher está “falando” e “rindo”. Em seguida, cada verbo também possui uma determinação em pares. Os verbos do homem acompanham uma determinação adverbial (senta diante e escuta de perto). As ações da mulher acompanham uma determinação adjetiva, com emprego adverbial (falando docemente e rindo de maneira desejável). Por fim, os quatro verbos da oração relativa definem um conjunto de ações recíprocas, em alternâncias de papéis: “os papéis são constantemente invertidos: aquele do homem antes que ativo é passivo, mas é expresso com dois indicativos de ação; o da garota é ativo, mas expresso com dois particípios de subordinação” (Privitera, 1969 b: 53). Apenas (h)ypakoúei se diferencia por uma segunda determinação incorporada no pré-verbo hyp(o)-. Contendo a ideia de “sob” e de “movimento para baixo”, segundo Bailly, o verbo significa “escutar abaixando a cabeça”, “inclinando-se” para ouvir “atentamente” ou “obedientemente”, 52

progressivo no sentido gramatical inglês (continuous tense): verbo auxiliar (to be) + particípio presente (= imperfeito em grego).

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“emprestando a orelha”, “mostrando-se favorável”, “sub-entendendo” (literalmente em francês: sousentendre), i.e., compreendendo por meias-palavras, suprindo lacunas, com conotações, portanto, de atenção, submissão e cumplicidade (Fontes, 2003: 191). Mas nem por isso a dualidade se quebra. Com duas determinações adverbiais, hypakoúei também é o único verbo com dois objetos, phōneísās e gelaísās. Tudo está duplicado até o menor detalhe e conectado numa série causal onde o segundo termo reforça e amplifica o anterior. Dispostas simetricamente, as ações se dispõem numa ordem crescente de intensidade. A própria sintaxe se encarrega de estabelecer o íntimo entrelaçamento amoroso entre os pares de ações à medida que se alternam em gestos espelhados: [advérbio + verbo]

[verbo + adjetivo]

enántios... isdánei (v.3) oposto a... senta



âdy phōneísās (v.3-4) doce falando

plásion... (h)ypakoúei (v.4) de perto... escuta



gelaísās iméroen (v.5) rindo desejável

Mas isso significa que “ele” e “tu” se caracterizam como amantes? Nada no poema nos autoriza a dizer que sim. Nem que não. É verdade que sabemos muito pouco sobre os dois personagens. Mas, em particular, sobre a figura feminina a que o poema é endereçado, o que cria duas ordens de problemas. Primeiro de interpretação. Embora a maioria dos intérpretes se refira ao “tu” feminino como uma menina ou uma garota, não há nada que permita saber se se trata de uma criança, jovem, mulher ou mãe; se seria uma noiva, amiga ou pupila da lendária escola de Safo. Em seguida, um problema de tradução. Com frequência, o tradutor opta por apagar as marcas de feminino na segunda pessoa, substituídas pelo acréscimo de pronomes. Deixando indefinido o sexo do interlocutor, introduz-se uma indeterminação inexistente no texto grego e alheia à elaborada construção dos “vazios” (Leerstellen)53 do poema. Desde então, nada impede que o leitor atribua a “aquele homem” um desejo homoerótico e à locutora o afeto oposto, com consequências interpretativas inteiramente diversas.54 Porém, a nota mais difícil de captar em tradução não são os verbos no feminino, mas a ressonância particularmente significativa do adjetivo iméroen, “desejável”. Trata-se da palavra-eixo

53

54

Emprego, aqui, a noção de Iser de que o texto ficcional é um discurso consituído de “lugares vazios”. O conceito de Leerstellen será particularmente relevante na medida que permite distinguir os “vazios” internos do texto, produtores de indeterminação, que demandam um suplemento por parte da imaginação do leitor, das “lacunas” textuais, no sentido filológico, epigráfico e papirológico do termo, que admitem, embora não exijam, um suplemento de editor. Pode-se supor que a decisão se explique pela falta flexão de gênero nos verbos em português (e nas línguas modernas de modo geral), mas uma solução simples poderia ser a transferência do feminino para o adjetivo, mantendo a tradução padrão do particípio grego pelo gerúndio, ou a substituição do verbo por uma oração relativa adjetiva, prevista pela substantivação do particípio em grego.

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que opera a mudança de cena da primeira para a segunda estrofe: é só então que percebemos que não é nem o homem, nem o casal, nem o próprio “eu”, mas o “tu” a que se dirige a canção que ocupa o lugar central no poema. É em torno dessa mulher incrivelmente sedutora que se organizam as peças do tabuleiro. Nas palavras precisas de Joaquim Brasil, “a poeta e 'aquele homem' vivem de formas absolutamente opostas os eventos cuja origem é a mulher. Ela é o próprio centro do poema – e [no entanto] não foi descrita” (Fontes, p.198-199). O homem escuta, a locutora vê; ele aparentemente desfruta de um éros recíproco, enquanto ela seguramente sofre uma paixão não-correspondida ou, pelo menos, ainda não dita. A poeta não permite que a mulher seja plenamente identificada, sendo representada apenas pela referência a sua fala e riso. Duas imagens metonímicas que “exibem grande força e sutileza, focando a atenção em sua boca” (Sinos, p.29). Embora contenha em sua raiz os sentidos de “voz” e “som”, phōneísās deriva do verbo phōnéō, “falar”, e não do substantivo hē phōnḗ , como costuma ser traduzido. Algo semelhante sucede com gelaísās. Primitivamente, o verbo geláō significa “brilhar, resplandescer, ser iluminado” (Hom. Il. 19. 362; Hes. Theog. 40; h.Hom. a Ceres, 14). Segundo Bailly, o termo passou a designar a ideia de “rir” por analogia, por causa da alegria que “ilumina o rosto” daquele que está sorrindo. Governados por (h)ypakoúei (escuta), os particípios remetem antes à ação de falar e ao som do rir, com seus valores adverbiais, a ênfase sendo colocada na personagem feminina captada em seu agir (Fontes, p.190). O que se enfraquece quando os predicados da mulher são traduzidos pela fórmula substantivo + adjetivo, como é comum e cria uma dificuldade derivada: fazendo o adjetivo concordar com substantivo, a solução torna quase impossível recuperar o gênero feminino como marca da segunda pessoa. Como a mulher está praticamente representada apenas pelos particípios, ela acaba por desaparecer completamente na maioria das traduções. No entanto, seria preferível perder a marca de feminino em gelaísās, se se puder mantê-la em phōneísās, a abrir mão do seu étimo luminoso (*gel-). Pois também aqui se afirma um senso de paralelismo intrínseco à estrutura do poema: a raiz vocal do primeiro particípio se relaciona com a ação aural do homem (hypakoúei), enquanto a conotação cintilante do segundo está em conexão com a ação visual do “eu” (ídō), explicitada pela distribuição dos verbos e particípios em estrofes distintas. Como se manifesta à medida que o poema se decifra, é sobretudo a força impetuosa desse riso-luz, afirmada no verbo eptóaisen, que faz a locutora perder o controle de si toda vez que vê a amada. Inversamente, enquanto o homem escuta o som prazeiroso de uma doce voz, os ouvidos do “eu” produzem um ruído desagradável, um zumbido ensurdecedor; ao passo que a mulher fala, a locutora perde a voz, criando um forte contraste entre a elocução da amada que desperta a pulsão irresistível de éros e a incapacidade, ou impossibilidade, da amante para articular um som. Estabelecese, por fim, uma estrita simetria entre “eu” e “tu” na repetição dos dois signos orais invertidos. 262

Começando no verso 3 e se estendendo até o começo da estrofe seguinte, a voz da interlocutora se prolonga, ressoando por três versos, do mesmo modo que o primeiro sintoma amoroso do “eu” a partir do verso 7, ambos tendo início a mesma posição métrica (âdy phōneí- / ṓ s me phṓ nē-). De modo que podemos destacar dentro do quadro centrado no eixo temático do olhar (verbos “ver”, “aparecer”) um segundo motivo oral-aural (verbos “falar”, “escutar”), que o duplica em eco: I e II I II e III III

âdy phōneísās / gelaísās iméroen (h)ypakoúei phṓ nēs(ai)... eíkei / kàm... glôssa éage ákouai epibrómeisi

[tu] doce falando / rindo desejável [ele] escuta atento (“para baixo”, hypo) [eu] falar não me é possível / a língua se quebra [eu] os ouvidos zumbem (“para cima”, epi)

A segunda série também está ligada ao campo da visão (étimo luminoso do gelaísas) e da aparência, pelo verbo eíkei, “[é / parece] possível” ou “apropriado”, situando o discurso no domínio da opinião, do provável e do conveniente: é o problema do verossímil (eikós) aristotélico que se põe aqui, desde que um forte contraste entre ser e parecer (allà... màn, “mas, na verdade, certamente”) reitera, a cada vez, a cláusula fictiva no poema (eíkei, “parece”): ele parece ser igual dos deuses (v.1) – eu decerto sou atingida (v.5-6) eu “pareço” não falar (v.7-8) – de fato a língua se quebra (v.9) eu pareço morrer (v.15-16) – mas tudo é (certamente) suportável (v.17)

Passemos por fim aos predicados eróticos da voz e do riso da mulher: prazer-hēdýs e desejohímeros. Essas são palavras de grande densidade semâtica na abertura, sobretudo a segunda, que encerra o primeiro movimento do poema. A força de hímeros é tão grande que o poema tem uma pausa semântica após essa palavra, operando um mudança de cena. Já notamos que o segundo predicado da mulher (doce-prazerosa) constitui uma espécie de variação do primeiro (desejável). Cabe verificar em que aspecto os dois epítetos femininos se equivalem no poema. Uma informação externa pode fornecer uma referência para o vínculo intrínseco que se estabelece entre os dois termos no pensamento grego antigo. Em O uso dos prazeres, Foucault observa que na experiência do que ele chamou de aphrodísia, designando o conjunto dos objetos da reflexão moral grega no campo da conduta sexual, o ato, o desejo e o prazer formam um conjunto indissociável, segundo uma “dinâmica que une os três de maneira circular (o desejo que leva ao ato, o ato que é ligado ao prazer, e o prazer que suscita o desejo)”. É essa relação dinâmica entre os três termos, diz ele, que constitui “o grão da experiência ética dos aphrodísia” (p.42). Quis a natureza [...] que a realização do ato seja associada a um prazer; e é esse prazer que suscita a epithymía, o desejo, movimento dirigido por natureza para o que “dá prazer”, em função do princípio lembrado por Aristóteles: o desejo é sempre “desejo da coisa agradável” […] É verdade – e Platão insiste frequentemente sobre isso – que não poderia haver desejo sem privação, sem falta da coisa desejada e sem mescla, portanto, de um certo sofrimento; mas o apetite, explica ele no Filebo, só pode ser provocado pela representação, a imagem ou a lembrança da coisa que dá prazer (p.42). 263

Foucault utiliza, aqui, o termo tardio mais frequentemente empregado no séc. V a.C., sobretudo nos textos de Platão, epithymía, para nomear o desejo especificamente erótico. Mas podemos tomá-lo como uma designação genérica daquilo para o que a língua grega possuía outros nomes, remetendo a diversos modos de satisfação do desejo: hímeros, póthos, (e)thélō, órexis, etc. O próprio Platão lembra, no Crátilo (419e-420b), a existência, ao lado de érōs, dos dois primeiros termos É famosa a etimologia imaginada pelo filósofo: que o mesmo sentimento chamado póthos quando o objeto está ausente ou se encontra em “outro lugar” (állothi poû), também é chamado hímeros quando o objeto está presente. Combinando os termos híēmi (fazer um movimento para), mérē (partícula) e rhóos (corrente, fluxo), ele inscreve a palavra hímeros no centro da concepção grega do amor suscitado pelo olhar, como um fluxo que emana dos olhos do erômeno para arrebatar a alma do erasta. Embora Aristóteles faça uma distinção cuidadosamente restritiva na Ética a Nicômaco (III, 10, 1118 a-b) acerca dos objetos da intemperança (akolasía), limitando-os aos prazeres do corpo e concluindo que se deve excluir os prazeres da visão, do ouvido e do olfato, “não obstante, diz Foucault, é preciso notar a importância atribuída, por muitos textos gregos, ao olhar e aos olhos na gênese do desejo ou do amor” (p.40). Numa reflexão dedicada especificamente à fisiologia do desejo amoroso nos poetas mélicos arcaicos, Calame afirma que é sempre o olhar que aparece como o meio privilegiado escolhido por éros para cercar sua vítima (p.11). Emanando do olhar do amado (erṓ menos), ele permite que o amante (erastḗ s) diga primeiro “eu vejo” e em seguida “eu amo”. A ação de éros “induz pela visão um estado amoroso que pode ser assumido como 'meu' estado” (p.13). A distinção é importante, pois, como nota Calame, tendo um complemento verbal no genitivo, éramai sublinha, na própria sintaxe, a passividade do ser amoroso (literalmente, o verbo não diz “amo, desejo”, mas “estou enamorado de, tomado de desejo por”): “provocado por outrem, éros é desejo passional dos outros; fazendo daquele ou daquela que ele atinge um 'sujeito desejante' ou um 'sujeito sexual', coloca-o imediatamente em relação com o objeto” (p.14). O que isso significa, senão que, na concepção grega arcaica, o sujeito último do desejo não é o “eu”, mas a divindade que o suscita (Éros ou Afrodite) e também pode, por isso, livrá-lo de seus tormentos, fazendo a amada perder todo o encanto (kháris) a seus olhos? Mas não apenas o olhar serve de veículo para essa “intervenção da divindade”, como diria Snell, capaz de provocar no erasta os efeitos devastadores de átē, a cegueira divina, a perda do senso, como diz Safo no fr. 26 V. Entre outros meios privilegiados pela divindade, pode-se incluir os efeitos particularmente eróticos da voz e do riso. Ao contrário de póthos, que, em Arquíloco, estrangula o sujeito desejante e rompe seus membros (fr.196 W), trespassando-o até os ossos (fr. 193 W), e em Safo se relaciona geralmente ao desejo de um/a ausente (frs. 48 V, 94 V, 102 V), procurando explicitar 264

as especificidades entre esses dois “modos de desejo”, Calame observa que hímeros parece remeter a um desejo mais carregado, mais próximo da realização, um desejo premente, exigindo uma satisfação imediata: e “esse desejo é novamente uma visão, por si mesma, ou um riso que o suscitam” (p.24, grifo meu). No partênio de Álcman que começa invocando a musa “Bela Voz”, por exemplo, é a própria canção que aparece como portadora de desejo (hímeros), conferindo às palavras qualidades eróticas que dotam o mélos de uma potência de sedução: Fr. 27 Dav. Ó Musa, vem! Calíope, filha de Zeus, inicia versos amáveis (eratôn epéon), põe desejo (hímeron) na canção e faz graciosa (kharíenta) a dança coral... (Giuliana Ragusa)

Que os dois epítetos do fr. 31 V se equivalem, o mostra a frequência com que são intercambiáveis, como se pode observar tanto na poesia anterior, quanto em poetas que parafraseiam o texto de Safo muitos séculos depois. Já em Homero, o adjetivo hēdýs aparece em conexão com o “riso”, em posição adverbial, na expressão hēdỳ gélassan (com as variantes gélassas e gelṓ ntes, Il. 2.270, 11.378, 21.508, 23.784; Od. 18.111, 21.376), como em Safo, e do mesmo modo em Catulo, dulce ridentem (Carmen 51): “doce rindo” = “a rir docemente”. Inversamente, na própria Safo encontra-se o epíteto imeróphōnos, “de voz desejável”: Fr. 136 V (Schol. Sóf. Electra v.149) ἦρος ἄγγελος ἰμερόφωνος ἀήδων ...mensageiro da primavera, o rouxinol de desejável voz... (Giuliana Ragusa)

Em seguida, a importância dos atributos se verificam por sua recorrência em Safo, nas expressões similares do fr. 44 V, ady[m]élēs, “doce-[s]onante”, do fr. 71 V, mellikhóphōn[os, “vo[z] de mel”, do fr. 73a V, a]dýlogoi, “os de [d]oce dizer”, do fr. 153 V, adýphōnon, “de doce voz” e do fr. 156 V, páktidos adymelestéra, “mais doce-sonante que a lira”; mas também pelo interesse despertado entre os leitores antigos, que fazem questão de registrar a fórmula variante, com “mel” no lugar “doce”, nos dois testemunhos do fr. 185 V:

265

Fr. 185 V (Filóstrato, Imagines 2.1 [séc. II-III d.C.]) μελίφωνος· Σαπφοῦς τοῦτο δὴ τὸ ἡδὺ πρόσφθεγμα

... melífono: esse é realmente um delicioso epíteto de Safo

* (Aristêneto, Cartas de amor, 1.10 [séc. V ou VI d. C.]) ... μελλιχόφωνος· τοῦτο δὴ Σαπφοῦς τὸ ἥδιστον φθέγμα

… melovoz: essa é realmente a mais doce palavra de Safo

Quanto a iméroen (= himeróen), adjetivo que caracteriza “o que faz nascer, provoca ou suscita o desejo”, baste uma simples enumeração para notar que os termos da família de ἵμερος são ainda mais recorrentes em Safo: fr.1 V (v. 27, ἰμέρρει), fr. 17 V (v.10, ἰμε[ρόεντα), fr. 78 V (v.3, ἴμερ[), fr. 95 V (v. 11, ἴμερός), fr. 96 V (v.16, ἰμέρωι), fr. 112 V (v.4, ἰμέρτωι), fr. 136 V (v.1, ἰμερόφωνος), fr. 137 V (v.3, ἴμερον), AP. 7. 489 (v.4, ἱμερτὰν). O que importa reter, por ora, é a frequente a associação entre “riso”, “fala” e “voz” com os epítetos “doce” e “desejável”. Numa tradução hiperliteral, se pode entender tanto que o fr. 31 V afirma que o “tu” feminino está (no presente do indicativo) “falando prazeirosamente” e “rindo desejavelmente” dessa vez; quanto se pode dizer, resgatando a marca do feminino por uma oração adjetiva, que o poema predica à “falante” e “ridente” um atributo permanente: “[a que é] doce falando... e rindo desejável”, concordando com a ideia afirmada no verso 7 de que “a tua presença sempre me atordoa”. Uma ambiguidade que me parece suportável pela estrutura dupla do poema e pela semântica do particípio como verbo-adjetivo. Ora, se a cena do colóquio entre “ele” e “tu”, no presente do indicativo, configura a descrição “realista” de um acontecimento singular testemunhado pelo “eu” no momento da fala, como propõem muitos intérpretes, como se explica o aspecto generalizante do pronome masculino óttis e o sentido atributivo dos particípios femininos (ambos representáveis por um simples relativo: “o que... senta...”, “a que é doce...”)? Por acaso seria preciso decidir entre uma ou outra leitura? A meu ver, seria tão equivocado 266

forçar a identificação de óttis com um pronome definido, em nome de um suposto “realismo”, em correspondência com uma cena particular, quanto apagar a força particularizadora do presente do indicativo, lendo a frase com sentido de “quem quer que se sente e escute” e “a que sempre é doce e desejável”, em relação a uma cena geral, reduzindo o poema a uma simples peça de retórica, precursora do gênero epidítico. Em cada caso, permanece por explicar o elemento privilegiado pela corrente oposta.

267

o que é isso

Fechada a primeira cena, que se configura como uma oaristýs, um colóquio amoroso, na intimidade do casal (Fontes, 2003: 199),55 a palavra imediatamente seguinte volta a dividir os scholars: a que tó se refere? Toda a cena precedente, incluindo o homem e a presença da garota, o casal, ou apenas à ação precedente, no feminino? (Wills, 168). Seja qual for a resposta escolhida, ela vai determinar qual é a causa da reação do “eu”. Nas palavras de Privitera, chegou-se a acreditar que bastaria provar a que tó se refere para descobrir o enigmático movente da ode – amor ou ciúme –, dependendo se remete aos dois particípios (como em Snell, Tietze e Setti), ou a toda a situação incial (como em Perrota e Ferrari), ou, ainda, particularmente às palavras iniciais “parece-me/lhe ser par dos deuses” (como em Gallavotti, Wills e Del Grande). O que se complica, na medida que a própria alternativa básica gera um leque de leituras do movente: o colóquio entre “tu” e “ele” que provoca ciúme; o riso desejável que desperta amor; o privilégio desfrutado por “quem quer que...”, considerando apenas um espectador possível; sentar perto da mulher e ouvir sua doce voz, sendo capaz de resistir aos encantos da amada (1969a: 53). E de modo mais amplo: trata-se de uma reação à cena particular que se testemunha desta vez ou à “tua” presença sempre? Daí porque as posições dos vários autores apresentam “esfumaturas que se perdem numa bipartição esquemática” (id.). No entanto, para Privitera não há apenas duas mas pelo menos cinco possibilidades de antecedente para a frase “isso me atordoa o coração”, que o pronome sozinho não permite decidir: 1. 2. 3. 4. 5.

que ele me pareça ser par dos deuses que ele sente diante de ti e te escute que você fale docemente e ria deliciosamente (em geral) que você fale docemente... para ele que ele sente diante de ti e tu fales docemente

A explicação “pois, quando que te vejo...” elimina a primeira possibilidade, “precisamente aquela que do ponto de vista sintático poderia parecer a mais verossímil” (1969 b: 54). Para Privitera o descarte é sintomático, pois “mostra que no lugar do nexo lógico é desenvolvido o nexo fantástico, que a imagem prevalece sobre sua função sintática e que a ode, através de operações seletivas, avança gradulamente para uma sintonização que não anula o precedente, mas o enriquece e coordena” (p.54, grifo meu). Mas o crítico sobrevaloriza a polivalência das articulações textuais: “é como na arquiterura: as perspectivas se compõem e recompõem segundo o ponto de vista adotado a cada vez

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Como observam Wills (1967: 173) e Race (1984: 92), a suposição de Wilamowitz de que a sociedade lésbia não permitira uma tal conversação íntima entre os sexos, exceto após o casamento, foi forte e convincentemente refutada por Setti (1939), Page (1955), Jachmann (1964) e Kirkwood (1974).

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pelo observador. Só que na poesia a dimensão temporal é pré-ordenada e traçada na sucessão das palavras e das frases: faz parte integralmente do projeto concebido pelo poeta” (p.54), e termina convertendo seu argumento em mera petição de princípio: “declarando como única causa a garota, a afirmação ὠς γὰρ σ’ ἴδω βρόχε’ elimina também a segunda possibilidade [...]; modifica a terceira, despojando-a de características distintivas (falar, rir de tal modo); e põe em crise a quarta e a quinta” (p.54). O crítico deixa claro, portanto, que tó refere-se à “possibilidade de estar perto da mulher” (Lidov, p.506-7). Para Denys Page, o demonstrativo tó na linha 5 deve se referir a “o que diante de ti | senta e de perto... | escuta” na oração subordinada, reivindicando a seu favor que o pronome pessoal s(é) na linha 7 implicaria “para ti, sentada perto dele, como você está”. Ou seja, “é o fato de um homem estar sentado próximo de sua menina favorita, capturando sua atenção, que afeta Safo, provocando nela o ciúme ou ataque de ansiedade” (p.19). Pois “sustentar que Safo não sente ciúmes do homem seria ignorar certa resposta da natureza humana a uma situação do tipo descrito e privar a introdução do homem e sua relação com a garota de todo significado” (apud id.). No entanto, objeta Marcovich, a premissa seria inverossímil, dentre outras razões, por que o assalto dos sintomas de Safo deve ser entendido como uma aflição recorrente, desde que o subjuntivo ídō, na linha 7, enquadrado pela conjunção adverbial ṓ s, denota a ideia de repetição dessa reação em cadeia: “pois quando/cada vez que te vejo” ou “sempre que te vejo” (p.21). De modo que um encontro recorrente da locutora com sua favorita é bem mais provável. Por outro lado, subentende-se que visitas recorrentes exatamente no momento em que o cavalheiro estivesse sentado diante e perto dela seriam improváveis e, portanto, que os sintomas não teriam relação com “aquele homem”. Para a maioria dos scholars, a primeira estrofe se refere a um acontecimento único: “Safo incidentalmente chega e encontra a garota falando com um (aparentemente não impressionado) homem”. Page também considera essa a “escolha mais natural”, entendendo o início como “Aquele homem que está agora sentado...” e não “Aquele homem que frequentemente se senta...”, opção preferida por Campbell (p.21). Consequentemente a cláusula do verso 7 deve significar “toda vez que olho para você”, pois a cena do par sentado não é recorrente. E desde que “sempre que te vejo” não pode implicar “sempre que te vejo sentada perto dele” o pronome tó na cláusula-ponte (bridge clause) tó m'ê màn... não pode referir tampouco a cena do casal (sitting scene) (Marcovich, p.21). Marcovich observa, ademais, que o próprio Page teve “segundos pensamentos” neste ponto: o editor inglês só endossaria aquela leitura no começo de sua monografia, pois no final muda subitamente de opinião, referindo tó aos dois particípios e s(é) ao charme pessoal da interlocutora, interpretando o poema, então, como concernindo ao amor de Safo pela mulher. Devereux, no entanto, teria ignorado esse segundo pensamento de Page, forçando a leitura do ciúme até o absurdo (p.20). De outra parte, Sinos concorda com Page e Koniaris quanto a tomar gelaísās iméroen como o 269

antecedente de tó na mesma linha, entendendo que “é a força do riso” que dá ocasião para a falência (breakdown) da locutora (p.28-29). O que é reforçado pela topologia de éros atuando pelo olhar, em concordância com o étimo visual de gelaísās. A leitura e Welcker de que a sentença cardinal ōs... ídō cumpre uma “transição do particular para o geral” (p.182), somada à interpretação de Privitera de que o verso 7 declara como única causa a mulher, bastaria para eliminar a dificuldade de tó, como o demonstra o argumento de Marcovich. Acrescente-se, por fim, que a referência de tó às palavras imediatamente precedentes é não apenas mais provável, como também concorda com a vulnerabilidade que as personas de Safo frequentemente manifestam a certos detalhes da aparência física das meninas em outros fragmentos, como lembra Marcovich: é o “andar” e o “brilho do rosto” de Anactória que se prefere ver a qualquer outra coisa no fr. 16 V; o “vestido” de Gôngula que faz o desejo voar em torno da amada no fr.22 V; uma “sandália” lídia nos pés de outra garota que desperta o interesse do locutor no fr. 39 V (p.22). O que também se confirma na paródia de Ruffino, onde são recortes metonímicos da amada que retêm a atenção (olhos, mãos, seios e tornozelos) e encontra um significativo paralelo em Horácio, que encera a Ode I.22 (vv.23-24), composta em estâncias sáficas, com esta citação do fr. 31 V: dulce ridentem Lalagen amabo, dulce loquentem a Lálage amarei, que, rindo, é doce doce, falando (trad. Bento Prado).

Se a indeterminação de tó põe em questão, para o scholar contemporâneo, a causa da reação do “eu”; para o poeta latino não há dúvida de qual seja o movente: a mulher elogiada é amável precisamente porque “rindo é doce e doce falando”. Apenas isso em sua paráfrase é bastante para despertar a paixão por Lálage, sem precisar do contraste com um terceiro observador. Note-se que em Horácio é ainda mais evidente a ambiguidade entre o significado narrativo (verbal) e o atributivo (adjetivo) do particípio (aqui, gerúndio), a que nos referimos anteriormente. Numa palavra, como também atesta o poeta latino, a fala e o riso encantadores são signos suficientes de que a mulher é causa do desejo, capaz de desencadear o efeito erótico do “eu”.

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Safo sofista: por que dois e dois são três

“Poderia a falante ficar olhando para a garota continuamente por tanto tempo quanto durasse a cena? Um tal ato deveria ser aberrante – uma coisa das mais embaraçantes, ofensivas e extremamente desnecessárias” (Tsagarakis, p.102). A objeção de Tsagarakis é sintomática porque não se confunde com a posição de Wilamowitz: “não há situação imaginável na sociedade grega antiga ou, aliás, na moderna...” (id., grifo meu). Se ficar olhando poderia soar ofensivo, quem dirá tomar a palavra, senão uma verdadeira afronta? É notório o esforço que o crítico tem que empregar para desfazer o desagravo: recorrendo ao aspecto pontual do aoristo, Tsagarakis imagina a locutora lançando uma série de olhares furtivos (snapshots) durante o colóquio a dois; projeta a cena no passado, em presença de um grupo de testemunhas; e conclui que ela visualiza a cena de novo no momento da fala, “como alguém faria numa carta muito pessoal”. A fim de justificar o tempo presente sem a presença do homem e sem abrir mão do realismo da sitting scene, ele divide a “narrativa” em duas cenas cronologicamente distantes, como dois colóquios particulares. Não se pode negar o virtuosismo desse malabarismo mental para contornar as teses do noivo e do ciúme. R. O. Evans (1969), por sua vez, nega que haja ciúme, mas vê o casal como “amantes numa conversação” enquanto Safo seria uma voyer, e chega a imaginar o homem como um “jovem” e “respondendo” ao charme da mulher, ao passo que Bonelli, em sua leitura “estética” do poema, “considera que o homem se encontra num estado de 'beatitudine contemplativa' e que a estância retrata estase e una sorta di altissima ebrietà” (Race, p.95). Surge, aqui, uma questão frequentemente sugerida pelos intérpretes, mas apenas de modo indireto: trata-se de um colóquio “real” ou “imaginário”?56 Que se desdobra na pergunta imediata: configura-se uma cena triangular, na presença de três indivíduos? Embora rejeite a existência de um triângulo amoroso no poema, vendo uma possível oposição entre “o homem [que] é forte o bastante para suportar a presença próxima da menina, enquanto Safo é derrubada por um olhar distante” (p.24), Marcovich não questiona a “realidade” da cena particular, apenas a limita. “Safo usa a presença casual do homem apenas como um ponto de contraste, para expressar melhor seu próprio amor profundo pela garota” (p.24, grifo meu). Nisto concordam tanto os que defendem o caráter particular quanto a generalidade de “aquele homem”, variando somente a explicação dada para sua presença no presente do discurso. Por isso é digno de nota que Privitera associe a dificuldade ao mesmo aspecto visionário destacado por Tsagarakis:

56

Na mínima bibliografia consultada para este trabalho, só encontrei a questão explicitamente formulada em Tsagarakis (1979: 102).

271

A abertura é fabulosa, suspensa como uma visão: e é elusiva, ambígua, polivalente. Ao cauto phaínetaí moi, esfumado e subjetivo, segue um demonstrativo firme, confirmado em ṓ nēr. As duas dimensões, da aparência e da realidade emergem desde as primeiras palavras […] Aquele homem […] sua individuação tão segura no início é súbito ofuscada pelo pronome óttis que se subtrai a uma identificação unívoca. A expressão ísos théoisin é genérica: pode indicar a felicidade ou a força […] o quadro é nítido […] mas a situação é vaga (1969 b: 46).

Ao mesmo tempo que a locutora toma a palavra diante de um tu, ela usa o tempo presente como se a cena de um colóquio entre a remetente e um terceiro espectador estivesse ocorrendo diante dos olhos. A cena do discurso, do que é dito à interlocutora, contém três pessoas, mas a relação entre elas é indeterminada, o que abre pelo menos três possibilidades de leitura. Pode-se perguntar, primeiro, (a) se o que é enunciado pelo “eu” é dito na presença de “aquele homem” enquanto está diante da mulher. Nesse caso, se ele é “real”, devemos entender que a locutora interrompe o colóquio? E se não interrompe, estaria apenas imaginando o diálogo, sendo o poema um monólogo interior? Mas não é necessário que “ele” esteja presente no mesmo momento da fala e podemos perguntar igualmente (b) se a cena não configura, antes, um colóquio a duas, sendo ele imaginado. Finalmente, podemos perguntar (c) se “ela” também não estaria ausente e apenas o eu é “real” como a instância que enuncia a canção. Neste caso, assumindo a forma de um “monólogo exterior”, representado diante de um auditório nos moldes tradicionais do diálogo “eu – “tu” na poesia arcaica, convertendo a própria cena de performance em “cena de representação” de um colóquio imaginário. Para retomar o termo cunhado por Jean Levaillant a propósito da Jeune Parque de Valéry: se no poeta moderno o diálogo a dois se interioriza na consciência, aqui “monodiálogo”57 se exterioriza na linguagem, dentro da própria elocução hōs autón, em que o poeta emprega a primeira pessoa, de modo que a performance do discurso produz a presença de duas interlocutoras como cenário de um colóquio amoroso. Se o homem fosse “real”, o discurso dirigido à mulher diante dele implicaria que a locutora estabelece um confronto aberto com uma sociedade dominada pela figura masculina (como reconhece Tsagarakis) ou se fecha numa interioridade profunda (como conlui Privitera). Mas se apenas essa primeira alternativa parece improvável, em todas permanece um aspecto comum: nas três hipóteses de leitura se configura um colóquio dentro de um colóquio. A causalidade lógica da sequência inicial é ao mesmo tempo translúcida e imprecisa. Primeiro ele senta de frente e perto da moça para que, então, ela fale; ele começa a escutar e, finalmente, constatamos com a locutora que o riso dela possui um encanto irresistível. Não sabemos mais nada: o que o motivou a se aproximar da mulher? Ela sempre fala com doçura ou o faz agora e para ele? É provável que, para a locutora, ele pareça estar numa posição privilegiada, não apenas por ser capaz de resistir ao charme perturbador e desfrutar de seus encantos, mas sobretudo pela reciprocidade da apud Campos, Augusto de. Linguaviagem, 1987, p.14.

57

272

sua amada. Portanto, na cena visualizada, a mulher é descrita como amada dele, como se estivesse falando, enquanto o homem é descrito como se pudesse constatar os mesmos encantos que o poema nos informa pelos olhos do “eu”. Mas na cena falada e ouvida a configuração se inverte: o “eu” está diante do “tu” e é a locutora que endereça “doce fala” melodiosa à mulher, enquanto esta ocupa a posição de “semelhante às deusas”, ouvindo atentamente as palavras da canção. Uma dualidade que é pressuposta pela própria ocasião poética da interação “eu – tu” na performance de uma elocução hōs autón na “voz própria”. Resultando numa duplicação da cena inicial que se desdobra por dentro: cena (1) descrita visualizada

cena (2) produzida falada/ouvida

ele escuta – ela fala eu vejo (e calo) não pode se controlar

ela escuta – eu falo eu canto (e sou vista) pleno domínio de si e da linguagem

As dramatis personae são distribuídas em um palco duplo. No primeiro colóquio a dois (cena 1) em que o falante é a segunda pessoa, a locutora aparece como se olhasse de fora toda a “narrativa”, o que é sugerido pelo tempo presente dos verbos e pelo advérbio “perto (de ti)”. Porém, num segundo colóquio (cena 2) com a locução assumida pelo “eu”, o homem é situado à distância pelo demonstrativo “aquele” e a mulher referida de perto pelo pronome “tu”, aproximando-a da locutora. Formulado ao pé da letra, o resultado seria literalmente um paradoxo: plásion (perto) põe o homem próximo da mulher, kênos (aquele) o afasta e toi (ti) a localiza ao mesmo tempo perto do “eu”. Para retomar, finalmente, a questão formulada: excluindo o pressuposto de que a presença textual do homem seja o índice de uma cena particular, como se explica o uso do presente do indicativo e a força singularizante dos demonstrativos? Esboço uma tentativa de leitura na forma de hipótese: como o poema seria entendido se, em vez de reproduzir uma cena passada ou descrever uma presente, a cena visualizada fosse resultante da própria enunciação na performance oral, na medida que o próprio “tu” já aparece como uma figura na imaginação do ouvinte? Nesse caso, como o tempo presente não segue uma direção constatativa, o colóquio “ideal” não estaria sendo descrito (representado), senão que é produzido (apresentado) à medida que é dito. Então, o homem pode aparecer, por sua vez, como uma figura na imaginação das duas interlocutoras tomadas como figuras do discurso. Um exemplo desse uso performativo da linguagem pode ser encontrado em outro fragmento de Safo onde a cantora exorta sua lira a ganhar voz e respondê-la, como lembra Costa Lima (1981: 230), fazendo sua lira assumir o papel de locutora da própria canção. Na primorosa transcriação de Haroldo de Campos, a ênfase é colocada justamente sobre o aspecto metalinguístico da performance do “eu”. Segue uma versão literal e uma poética: 273

Fr. 118 V (Hermógenes, Sobre os tipos de estilo [séc. II d.C.]) ἄγι δή χέλυ δῖα †μοι λέγε† φωνάεσσα †δὲ γίνεο† Vem, agora, quelônia divina, †fala-me†: †e torna-te† dotada de voz

Gênese do poema vem lira quelônia divina: vira sompoema (Haroldo de Campos)

No fr. 118 V como no fr. 31 V, Safo emprega uma tékhnē discursiva que Aristóteles refere apenas de passagem no texto da Poética, mas que ocupa um lugar de destaque na Retórica sob o título de enérgeia. A propriedade que interessa ao filósofo nesse “dispositivo retórico” é o que ele chama de prò ommátōn poieîn, a capacidade de “pôr diante dos olhos”, que distingue certo tipo de expressões como fonte privilegiada de matéria verbal para a construção de metáforas.58 Na Poética (17. 1455 a 23), Aristóteles recomenda que o poeta se esforce ao máximo para “colocar diante dos olhos” (prò ommátōn tithémenon) a cena verbal no momento da composição, a fim de aprimorar a expressão (léxis) e a composição (sýnthesis) do enredo (mŷthos). Trata-se de uma técnica para descobrir (heurískoi) com “mais efeitividade” (energéstata) o que é aproriado (tò prépon) ao discurso. É significativo que a mesma expressão reaparece em uma passagem do De anima que a relaciona particularmente com a eidōlopoiía, a “fabricação de imagens”, pelo recurso à phantasía, entendida como “aquilo pelo que dizemos que nos ocorre uma imagem – e não no sentido em que o dizemos por metáfora” (427 b 29-30), mas de modo análogo ao que falamos daqueles que “apoiando-se na memória (en toîs mnēmonikoîs tithémenoi), produzem imagens”: É evidente que a imaginação não é pensamento e suposição. Pois essa afecção depende de nós e do nosso querer (tò páthos eph' hēmîn estín, hótan boulṓ metha) – pois é possível que produzamos algo diante dos nossos olhos (prò ommátōn poiḗ sasthai), tal como aqueles que, apoiando-se na memória, produzem imagens (eidōlopoioûntes) –, e ter opinião não depende somente de nós, pois há necessidade de que ela seja falsa ou verdadeira (ḕ pseúdesthai ḕ alētheúein) (427 b 16-25).

A passagem do De anima oferece um esclarecimento indireto para a voz média da Poética. A

Ar. Rh. II. 1405 b, III. 1410b -1413a.

58

274

diátese do particípio tithémenon significa, então, literalmente: “pondo (diante dos olhos) algo que é posto nele mesmo (no agente)”, ou seja, que é visualizado na medida que se produz uma imagem mental. Por isso, Aristóteles, numa passagem geralmente considerada obscura (17. 1455 a 33-34), diz, logo a seguir, que a tékhnē poiētikhḗ pertence ou aos “habilidosos”, “bem-dotados por natureza” (euphyoûs), ou aos “arrebatados”, “inspirados” (manikoû): pois os primeiros “são mais plasmáveis” (eúplastoi), se modelam com mais facilidade, os segundos porque “saem de si mais facilmente”, i.e., são literalmente “extáticos” (ekstatikoí). Ora, o que os dois “tipos de poeta” têm em comum senão uma capacidade de se experimentar como outro? Por isso, seria um erro grosseiro ver aqui um eco do vocabulário platônico da manía, do enthousiasmós e do poeta éntheos, “possuído pelo deus”. O que fica patente pelo fato de manikoû na passagem de Aristóteles, cujo sentido é geralmente mal traduzido por “loucos”, estar relacionado a uma tékhnē que permite ao poeta dar melhor acabamento à “expressão verbal” (léxis), garantindo a máxima eficácia catártica sobre o espectador, ao passo que em Platão seu emprego visa precisamente a desvalorização da tékhnē do poeta.59 É significativo que essa seja a única passagem da Poética que emprega um termo da família de plásma, com uma palavra que designa precisamente a capacidade técnica do poeta de produzir imagens “moldando”, pela phantasía, um acordo de palavra e memória. Mais adiante (22. 1459 a 78) Aristóteles vai afirmar que bem fazer metáforas é signo de uma “natureza bem dotada” (euphyías), assim como a poiētikhḗ é, aqui, atribuída aos “bem dotados por natureza” (euphyoûs), pois na medida em que são eúplastoi, “mais plasmáveis”, têm mais facilidade de “pôr imagens diante dos próprios olhos”; e apresentá-las diante dos olhos da imaginação do ouvinte é o objetivo da técnica fanopaica, como explica o texto da Retórica. Mas como essa imagem depende “apenas de nós e do nosso querer”, sem necessidade que seja verdadeira ou falsa, trata-se de provocar a experiência de um páthos que na verdade não há e a visão de uma cena que na realidade não se vê, senão pela plasticidade do próprio agente. Por isso, devemos perguntar se o leitor moderno, postulando que Aristóteles não teria tratado da mélica, que implica uma modalidade de elocução nas formas da primeira pessoa (hōs autón), porque esta seria excluída ou se excluiria de antemão de sua definição “narrativa” de mímēsis, não transfere para o filósofo um silêncio prolongado e mantido (apressadamente) pelo próprio intérprete. Pois como se explica a ausência de estudos especializados sobre a mélica do ponto de vista Poética, senão que o helenista contemporâneo tende a tomar o uso performativo do discurso pelo poeta como necessariamente “pragmático”? Para isso seria preciso demonstrar primeiro que “função social” pode ter a locutora do fr. 31V, cuja complexa trama verbal de “vazios” e “estruturas duplas” opõe forte obstáculo a uma finalidade unívoca do discurso. 59

Portanto, entendendo que o termo manikoû possui sentido laico em Aristóteles, como sinônimo de “passional”, “tomado pelo páthos”, não pelo delírio, ao contrário de Platão.

275

2.2. Desejo de ver

que cor, que ação? Já se observou que a mudança de foco para a primeira pessoa no início da segunda estrofe estabelece uma oposição entre a aparência divina de “aquele homem”, sobre a qual a locutora pode apenas conjecturar (phaínetaí moi kênos) e a realidade mortal dos sentimentos do “eu”, para os quais ela pode verdadeiramente garantir: “isso, certamente, a mim” (tó m' ê màn) (Race, p.100). A propósito dessa expressão, Brasil Fontes lembra que na literatura épica ê mán (= ê mḗ n) é geralmente empregado como fórmula solene de juramento (p.193). O que confere maior peso à mudança de cena, sublinhando a força do contraste com “ele parece”. Mas a tradução da expressão por “eu juro”, cria dois inconvenientes: a introdução de um pronome nominativo (eu) inexistente no poema e a quebra do paralelismo mán / mén com a linha 9. Por outro lado, Fontes também registra o uso dramático de mḗ n com valor dêitico: “eis, vede”, geralmente usado na tragédia para introduzir a entrada em cena de novos personagens: “é tentador imaginar, numa espécie de inertextualidade delirante, que, nesse poema anterior à criação do discurso trágico na Grécia, m' ê màn aponta para uma constelação de dramatis personae invadindo desordenadamente o palco” (p.193). Pois a partir dos versos que seguem o segundo mén, serão os próprios sintomas e partes do corpo da locutora que vão assumir o lugar de sujeitos e agentes verbais nas estrofes centrais do poema. Privitera sublinhou com razão que kardían eptóaisen no verso 6 do fr. 31 V é perfeitamente homólogo de dámna thŷmon no fr. 1 V (vv. 3-4) “não me domes com angústias e náuseas | ... o coração” (1969 b: 76). O que reforça o paralelo sugerido pelo tradutor italiano da Odisea entre eptóaisen (com sentido de “estremece”) e trómos... ágrei (vv. 13-14, “tremor... me toma”). Mas a comparação tem um segundo interesse. O item anterior permitiu precisar o sujeito de eptóaisen, representado pelo demontrativo tó, como o particípio feminino gelaísās, “rindo”, determinado por um epíteto de grande carga erótica, imeróen, “que desperta desejo premente”. Suscitar o desejo, como vimos, é uma prerrogativa divina de Éros ou Afrodite e no verso do fr. 1 V o sujeito de dámna, a que se dirige a locutora é precisamente a deusa. O que pode apontar para uma presença oblíqua da divindade no fr. 31 V, igualmente sugerida pelo “brilho” ou “esplendor”, divino por definição, que lampeja no étimo luminoso de “sorrindo”. Mas essa presença divina é particularmente sugerida pelo objeto do verbo: kardían en stḗ thesin. Não por acaso eptóaisen atinge a erasta precisamente em seu “coração” e seu “peito”. Além de sublinhar a introdução de peças duplicadas, kardían e stḗ thesin são termos-chave na concepção grega arcaica do corpo como “brasão heráldico” onde se inscrevem as ações da divindade por meio 276

de signos que se oferecem à decifração de uma “consciência orgânica de si”. Localizados em certos “órgãos da alma”, esses signos corporais estão “em mim”, mas não são “eu”, apenas podem ser assumimdos como “meus”, numa apercepção metonímica de si: cada órgão do homem homérico pode desdobrar sua própria energia, mas, ao mesmo tempo, cada um representa a pessoa como um todo […] Assim, o homem homérico utiliza “meus braços” para a noção de “eu”, quando se trata de uma ação (Il. 1.166) ou “meu menos” [força, vigor] quando está em questão um encontro com um adversário (Il. 6.127) (Fränkel, p.85).

O que é válido em particular para os signa amoris, que se alojam nos órgãos-sede das emoções. “Antes do indivíduo se assumir completamente, enquanto eu, a força de Éros atinge particularmente os órgãos que representam para os gregos arcaicos o foco dos sentimentos” (Calame, p.10). Conforme a clássica formulação de Snell-Fränkel a que alude Calame, um dos traços que permite caracterizar o “homem homérico” como um sujeito “extravertido”, na expressão precisa de Vernant, reside nessa forma de consciência de si que manifesta a intervenção da divindade através de certos órgãos privilegiados: thymós (coração/ânimo), psykhḗ (alma-imagem), nóos (pensamento), phrḗ nes (senso/diafragma), kardía (coração), êtor (coração/pulmão), stêthos (peito), prapídes (coração, mente/diafragma). A despeito do esforço dos helenistas alemães para ler na “lírica” grega os sinais de uma progressiva afirmação do “eu” que daria sustentação à tese de uma história evolutiva do espírito, é significativo que tanto o vocabulário quanto a mentação homérica para exprimir esses aspectos parciais do “eu” se registrem, em contextos muito diversos da narrativa épica, com notável fidelidade nos poetas arcaicos, como reconhece Snell: também Safo “fala do seu amor em sentido mítico; para ela, o amor não é um sentimento que brote do íntimo, mas uma intervenção da divindade no homem. Completamente sua, pessoal, é, ao contrário, a sensação de desânimo que dele decorre” (DE, 64). Não é justamente essa noção de um corpo múltiplo, plural, que permite a Safo introduzir em cena, nas palavras de Longino60 traduzidas com “fina incorreção” por Boileau, um “rende-vouz de toutes les passions” (apud Fontes, p.193)? Talvez mais claramente do que Homero, o poema 31 registra com precisão essa imagem arcaica do homem grego, que Fränkel chama de um campo aberto de forças múltiplas que o invadem e atravessam (Fränkel, p. 97). Por fim, é significativo que o “eu” só apareça na frase como objeto indireto, no dativo m(oi), em posição de completa passividade. Com isso, circunscreve-se a entrada do enigmático verbo eptóaisen na linha 6. Com ele, impõe-se mais uma dificuldade no caminho do leitor. E não chegamos sequer na metade da segunda estrofe! Mais uma vez, o impasse não decorre de algum passo corrupto ou de lacunas textuais, mas radica na própria linguagem do poema. Garry Wills resume os problemas implicados na interpretação do verbo: “se bem que não é uma paixão que se mostra nela, mas um concurso de paixões!” (trad. Hirata, 1986)

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é difícil dizer o que o aoristo no v.6 (eptóaisen) significa. Alguns o chamaram de “gnômico” [como Kalinka], mas este não é o tipo de sentença onde isso ocorre. Ademais, estabelecer uma regra geral anteciparia, e portanto enfraqueceria, a declaração geral ōs... ídō, tornando novamente o argumento circular (“isso sempre me atordoa, porque toda vez que...”). Welcker estava certo em querer que essa sentença cardinal cumprisse uma transição do particular para o geral. A maioria dos scholars simplesmente trata o aoristo como um presente marcando o súbito ataque de desorientação de Safo. O fato de que a palavra é raramente usada no presente confere algum crédito a essa visão, mas mesmo assim o verbo parece combinar estranhamente com os tempos presentes subsequentes (ou perfeitos usados como presente). […] O aoristo é problemático sob qualquer ponto de vista no poema (p.182183).

Com efeito, não faz sentido atribuir um sentido gnômico aos vv.5-6, ao contrário, por exemplo, do v.17, que tem todas as características de uma gnóme parenética. Desde logo, uma máxima aplicada ao “eu” seria demasiado restritiva para assumir o sentido que se espera do enunciado de uma verdade geral, válida sempre, formulada no presente proverbial, por definição “ilimitado”, de um a-horistós. No entanto, isso apenas elimina uma frágil hipótese. Catulo o traduziu por um simples presente: eripit, “arrebata, apanha, retira (os sentidos)”, com sensus no lugar de “coração”. Gary Wills (p.183) só encontra o verbo no presente em Teógnis (1018) e lembra que Alceu o usou como um verdadeiro pretérito no fr. 283.3 V, donde conclui que Safo provavelmente fez o mesmo no fr. 22.14 V. No poema de Alceu, o vv.3-4 (en stḗ thesin [e]pt[óaise | thŷmon) é praticamente idêntico ao do fr. 31 V, apenas tendo por objeto o thymós de uma personagem mítica (Helena), num contexto épico onde predomina o pretérito narrativo. Se o uso do passado é problemático no fr. 31 V, especialmente em correlação com a cena inicial que acaba de ser visualizada no presente, não é esse o impedimento que retém a atenção dos intérpretes. Marcovich se ocupa, antes, das implicações da solução de Page. Partindo da “premissa improvável” de que o aoristo do v.6 teria o mesmo aspecto que os nove verbos subsequentes no presente (ou no presente perfeito), dependendo do tempo verbal do v. 7 (“sempre que te vejo”), ele teria atribuído a eptóaisen o mesmo sentido negativo que os demais, tomando-o como sinônimo de “aflição”, “perturbação” e “ciúme” e o traduziu do mesmo modo que o perfeito da linha 10 hypadedrómaken (“that... has set my heart... a-flutter”, “a subtle flame has stolen beneath my flesh”) (1972: 20). No pretérito, e modificando drasticamente o sentido do segundo verbo, mas concordando, em sentido, com o presente dos verbos seguintes. Primeiro, Marcovich dirige sua objeção à tese da jealousy, argumentando que “a frase-típica (stock phrase) tó moi kardían eptóaisen parece denotar o início de uma paixão amorosa [...] mais do que qualquer sentimento depressivo” (p.22-23). Mas a defesa não é convincente, pois “em outros poetas o verbo significa que alguém ou algo é negativamente afetado”, como lembra Tsagarakis, para quem, ademais, o verbo só adquire esse sentido no poema de Safo “se tó, seu sujeito, referir a sitting scene como um todo” (1979: 101). Não menos insatisfatória, a réplica recebe a devida retificação de 278

Bremer: o significado amoroso defendido por Marcovich “pode muito bem ser considerado como, e descrito nos termos de, um distúrbio emocional negativo”, como é frequente na representação de éros na poesia grega arcaica, e como “é de fato o ponto do poema de Safo”, que enfoca um amor não realizado, antes ressaltando a violência de um éros frequentemente caracterizado como “quebramembros” (1982: 116). Em seguida, Marcovich propõe uma das leituras mais argutas para solucionar o enredado temporal do poema: Desde que a cláusula-ídō denota uma ação iterativa e está ligada à cláusula-eptóaisen por um gár [“pois”] explanatório, segue que eptóaisen deve denotar uma ação que ainda está em efeito quando a ação recorrente “sempre que te vejo” começa a acontecer. Isso significa que o aoristo eptóaisen deve ser tomado como ingressivo, expressando o início no passado de uma ação ainda duradoura (Marcovich, p.23, grifo meu).

Se a tradução de Page pelo pretérito ajudava a confundir os nexos entre os tempos verbais, para Marcovich não são menos insatisfatórias a escolha dos que seguem Kalinka, tomando o verbo como um aoristo gnômico, nem a dos que o traduzem por um simples presente do indicativo, não o distinguindo da série subsequente de praesentia iterativa, como exemplifica D. A. Russell: “it flutters my heart in my breast”. A primeira é insustentável pela circularidade apontada por Wills. A segunda, na medida que o aspecto iterativo implicado no subjuntivo ídō não seria verossímil no caso de eptóaisen “porque uma recorrência da sitting scene não é provável” (p.23). Mas, aqui, o crítco se embaralha na própria refutação, reintroduzindo a seu favor um argumento que já havia descartado: que tó e sé refiram-se a toda a cena inicial. Embora veja o mesmo aspecto inceptivo em Alceu fr. 283 V e Safo fr. 22 V, que estão no passado, Marcovich propõe traduzir eptóaisen no presente recorrendo ao particípio imperfeito61 para diferenciá-lo tanto do presente iterativo (perfeito e imperfeito) dos verbos seguintes, quanto ressaltar seu caráter inceptivo, por oposição ao durativo presente da primeira estrofe (“this it is, no other, I swear [i.e., your irresistible voice and laughter], that set my heart fluttering within my breast”, p.25). Ora, uma vez que o sujeito do verbo (tó) não representa a inteira cena inicial, mas apenas o riso desejável da mulher, o que impede de reconhecer um caráter iterativo em eptóaisen? Pouco importa se a cena inteira é recorrente ou não, desde que o riso perturbador e seu efeito o são. Mas antes de tentar responder à questão, é preciso dirigir o olhar para uma segunda dificuldade. Além da problemática temporal, o aoristo levanta outro: qual o sentido do verbo? Por caracterizar “uma forte sensação”, alguns leitores costumam tomar a cláusula como “uma enfática introdução ao registro das reações da locutora” (Lidov, p.506). Sinos o considera “uma mera preliminar para a explosão psíquica que se segue” (p.28, grifo meu). Seguindo Page, Devereux o 61

continuous tense = gerúndio em português

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identifica como o primeiro de uma lista de dez pathémata. Ao passo que Privitera, lembrando que os sintomas dos versos 7-9 estão duplicados (“não me é possível falar” e “a língua se quebra” referindo o mesmo pathémata oral-vocal), o inclui num conjunto de nove. Finalmente, Marcovich rejeita sua assimilação ao catálogo dos signa amoris, restringindo aos oito que ocupam os vv. 7-16, com a repetição do primeiro. Mas seja tomado como parte integrante, antecipação ou como efeito diverso do iterativo dos verbos seguintes, aqui também as opiniões se dividem quanto o tipo de afeto que ele representa. Giuliana Lanata recorda que o verbo ptóeō possui uma “antiga especialização erótica”, particularmente nos já citados fr. 283 V de Alceu (v.3-4 en stḗ thesin [e]pt[óaise | thŷmon) e fr. 22 V de Safo (v.14, eptóais' ídoisan) e no fr. 346 PMG de Anacreonte (v.12, phrénas eptoéatai). Reproduzo a seguir os três fragmentos apenas na tradução de Ragusa sublinhando os versos que contêm o verbo.

Alceu Fr. 283 V (P.Oxy. 2300 [séc.II ou III d.C.]) (....)[.](..).(..)[ (....).(..).[

](.)[ ]

e de Helena, a argiva, no pe[i]to [a]gi[tou o coração, e pelo ho[mem] troian[o] – o enga[n]a-anfitriã – enlouquecida, seguiu na nau [s]obre o m[ar], a criança na ca[s]a tendo abandonad[o, e do marido, o [l]eito de bela coberta .[ persuadiu com a paixã o peit[o (...) fil]ha de Z[eu]s e ](...)..(....)[ ]dos [i]rmãos muitos .[ ].(....) na planíci dos troianos do[mando po]r causa daquela; mui]tos carros na poeira[ ].(..), e mu[i]tos rútilo[s (heróis?) ](..)..[ ](.....) carnificina (.).[ ]..[..](...); ]...[....](..).[ (Giuliana Ragusa)

280

Safo Fr.22 V62 (P.Oxy. 1231, fr.12 e fr.15) ] ... [ ] tarefa (?) ... [ ] rosto ... [ ] ... ] ... desagradável ... [ e] não, tormenta[ ] ... (dor?)[ ] ... ] ... peço ... (a ti?)[ Go]ngyla (?) (...) pegando ... [ ha]rpa, enquanto de novo o desejo ... [ voa ao redor de ti – a bela –; pois o vestido ... [ vendo tremeste, e eu me alegro, pois cer[t]a vez, a própria ... [ C]iprogê[nia como rez[o isto ... [ q]uer[o (Giuliana Ragusa) Anacreonte Fr. 346 (fr.1) PMG [psógos] (P.Oxy. 2321 [séc. II d.C.]) nem(?) ... temerosos tens, além disso, os sensos, ó tu, das crianç[as] a de bela fa[c]e e (ela) pensa te ... cerradamente ela tendo [ cuidar; ... as [ca]mpinas jacin[tinas], o]nde Cípris, do arreio (soltos?), … [p]rendeu os cavalos … ] no meio correste, em descida, … ] (...) razão pela qual muitos dos cid]adãos em seus sensos se excitaram. “Ó mulher-[rua], ó mulher-rua, Heró[t]ima, ...” (Giuliana Ragusa) 62

Acrescento em itálico o nome da possível figura feminina (Gongyla) que costuma ser suplementado por outros editores, posto sob suspeita na escrupulosa leitura de Voigt.

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Dependendo de um suplemento de editor, no fragmento de Alceu o verbo tem por objeto o thymós de Helena, introduzindo sua “ação irracional” (Lidov, p.526). Embora haja a indicação de que ela agiu “sob a influência de algo (desejo, éros) ou de alguém (Afrodite) – não temos o sujeito de 'agitou'” (Ragusa, 2013: 85). Em Anacreonte o objeto é igualmente sintomático, o verbo agindo sobre o phrḗ nes dos cidadãos que se “excitam” com uma figura feminina, que aparentemente se converteu numa prostituta, chamada pelo vocativo leōphóre, literalmente “a que carrega o povo”, sendo igualada à “rua”, onde todos pisam e passam (Ragusa, p.176). Somente no fr. 22 V de Safo o verbo é empregado de modo intransitivo, sem indicar um órgão específico que sofreria o efeito erótico. Em compensação, nota-se o paralelismo mais próximo com o fr. 31 V: em ambos é uma ação do “olhar” que desencadeia a forte reação passional, atrelada a uma imagem metonímica da amada. Aqui, no entanto, o aspecto iterativo está claramente marcado no advérbio dēûte (“de novo”) que caracteriza a intermitência do desejo (póthos) que “voa ao redor” (amphipótatai) da amada. Por fim, é significativo que tanto no fr. 22 V, como no poema de Anacreonte, a deusa (Cípris, Ciprogênia [“nascida em Chipre”]) se faça explicitamente presente. Com Privitera, passamos a anotar outros empregos sugestivos. Homero usa o verbo ptóeō (e a variante diaptóeō) apenas duas vezes, ambas no aoristo indicativo, como pretérito (Od. 18.340, dieptoíēse; 22.298, tôn dè phrḗ nes eptoíēthen). Numa das quais o sujeito é novamente phrḗ nes. Mas é significativo que nas duas passagens seja precisado como movente o medo (tarbosýnēi, ephébonto). Hesíodo usa o verbo somente uma vez (TD, 447, eptoíētai). Porém nesse passo não se trata de medo, senão da vista dos compaheiros que distrai o jovem e o impede de semear bem, como algo que desconcentra ou desorienta (Privitera, 1969a: 57). Portanto, o mesmo sintoma sáfico (a perturbação do coração) deriva em Homero do medo e se identifica em Hesíodo com o estupor distraído (1969 b: 67). Nos dois casos, diz Privitera, a égide de Atena desorienta e torna sua vítima incapaz de coordenar suas faculdades para atuar conforme demandaria a situação. Assim também, numa das numerosas passagens em que parafraseia o fr. 31 V, o verbo é empregado por Apolônio de Rodes (I.1232) para caracterizar análoga desorientação em contexto erótico: “a reação do órgão é a mesma, mas porque a ação não vem de Atena senão de Cípris, o efeito não é de medo mas de amor” (p.58). Novamente o órgão afetado é o phrḗ nes. Porém, Apolônio relaciona explicitamente a ação de Afrodite que “atordoa o senso” (phrénas eptoíēsen) com a amēkhanía (I, 1233), a “impotência”. Como o medo e a distração, o amor aparece, igualmente, na forma de uma ruptura da coesão psiquíca que torna o indivíduo incapaz de agir. Donde Privitera extrai o nexo que liga entre si os diversos usos de ptóeō: “o verbo é um termo técnico e indica uma ação que se exerce sobre alguns órgãos (phrḗ nes, kardía, thymós) em que residem faculdades psíquicas: esta ação é de distúrbio e de modo a impedir a coordenação da 282

faculdade em direção a um fim” (p.58). Mas o que qualifica a perturbação depende da circunstância: se o fim é o ataque ou a defesa, sua falta significa medo; se é um trabalho, significa distração; se a causa é um vestido feminino, como em Safo 22 V, diz Privitera, a reação da dama que o vê é de... estupor, ou admiração, ou desejo, ou inveja, ou de outros sentimentos semelhantes. Mas se é uma garota como em Anacreonte fr. 346 PMG, a perturbação é simplesmente de desejo amoroso. De modo que “o valor erótico é uma entre muitas possibilidades: não é prevalente em Safo e não o é nos poetas posteriores” (Privitera, 1969a: 58). Como já se pode prever, o crítico faz com que nada fique de fora: Na ode, o verbo eptóaisen, antes que definir, ainda uma vez elude. Suas múltiplas valências, claras nos vários autores, afloram todas tumultuosamente: o medo, como em Homero; o estupor, como em Hesíodo; o esquecimento louco (smemorata follia), como em Eurípedes; o amor, como em Anacreonte ou em Apolônio. […] Das quatro valências, a primeira conclui o quadro inicial, as outras anunciam os distúrbios sucessivos (1969a: 59).

Mas o efeito cumulativo da leitura termina por uma restrição: eptóaisen evoca e convoca para dentro do poema tantos sentidos quanto o filólogo é capaz de angariar, mas apenas para melhor declarar a preeminência do primeiro e anunciar os demais: o termo significa que ela está apavorada e “estremece”. Mas a significação deve emergir da leitura do próprio poema e não da história das palavras ou dos pressupostos do crítico. O que a pesquisa filológica nos informa não é suficiente para ultrapassar um levantamento das palavras “em estado de dicionário”, mas talvez nos ajude a desembaraçar o nexo temporal do verso. A marca de passado (aumento e-) no pré-verbo de ptóeō cria um dilema. Embora seja mais frequente (em Homero, Alceu, Anacreonte, na própria Safo e em Apolônio de Rodes), o uso do pretérito não é sequer cogitado por Marcovich. O emprego do presente simples (usado por Teógnis), muito raro, também não satisfaz Wills. Por fim, a alternativa lógica de atribuir um sentido gnômico ao aoristo presente, por sua vez, cria uma circularidade insustentável. Por ser a solução padrão, a adoção do presente é raramente questionada, mas faz desaparecer a estranheza do verbo neste poema. Para Wills o presente casaria mal com os verbos seguintes. Marcovich atribui essa desarticulação à indistinção quanto ao aspecto iterativo dos pathémata. A solução de tomá-lo como um aoristo ingressivo permite resgatar esse fundo temporal e combiná-lo com o sentido presente na forma de uma ação incoativa. Projetando no passado remoto o início de uma “ação que ainda está em efeito”, supondo um prolongamento sem interrupção até o presente, Marcovich consegue marcar a diferença quanto ao presente “durativo” da série anterior e quanto ao “iterativo” da seguinte. A vantagem do argumento está em mostrar que a marca de passado sublinha a correlação intrínseca que Safo estabelece entre os dois aoristos, conectados por uma conjunção explanatória: “isso acontece porque sempre que te vejo...”. Mesmo no presente, eptóaisen arrasta atrás de si uma memória de outros encontros entre as interlocutoras. 283

Mas como uma simples tradução pelo presente poderia expressar a ênfase de Safo na dimensão performativa da cena, que acontece à medida que é dita, sem perder a memória iterativa dos encontros passados, representada pelo aumento temporal e- do aoristo indicativo? Por outro lado, uma tradução pelo pretérito não apenas reduziria esse aoristo a um simples constatativo, como início de uma narração, mas projetaria paradoxalmente o próprio presente da primeira estrofe numa distância remota (“isso me atordoou”, tendo o mesmo efeito que “isso me deixou palpitando...”, proposto por Marcovich). Do ponto de vista do emprego performativo do discurso, acentuado pela técnica de “dispor diante dos olhos” (prò ommátōn poieîn), é certamente o tempo presente que melhor expressa o sentido atual da reação do “eu”. E o verso 7 explica que não é a primeira vez que tem início uma reação semelhante. Ainda que denote um acontecimento passado, o poema realiza os sintomas no presente. Portanto, se a marca de passado não indica a continuidade, mas a intermitência do desejo, assinalando o caráter recorrente da ação atual, o aumento e- poderia ser expresso numa paráfrase, recorrendo à fómula típica da mélica arcaica: isso me “atordoa de novo”, que Safo utiliza no fr. 22 V para o mesmo aspecto iterativo do desejo, onde o verbo está em conexão com a ação de olhar, numa cláusla explanatória: “pois... vendo, estremeceste” (eptóais' ídoisan). Mas se, lá, o verbo se relaciona possivelmente com o desejo de uma ausente (póthos), portanto, no passado, aqui se dirige a uma segunda pessoa capaz de produzir efeitos no presente (hímeros). A paráfrase teria a seu favor a recorrência do advérbio dēûte (“de novo”) e seus equivalentes na poesia erótica grega como um tópos amatório63. Mas o que importa resgatar é o lastro temporal que o verbo carrega. Não será por conter essa ideia de repetição, declarada no subjuntivo, e de reiteração de um acontecimento particularmente desorientador, que o verbo “confunde” os nexos temporais, sobrepondo tempos diversos? Se a ideia fosse expressa de modo literal o argumento se tornaria circular, como viu Wills. Mas acentuando o começo de uma ação presente que emerge de um fundo cumulativo, ela traz consigo um sentimento particularmente intenso. No entanto, o sofrimento amoroso não é dito, mas produzido na linguagem pelo acúmulo de camadas performativas. Cada palavra do verso está marcada pela repetição do fonema nasal com o final-ν [nŷ], “um som que pode enfatizar o significado sufocante, doloroso do verso” (Sinos, p.29). O efeito paronomástico poderia ser aproximativamente reproduzido em português por uma tradução parafônica: “me estremece (outra vez) o coração no esterno”. Valendo-se de que, em grego, stē̂thos e stérnon (presente no étimo português de “esterno”) são palavras sinônimas, a aliteração R e T produz foneticamente o “tremor”.

63

Snell recolhe e comenta inúmeras variantes desse “traço típico da lírica arcaica”, coligidos a propósito da observação que Safo frequentemente trata o desejo erótico sub specie iterationis (p.68). Cito e acrescento alguns exemplos: Álcman fr. 59(a) D; Safo fr. 1 V, fr. 5 V, fr. 22 V, fr. 34 V, fr. 130 V; Íbico fr. 287 D; Anacreonte fr. 358 PMG, fr. 376 PMG, fr. 413 PMG, fr. 428 PMG.

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sempre que te vejo

Até agora todas as dificuldades mencionadas decorreram ou do próprio poema (sua linguagem e seus vazios) ou das noções pré-concebidas dos intérpretes. Aqui, no entanto, nos deparamos com a primeira dificuldade textual propriamente dita, decorrente de fatores de transmissão e estabelecimento do texto. Sobre o verso 7, escreve Tsagarakis: “as dificuldades textuais são bem conhecidas, mas parece haver concordância em um ponto: este subjuntivo [ídō] é usado com ōs no sentido de hótan sem ke ou án, o que é bastante raro na literatura grega” (1979: 101). Mas para o crítico, o problema estaria apenas no fato de que “alguns intérpretes dão a esse subjuntivo o sentido de um efeito iterativo generalizante, negligenciando completamente a situação poética” (1979: 101, grido meu). Na sua opinião, essa forma de ler o aspecto pontual do aoristo se choca com a completa falta de decoro do gesto de ficar olhando. E Safo não poderia pretender algo tão indiscreto, a cena seria simplesmente impensável: “quem iria compreendê-la?”. um presente do subjuntivo (horóō), que denota uma ação contínua, não seria apropriado. Mas o falante poderia, e provavelmente o fez, olhar para a garota agora e de novo durante o tempo que esteve presente, e o aoristo subjuntivo (ídō), que denota uma ação instantânea [snapshot action], seria bem mais adequado e o único disponível conveniente para esse tipo de iteração (p.102).

Bremer reagiu imediatamente à alta carga de “especulação subjetiva” dessa leitura (1982: 116). “Mas, prossegue Tsagarakis, ao lado do fato que s(è) não está claramente definido”, podendo referir igualmente à garota retratada enquanto reage à presença do homem, “o iterativo subjuntivo não está atrelado a nenhuma situação concreta, ao contrário da situação no fragmento […] em que o presente do indicativo está muito claramente marcado” (p.103). Seria exatamente isso que estaria perturbando a locutora: o fato da doçura e o charme serem uma resposta à presença do homem. Tomando a cena como “real” e referida uma ocasião particular, Tsagarakis interpreta o tempo verbal ao pé da letra. Com isso, negligenciando, ele mesmo, a dimensão performativa da linguagem, fortemente acentuada no poema: que o presente verbal não é o reflexo na linguagem de uma cena exterior ao discurso, mas é produzido no momento em que a poeta o diz. Daí porque não é unânime a edição do verso. Joel B. Lidov enumera uma série de dificuldades que decorrem da reconstrução atual, como se encontra no texto Voigt, que não apresenta, nesse ponto, diferenças substanciais em relação a Lobel-Page. Problemas métrico, sintático e semânticointerpretativo. Reproduzo abaixo o verso transmitido em scripta continua pelo manuscrito-fonte (códice Parisinus 2036) e a versão articulada e corrigida do fr. 31 V, em seguida passo a assinalar os problemas levantados por Lidov.

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cód. P. 2036

ὠς|γὰρσἴδωβρόχεώσμεφώνὰσ

E.-M. Voigt

ὠς γὰρ σ’ ἴδω βρόχε’ ὤς με φώνη-

problema métrico O verso está encurtado de uma sílaba, omitida pelo escriba do cód. Parisinus (ou por um copista intermediário, senão pelo próprio autor do Tratado do sublime, como saber?). Como nota Lidov, a solução de inserir és (= eis) após gár, sugerida por Edmunds e Ahrens, é econômica, “mas a mudança de S para ESS é mais do que uma correção de haplografia: é uma emenda para resolver um problema na linha como um todo. Não há nada de errado com a sequência de letras transmitida, gár s' ídō” (p.517). Do que decorre que a inserção de eis- (eis s' ou és s') foi largamente adotada (p.518), mas a restauração de és para a lacuna de uma sílaba no manuscrito e a divisão de brókhe' ṓ s dependendo do idioma homérico apresentam algumas dificuldades, desde logo gramaticais.

problema semântico-interpretativo A divisão de brókheṓ s em brókhe' ṓ s remonta a Toll, um antigo editor de Longino. B. Marzulo observou que a solução tem a vantagem de reter os acentos do manuscrito (p.517-518). Tomado dessa forma, o termo seria um adjetivo acusativo usado como advérbio, brókhe(a) (= brákhea), com sentido de “brevemente”, “por um instante, um momento”. No entanto, a sequência de letras transmitida também sugere a leitura do advérbio nominativo brokhéōs (= brakhéōs), com uma pequena mudança de acentuação, que, embora mantendo o mesmo sentido de “em pouco (tempo), brevemente”, implicaria outras possibilidades de reconstrução do verso, desde que elimina o duplo-ṓ s homérico, abrindo espaço para alternativas distintas de preenchimento da lacuna métrica. Em favor dessa segunda leitura, Lidov lembra que W. Rhys Roberts, em sua edição de Longino, “escrupulosa em manter a autoridade do manuscrito”, não viu problema em divergir das edições contemporâneas de Safo, imprimindo brokhéōs. Como explica, “nenhum editor recente de Safo recorda que no P(arisinus) […] parece haver um apagamento (erasure) sobre o épsilon” (id.). Mas nos dois casos, o advérbio deriva de brakhýs, que significa “curta, pequena, pouca”. Segundo Lidov (a) o emprego do termo não seria comum na poesia grega arcaica (p.513); e, nos usos que se verifica (b) a palavra aparece primordialmente referida à extensão no espaço, com sentido depreciativo. Sendo necessária uma explícita transferência (metaphorá) quando se pretende aplicá-la ao tempo, pois esse emprego não seria imediatamente evidente, implicando também a perda do tom 286

pejorativo original (p.513). Assumindo que brókhe(a) pode denotar um “intervalo de tempo”, como supõe a edição de Voigt e Lobel-Page: o ponto central é que a locutora contrasta sua própria inabilidade mesmo para olhar brevemente para a mulher com o deleite ou resistência de “aquele homem” demonstrada diante da presença e da voz da mulher; o verbo eptóaisen declara sua reação suscintamente, a sentença gár a explica. Essas análises poderiam não ser diferentes se brókhe(a) fosse omitido. Mas o verbo ideîn é inespecífico (colorless), e o advérbio é o único qualificador na cláusula; dificilmente pode ser ocioso. É preciso que ele tenha um efeito, e, para ser consistente com essas interpretações, esse efeito pode ser apenas amplificado pelo contraste entre a brevidade do olhar da locutora e a atenção prolongada que o homem dá para a mulher (1993: 504-505).

Mas, para Lidov, dessa forma brókhe(a) introduz na frase uma ênfase que não fornece “a good sense” (p.507). Por que? “O problema criado por esse entendimento” é que ele explica a reação da locutora como se tivesse sido causada pelo próprio reconhecimento pelo “eu” do abismo entre ela mesma e o homem, implicando que “os sintomas não são causados pela mulher, mas pelo reconhecimento da diferença entre o estado dele e o dela própria. Nesse caso, poderíamos ser remetidos a uma versão do motivo do ciúme” (p.505). E “se o advérbio não for a palavra enfática da cláusula, ele é ocioso” (p.507). No entanto, insiste o autor, em Safo nada é aleatório. Ademais, na extensa documentação do topos do desejo provocado pelo olhar (ut vidi) coligida por Turyn em Studia Sapphica (1929) não se encontra nenhum paralelo para essa ideia de uma “brevidade do olhar”. Nem mesmo em Catulo, onde simul te... aspexi traduz rigorosamente a controversa fórmula ōs... ṓ s, “não há ali nenhuma representação de bróhke'” (p.507). É verdade, admite Lidov, que há duas fortes vantagens nessa leitura: (a) ela “faz uso de brakhýs em um dos sentidos melhor e mais cedo atestados no século V a.C.” e (b) provê um antecedente para a enfática dobra do segundo e teceiro hṓ s em Teócrito. No entanto, parece inverossímil a restituição do verso 7 com esse uso de brakhýs, uma vez que “o estilo de Safo é sintaticamente preciso, mesmo em citações diretas” e a admissão da emenda introduziria no verso uma “disrupção mimética da sintaxe” (p.523-524, grifo meu). Como não é imediatamente claro o que o autor entende pela última objeção, precisaremos voltar a ela mais adiante. Por ora, concentremonos na edição do verso. Visto que brókhe(a) não fornece “a good meaning” para a primeira cláusula do v.7 (oração subordinada), Lidov pergunta o que ele poderia significar na segunda sentença (oração principal), nos vv. 7-8 (p.523). Uma vez que ideîn não governa um objeto explícito que pudesse ser mensurado em termos de “extensão”, se mantivéssemos o advérbio na oração subordinada, o sentido mais óbvio da expressão ideîn brókhe(a) seria “olhar a uma pequena distância”, com uma implicação adicional de insuficiência, sugerindo que o “eu” não podia ver adequadamente o que estava olhando (p.516). O que é exatamente o que brakhý significa em Eurípedes (Ion 744), numa passagem que, “de outra 287

forma, poderia ter sido citada como um paralelo para o poema de Safo” (p.517). Mas deslocada para a oração principal, resultaria que se pode ler brokhéos... phṓ nēs(ai), com um sentido que, segundo Lidov, não seria “conceitual ou semanticamente inesperado”, como um exemplo de mikrophonía (pequena voz), significando “falar sem força suficiente na voz para ser ouvida através da distância que separa a locutora de sua ouvinte” (p.524). De modo que a oração principal, na falta de um advérbio para em inglês para “small”, passaria a ser parafraseada como: “falar nem mesmo alguma coisa numa pequena voz”.

problema sintático (nexo temporal-condicional) Mas o problema mais grave do verso decorre do uso que o texto padrão faz do duplo-ōs. A construção não tem paralelo: um híbrido de construção no presente geral e do idioma da narrativa homérica para uma reação imediata que tem a forma de uma simples cláusula temporal relativa com um antecedente definido. Como parte de uma construção no presente geral, o uso do subjuntivo aqui também envolve uma anomalia, a ausência de ke(n) (Lidov, 507).

O idioma homérico fornece um antecedente para a construção ōs... ídō... ṓ s em Safo, mas o poeta sempre usa aoristo indicativo tanto para ideîn quanto para o verbo da oração principal. E na construção hṓ s+ ideîn em Homero, o segundo hṓ s é um demonstrativo (p.507), geralmente com o aoristo na oração principal, poucas vezes com o imperfeito ou mais-que-perfeito e muitas vezes com ambos, aoristo e imperfeito (p.521). Nas três sentenças temporais da Ilíada (14.294, 19.16 e 20.424) que usam “a forma imitada pelos poetas helenísticos e possivelmente por Safo – hōs íden, hṓ s + aoristo indicativo – a brevidade da primeira cláusula intensifica o sentido de simultaneidade” (p. 521). O caráter idiomático do duplo-hṓ s foi recolhido por Teócrito, entre outros, notavelmente no Segundo e Terceiro Idílios, onde também usa o aoristo indicativo (como Homero) e uma terceira cláusula hṓ s (Lidov, p.508), nas seguintes passagens reproduzidas abaixo:

Idílio 2.82-83 Gow Φαρμακεύτρια (A feiticeira) χὠς ἴδον, ὣς ἐμάνην, ὥς μοι πυρὶ θυμὸς ἰάφθη δειλαίας [...] Vi-o, e variei, e no fogo caiu o meu coração, mísera! [...] (trad. Érico Nogueira, 2012) 288

Idílio 3.42 Gow κῶμος (A seresta ou O cortejo do cabreiro a Amaryllis) ὠς ἴδεν, ὣς ἐμάνη, ὣς ἐς βαθὺν ἅλατ’ ἔρωτα. Tão logo o viu, pirou logo, e logo o amor bateu fundo (trad. Érico Nogueira, 2012)

Como admite Lidov, “a presença do idioma com um segundo hṓ s [em Safo] é fortemente sugerida pela imitação de Teócrito […] e pelo simul te... aspexi de Catulo, que traduz precisamente a força do segundo hṓ s adicionado à sentença” (p.521). Também se poderia mencionar a paráfrase de Virgílio, no famoso verso da Bucólica VIII que converte o motivo do amor suscitado pelo olhar em moeda corrente, assimilando-a a um tópos: Écloga 8.41 ut vidi, ut perii, ut me malus abstulit error logo que te vi, perdi-me, e o mau engano me tomou. (trad. Thalita Morato Ferreira, 2013)

Sem a repetição de ut... ut, os versos no canto III da Eneida parecem ainda mais próximos do poema de Safo, embora a passagem não costume ser mencionada como paralelo do fr. 31 V por ser uma clara paráfrase de Homero. Mas que difere do épico grego por transpor o conjunto das reações de “medo” para o tópos sáfico do ut vidi: Eneida III.306-309 ut me conspexit veinentem et Troia circum arma amens vidit, magnis exterrita monstris, diriguit visu in medio, calor ossa reliquit, labitur, et longo vix tandem tempore fatur Assim que me viu chegar, assim que avistou por toda parte as armas troianas, ela, fora de si, como aterrorizada por visões prodigiosas, petrificou-se ante aquele espetáculo; o calor abandonou seu corpo; tombou, e só muito tempo depois pôde finalmente falar. (trad. em prosa Rosemary Costhek)64 64

Cito o texto latino da edição Loeb Classical Library, v. I (1930) para os dois poemas de Virgílio. Optei pela versão mais literal, em prosa, do trecho da Eneida citado na tradução brasileira de Montaigne (Ensaios I. 2. 2002, p.17).

289

No entanto, permanece problemático o nexo temporal, já que todos esses paralelos utilizam o tempo pretérito. Donde decorre que mesmo que não tivesse o segundo hṓ s na oração principal, não seria de todo claro o que pode significar a cláusula no subjuntivo em Safo (Lidov, 508). Por outro lado, os raros paralelos para hōs + subjuntivo sem án / ke em Heródoto (I.132.1, IV.172.2) “não têm antecedente definido e combinam hōs com hekástos para enfatizar a repetição do mesmo tipo de ação” (Lidov, 507). Do que conclui Lidov, de qualquer ponto de vista que se considere, o subjuntivo não oferece vantagens. Ele pede para imaginarmos uma série de olhadas de relance (glimpses) da mulher, após cada qual a locutora se sentiria próxima da morte; no último incidente da série, a locutora – a despeito do usual efeito – se endereçaria à mulher, algo que por alguma razão não havia feito até então. Mas a ocasião se torna, então, indistinta e inexplicável – não há indicações suficientes no texto para a complexidade da narrativa que precisamos imaginar […] a cláusula gár introduziria a descrição mais clara e vigorosamente se ela estivesse no indicativo esperado nessa fórmula; o subjuntivo generalizante, com a sugestão de outras experiências e outros tempos, distrai desnecessariamente a audiência da ocasião presente (Lidov, p.509).

Em suma, “como no caso do advérbio brókhe(a), passaríamos melhor sem o subjuntivo” (p.510). E caso não se queria admitir que a falha seja da poeta, devemos pôr em suspeita o trabalho dos editores. É evidente que a narrativa imaginada por Lidov para explicar a concisão elíptica do texto excede tanto a verossimilhança que diante dela o poema não poderia apresentar indícios suficientes para tamanha complexidade. Mas é válido dizer o inverso: o realce dos vazios do texto impulsiona o trabalho da imaginação do editor. Daí a restauração que propõe. A chave da leitura, para Lidov, estaria no segundo ômega. Onde se lê atualmente a marca de primeira pessoa do subjuntivo, ele identifica um ō que estaria originalmente presente, iniciando a segunda cláusula antes de brokhéōs. Rejeitando a divisão de Toll e corrigindo a acentuação do advérbio, que passa a integrar a oração princial, a emenda torna a primeira primeira oração mais curta, como em Homero e Teórcrito. Mantendo o duplo-ōs, porém mudando-o de lugar, trata-se agora de eliminar o incômodo subjuntivo, reestabelecendo o indicativo esperado pelo idioma “normal”, como já haviam feito Bergk e Hartung. O que se completa pela introdução do aumento e- do aoristo, da desinência de primeira pessoa (-ν) e da característica modal do indicativo (morfema zero, assinalado pela vogal breve -o-)65 no verbo eîd. Resultando no seguinte começo para o verso:

ὠς γὰρ εἶδ, ὤ βροχέως ... Poupo o leitor do raciocínio tortuoso que seria preciso para justificar tamanho afastamento em Na verdade, distinguindo-se do subjuntivo pela ausência da vogal longa -ō-.

65

290

relação ao manuscrito. Baste notar que, desde logo, desaparece o pronome de segunda pessoa sé. O que seria suportado, seguno o autor, pelo fato do objeto ser frequentemente omitido em Homero. Embora Bergk e Hartung o tivessem mantido, o argumento contra a omissão perderia força, pois desde que “aquele homem” foi reconhecido como um “dispositivo formal”, i.e., como uma mera figura de contraste, pelos intérpretes mais recentes, o entendimento de que o objeto do verbo seria a mulher estaria “fora de disputa”. Donde conclui Lidov: “não vejo argumento que obrigue a incluí-lo, embora um tradutor tenha que adicionar 'te'” (p.522). Portanto, este estaria tácito (silicet), pressuposto após o verbo. Em seguida, passando a ser lida no passado (“pois quando [te] v, en...”), a restauração exigiria igualmente um pretérito indicativo na oração principal. No entanto, temos um presente imperfeito do indicativo usado como verbo impessoal (eíkei, “é possível, provável, apropriado” ou “parece [que]”), governando um aoristo infinitivo (phṓ nēsai, “falar”) – e nenhum dos dois apresenta problemas de transmissão! Pelo que o autor se vê numa situação difícil: é forçado a admitir a correção do texto, mas no momento de traduzi-lo o verte pelo pretérito (“it was not possible that I speak”; “For when I saw you... then nothing was it still possible for me to speak”, p.523) ou simplesmente omite o segundo verbo (“to speak not even on thing in a small voice”, p.524). Como a correção não corrige, o que resta da análise da “anômala sintaxe da contrução ὠς ἴδω, ὤς εἴκει” (p.531), senão um excelente exemplo do enredado do poema e uma demonstração da trama sintática que embaraça o leitor quando tenta decifrá-lo a partir de uma prévia concepção da linguagem como reflexo de uma cena particular? Paradoxalmente, é por ser bem formulada que a objeção se converte na melhor defesa da edição padrão do verso. Por isso, ganharemos em confrontá-la com a refutação diversa de um segundo intérprete. Bem mais suscinta, esta se concentra apenas nas palavras inicias em que a leitura pardão identifica os quatro elementos já apresentados: a conjunção gàr (“pois”), a preposição (“para”), o pronome de segunda pessoa sé (“te”) e o verbo subjuntivo ídō (“vejo”). No ano seguinte à publicação da edição de Poetarum lesbiorum fragmenta de Lobel-Page e do estudo crítico de Page sobre Sappho and Alcaeus, Beattie dedica um artigo às soluções dos autores para o fr. 31 V. Somente no último parágrafo aborda o verso 7: “os editores, habituados com a noção de que qualquer pessoa em que Safo professe um forte interesse deve ser uma mulher”, teriam sido induzidos a reconhecer a elisão do pronome sé, identificando o objeto de “vejo” com o “tu” feminino da primeira estrofe. No entanto, não haveria razão para descartar a possibilidade de que o texto original não pudesse ser ŌSGARSIDŌ, lendose ōs gàr eisídō, como subjuntivo do verbo eisoráō (“olhar para”). A mesma solução já havia sido proposta por G. Hermann, (1816), J. Seidler (1829) e H. J. Heller (1856). Em todos esses casos, assim como vimos ocorrer na restauração diversa de Lidov, 291

exclui-se, omitindo, o objeto esperado. Mas a explicação de Beattie para sua escolha não tem precedente. Admitindo que “o objeto de eisorân não precisa ser expresso”, este poderia ser tomado igualmente por sphṓ (pron. ac. de 2ª pess. pl. “vós ambos”) ou mesmo por tón (pron. dem. ac. sing. oútos “este, aquele”, referindo-se ao sujeito da primeira sentença) de forma implícita. O que seria provável, uma vez que eis- ocorre com frequência em compostos na poesia de Safo (fr. 23.3, fr. 95.7, fr. 5.13, fr. 62.7). Mas nessa leitura, o objeto causa do desejo já não seria necessariamente a mulher, podendo ser igualmente o homem (1956: 111). muitos scholars pensaram que Safo é movida pelo afeto por outra mulher e pela inveja ou frustração de perdê-la para o homem. É igualmente possível, entretanto, que ela estivesse apaixonada pelo homem e com inveja da mulher que tomou o homem dela. A angústia das linhas 9-16 seria adequada ao ciúme tanto quanto ao amor frustrado (p.110-111).

Desse modo, a tese do ciúme sairia “grandemente fortalecida”, em concordância com sua leitura do v.17: “pois Safo estará reconhecendo, então, que ela fracassou no amor por falta de ousadia” (p.111). No primeiro caso, assim como Page refere o demonstrartivo tó, na linha 5, à cena do casal como um todo, em paralelo com o pronome sé, no verso 7, implicando “sempre que olho para você, sentada perto dele”, se o objeto implícito de eisídō fosse sphṓ (vós ambos), a leitura geraria uma contradição entre o aoristo indicativo eptóaisen e a sentença geral com subjuntivo, criando um raciocínio tautológico como notou Wills: “você estar sentada com ele me atordoa porque sempre que te vejo sentada com ele...”. Nisso a reconstrução de Beattie não apresenta novidade. Em compensação, na segunda alternativa, a leitura “pois sempre que olho para aquele (homem), por um instante...”, entra em contradição diretamente com a própria situação dialógica “eu – tu” do poema: por que a locutora faria tal declaração para um tu feminino agora colocado como rival?! Forçando-a até o absurdo, Beattie implode involuntariamente a tese do ciúme. Como registra Privitera, “a interpretação de Beattie demonstra que o objeto é indispensável. Precisamente porque, omitindo o pronome, o objeto de ídō pode ser indiferentemente o homem ou a garota”. Safo teria escrito, portanto, sé, que derivava da lição transmitida e é confirmado pelo simul te de Catulo (p.40). Não obstante, com todas suas insuficiências e contradições, penso que as teses de Beattie e Lidov não têm um interesse apenas negativo. Mas antes de demonstrá-lo, passemos a acompanhar os intérpretes que derivam as consequências da edição mais aceita. Segundo Privitera, no verso 7 seria de se esperar qualquer coisa parecida com: ōs gàr eis s' eîdon brakhý, ṓ s + um outro aoristo indicativo

Sendo o segundo ṓ s com valor demonstrativo-temporal (conforme o exemplo mais antigo de Homero, Il.14.294). “Safo, ao invés disso, escreve primero um aoristo, mas no subjuntivo, e depois (ao que parece) um indicativo presente” (1969a: 55). Seguido do subjuntivo, hṓ s é raro e indica “o 292

que acontece sob certas condições” (id.). Portanto, em Safo o subjuntivo estaria no aoristo para sublinhar a pontualidade. Mas, bem entendido, a pontualidade de um acontencimento recorrente. E como aparece na forma de um iterativo, a cláusula ōs ídō opera uma “imprevista mudança de perspectiva”: “de uma situação particular se desliza para uma condição geral, válida sempre” (id.). Observações semelhantes se repetem indefinidamente. Lefkowitz observa que o uso de “ṓ s com o subjuntivo ído” pressupõe um tempo indefinido (1973: 120) e, como Wills, entende que o v. 7 introduz uma regra geral: “toda vez que te vejo...”. O subjuntivo dá à cláusula o sentido de hopótan (quando, assim que, no momento que, sempre que) (Wills, 1967: 168). De modo que, espera-se ke / án na frase, mas Wills presume que possa ser omitido na poesia lésbia, visto que assim ocorre em outras cláusulas subordinadas com subjuntivo em Safo fr. 16.4 e fr. 98.3 (id.). No entanto, G. L. Ahrens (1839) argumentou que, desde que a omissão de ke seria a melhor forma para entender o subjuntivo em Safo, a fórmula homérica ōs... ṓ s que Toll introduziu no texto deveria ser rejeitada, pois a construção acompanha o aoristo indicativo em ambas as cláusulas, mas aqui temos subjuntivo na cláusula subordinada e presente do indicativo na principal (id., p.169). Por isso, como sublinhou Wills, “estes problemas estruturais [v.5 e v.7] são cruciais para se interpretar o poema. Eles dão origem, por exemplo, à discussão labiríntica de saber se se trata de uma expressão de ciúme” (Wills, p.170). De todas as leituras, a mais significativa é a de Lidov. Seu empenho em rejeitar a força generalizante do subjuntivo dá ensejo a uma detalhada exposição das dificuldades do verso. Mas também ao cotejo mais significativo com os intérpretes. Por exemplo, desde que Privitera viu no aspecto genérico do subjuntivo um traço que distingue o efeito regular da beleza mulher sobre a locutora / da ocasião presente em que o “eu” vê sua amada com o homem, supondo uma brusca “mudança de perspectiva”, Lidov pode considerar sua leitura bastante satisfatória. Ele chega quase a justificar o subjuntivo, na medida que mantém a cena inicial como uma situação particular. Mas desde que o homem foi reconhecido como hipotético pela interpretação mais recene, o subjuntivo ainda seria necessário para marcar a distinção? (p.508). Assegurada a posição de Lidov, passa-se à defesa do subjuntivo pelo ataque dos leitores que combinam o caráter hipotético de “aquele homem” com o “tom generalizante” do verso 7, como Anne Pippin Burnett: “eu penso que isso contradiz a correta insistência da autora no poema como ficção […] pois uma ficção é uma imitação de uma ocasião particular, não uma generalização” (p.508, grifo meu). Para Lidov, a “aparente denegação da particularidade da ficção” por Burnett parece ser “uma consequência acidental do seu esforço para extirpar os efeitos da crítica historicista e biográfica” (p.509). O mesmo sucederia a Mary Lefkowitz, devido a seu insistente combate ao biografismo, na medida que a autora argumenta que “a deliberada generalidade do poema, a ausência de nomes próprios e específicas referências a tempo e espaço, indicam que o poema não pretende trazer à mente nenhuma ocasião ou lugar particular” (1973: 122). O equívoco em ressaltar o papel da phantasía na 293

construção do tom generalizante decorreria de sua oposição à crítica biográfica, enquanto, ao contrário, para Lidov o poema é uma ficção justamente porque imita uma situação particular. O que é o oposto da noção conhecida pela Poética de Aristóteles! Se nem mesmo em Platão o conceito de mímēsis se define como “imitação”, o que isso significa senão que o crítico projeta na poesia grega uma noção formulada apenas no início do século passado, da poesia como “reflexo” da realidade histórica? Com isso, já podemos retornar à estranha cláusula com que o Lidov pretende refutar definitavemente a edição do verso 7 admitida por Eva Voigt e Lobel-Page: O estilo de Safo é sintaticamente preciso, mesmo em citações diretas. Embora ela faça uso expressivo de formas métricas incomuns, como na linha 10 […] ou mesmo possivelmente admitindo um hiato na linha 9, eu não encontro equivalente para a disrupção mimética da sintaxe que essa leitura apresenta. A ordem das palavras também me parece pesar contra [essa leitura] (Lidov, 523-524, grifo meu).

Me pergunto se o efeito que o autor identifica na terceira estrofe de Safo não seria comparável ao que se encontra na intradução de Augusto de Campos para o poema 51 de Catulo, com o súbito atordoamento da sintaxe e da tipografia que atinge a teceira estrofe: […] pois sempre que te vejo, Lésbia, em mim morre a voz na boca

e língua um torpor tênue em meu

corpo chama um som sem fim retine

nos

ouvidos

olhos

retina

nos

noite

(Augusto de Campos, 2006)66 Um procedimento que faz a aparecer a “Lésbia” na boca, olhos e ouvidos, pelo “entorpecimento” do próprio corpo da linguagem de Catulo. Para Lidov, o efeito imitativo se refere à correspondência com um acontecimento particular. Enquanto a perturbação da sintaxe se aloja na problemática construção ōs... ṓ s com subjuntivo que sua reconstrução do verso cuidadosamente evita, reintroduzindo o aoristo indicativo homérico (= pretérito simples). Mas de que essa “anomalia sintática” seria o reflexo senão da afecção que comprometeu a capacidade da locutora de articular a fala “quando viu” aquela cena particular? Em suma, é por essa “disrupção da sintaxe” acentuada a partir do verso 7 que o poema causa dificuldade e o fato da ideia de “brevidade do olhar” não ter paralelo na longa história do tópos ut vidi seria justamente um sinal dessa diferença. in: Campos, A. Outro. São Paulo: Perspectiva, 2015.

66

294

Nesse sentido, um detalhe particularmente significativo é o fato de brókhe' ṓ s estar contido em brokhéōs. Com uma mudança de acento fazendo aparecer dentro do advérbio “brevemente” a contração de duas palavras, brókhe(a) + ṓ s, “por um instante, então”, o verso não poderia ter sido pensado para sugerir a dupla escuta? Se a hipótese for plausível, Safo teria destacado uma palavra (ṓ s) dentro de outra palavra (brokhéōs), de modo a produzir na linguagem a própria abreviação do “instante”, encurtanto o advérbio e precipitando a rapidez do efeito provocado pelo olhar. O que só é possível no dialeto eólio, pela ausência de aspiração em (h)ṓ s. Numa tradução aproximada, para ilustrar melhor a concentração de linguagem empregada por Safo, essa isomorfia poderia ser reformulada em português numa construção como: “pois quando te vejo, um momen’ tão logo fal-”, destacando “(en)tão” dentro de “moment(o)”. Mas se quisermos ser consequentes com a ênfase de Safo no uso performativo da linguagem, também não se poderia admitir que a construção s’ídō (olho para ti) seja concebida como tmese do verbo eisídō, “olhar para”, e calculada para introduzir o objeto “tu” (representado por um simples s') dentro dos olhos da locutora, como sua kóra, literalmente, sua “menina dos olhos”? Nesse caso, ficaria patente que a omissão do pronome não teria decorrido de um simples erro de haplografia, mas, sim, de uma verdadeira incompreensão do escriba! Não é difícil reimaginar o “acidente” a título de hipótese. Tomando SS em ESSIDŌ como uma ditografia acidental, o copista reconheceria imediatamente o verbo eisídō. Porém, julgando-o um erro de transmissão, o teria corrigido para S' IDŌ, pela necessidade de exprimir o objeto, apagando deliberadamente a preposição (éis-) diante do acusativo. Embora não houvesse nenhum problema com a idiomaticidiade do chamado “objeto direto preposicionado” formado pelo acusativo de direção, apenas a posição do pronome s(é) seria demasiado inesperada. Não por acaso, mutos editores, até recentemente, ainda optariam por realocálo antes de gár ou depois de ídō / eîdon.67 Consertando o verso e tornando Safo um pouco menos inventiva.

67

e.g., as emendas propostas por Bergk (gàr eúidon brokhéōs se) e Hartung (gàr eîdón s') (apud Lidov, 1993: 522); por Diehl (ṓ s se gàr ídō) e Ahrens (hṓ s se gàr wídō), metricamente insatisfatórias, e por Barigazzi (ṓ s ke gàr s' ídō), com um ke desnecessário no uso sáfico, segundo Privitera (1969b:39), onde se apaga com és o sugestivo eisído.

295

lance de dados sobre um lance de olhos O poema Phaínetaí moi emprega diversos motivos típicos da poesia amorosa arcaica, como o eikázdein-tópos “semelhante aos deuses”, através de um epíteto formular épico ísos théoisin, e o tópos do “cóloquio amoroso” (oaristýs), presentes na primeira estrofe, com uma possível alusão ao tópos iterativo “éros, de novo” (dēûte) no verso 6. Há outros. Mas todos esses temas tradicionais são geralmente deixados em segundo plano em nome do papel central ocupado pelo tópos do “lance de olhos”. Nenhum motivo do poema foi tão imitado e parafraseado quanto o tópos ut vidi (quando [te] vi) associado ao catálogo dos signa amoris de Safo. Como notou Lidov, em toda a longue durrée desse lugar-comum não se encontra nenhum equivalente para a “brevidade do olhar” no fr. 31 V. A que podemos acrescentar agora: muito menos para a extrema concentração de linguagem do verso 7: a nos pautar pela leitura de duas tmeses em s’ídō (eisídō com um pronome interno elidido sé) e brókhe' ṓ s (brókhea + ṓ s dentro da palavra brokhéōs), simplesmente não há equivalente em nenhuma tradução do poema. Como traduzir aquele “tu” dentro dos olhos? Augusto de Campos trabalhou quase uma década (de 1973 a 1992) na recriação do poema em português, até encontrar o “lance de escrita” capaz de refingir a linguagem de Safo. O resultado foi a intradução mais complexa do poeta, o impressionante Pseudopapyros, que condensa todo o fr. 31 V em um único verso-epigrama. Desde o primeiro “final de linha” de um papiro imaginário: ]ε κορασαο, onde se lê em caracteres gregos, “]e coração”, lançando mão de um “realismo de linguagem” semelhante ao conto “Meu tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa, o poeta dissemina termos gregos pelo texto. De modo que somente a escuta bilíngue permite destacar dentro da palavra κορασαο o significante kóra, forma eólica de kórē, “menina adolescente”, “mulher jovem”, que possui a variante no diminutivo korásion, “garota, mocinha” quase homófona do verso em português. Estabelecendo uma proximidade entre os signos “kóra” e “coração”, o termo também é o nome grego dessa parte privilegiada da anatomia do olho, a “pupila”, que em português vem igualmente do diminutivo latino de pupa, “menina, boneca”. Usando o próprio dialeto de Safo, o poeta introduz na retina e no peito da persona uma “menina dos olhos”, que atinge o coração entrando pelo olhar, como indica a presença da “ação” (ασαο) da “menina” (κορα) no coração. Nada se perde. Nem mesmo o efeito da visão, assinalada por um simples “ε”. Em português a conjunção “e” põe todo o fragmento sob a perspectiva da parataxe que Safo emprega nos versos centrais (vv.9-15) pela repetição obsessiva da coordenada dé... dé... (e... e...). Porém, lida em grego, ela corresponde à interjeição “oh”, “ah”, “ai”, que exprime especificamente um sinal de dor. Fazendo a tradução começar pela lista dos pathémata, os efeitos passionais ou “signos de amor” que aparecem na linguagem à medida que o poema se decifra, mostram a locutora no momento que dirige a si mesma ou à sua amada, as palavras que expressam seu agudo sofrimento. Mas a própria dor é um 296

efeito de linguagem: não há leitura realista que faça aperecer a expressão “ai, coração” e “ai, menina”. Só uma leitura capaz de identificar o complexo sistema de tmeses com a finalidade de fazer soar outras palavras dentro das palavras, na forma de um palimpsesto. Fazendo uma alusão paródica à “língua quebrada” de Safo, Pound nos permite destacar outras camadas da história da categoria de poesia através do fio condutor do tópos do olhar no poema 31. Pound Canto 74 (vv.683-701) Cantos Pisanos: Ele disse que eu protestava demais [ele] queria instalar uma editora e publicar os clássicos gregos... periplum e o muito muito velho Snow criou uma considerável hilaridade citando o phaínet-t-t-t-ttt-taí moi em resposta a l'aer tremare a beleza é difícil […] e é (entre parênteses) sem dúvida mais fácil ensiná-los a rugir como gorilas do que escandir phaínetaí moi (José Lino Grünewald)

Pound aproxima em primeiro lugar, o poema de Safo de uma canção de Guido Cavalcanti, que retoma o motivo do amor provocado pelo olhar e o efeito de mudez do amante no contexto do stil nuovo. Para nossa leitura, importa tomar a semelhança do mesmo tópos diversamente elaborado pelos dois poetas como de pano de fundo contra o qual se destaca a distância entre as duas concepções de poesia e de sujeito em épocas muito afastadas. Utilizando as categorias cunhadas pelo próprio Pound, a diferença começa na composição do mélos e na importância da fanopeia em Safo, em contraste com a crescente ênfase na logopeia, no soneto de Cavalcanti.

Chi è questa che vèn, ch’ogn’om la mira, che fa tremar di chiaritate l’âre e mena seco Amor, sì che parlare null’omo pote, ma ciascun sospira? O Deo, che sembra quando li occhi gira, dical’Amor, ch’i’ nol savria contare: cotanto d’umiltà donna mi pare, ch’ogn’altra ver’ di lei i’ la chiam’ira. Non si poria contar la sua piagenza, ch’a le’ s’inchin’ogni gentil vertute, e la beltate per sua dea la mostra.

297

Non fu sì alta già la mente nostra e non si pose ’n noi tanta salute, che propiamente n’aviàn canoscenza. Quem é esta a que toda gente admira, que faz de claridade o ar tremular, com tanto amor, e deixa sem falar, e cada um por ela só suspira? Ah, Deus, como ela é, quando nos mira? Que diga Amor, eu não o sei contar. De tal modéstia é feito o seu olhar, que às outras todas faz que eu chame de ira. Nem sei dizer do seu merecimento. Toda virtude a ela está rendida, beleza a tem por Deusa e assim a exalta. A nossa mente nunca foi tão alta, nem há ninguém que tenha tanta vida para alcançar um tal conhecimento. (Augusto de Campos)

Em Guido, o que emana dos olhos da amada e penetra no olhar do amante não decorre de uma Potência mítica de éros, mas de uma explicação que encontra sua expressão plena na moderna teoria dos espíritos, a que Cavalcanti dedica outro célebre poema, no qual o olhar, que faz a língua se quebrar em Safo, novamente dá lugar ao mesmo efeito inesperado, que faz tremular o ar (lo spiritel), espírito que faz a dona gentil: Pegli occhi fere un spirito sottile, che fa ’n la mente spirito destare, dal qual si move spirito d’amare, ch’ogn’altro spiritel[lo] fa gentile. Sentir non pò di lu’ spirito vile, di cotanta vertù spirito appare: quest’ è lo spiritel che fa tremare, lo spiritel che fa la donna umìle. E poi da questo spirito si move un altro dolce spirito soave, che sieg[u]e un spiritello di mercede: lo quale spiritel spiriti piove, ché di ciascuno spirit’ ha la chiave, per forza d’uno spirito che ’l vede.

298

Pelo olhar fere o espírito sutil que faz na mente o espírito acordar, do qual se move o espírito de amar que faz de todo outro espírito servil. Não o descobrirá espírito vil, tal é o dom deste espírito sem par, espírito que faz tremer o ar do espírito que faz dama gentil. E deste mesmo espírito se move um outro doce espírito suave, que um espírito segue de mercê. O qual espírito espíritos chove e dos espíritos conhece a chave, por força de um espírito, que vê. (Augusto de Campos)

Não seria difícil mostrar a relação de descendência do tópos admirari em Guido e Dante até o fr. 31 V: seu uso em “Tanto gentile e tanto onesta pare” já foi rastreado até Virgílio (ut vidi) e Catulo (simul te... aspexi), e através deles, indiretamente a Safo (ṓ s... ídō... ṓ s).68 Mas à diferença de Safo, aqui o desejo remete a uma dimensão interior da fantasia. Antes de se apoiar sobre uma divisão entre corpo e alma, como ocorrerá nas traduções renascentistas do fr. 31 V, já na poesia medieval “o fantasma emerge ao primeiro plano como origem e objeto de amor, e o lugar próprio de Éros se desloca da visão para a fantasia” (Agamben 2007: 146). Um estudo comparado sobre as diferentes concepções de sujeito e poesia nos poetas mélicos e na lírica de Provença e do dolce stil nuovo poderia fornecer uma base mais precisa para a interpretação da mímēsis como pressuposto comum através da história das formas líricas. Por ora, limito-me a indicar o fio fornecido pelo tópos do olhar e retorno à leitura concreta do poema, passando para o próximo item. Para nossa indagação da mélica, importa verificar como a partir desse breve olhar os efeitos de éros desencadeam os “sintomas” (pathémata) da série dos signos de amor que ocupam a parte mais famosa do poema. Nas páginas seguintes, vamos concentrar a análise em dois desses signa amoris: a língua quebrada (verso 9) e o suor que se derrama (verso 13).

68

cf. Turyn, apud Lanata, p. 72; apud Lidov, p.xx; Francesco Citti, 2011.

299

2.3. A língua quebrada

falar nada

“Isso é a suprema indignidade, uma poeta sem uma voz” (Sinos, p.30). No comentário que acompanha sua tradução, Giuliana Ragusa chama atenção para uma primeira camada metalinguística se faz presente na “perda da voz”, central na patologia erótica e crucial para uma poeta de tradição oral. Sobretudo para a representação da cena, “que se realiza a partir justamente dessa perda” (2011, p.104-5). Apenas esse “sintoma” se estende por três versos (vv.7-9), ao invés de apenas um, como os demais. Com a repetição sublinhando o paralelo com os signos orais positivos dos vv. 3-5, o paradoxo central do poema, para a maioria dos intérpretes, residiria no que Winkler chamou de sua “eloquente declaração de perda da fala (speechlessness), sua poderosa declaração de impotência (helpness)” (Lidov, 509). Uma contradição que só constitui problema para os que enfatizam que o poema é, ao menos potencialmente, “a real address”, como escreve Lidov (p.509). A solução proposta por Toll, antigo editor de Longino, dividindo bróhke' ṓ s no meio da linha, cria uma segunda dificuldade que se estende pelo verso seguinte: “se o advérbio é tomado como parte da oração subordinada, a oração principal começa com o pronome enclítico me” (Lidov, p.518). Mesmo após Wilamowitz ter chamado atenção para essa consequência, para a maioria dos editores isso não constituiu problema. Alguns mudaram me para sè, para evitar o enclítico e atingir um sentido mais satisfatório para a frase (p.518). Muitos editores do século XIX construíram um genitivo partitivo de phṓ nēs(-as) com oudèn e descreveram eíkei como uma forma de íkō (ou o emendaram para íkei) a fim de obter com sè o sentido de “minha voz não chega até você”, ou com me, [o sentido de] “minha voz não vem até mim” (p.518).

Turyn, Braun e Diehl, entre outros, julgando *eíkō inaceitável, adotam uma forma de íkō e o genitivo (p.519). Mas para Lidov “a construção com genitivo partitivo é pesada” (id.) e a dificuldade se resolveria movendo brokhéōs para a oração principal. Edgar Lobel, seguindo uma sugestão de Danielsson, optou por construir o infinitivo phōnaîs(-ās’) com uma forma impessoal de *eíkō para o sentido exigido de “não posso falar” (p.519). A maior dificuldade com essa leitura (“não é possível para mim falar”) é que não haveria evidências suficientes de que o verbo possa ser usado impessoalmente com esse sentido. Page o admite, mas sublinhando sua dependência do composto pareíkei no dialeto ático (Lidov, p.519). Os editores ingleses mantêm o texto do manuscrito (com o álpha final que Voigt emenda para êta em concordância com o dialeto eólio), e traduzem a locução “phṓ nas... eíkei” por: “não tenho mais o poder de falar”. Mas Page anota logo em seguida: 300

“phṓ nais(ai) infin. aoristo de phónēmmi (ático phōnéo); eíkei impessoal ('é possível'), como no composto pareíkei” (apud Privitera, p.40). Se entendo corretamente as posições dos especialistas, a alternativa estaria entre tomar eíkei como um uso impessoal de éoika (ou *eíkō), com sentido sinônimo de dýnamai (“poder”) ou hoîos + eimí (“ser capaz”), equivalendo à locução “é possivel”; ou como uma forma não atestada de íkō (“vir”), formada com a marca de passado (aumento e-), que, por ser improvável, é emendada por alguns editores para a terceira pessoa íkei (“vem”). Resultando em duas leituras, afinal, pouco diversas: “não é possível para mim falar mais nada” e “nada vem/veio até mim para dizer” ou “nenhuma voz me vem [para falar]”. Para Privitera, nenhum verbo daria um sentido satisfatório: a primeira opção seria “pesada” e a segunda muito “banal” (Privitera, p.40). A segunda alternativa, poder-se-ia acrescentar, soa mais próxima da solução de Catulo: nihil est super mi | , “nada resta em mim | de voz na boca”. Mas substituindo o verbo éoika por íkō, apaga-se uma nota importante no poema: a relação que o termo estabelece com o duplo phaínein, como já observamos anteriormente. Não por acaso, é essa forma que vemos Safo empregar no fragmento das bodas de Heitor e Andrômaca (fr. 44 V) para compor o epíteto “semelhante aos deuses” (íkeloi théois e theoeikélois), evidenciando a proximidade com o primeiro e último versos. Portanto, o uso de eíkei não é banal se pretende sublinhar a incapacidade de usar a voz, como notou Lidov: “a inabilidade da locutora para falar constitui uma amēkhanía precisamente em vista da ação no que diz respeito a éros […] Teócrito faz a mesma conexão (p.527). Em Safo, a expressão “falar nada me é possível” pode indicar, então, duas coisas: em primeiro lugar, a impotência (amēkhanía), a incapacidade de falar no sentido comum da afasia ou afonia, mas também, uma impossibilidade de dizer diretamente o desejo, aludindo ao desvio retórico da hipérbole (aúxesis) negativa. Essa segunda leitura seria suportada pelo polissíndeto que inicia no verso seguinte, na medida em que “o que não se pode dizer” – o desejo – é dito por outras vias, nos vv. 9-16. Importa notar que, nos versos 7-8, o primeiro pathémata aparece destacado da lista: metricamente, pertence à estrofe anterior, a que se liga também como oração principal da cláusula geral ṓ s... ídō; sintaticamente, é o único “sintoma”, dentro do catálogo, que não vem introduzido por uma conjunção, estando fora do polissíndeto, e está enfaticamente separado da sua “repetição” por uma adversativa (allá). Mas seria falso tomá-lo por uma declaração retórica. Nesse sentido, a leitura de Dale Sinos oferece um melhor ponto de partida: A poeta diz que não pode falar, embora continue falando; diz que está envolvida numa dissolução emocional, embora o poema demonstre um exímio controle na execução. A poeta, dessa forma, está claramente separada do personagem que chamamos de Safo no poema. A incongruência […] é não só consciente mas necessária, e nos recorda a todo o tempo da voz que exerce o controle por trás do poema e a manipulação objetiva das figuras no drama [sic] (Sinos, p.30).

301

... mas a língua

Ao contrário das linhas 7, 13 e 17 que estão claramente danificadas no tratado de Ps.-Longino, se compararmos o verso 9 do fr.31 V transmitido pelo manuscrito com o texto atualmente aceito por Voigt, quase não há diferenças. cod. P. 2036

ἀλλὰκἂν|μὲνγλῶσσαἔαγελεπτὸν

E.-M.Voigt

ἀλλὰ †κὰμ† μὲν γλῶσσα †ἔαγε† λέπτον

Que razão teria levado os editores a “desesperar” com as palavras marcadas com as cruces desperationis? Elas significam, certamente, a suspeita de que a linha 9 pode estar comprometida, mas não é necessário que esteja. Nem há prova do contrário, pelo menos em relação ao manuscrito principal. O certo é que o texto contém inúmeras dificuldades filológicas, métricas e gramaticais em si mesmo, motivando a dúvida. A leitura tradicional (allà kàm mèn glō̂ssa éage) põe graves problemas: a começar pelo (a) hiato entre glôssa (“língua”) e éage (“quebra”) que contradiz a métrica do verso grego, sendo um dos primeiros fatores a convencer muitos editores a marcar o verso como corrupto e a principal causa das tentativas de emendá-lo; em seguida (b) a expressão “a língua se quebra/se quebrou” é usual em latim e foi retomada na paráfrase de Lucrécio (De rerum natura III.155) com a expressão infringi linguam, mas não é atestada em grego, de modo que o pathémata não parece ter precedente nem ocorrência posterior para ajudar a decidir a leitura; (c) a correspondência com lingua sed torpet na transcriação de Catulo, contemporâneo de Lucrécio (séc. I a.C.), por não ser literal geraria duas leituras possíveis do verso se Safo, na opinião de alguns intérpretes; (d) o verbo ἔαγε, de acordo com muitos editores, estaria associado com κὰμ, devendo ser entendido como tmese de κατέαγε; por fim, (e) o presente perfeito de ἄγνυμι ou κατἄγνυμι ("quebrar", "romper") supõe uma ação acabada que o uso do presente do indicativo simples apaga, equiparando-o com os verbos seguintes no imperfeito; e o uso do pretérito, preferido por alguns tradutores, torna o verso mais embaraçoso do que é de fato. Curiosamente, o verso inteiro está suprimido na editio princeps de Robortello (1554), que saltou uma linha na transcrição do ms. (cf. anexo). Mas é significativo que nas duas edições mais influentes do Renascimento o hiato seja deliberadamente evitado. Paulo Manúcio (1555) transcreve já modificando o verso para ἀλλὰ καμμὲν γλῶσσ’ ἐάγ’· ἐν δὲ λεπτὸν, seguido por Henri Estienne (1556) com pouca divergência: ἀλλὰ καμμὲν γλῶσσ’ ἔαγ’· ἂν δὲ λεπτὸν. Não bastassem esses “acidentes”, a partir de então e por muito tempo, a tradução mais frequente seguirá de preferência a versão de Catulo: ma langue s' engourdist (“minha língua se entorpece”). 302

O primeiro indício de que o verso está corrompido deriva de duas fontes secundárias com citações dos vv.9-10, contendo, cada uma, versões diversas para o v. 9. A primeira variante é citada no tratado de Plutarco Πῶς ἄν τις αἴσθοιτο ἑαυτοῦ προκόπτοντος ἐπ᾿ ἀρετῇ (Quomodo quis suos in virtute seniat profectus), “Como alguém pode perceber por si mesmo que está progredindo na virtude”, mais conhecido na forma abreviada em latim: De profectu in virtute, “Sobre o progresso na virtude”. Uma segunda fonte tardia, seguramente copiada de Plutarco com ligeiras modificações, consta das Ἔκλογαι Διάφοροι (“Excertos diversos”), reunidas por J. A. Cramer em sua edição das Anecdota Parisiensis (“Inéditos parisienses”), vol. I (1839), a partir de um códice do séc. XV ou XIV (Parisinus 2633). Os textos de Plutarco e da Anecdota divergem somente na grafia de alguns acentos e por uma palavra (ὄψει / ἅμα), a diferença principal residindo exatamente no verso 9 de Safo. Por isso, reproduzo abaixo os dois textos acompanhados de uma só tradução, com as diferenças indicadas dentro de colchetes e separadas por uma barra, respectivamente [Plut. / An. Par.]. Como se pode ver, as duas palavras divergentes no comentário, na verdade, se completam, uma pressupondo ou explicitando o sentido da outra.

De profectu in virtute (81 d 22- e 1)69 [séc. I-II d.C.] νέῳ δ᾽ ἀνδρὶ γευσαμένῳ προκοπῆς ἀληθοῦς ἐν φιλοσοφίᾳ τὰ Σαπφικὰ ταυτὶ παρέπεται

κατὰ μὲν γλῶσσά γε λεπτὸν δ᾽ αὔτικα χρῷ πῦρ ὑποδέδρομεν, ἀθόρυβον δ᾽ ὄψει καὶ πρᾶον ὄμμα, φθεγγομένου δ᾽ ἂν ἀκοῦσαι ποθήσειας.

Anecdota Parisiensis (i 399.25-29 Cramer) [cód. P. 2633 (séc. XV)] νέῳ δὲ ἀνδρὶ γευσαμένῳ προκοπῆς ἀλήθους ἐν φιλοσοφίᾳ τὰ Σαπφικὰ ταυτὶ παρέπεται

κατὰ μὲν γλῶσσαν γελοπ * * * * αὐτίκα χρῷ πῦρ ὑποδέδρομεν, ἀθόρυβον δ᾽ ἅμα καὶ πρᾶον ὄμμα, φθεγγομένου δ᾽ ἂν ἀκοῦσαι ποθησείας.

69

Utilizo a edição de Gregorius N. Bernadakis (1888) para o texto de Plutarco e a de Cramer para a An. Par. Na falta de uma tradução preexistente em português, a que segue é de minha responsabilidade. Usei para confronto a tradução em inglês de Frank Cole Babbitt (1927).

303

mas com o homem jovem que prova o gosto de um verdadeiro progresso em filosofia, estas (palavras) de Safo estão sempre vinculadas:

inteiramente decerto a língua †...†, [e lépida / … ] pira corre súbito sob a pele, não obstante, [poderás ver / ao mesmo tempo] um olhar calmo e sereno, e desejarias ardentemente ouvi-lo falando.

Como nas duas edições consultadas a citação não é marcada como corrupta (Cramer só indica a lacuna ou ilegibilidade do final da linha 26 na sua edição), empreguei a crux apenas na tradução, para indicar a dificuldade do verso: nas duas citações está ausente o verbo do verso 9. Porém, mesmo que estivesse presente, a partícula γε usada em Plutarco (introduzida por um copista tardio?) e sugerida igualmente no texto mais corrupto da Anecdota poderia indicar que o esforço para “resolver” o hiato é mais antigo do que dariam a entender as edições renascentistas de Manúcio e Estienne: precedendo de pelo menos um século, a datar pelo Parisinus 2633, e não tendo constituído problema antes do séc. X, se tomarmos como referência o Parisinus 2036. O que parece mais acentuado no ms. do séc. XV da Anecdota pela introdução de uma desinência de acusativo (-an), que já bastaria para eliminar o hiato, convertendo a “língua” em objeto direto. A importância maior dos dois textos, como reconhecem os editores atuais, está na explicitação de katá, que permite corrigir o ms. de kàn para kàm. Mas qual será o sentido do advérbio (ou préverbo)? Não é possível avaliar seguramente devido à ausência do termo principal, o verbo que ele restringiria. Por sua vez, a partícula γε pode ter entrado no texto como um reforço de μὲν, sendo os termos praticamente sinônimos: “certamente”. O que tem um interesse paralelo de indicar como era possivelmente entendida a palavra mén no verso, como algo mais que uma simples “pontuação oral” que pudesse ser “traduzida” por uma vírgula, embora praticamente todos os tradutores a omitam. De toda forma, a sequência de letras A[ ]GE mantida nos dois testemunhos não pode ser desprezada como um sugestivo “resto” da palavra perdida. Embora não se possa saber que verbo estaria no verso citado por Plutarco e pela Anedcota, o comentário que segue à adversativa nos permite inferir sem dúvida que significaria um tipo de silêncio. Concentremo-nos, portanto, nesse comentário. Por que o jovem filósofo que já provou o gosto de um primeiro avanço no estudo se cala, senão por “amor à sophía”? A implicação interessante para o verso de Safo é que na leitura de Plutarco e do anônimo, a locutora fortemente abalada pela erōtikaîs maníais, assim como o jovem comovido pelo “desejo de saber”, embora se diga que eles “não podem” falar, na verdade, estão “ao mesmo tempo” (áma) em plena posse de si, como mostraria seu olhar (ópsei) a quem pudesse vê-los. Segundo Plutarco, esse é um olhar particularmente poderoso, 304

que suscita tanto mais desejo de ouvi-los quanto menos falam. O que supõe a combinação de dois motivos caros à leitura do fr. 31 V: o de um olhar que desperta o desejo (póthos) e o de um “silêncio eloquente”. A segunda implicação interessante, a darmos crédito ao testemunho de Plutarco, é que o verso “estranho” seria particularmente famoso entre os filósofos e célebre como... um sofisma! Pois, como explica o comentário, ele contém um engano: diz isso e aquilo. Ou melhor, diz uma coisa e mostra outra. Mesmo que o texto esteja corrupto, o verso (com a forma que tivesse), diz ele, gozava de certo prestígio e era associado ao “paladar sofisticado” dos amantes de filosofia, que o traziam de cor, “na ponta da língua”. A consequência dessa leitura é evidente. Ela mostra que pelo menos desde a época de Plutarco o verso já seria lido como provocando uma forte divisão entre “aquele que fala” e “aquele de que se fala”. Nos termos dos gramáticos alexandrinos, o verso cumpre uma “separação”, instaura a krísis entre a “pessoa” (prósōpon), marca verbal e pronominal do locutor, e o “sujeito” (hypokeímenon), substrato de predicados e assunto da proposição, assinalando que este é o “momento crítico” do poema: o momento em que ela “parece” (éoika) perder a fala. Os dois testemunhos tardios, ao invés de denunciar a corrupção do verso, confirmam, antes, a correção do katá transmitido pelo manuscrito na forma apocopada kàm, apenas com um possível erro de notação (“n” por “m”) no ms. de Longino. Mas como saber o que é feito da “língua” ou “pela língua” (voz ativa, média ou passiva) se não definirmos primeiro o que o verso diz? É indispensável, para isso, ouvir o que filólogos e editores têm a dizer. Uma vez que a principal dificuldade, que poderia ter sido sugerida pelo confronto com as variantes de Plutarco e da Anecdota Parisiensis, é antes diminuída por estas, embora a irregularidade do hiato no ms. de Longino seja aguçada pela ausência ou truncamento do verbo, parece prudente supor com Privitera que o estabelecimento do problema textual deriva, a princípio, “aparentemente apenas da emenda de Cobet” (p.40). Em artigo publicado em 1873, “Miscellanea philologica et critica. Ad Plutarchi opera Moralia” (Mnemosyne, 1, p.361-362), C. G. Cobet contestou a mais antiga tentativa de restauração do verbo perdido no ms. de Plutarco, pela emenda já então habitual do verso de Safo, com a introdução do dígamma. Sem entrar em minúcias filológicas ou oferecer qualquer explicação, o filólogo é tachativo: a restauração é insatisfatória, pois não um duplo dígamma (ϜέϜαγε), mas era preciso que um duplo pî (π) tivesse sido escrito (πέπαγε), limitando-se a lembrar que Catulo traduziu o verbo por torpet. Em favor de Cobet e daqueles que o seguiram70, removendo o hiato pela leitura glôssa pépage, se poderia lembrar que esse verbo (perfeito de pḗ gnymi, “fixar, prender, congelar”) também se

70

C. M. Bowra, Greek Lyric Poetry (1961), Pretagostini (1977) e Fowler (1987), entre outros, adotaram a emenda.

305

encontra na poesia eólia, de forma independente de Safo, no fr. 338 V de Alceu (v.2, πέπαγα) e, numa ocorrência particularmente significativa, no Segundo Idílio de Teócrito (v.110, ἐπάγην), dentro de sua paráfrase do fr. 31 V. Aliás, como já se observou, o sintoma da “língua quebrada” não tem paralelo em grego. O que é especialmente relevante dentro de um catálogo de pathémata que deriva quase inteiramente de metáforas homéricas, com apenas duas claras exceções, o fogo sob a pele e o zumbido nos ouvidos. Essa discrepância não é aleatória, como veremos, e se pode antecipar o fato de ambos estarem ligados a uma versão sem precedente do signo da afasia homérica, sublinhando, por um lado, o dístico formado pelos vv.9-10, com os únicos verbos no perfeito, e, por outro, o par língua-ouvido (vv. 9 e 11-12), um signo oral e um aural, como índice de uma diferença introduzida do catálogo da patologia erótica de Safo a partir de uma atenta releitura da tradição poética. Olhemos mais de perto os argumentos a favor e contra a emenda de Cobet. Numa rápida passada em revista das citações e paráfrases dos vv.7-9 do fr. 31 V nas demais fontes secundárias que possuímos, deparamos com o seguinte quadro. Teócrito parafraseia a primeira forma do sintoma oral com oudé ti phōnêsai dynáman (II.108), “não podia falar nada”, bem próxima em sentido dos vv. 78. Mas a segunda forma é substituída pela fraca imagem de um “balbucio” ou “vagido” infantil (knyzdeûntai) na continuação do verso, que se prolonga pelo seguinte: “nem quanto, no sono, | balbuciam os filhinhos chamando a querida mamãe” (II.108-109). E é somente depois de já ter citado o verso 9 de Safo que se introduz, na linha subsequente, o verbo pḗ gnymi. Mas, então, ele não se refere à “língua”. Nem sequer se trata mais da “fala”, mas do corpo, literalmente da “pele”, como no verso 10 de Safo, que fica, então, inteiramente enrijecida (II.110), não fornecendo, portanto, um bom paralelo para a leitura glôssa pépage. Na citação que Calímaco introduz na cena central do Hino ao banho de Palas (Hymn. V. 8384), o jovem Tirésias é punido com a cegueira pela deusa por ver sua nudez e o primeiro efeito dessa visão esplendorosa, interditada aos mortais, que segue ao escurecimento da vista, será a perda da voz: ele estanca sem linguagem (hestákē d' áphthonos) e a impotência detém sua voz (kaì phonàn éskhen amēkhanía). Novamente, como em Safo e Teócrito, o pathémata aparece duas vezes. Mas não há menção à glôssa, embora se possa aproximar o “estancamento” do verbo pépage. Por sua vez, em duas outras citações, Plutarco tampouco refere-se à “língua”, mas à voz, em Amatorius (763 a: τήν τε φωνὴν ἴσχεσθαι) e Demetrius (38.4: φωνῆς ἐπίσχεσις), e, ao fazê-lo, emprega uma fraseologia homérica, bem diversa de Safo (Il. 17.696, Od.4.705, 19.472: θαλερὴ δέ οἱ ἔσχετο φωνή), como já havia feito Calímaco. O que confirma o já sabido: a metáfora de Safo não tem nenhum equivalente grego. Entre os poetas latinos, Ovídio só parafraseia o poema na célebre “Carta da Safo a Fáon”, peça de autenticidade mais problemática na obra do poeta, onde a única referência a palato (Her. 15.111), com o verbo deerant, como nota Marcovich, não é o melhor paralelo: “e as lágrimas abandonaram os olhos, e as palavras, a língua” (et lacrimae deerant oculis et verba palato). 306

Melhor seria o verso “muda a língua, paralisada por um medo frio” (torpuerat gelido lingua retenta metu) de Heroides 11.82, como viu W. Ferrari, e outros passos semelhantes, que Marcovich acrescenta (1972: 28). Mas nenhum pode ser tomado como citação de Safo. Finalmente, a tradução de Catulo por língua sed torpet, “mas a língua se entorpece”, poderia ser comparável a ambas as alternativas (Lidov 1993: 520), mas a liberdade do tradutor-poeta é muito grande para suportar a leitura de pépage (Marcovich 1972: 28) e muito afastada do original para reter algum traço de éage. Portanto, também não fornece um testemunho confiável para a defesa de Cobet, nem para sua refutação. Ao passo que Lucrécio, reproduzindo todos os sintomas de Safo (III.154157), exceto lépton pŷr (“lépida pira”), emprega explicitamente infringi linguam como signo de um medo violento, fornecendo a correspondência mais literal, até na interpretação da diátese do verbo: com o presente do infinitivo passivo de infringo (“ser quebrado”, lit. “fraturado”) equivalendo ao presente perfeito ativo de ágnymi (“quebrar, romper, despedaçar, partir”) usado com sentido médiopassivo. Como notou Bonanno (1993: p.61), a versão de Lucrécio vai integrar, a partir de então, toda uma constelação de variações sobre a metáfora de Safo, que se converte rapidamente em lugarcomum entre os escritores latinos71. E como atesta o comentário já citado de Plutarco, em De profectu virtute, a celebridade do verso andará frequentemente associada com um certo paladar filosófico igualmente em grego, ainda que não tenha nos chegado outro testemunho. Poir isso, a presença do hiato desconcerta mesmo o leitor que não estaria disposto a concordar com Cobet, gerando uma sintomática oscilação entre as duas leituras. A tradução de J. M. Edmonds (1922): “I am tongue-tied”, parece levar em consideração, antes, a tese de Cobet, embora grafe o verbo com um dígamma (wéage) e observe em nota que, em grego, se lê, na verdade, “my tongue is broken up”. De modo semelhante, Martin West também defende, a princípio, a leitura do manuscrito porque parece ter sido aquela conhecida por Lucrécio (apud O'Higgins, 1990: 159) e propõe traduzir o verso inicialmente por “my tongue is crippled”, “mutilada, avariada, ferida” ou literalmente “aleijada”, evitando “broken” (apud Lefkowitz, 1973: 120). Não satisfeito, o editor apresenta uma emenda alternativa, sugerindo a mudança do verbo éage da terceira para a primeira pessoa, com a leitura γλῶσσαν έαγα, e traduz, dessa vez, usando o pretérito: “eu quebrei minha lingua” (“I have broken my tongue”), ou mais literalmente, “estou quebrado em relação à minha língua”, como explica (apud Prins: 1999: 34). Com o que converte a “língua” em objeto direto, recuperando a desinência de acusativo da Anecdota Parisiensis, que “corrige” o hiato, mas introduz um injustificável sujeito representando a locutora como centro do verso. Por fim, em publicação mais recente, West parece abandonar todas as teses de “Burning Sappho” (1970) e termina decidindo pela tradução “my tongue 71

Sen. Contr. VII 4.6, vocem... infringere; Schol. Pers. I 35 Kurz, sonus vocis... infringitur (dito de quem abaixa a voz); Liv. XXXVIII 14.9, oratio fuit infracta; Val. Max. V 10.1, oratione... infractione (de um discurso demisso); Sen. Epist. XC 19, mollesque cantus et infractos; Iuv. II 111, fracta voce; Gell. III 5.2 vocem... infractam; Quint. Inst. XI 3.20, frangitur... vox (de uma voz estrídula ou efeminada ou debilitada), etc. (apud Bonanno 1993: 61).

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is paralysed” (Greek lyric poetry, 1993). Mas de todos os inconvenientes que apresenta a solução de Cobet, ainda que tivesse razão, o mais grave seria o de excluir o pré-verbo em tmese, deixando órfão o katá no início do verbo, se não fosse, antes, excluído por este, como argumenta Privitera (1969 b: 40). Algum tempo depois, quando Wilamowitz reimprimiu o verso em seu clássico Sappho und Simonides (1913, p.56) exatamente na forma que seria aceita por Voigt (ἀλλὰ κὰμ μὲν γλῶσσα ἔαγε λέπτον), ainda havia desacordo entre os scholars se a lição verdadeira seria Ϝέαγε ou ϜέϜαγε, “mas poucos duvidavam que um dígamma removesse o hiato” que teria aparecido no manuscrito de Longino, exceto os que seguiam Cobet. Mas desde que Lobel publicou, em 1925 e 1927, suas pesquisas sobre o dialeto de Safo e Alceu, concluindo que o dígamma teria sobrevivido apenas antes do pronome de terceira pessoa e adjetivo, antes da inicial “ρ” [rhô] e poucos lugares mais, linguisticamente duvidosos (Ford & Kopff, p. 52), a solução que permitia manter a tmese tornando o hiato pronunciável também encontrou forte oposição, levando os próprios Lobel e Page a crucificarem o verbo em Poetarum lesbiorum fragmenta (1955). Antes dos editores ingleses apresentarem sua própria reconstrução, uma alternativa extremamente simples proposta por Sitzler (1927), depois retomada por Campbell (1982), consistiria na interpolação do dativo moi como uma primeira pessoa elidida: glôssa kakós khéetai) tenha sido introduzida numa dessas reescritas. Com isso, a terceira variante do verso confirma o acerto quase intergral da objeção levantada por Di Benedetto. Se Page e Privitera tivessem consultado a fonte dos epimerismos, teriam visto que o verbo kakkhéetai, confirmado em Herodiano, opõe um forte obstáculo à restauração de psykhrós. No entanto, se o argumento dá conta do verbo, ainda não explica satisfatoriamente nem como psykhrós penetrou no texto de Longino, nem como teria desaparecido ou reaparecido a partícula ek-, como evidencia o argumento de Beattie. Essa falha confirma o risco assumido por Benedetto. Ao propor a defesa de um passo atrás, ele termina caindo sob a terceira objeção levantada por Page contra a lectio communis: o argumento continua não dando conta nem de ékade nem de psykhrós. E como a refutação de Page permanece colocando o verso em xeque, o impasse denuncia a falta de solução, obrigando a pôr em dúvida a própria autoridade que Benedetto reivindica para o texto de Herodiano. Pois para sustentá-lo é preciso demonstrar, no mínimo, como as outras variantes são paleograficamente possíveis a partir desse verso. Apenas um argumento permanece unânime entre os intérpretes. Em todos, repete-se o mesmo embaraço causado pela dobra de katá, que agora, diante do testemunho de Herodiano, só poderia ser eliminada por uma via. Mas como corrigir o termo ékade sem ignorar a advertência de Beattie?! Invertendo a ordem do argumento, antes de propor uma tentativa de leitura, acrescento mais uma variante à narrativa hipotética da transmissão do verso. Das três tradições, o texto de Herodiano é o que apresenta menos problemas, na medida que confirma o verbo de Longino e a ausência de kakós na Anecdota, ele oferece uma base mais segura para tentar justificar a eliminação de psykhrós, permanecendo sob suspeita apenas no que diz respeito ao início do verso. Para defender por que psykhrós jamais esteve presente no poema tomo apoio na versão de Herodiano como ponto de partida, 90

Dickey, E. Ancient Greek Scholarship: a guide to finding, reading, and understanding scholia, commentaries, lexica, and grammatical treatises, from their beginnings to the bizantine period, 2007, p.80-81.

367

para eliminar a circularidade que o liga o adjetivo a kakós. Quanto ao texto da Anecdota: os epimerismos fazem concordar um hidrṓs feminino com kakós masculino. Do que podemos especular que seu autor poderia ter sido possivelmente um aluno de Querobosco, incauto (na sintaxe) e mal informado (na condordância), que tentou corrigir uma palavra rara (ómphora) com uma solução (amphótera) insatisfatória. De onde ele teria derivado kakós? De nenhum outro lugar senão do próprio verbo: lendo KAKKHEETAI no manuscrito de Herodiano de onde copiou a citação, e desconhecendo o verbo com kak-, o escriba poderia julgar haver um erro de haplografia, restaurando o verso para KAK(OS)KHEETAI. Uma correção demasiado irresponsável, que um professor ecumênico não teria deixado passar. Se a citação de Herodiano também tivesse um primeiro kád no início do verso, poderíamos supor que um copista mais calejado tentou evitar a repetição. Mas como o gramático já havia transmitido o texto sem ek- como “prova” de um gênero feminino eólio, a questão, impossível de decidir, é saber se ele já encontrou o verso dessa forma (com a de m') ou se o próprio o gramático corrigiu o verso, seja por julgar a estranha palavra ékade um erro de transmissão, seja para evitar a dobra. Quanto ao texto de Longino: se o manuscrito não contém kakós e é improvável que o mesmo copista que registrou psykhrós o tivesse corrigido para kakkhéetai, caso estivesse presente, de onde viria o adjetivo “frio” senão de uma glosa do próprio comentário de Longino (o mesmo que levou Page e Privitera a deduzirem que deveria estar presente no poema)? Seria fácil explicá-lo em duas etapas. Um primeiro leitor poderia ter anotado a glosa sobre o substantivo a que Longino se refere numa frase que é uma clara amplificação retórica do elogio à poeta. Portanto, a princípio, uma simples explicação do comentário. Um segundo copista, ignorando a banalidade da anotação, acreditou que deveria incluí-la no texto e julgou por bem que Safo, “voltando a si” nos versos finais, merecia um balde de água fria. Que é afinal o resultado de todas as edições anteriores a Voigt, a despeito das variantes. Quer recuperem ou apaguem o adjetivo psykhrós, as traduções resultantes praticamente se equivalem. Depois de uma perturbação inicial, ela esfria. Não por acaso, muitos leitores condordam em ver aqui o início de um movimento em degradé ou o ponto em que “o catálogo de sintomas principia uma espiral regressiva (winding-down)” (Sinos, p.31). Traduzo por fim algumas edições tentando variar ao máximo para mostrar como, no final de inúmeras reconstruções, a diferença interpretativa é de superfície: Spengel 1828

(lectio communis)

ἀ δέ μ’ ἴδρως κακχέεται “e o suor me escorre abaixo”

Gallavotti 1947

ἐκ δὲ μ’ ἱδρῶς κακχέεται “e suor derrama-se de mim”

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Page 1955

κάδ δὲ μ’ ἵδρως ψῦχρος ἔχει “e um frio suor me recobre”

Beattie 1956

ἦκα δή μ’ ἵδρως χέεται “suavemente decerto água escorre de mim”

Privitera 1969

ἐκ δέ μ’ ἴδρως ψῦχρος ἔχει “e suor frio aflora em mim”

West 1970

κὰδ δέ μ’ ἴδρως κακχέεται “e suor entorna de mim”

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garganta verde Uma narrativa fictícia sem possibilidade de verificação, para explicar o aparecimento de psykhrós e kakós não é, evidentemente, um argumento válido senão como “idéia”. Portanto, se quisermos fazer justiça à decisão de Voigt de deletar o adjetivo psykhrós sem recorrer à lectio communis, será preciso mostrar que há outras razões suficientes, dentro e fora do poema, para o verso não jogar um balde de “água fria” na locutora, independente de um artigo feminino que justifica o afastamento de uma dúvida com o postulado de outra. O ponto decisivo é que psykhrós parece imprescindível, como sugere a referência ao “frio” em inúmeras fontes que parafraseiam o “suor” de Safo: Longino (Subl. X.3), Teócrito (Idílio II.1067), Nicandro (Ther. 254-255), Ovídio (Her. XV. 112), Apuleio (Met. I.13, II.30, X.10) e antes deles a comparação com o mesmo sintoma médico, considerado maléfico e mortal, em Hipócrates (De iudic. 21, IX p.284 Littré.).91 Sobretudo em Nicandro, onde a paráfrase via Teócrito é relacionada aos efeitos mortíferos da mordida de cobra, a imagem do “suor frio” parece confirmar a defesa de psykhrós. Nicandro Theriaká 254-255 Gow ὁ δὲ νοτέων περὶ γυίοις ψυχρότερος νιφετοῖο βολῆς περιχεύεται ἱδρώς. e, então, pelos membros úmidos um suor mais frio que a neve escorre em abundância.

Embora Privitera não o cite, o paralelo apresenta os argumentos mais fortes em favor da sua tese: lembrando a dicção do verso contíguo “mais verde que a relva”, o “suor mais frio que a neve” também tem em comum o fato da expressão integrar uma série de orações encadeadas pelo polissíndeto dé... dé. O que, conforme Di Benedetto, aponta para um um fundo comum entre o poema 31 e o catálogo de sintomas identificados pela medicina antiga. Pois o procedimento paratático empregado em Safo e Nicandro encontra uma correspondência precisa não apenas no estilo usado nas descrições sintomatológicas dos tratados médicos gregos, mas reencontra-se igualmente em textos médicos egípcios e babilônios que remontam a uma tradição bem mais antiga (1985: 148-149). A dificuldade decorre de que no poema de Teócrito, a que se costuma atribuir a paráfrase, a conotação letal não está presente, ao passo que não há surpresa em Nicandro empregar a imagem em um tratado médico, que não precisa remeter diretamente a Safo. Compare-se, ao contrário, os versos que Privitera aduz como prova: 91

Privitera reúne uma lista, senão completa, bastante representativa de passagens do Corpus Hippocraticum que mencionam o sintoma do “suor frio” (cf. 1969a: 268-69).

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Teócrito Idílio 2. 106-107 Gow πᾶσα μὲν ἐψύχθην χιόνος πλέον, ἐκ δὲ μετώπῳ ἱδρώς μευ κοχύδεσκεν ἴσον νοτίαισιν ἐέρσαις muito mais fria que a neve inteira fiquei, e da testa meu suor derramava-se igual a úmidas gotas de orvalho

Aqui, não apenas “suor” e “frio” aparecem em orações separadas, como está ausente o “calor”, pressuposto na associação “letal” do sintoma hipocrático que Nicandro introduz na enumeração de reações físicas à picada venenosa. Embora noutra cena do mesmo Idílio (vv. 82-3) que também imita o poema de Safo, o coração da narradora fique “em brasa” assim que põe os olhos no amado, ali, por sua vez, não há suor frio. Ou seja, as duas paráfrases do mesmo poema aparecem em cenas distintas e remetendo a pathémata diversos, sem ligação entre eles. Finalmente, na cena que glosa o verso 13, ambos os signos são conectados aos efeitos de amor, não de morte, e o “congelamento” limita-se a assinalar a petrificação de Simieta que se confunde com uma incapacidade de agir (amēkhanía) no contexto de éros. O que é expressamente declarado poucos versos à frente com o verbo pḗ gnymi (v.110, ἐπάγην), signficando “fixar, prender, congelar”. Uma paralisia, e não um literal “esfriamento”, senão de modo figurado, que não remete ao “suor frio” como sintoma mortífero associado à febre. O mesmo vale para a paráfrase de Ovídio. Nela, frio e calor nunca aparecem juntos e na única menção ao frio, este não caracteriza “suor”, mas o peito (gelidus frigore pectus erat, v.112), sendo o próprio suor substituído por lágrimas que abandonam os olhos (lacrimae deerant, v.111). Apuleio (Met. I.13, II.30, X.10) cita quatro vezes o mesmo sintoma, referido em três ocasiões como “suor frio”, todas desprovidas de conotação mortal e sem nenhuma menção ao calor. Portanto, nenhuma paráfrase alude à conotação nociva que tornaria o “suor frio” um sintoma médico particularmente reconhecível pelos leitores antigos. Ao passo que o mesmo pathémata aparece sempre ligado a causas diversas, ao amor (Teócrito), ao sofrimento amoroso (Ovídio) ou ao medo (Apuleio). Mesmo em Apuleio, que emprega explicitamente “suor frio” num contexto paródico, não há qualquer sentido maléfico. Se as imitações do poema que mencionam o “frio” não fornecem nenhuma “evidência” de que tivessem traduzido um suposto verso original de Safo contendo psykhrós, as demais fontes indiretas que transmitiram o sintoma do “suor” apontam antes para a ausência do adjetivo. Desde logo, pesam contra a hipótese, os testemunhos de Herodiano e dos Epimerismos. Mas como estas variantes do verso não permitem explicar a presença de psykhrós no texto que nos chegou através de Longino sem

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postular um círculo vicioso com outro termo corrupto, kakós, é preciso apresentar um segundo indício para mostrar que a própria ausência do adjetivo nestas fontes não é uma coincidência. Particularmente eloquentes nesse sentido são as paráfrases de Lucrécio e Plutarco. O primeiro, reproduzindo todos os sintomas menos o “fogo”, como vimos, refere apenas o “suor”, sem qualificativo (III.154 sudoresque) e o relaciona a um contexto de “medo”. O segundo introduz a paráfrase no relato dos sintomas de Antíoco (Dem. 38.4) e também não estabelece nenhuma relação com “frio”. Mesmo a presença de um médico para curar o “doente” não serve de ocasião para citar um sintoma codificado pela nosologia antiga, senão que é a poeta que vem à memória de Erasístrato quando profere o diagnóstico, graças aos “signos de Safo” capazes de identificar a causa do mal como o amor. Cabe notar, no entanto, que Plutarco utiliza uma expressão peculiar: ἱδρῶτες ὀξεῖς (hidrôtes oxeîs), que se costuma traduzir por “súbitos suores”. O advérbio oxéōs, “repentino, rapidamente”, no entanto, tem um sentido primeiro de “acuidade”, derivado de oxýs, “agudo, afiado, pungente” que parece tornar a expressão inusitada. Não haveria nessa passagem um eco daquele verso eólio de autoria desconhecida (fr. inc. auct. 12) transmitido por Herodiano, ou pelo menos uma confirmação independente de que a metáfora poderia se referir a um “suor cortante” ao invés de “súbito”, para o qual o prosador poderia ter empregado outros advérbios mais correntes? Seja como for, a inequívoca conotação amorosa, reiterada em diversas citações de ídrōs, que aponta para o fundo erótico no verso de Safo é suficiente para justificar a rejeição do adjetivo psykhrós. Se uma reconstrução tortuosa ainda poderia acomodá-lo à métrica, sua carga semântica exclusivamente negativa destoa da estrutura rigorosa do poema que opera sobre dualidades. Por outro lado, ainda que se possa associar o “suor” com a aparência final da locutora que se aproxima da morte, a leitura de um “suor frio” como signo unívoco certamente seria excluída, como diz o crítico italiano, pela “estrutura mesma do poema”, que acumula no verso, citações extraídas de um repertório de imagens bem conhecidas de Homero e outros poetas arcaicos. A própria leitura de Privitera, buscando diminuir a carga erótica privilegiada pelas paráfrases antigas, também aponta para esse fundo comum: o fogo e o suor frio aludem ao amor, mas de modo vago […] o amor como fogo febril é novo. O suor era um efeito da fadiga em Homero (Il.16.109) e do medo em Arquíloco (fr. 74 D, 114 T, v.4 hygròn... déos): conectado ao desejo amoroso no Hino Homérico a Pan (XIX.33 póthos hygrós) (Privitera, 1969 b: 67).

Para nosso interesse imediato, importa reter o “desejo úmido” a que se refere o Hino Homérico 19 que Giuliana Lanata também cita como referência para o verso 13 de Safo. Um paralelo ainda mais próximo se encontra na elegia amorosa de Mimnermo fr. 5 W, que estabelece uma ligação direta entre “suor” e desejo, sem qualquer menção a “frio”, onde hidrṓs constitui signo único e suficiente para caracterizar a reação erótica provocada pelo olhar, descrita pelo mesmo verbo ptóeō que introduz o efeito de arrebatamento do “eu” no poema de Safo. Enquanto o “suor” escorre em baldes, 372

com um verbo em tmese, katà mèn… rhéei, sinônimo de kakkhéetai no verso 13 de Safo, a caracterização de uma reação súbita (autíka) na pele (khrós) por sua vez se aproxima sugestivamente do verso 10 onde, no lugar de “água” a poeta descreve a velocidade de um “fogo sutil” que “corre sob” a pele. Ou seja, o que Safo distribui em duas reações amorosas distintas, com termos opostos, “fogo” e “água”, Mimnermo sobrepõe numa só imagem. Mimnermo fr. 5 W (= Teógnis 1017-1022)92 (vv.1-6 Theognidea 1017-22; vv.4-8 Stob. 4.50.69) αὐτίκα μοι κατὰ μὲν χροιὴν ῥέει ἄσπετος ἱδρώς, πτοιῶμαι δ’ ἐσορῶν ἄνθος ὁμηλικίης τερπνὸν ὁμῶς καὶ καλόν· ἐπὶ πλέον ὤφελεν εἶναι· ἀλλ’ ὀλιγοχρόνιον γίνεται ὥσπερ ὄναρ ἥβη τιμήεσσα· τὸ δ’ ἀργαλέον καὶ ἄμορφον γῆρας ὑπὲρ κεφαλῆς αὐτίχ’ ὑπερκρέμαται, ἐχθρὸν ὁμῶς καὶ ἄτιμον, ὅ τ’ ἄγνωστον τιθεῖ ἄνδρα, βλάπτει δ’ ὀφθαλμοὺς καὶ νόον ἀμφιχυθέν. De repente, um copioso suor corre em minha pele, estou tomado por um sentimento de paixão ao ver a flor agradável e tão bela da nossa idade; prouvera os deuses que ela fosse mais longa! Mas, como um sonho passageiro, passa a preciosa juventude; e logo a funesta e disforme velhice está suspensa sobre nossa cabeça, igualmente odiosa e desprezível, que torna irreconhecível o homem, e, ao envolvê-lo, debilita-lhe os olhos e o espírito. (G. Onelley & S. Peçanha)

Guardada a diferença de contexto na continuação, onde não é o amor mas a velhice enviada pelos deuses que caracteriza o estado de amēkhanía, inclusive os efeitos deletérios da passagem do tempo são semelhantes aos do fr. 31 V. A velhice afeta a visão (bláptei ophthalmoùs) e o intelecto (nóon), em paralelo com “nada vejo” (oudèn óremmi) e o forte abalo de eptóaisen sobre o “coração no peito” em Safo, que é um verbo que costuma atingir os “órgãos da alma”, como vimos. Baste apenas um terceiro exemplo para verificar que o nexo entre elemento líquido – olhar – desejo não é uma coincidência entre três poetas.

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Segundo a reconstrução proposta por M. West o fragmento de Mimnermo teria 8 versos, estando os 6 primeiros incluídos no Corpus Theognideus (vv.1017-22), o que permitiu ampliar o poema com mais 4 versos iniciais, que só conhecíamos através da atribuição a Teógnis.

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Íbico Fr.287 D (Platão, Parmênides 136e-137a; Schol. Sobre o Parmênides; Proclo, Comm. Parm. Plat. [séc. V d.C.]) Ἔρος αὖτέ με κυανέοισιν ὑπὸ βλεφάροις τακέρ' ὄμμασι δερκόμενος κηλήμασι παντοδαποῖς ἐς ἄπειρα δίκτυα Κύπριδος ἐσβάλλει· ἦ μὰν τρομέω νιν ἐπερχόμενον, ὥστε φερέζυγος ἵππος ἀεθλοφόρος ποτὶ γήραι ἀέκων σὺν ὄχεσφι θοοῖς ἐς ἅμιλλαν ἔβα. Eros, de novo, de sob escuras pálpebras, com olhos me fitando derretidamente, com encantos de toda sorte, às inex-tricáveis redes de Cípris me atira. Sim, tremo quando ele ataca, tal qual atrelado cavalo vencedor, perto da velhice, contrariado vai para a corrida com carros velozes. (Giuliana Ragusa)

Assim como Mimnermo, o amor suscitado pelo olhar aparece em Íbico associado a outros traços comuns com o poema 31 V: a vítima do desejo “treme” de medo (verbo que corresponde ao substantivo do verso 13 de Safo, trómos), sentindo-se sob o jugo de éros. Mas à diferença da poeta, o temor/tremor também é, aqui, um correlato da “velhice”. O “eu” em idade avançada não é mais um rival à altura para entrar no campo de batalha, como o cavalo já idoso hesita em concorrer numa disputa ante “carros mais rápidos”. Ele “teme” não ser capaz de vencer numa “corrida amorosa”. Por sua vez, o olhar lançado por Éros, afirma Íbico, é takér(a), um olhar úmido, líquido, molhado, dissolvente. Pois a visão do amado é fonte de um desejo que “escorre” do olhar e faz o amante “derreter”. O que ecoa precisamente, diz Ragusa, o epíteto de Éros lysiméles, “dissolve, relaxa, solta membros”. Daí, explica, os motivos frequentes na poesia arcaica de éros como uma força, geralmente um calor, que liquefaz o amador e como um líquido vertido pelos olhos (2011: 70), onde se poderia reencontrar a imagem também frequente da doçura que escorre como mel. Se lembrarmos, finalmente, que a noção do olhar como sede do desejo também se exprime pela metáfora inversa, como os “raios a faiscar” (marmarizdoísas) que saltam dos olhos de Teoxeno, na preciosa tradução de Ragusa para o fr. 123 S de Píndaro, que deixam o erasta “inundado de desejo” e o fazem “derreter” (tákomai) como cera de abelha, “picado pelo calor do sol”, já podemos perceber a trama metafórica que preside o conjunto dos pathémata retrabalhado por Safo. Acrescento apenas um esclarecimento valioso de Vernant:

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Conforme observa Charles Mugler em um estudo intitulado La lumière et la vision dans la póesie grecque [1960], a própria língua demonstra essa ambivalência. Os verbos que designam a ação de ver, de olhar, blépein, dérkesthai, leússein, são empregados com, como complemento de objeto direto, não só o objeto que o olhar visa, como também a substância ígnea luminosa que o olho projeta como quem lança um dardo. E esses raios de fogo, que chamaríamos de físicos, transportam consigo os sentimentos, as paixões, os estados de alma, que chamaríamos de psíquicos, daquele que olha. Os mesmos verbos se conjugam, com efeito, como complemento de objeto, com termos que significam o terror, a selvageria, o furor assassino. O olhar, quando atinge o objeto, transmite-lhe o que o vidente sente ao vê-lo (Vernant, p.180-181, grifo meu).

Portanto é preciso reter a tríade básica água – fogo – olhar, com sua expansão bélica (dardo), se quisermos apreender corretamente o lastro imagético sobre o qual a poeta estrutura os pares de signos de éros no poema 31 V. Donde se vê que o paralelismo que Privitera importa do comentário de Longino (fogo – suor frio) só pode induzir a leitura em erro: pois é o valor erótico da metáfora do “suor” e do elemento líquido associado ao olhar que confirma a expulsão de psykhrós. Ao contrário, a qualidade “fria” constitui o oposto do elo que liga ídrōs ao “fogo luminoso” projetado pela visão da amada e à “doçura” que escorre como mel de sua voz. Para Píndaro, não há melhor explicação que o “frio” intrínseco àquele que não for atingido pelos raios que partem do olhar do erômeno, definido por antinomia como um “fogo frio”: ele só pode ter um “coração negro”, de aço forjado em “fria chama” (psykhrâi phlogí). Mas no circuito do desejo provocado pelo olhar, o significado primeiro de ídrōs não pode ser senão o de uma “água ardente”. Nesse contexto, o “suor” será maléfico apenas se coincide com o sofrimento de quem está “morrendo de amor”, queimado por “fogo sutil”. É claro que a função do nome “suor” não se esgota numa aplicação mecânica da concepção especificamente grega do olhar e da voz como veículos de desejo. Na medida que ídrōs significa (1) “suor, transpiração”, o termo guarda uma relação imediata com as metáforas do “esforço físico”, da “fadiga” (em Homero) e do “medo” (em Arquíloco), como viu Privitera, apesar do próprio crítico optar por um estrito sentido nosológico que excluiria essa leitura. Mas a mesma palavra carrega outras conotações: ídrōs também significa (2) “seiva, resina mucosa, umidade”, particularmente em relação ao domínio “vegetal”. O que aponta para uma segunda correlação dentro do poema, não apenas com o termo pŷr (fogo) no verso 10, mas com khlōrós (verde) e poías (grama) no verso 14, sobrepondo duas séries metafóricas que se encontram entrelaçadas nessa palavra. Como se sabe, a cor “verde” é um signo do medo em Homero e a metáfora por excelência do guerreiro covarde, que fica “verde de medo” numa situação extrema. Brasil Fontes anota, a propósito desse sintoma “que chega a inquietar o leitor de poesia lírica”, que o verso “e mais verde que a erva | estou”, apesar de não ser corrupto, se converteu numa cruz para os modernos que tentam exorcizálo com a exasperante trivialidade de uma cor “pálida”. “O herói, quando tem medo, muda de cor, estremece e transpira” (Fontes, p.196). Particularmente interessante, nesse sentido, é o verso formular ἐμὲ δὲ χλωρὸν δέος ᾕρει, “e o medo 375

verde me tomou”, que se repete na entrada e na saída do Hades (Od.11.43; 11.633), fornecendo uma moldura ao relato de Ulisses de sua descida ao inferno, criando uma estrutura em anel semelhante ao do poema de Safo. O verbo αἱρέω (airéō) que costuma caracterizar o guerreiro “tomado” pelo “medo verde” (χλωρὸν δέος ᾕρει, Il.7.479 et al.)93 em Homero também é o mesmo empregado para o “tremor” (trómos) que “se apodera” (ágrei) da locutora entre a “transpiração” e a cor “mais verde que a relva” que ela aparenta na quarta estrofe. Mas o fato de ser frequente e até formular na epopeia não diminui a estranheza da expressão. Especialmente quando vemos que a mesma palavra pode ser usada para descrever um “mel verde” (μέλι χλωρόν, Il.11.631, Od. 10.234), a “areia verde” e a “cor da bile”, como informa Bailly. Permanece desconcertante para o leitor moderno como o grego pode empregar o mesmo nome para cores tão distintas. Daí os esforços recorrentes para explicar essa variação seja pela história dos nomes, como um fato de sensibilidade histórica ou de classificação social das cores. O que pode ajudar a entender por que os dicionários oferecem duas traduções possíveis para a mesma palavra: “verde” ou “amarelo”. Mas então, porque, já em Lucrécio, o sintoma de Safo seria parafraseado como uma cor “pálida” (III. 154, palloremque), justamente como uma “ausência de cor”? Decerto, a tradução que muitos leitores modernos privilegiam para amenizar o verso de Safo tem aqui um precedente legítimo. Mas este perde toda amenidade quando vemos que remete à própria “cor da morte” que a palavra já designava no Escudo de Héracles atribuído a Hesíodo (Scut. 265, χλωρὴ ἀϋσταλέη λιμῷ καταπεπτηυῖα, “pálida, ressequida, mirrada de fome”). Até aqui, podemos ficar seguros na companhia do filólogo, que pode oferecer uma explicação razoável para as correspondências contrastantes. No entanto, será preciso explicar como sangue (Eur. Hécuba. 127), lágrimas (Medeia. 906, 922; Helena. 1189) e pétalas de rosa (Hel. 245) podem ser todas “verdes” (khlōrói), “amarelas” ou “pálidas”, como se encontra nas peças de Eurípedes (!). Ou pelo menos, como uma cor pálida poderia ser atribuída a “lágrimas” que são transparentes. Para dar conta dessas estranhezas Eleanor Irwin dedicou o capítulo 2 de sua célebre pesquisa Colour terms in Greek poetry (1974) inteiramente ao termo grego, com “o objetivo [de] mostrar que o significado básico de khlōrós é 'líquido', 'úmido'” (apud Edgeworth 1984: 123). Daí decorre que em algumas expressões inusitadas (para nós), como o “joelho verde” de Teócrito (Idílio 14.10), a expressão pode adquirir o sentido de “fresco, novo em folha, recente” ou “vigoroso, forte”. Seria possível argumentar que a tese de Irwin não daria conta plenamente de um emprego como khlōrós para a palidez da morte. Mas a associação com o elemento líquido sem dúvida lança uma luz inegável sobre o nexo que aproxima o “medo verde” que provoca transpiração e a cor do mel que escorre docemente, bem como citar mais um paralelo inesperado – no epíteto do rouxinol,

93

Il. 8.77; 10.376; 15.4; 17.67; Od.12.243; 22.42; 24.450; 24.533.

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pássaro-cantor, “de garganta verde” (khlōraúkhēn) em Simônides (fr.586 PMG). Mostrando que χλωρός seria mais do que uma cor, a voz da garganta e as palavras da poeta carregam consigo as propriedades líquidas e eróticas do canto melífono. Afastado portanto o adjetivo ψυχρός (psykhrós, frio) e circunscrito o campo metafórico mais amplo de ἴδρως (ídrōs, suor-seiva) no poema de Safo, relacionado a πῦρ (pŷr, fogo) e χλωρός (khlōrós, verde) passemos, finalmente, à maior dificuldade do verso 13, senão do próprio poema.

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ékade! ÉKAde! “Faz seis meses já, Toda noite, qvando fou dormir, digo para mim mesmo: ἔκαδε, eh, ἔκαδε, Mas que DIABO querr dizer isto!” (glosa do velho Lévy)

À exceção da emenda proposta por Ahrens (κὰδ δέ)94, todas as outras edições do início do verso coincidem com alguma das variantes transmitidas. O que converte a edição numa escolha arriscada entre alternativas mais ou menos prováveis. De um lado, um verso começando por um artigo que postula um raro exemplo de gênero feminino do substantivo em eólio, exclusivamente documentado por essa citação (An. Ox. / Hdn. Gr.). De outro, uma sequência de letras não atestada em nenhum outro lugar, que se aglutinam tornando quase impossível decidir entre duas leituras improváveis (cod.P. / cod. Vat. 3). Se entendo corretamente, a ausência do espírito em α põe em dúvida a solução mais fácil (ἐκ ἀ δέ), que confirmaria a lição do gramático. Ao mesmo tempo, o acento no primeiro ἔ embaralha a decifração mais difícil (ἐκ κὰδ δέ), com uma sequência de duas apócopes (em “k” e “d”) e uma assimilação (“t” > “d”). Enfim, uma terceira versão (cod. Vat. 2), numa supressão calculada para aplicar a lei do menor esforço, omite a única letra enfaticamente confirmada em todas as outras fontes: ἀδεμ’ (An. Ox.)

=

ἀ δέ μ’ (Hdn. Gr.)

έκαδεμ’ (cod. P.)

=

ἔκαδε μ’ (cod. Vat. 3 apogg.)

ἐκ δέ μ’ (cod. Vat. 2 apogg) A evidente corrupção da terceira variante pode assumir valor de índice para nós, como a pegada deixada por um esforço já antigo para eliminar a repetição de katá no verso. Desde logo, só podemos admirar a fidelidade dos códices Parisinus 2036 e do apógrafo Vaticanus 3 que nos transmitiram o texto com uma variante que talvez os próprios os autores dos manuscritos não soubessem explicar. Em compensação, ela nos põe de sobreaviso quanto à regra de exceção atribuída a Herodiano, sobre a qual se pode apenas especular. Nada impede que, identificando no verso um possível artigo feminino e sendo conhecedor da regra rara, o gramático tivesse escrito ἐκ ἀ δέ. Pode-se igualmente imaginar que Herodiano já tivesse encontrado o texto na forma ἀ δέ μ’, o que tornaria difícil explicar, a cada vez, como as duas primeiras

94

Assim como a sugestão de Schneidewin (κἄδαν), a de Ahrens remonta à edição padrão do renascimento francês (καδδ’).

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letras desapareceram ou foram (re)introduzidas depois. A questão é insolúvel e as duas alternativas, a rigor, inverossímeis. Mas se pode cogitar uma terceira possibilidade: que a haplografia fosse efetuada pelo próprio gramático, seja no intuito deliberado de corrigir o verso, considerando ἐκ- uma anomalia, seja porque assim tornaria mais evidente na scripta continua seu exemplo gramatical, para o que não tinha outro verso de memória, senão uma palavra solta: “aurora”. Especialmente por se tratar de um poema muito conhecido, a simples omissão bastaria para explicitar seu modo de ler o verso (como ek a dé), sem risco de considerar o gesto um prejuízo na transmissão do texto. O fato é que todas as variantes podem ser explicadas a partir de ékade, desde logo, pela tentativa constante na transmissão do poema de “corrigir” o início do verso. Ao passo que nenhuma forma divergente pode oferecer uma razão paleográfica para o aparecimento posterior dessas letras, com uma inicial acentuada. Então, trata-se de saber se essa “palavra” constitui de fato uma corrupção de outra expressão não-identificada ou se ela pode se explicar dentro do poema como uma construção calculada para provocar esse nó na linguagem. Em todas as leituras propostas para ékade, o único termo constante é a conjunção dé. O curioso, aqui, é que para destacar essa coordenada o tradutor já precisa postular uma dupla escuta: nada assegura que a interpretação esteja correta, a não ser uma possibilidade de ouvir outras “palavras dentro da palavra”. Pois traduzir dé não é mais, nem menos, verossímil do que ler ek ou kád, para começar. Admitindo esse pressuposto, principiar pelos sons que ecoam em ékade pode ser um bom ponto de partida para defender a palavra “irregular” num poema que causa mais embaraço pelo que contém do que por problemas de transmissão propriamente ditos. Em favor do texto de Longino, um primeiro indicador de que a “palavra” ékade foi introduzida dessa forma no poema é o paralelismo interno do polissídeto na terceira e na quarta estrofe que aproxima o início dos versos 9 e 13: allá kám mèn... dé... dé... dé... ékade... dé... dé... dé... Em seguida, a simetria da correspondência em três termos allà kàm mèn / ek kád dé é outro forte indício de que os versos 9 e 13 estão relacionados através dessas duas expressões que destoam na série dos pathémata, ambas colocadas antes do núcleo de cada oração, com uma construção equivalente: glôssa éage / m’ ídrōs kakkhéetai. Isto é, nos dois casos, a tríade precede a entrada do sujeito (glôssa/ídrōs) e de um verbo na voz média-passiva: o único par de verbos com diátese média ao lado de phaínein (v.1 e v.16) e ambos seguramente marcados pelo mesmo pré-verbo: (kat)ágnymi, (kata)khéō. Como kakkhéetai, confirmado por Herodiano, não pode ser alterado, a escuta de kád obriga a 379

recolocar definitivamente a questão incômoda: como se explicaria a repetição de katá? Aqui, um terceiro argumento a favor da leitura mais problemática advém da possibilidade de ek e kád formarem tmese tanto com ídrōs quanto com khéō, mostrando que os termos “ouvidos” dentro de ékade não são acidentais. Apenas a tmese de ek- com o sujeito ídrōs requer um neologismo: eksídrōs (por analogia com o verbo eksidróō) cujo sentido equivalente à ação de ficar “coberto de suor”, “exsudante”, coincide com o composto formado com katá, kathídrōs, que significa “inundado, jorrante, coberto de suor”. Por outro lado, com khéō forma-se o verbo ekkhéō usado por Homero tanto no sentido literal de “verter” água (Il. 21.300) como no figurado de “derramar” dardos (Od.22.3; 24.178). Diferindo apenas pela nota que torna o verbo “muito forte” no caso de katakhéō, pela ideia de “jogar para baixo, derrubar no chão”, nos dois casos as tmeses geram termos repetidos, sinônimos: eksídrōs/kathídrōs e ekkhéō/katakhéō. Se somarmos a isso a hipótese avançada por Beattie de que num estágio primitivo da escrita, no alfabeto grego arcaico a palavra grafada com E admitiria duas leituras, a alternativa δέ / δή, introduzindo um termo equivalente a μὲν (“certamente, de fato”) adquire valor de confirmação: a reiteração vertical da mesma formação semântica κὰμ μὲν e κὰδ δή abole a suspeita sobre a escuta de dois katá no verso 13. Por fim, uma passagem da Ilíada (1.436-439), em que o poeta inicia quatro versos seguidos com a locução ἐκ δέ, sugerida pelo segundo apógrafo, se não serve de paralelo propriamente dito, não deixa de ser sugestiva. O segundo desses versos é formular e aparece inúmeras vezes na Odisseia (9.150, 9.547, 12.6, 15.499), sempre aproximando ἐκ e um movimento de águas que “se quebram” sobre a praia, “na arrebentação”, com uma sintaxe particularmente truncada sobre a mesma raiz de ágnymi. Se entendo corretamente, é preciso supor uma fusão do verbo com o substantivo, sob pena de obstruir a tradução literal: rhḗ gnymi / rhēgmîni. Na brilhante versão de Haroldo de Campos, que sobrepõe os dois sentidos: “fora saem todos – na areia o mar arrebenta” (ἐκ δὲ καὶ αὐτοὶ βαῖνον ἐπὶ ῥηγμῖνι θαλάσσης, Il.1.437). Todos esses traços apontam para a funcionalidade de ékade no poema tal como está escrito. Mas não resolvem a leitura do verso. Pelo contrário, o tornam mais complicado. Como nossa análise não deixa outra alternativa senão aceitá-lo com todas as dificuldades que apresenta, é preciso buscar em outro lugar uma referência que permita desembaralhar a sintaxe. Pois se o verso não está corrupto, como se supõe, é necessário admitir que nós é que não o estamos lendo corretamente. Um problema frequente com os paralelos que se costuma indicar para este e outros versos do poema é que eles se preocupam em encontrar um precedente para o “sintoma”, no caso, o suor, e não para a linguagem poética. Uma pista bem mais proveitosa poderia ser seguida se se observasse alguns usos épicos do próprio verbo katakhéō, que os filólogos se preocuparam tanto em corrigir a fim de evitar a dobra do katá. Na Odisseia, quando Atena é comparada a um artífice que “circumderrama” (perikheúetai, 6.232) ouro na prata, sublinhando a téhknē com que ela “esparge graça divina” 380

(katékheue khárin, 6.235) sobre Ulisses, a fala de Nausícaa imediatamente constata o efeito causado pelo verbo: o herói que antes parecia ignóbil, agora parece divino (theoîsin éoike, 6.243) aos olhos da princesa, pelo charme e beleza que a deusa infundiu, i.e., literalmente “derramou” no herói, tornando-o “semelhante dos deuses” (antithéoisi, 6.241) e despertando na jovem o desejo de casar com ele. Em Hesíodo, o sentido é ainda mais revelador, pois o poeta emprega a mesma diátese com uma implicação peculiar. Na voz média, como ocorre no fr. 31 V, o verbo khéō pode assumir o sentido figurado de “emitir” um som, palavra ou canto. Usando o mesmo pré-verbo que Safo, o poeta não vê diferença entre o líquido que escorre e a voz canora que se espalha, empregando katakhéō para a “canção melodiosa que é derramada” (TD.583 λιγυρὴν καταχεύετ’ ἀοιδὴν). Mas qual seria a relação no poema 31 V entre a água (suor-seiva) que escorre do eu e a “graça” que torna “semelhante aos deuses” na Odisseia ou a “canção melodiosa” que se esparrama em Hesíodo? A última sugestão de Beattie, com a leitura de ἦκα (“suavemente, lentamente”) para as três letras iniciais não parece convincente, nem oferece um nexo satisfatório para os sentidos encontrados. No máximo, uma solução “amena” que não permite resolver a enigmática palavra έκαδε com todas as nuances inexplicadas até agora. Beattie teve como premissa a necessidade de eliminar os dois katá, que nossa leitura mostrou serem indispensáveis, podemos encontrar outra trilha a partir da própria escuta de ἦκα dentro de ἔκαδε se a tomarmos não como a “leitura verdadeira” do verso, mas como um eco, já segundo, e em relação com o eco semelhante da palavra άκαν, “silenciosamente, tranquilamente”, que ressoa em αλλὰ κὰμ. Aproximando novamente os versos 9 e 13, esses dois advérbios não por acaso derivam da mesma raiz, com o sentido básico de “docemente”, comom informa Chantraine, que identifica as duas palavras fonética e etimologicamente: êka / *akḗ . O que mostra que a sugestão de Beattie nos coloca na trilha certa. Mas para extrair o interesse que ela contém, é preciso reavaliar pela raiz seu pressuposto. No alfabeto grego primitivo as letras E e O designavam indistintamente o que mais tarde se tornaram dois grupos diversos de “três vogais”: ε / ει / η e ο / ου / ω (Adrados, 2005: 97). Nas inscrições mais antigas, a letra H, depois adotada pelo alfabeto jônio para diferenciar o êta (longo η) do épsilon (breve ε), era usada a princípio apenas para marcar a aspiração antes da vogal, que também era representada pela antecedência da consoante aspirada (θ, φ, χ). Somente com os alexandrinos criou-se um sinal diacrítico para marcar a letra aspirada, representado pelo hêta, i.e., um “meio êta” (Ͱ) ou (ⱶ), que depois foi sendo simplificado até se tornar no espírito que usamos hoje. No Parisinus 2036 que nos transmitiu o fr. 31 V e já utiliza a escrita em caracteres minúsculos, ainda encontramos uma forma desse símbolo, bem reduzido, mas já na posição superior à esquerda, exatamente nas letras

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marcadas por W. Rhys Roberts.95 Mesmo depois do alfabeto jônio recuperar a letra H para estabelecer essa distinção entre o “e” longo e breve, em muitas regiões o costume de grafar ambas as vogais, êta e épsilon, com o mesmo signo, perdurou por algum tempo. Até o séc. VI a.C, a vogal longa ainda aparecia escrita com E nas inscrições áticas, sem distinção quanto à breve (antes de 500 a.C. aproximadamente), quando o ditongo EI simplificou a articulação. Em consequência, este dígrafo entrou em uso a princípio para o “e” longo (η), mesmo quando, historicamente, o som não correspondia a um ditongo; em seguida tornou-se comum depois de 450 a.C. e já era padrão no séc. IV a.C. (Colvin, 2007: 44). Esse breve esclarecimento confirma o argumento de Beattie e reforça a base que o crítico oferece indiretamente para a interpretação de outras partes do poema, onde a hipótese sobre a duplicidade das longas e breves ε/η nos foi sugerida pela própria composição poética da linguagem, como uma técnica que a poeta emprega nos versos 11 e 15 (órēmmi/émmi). Mas a explicação linguística tem um interesse suplementar, permitindo ver mais claramente por que a emenda não era satisfatória. Em primeiro lugar, Beattie concluiu que poderia inferir um advérbio êka no texto original sem considerar sua acepção primeira (“docemente”), nem seu paralelismo com ákan. Mas uma segunda razão para ter optado por essa leitura poderia decorrer do fato desta ser a única palavra com η (êta) que ele julgou poder ouvir no poema, pois qualquer outra pareceria incompatível com o dialeto eólio devido à ausência de aspiração das vogais iniciais eólias em geral, por ser um dialeto que se caracteriza pela psílōsis, “despojamento” da inicial aspirada. Acontece que é justamente devido ao chamado “caráter psilótico” do dialeto eólio que mesmo as palavras aspiradas não soam diferentes das não-aspiradas. E como todas as palavras que começariam com uma letra aspirada em outros dialetos gregos não o são no poema 31V, a peculiaridade permitiria manter a dupla escuta na glôssa de Safo jogando apenas com a diferença entre longas e breves. Com isso, se apresenta de imediato uma terceira possibilidade de interpretação para ékade. Com o mesmo som do advérbio ἦκα (êka), se poderia ouvir aqui o verbo ἧκα (hêka), sem a aspiração, na primeira pessoa do aoristo indicativo ativo de ἵημι (híēmi). A partir da acepção básica de “mover para frente”, íēmi significa, entre outras coisas: “emitir um som”, “fazer ouvir uma palavra” e com o objeto glôssan, particularmente, “falar tal língua, idioma ou dialeto particular”. Do sentido mais comum de “enviar, lançar, jogar” deriva uma série de usos relacionados com o repertório de imagens do poema 31. Para ficar apenas em Homero, o verbo compõe com frequência expressões como: lançar

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A edição de Roberts, curiosamente, marca a primeira letra do verso 13 com um espírito rude. Como o sinal não é identificável na versão digitalizada do codex Parisinus 2036, ao contrário de todos os outros espíritos rudes que ele assinala seguindo escrupulosamente o manuscrito, inclusive nos erros do escriba (ωνἥρ, ὡσ, ἁδύ, ὑπακούει, ὑπαδεδρομακεν), suponho que seja um erro de impressão. Por isso o corrijo para έ como os demais intérpretes que citam sua transcrição da scripta continua, pois um acento um pouco apagado ainda é de fato identificável sobre o épsilon, ao passo que um sinal truncado logo adiante sugere um espírito em μ’ ἵδρως que não aparece no texto de Roberts.

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uma corrente da água mais bela (κάλλιστον ὕδορ, Il.21.158 et al.), ou o rio “muito mais belo” que se lança sobre a terra (Od.11.239); atear fogo no próprio rio (Il. 21.338) ou apenas “lançar fogo” (h.Hom 4.114; cf. também Ésqu. Sept.493); emitir sons (Il. 3.152; 3.221-222; Od.12.192), lançar palavras (Il.3.221-222) e inclusive lançar um phármakon (Od.10.317, em outras passagens com o verbo sinônimo bállein). Porém, o emprego que me parece oferecer o melhor nexo capaz de juntar todas as peças do verso 13 é o sentido bélico de “lançar dardos” (oïstón, Il.13.650), que se liga diretamente ao sentido figurado do verbo íēmi de “ter desejo ardente” de algo (Il. 2.589; 11.168; 23.371) em especial de atingir alguém com dardos, o que se exprime em Homero como “um desejo ardente no coração” (híeto thymós, Il.8.301; 8.310; 13.386). Não por acaso Platão vinculou o mesmo verbo à etimologia de hímeros, “desejo premente”. Em seguida, o verbo (h)êka, assumido pelo “eu”, é reduplicado por uma partícula que se autonomiza na canção: ao invés da cópula dé, que se costuma identificar como peça legível no início do verso, o que o poema põe em primeiro plano é um sufixo não acentuado -δε que pode se ligar a nomes de lugar ou substantivos comuns, significando “movimento para”. Assim nas palavras Árgosde, “em direção a Árgos, para lá” ou thanatónde, “para a morte”. Mas também, com ideia de tendência ou de iminência temporal, para compor acusativos adverbiais como boulytónde, “quase na hora de” e télonde, “até o fim”. Ou em conexão com pronomes demonstrativos, servindo para marcar que a pessoa de que se fala está presente ou que o locutor se refere a uma coisa atual: hóde, “este aqui, isto que vejo, que está diante de mim”; toiósde, “tal como este”. Todos esses sentidos estão intimamente associados a (h)íemi e (h)ímeros: movimento para, desejo premente, próximo da realização e dirigido para algo/alguém presente. De tal modo que os termos se aproximam na expressão corrente: em diversos usos a partícula -δε modifica precisamente o acusativo regido por ἵημι, “lançar para (acusativo + -de)” (e.g. Od.19.187; 20.356; Theog.669). Mas aqui a ptṓsis parece se desgarrar como um “som” capaz de significar por si mesmo a repetição enfática do verbo. Por um lado, a partícula demonstrativa enclítica -δε, uma ptṓsis formadora de acusativo, com relação adverbial de “movimento para” (= ἧκα), permite explicar a acentuação inesperada de ékade, compondo uma palavra “impossível”, que diz a mesma coisa duas vezes. Por outro, essa partícula sufixal confirma o verbo na primeira pessoa que irrompe na sintaxe do verso realizando na linguagem a inversão da cena do colóquio, em que o “eu” passa a assumir a fala. Se a letra de ἔκαδε está truncada não é senão porque essa palavra carregada de desejo realiza a entstellung da canção, a “deformação” que inscreve no poema a marca dessa impossibilidade. Se aproximarmos, agora, o verbo na primeira pessoa do verbo na terceira pessoa, vemos que ambos comportam a mesma dualidade de referências. Do mesmo modo que ἴημι se liga às conotações tradicionalmente eróticas de lançar “fogo/água” e projetar “dardos”, na forma em tmese com ἐκ-, que identifica sonoramente as duas formas presentes no verso 13 (ἦκα/ἐκχέεται), o verbo χέω encontra 383

um estrito paralelo em Homero, onde ἐκχέω também pode descrever tanto a ação de “verter água” (Il. 21.300) quando a de “derramar dardos” (Od.22.3; 24.178). Ambos se correspondem, então, com o desejo-ἴμερος que se derrama da voz da amada no fr. 31V. Remetendo ao mesmo repertório de imagens, transportado do contexto épico-guerreiro para o mélico-erótico, a dupla determinação de (h)ímeros pelos verbos (h)êka e ek... katakhéō identifica-se com o elemento líquido que “escorre docemente”, análogo da substância ígnea que se projeta do olhar “como setas” que ferem a amante. Por onde a trama de metáforas do verso 13 articula uma resposta à “doce voz” (ἆδυ) e ao “riso desejável” (ἰμέροεν) que atingem o “eu” nos versos 3-5 através da voz da amada. A cada predicado aural corresponde uma escuta de ékade, remetendo à “doçura” (ἦκα) e ao “desejo” (ἧκα), ambos reunidos pelo mesmo som. Portanto, a leitura permitiu identificar duas camadas de sentido em ἔκαδε – sem que nenhuma possa ser apontada como solução satisfatória para uma edição/tradução do sentido literal do verso, cada uma parece motivada por um rigoroso sistema de relações paralelísticas dentro do poema. A primeira, em relação com o verso 9, propõe ler as seguintes articulações, que basicamente estabelecem a sintaxe da rede metafórica:

ἐκ (para fora) + κὰδ (para baixo) + δέ (e, mas) / δή (certamente, justamente)

A segunda camada, em paralelo com os versos 3-5, efetua a inversão da cena do colóquio com um verbo na primeira pessoa, que diz ao mesmo tempo “eu desejo” e “eu falo”. Sobrepondo duas imagens no mesmo verso, do suor que se derrama e das palavras de som doce que o “eu” lança para atingir a amada, compõe-se da singular combinação do sufixo de acusativo com um verbo-advérbio:

ἧκα (desejo) / ἦκα (doçura) + -δε (movimento para)

Se quisermos levar a sério o uso performativo da linguagem no poema, não será uma coincidência o fato desse ruído verbal ser a primeira “palavra” que soa após a locutora declarar o sintoma do “zumbido” nos ouvidos. Um pathémata igualmente não atestado antes de Safo e que desconcerta os intérpretes tanto quanto a “língua quebrada” ou a expressão “indecifrável” ékade. Pois essa palavra “rara” não apresenta concretamente na linguagem o sentido “ruidoso” de epibrómeisi? No comentário ao verso 9, sugeri que o corte métrico aproximando epibrómeisi dos dois verbos phoneîn no poema poderia indicar uma função metalinguística relacionada aos sentidos segundos que “sobressoam” nos ouvidos. O que permitiu embasar num primeiro momento a escuta de all’ ákan dentro de allà kàm. Em seguida, essa suspeita encontrou um reforço no verso formular 384

de Hesíodo (Scut. 279 e 348) a que a expressão glôssa éage pode aludir, no qual o sujeito de ágnymi era êkhos, que significa tanto “canto” como “zumbido no ouvido”, identificando-se com um “som que se quebra” produzindo ressonâncias. Agora, essa mesma hipótese permite estabelecer um vínculo entre os dois versos de leitura mais difícil no poema, aproximando os “ecos” etimologicamente idênticos ἦκα e *ἀκή. Como a palavra-persona ODRADEK do conto “Tribulações de um pai de família” de Kafka, essa palavra-coisa ἜΚΑΔΕ é a própria metáfora, no fr. 31V, do que Haroldo de Campos chamou de “realismo de linguagem”. O que se completa quando a mesma palavra realiza a inversão da cena da oaristýs lendo-se de trás para frente, como a imagem verbal do encômio invertido: ἔκαδε / ἔδακε. Essa última sugestão de leitura, com um quase-palíndromo, permite ouvir o verbo édake, que corresponde à 3ª pess. sing. no aoristo indicativo ativo de δάκνω (dáknō): “morder”. Segundo Bailly o verbo seria frequente na expressão “morder o lábio”, como signo de uma vontade presa (Tirteu 7.32) ou de um esforço para conter a vontade de falar (Ésquilo fr.293 e Sófocles Tr.976). No caso do poema 31, o paralelo mais próximo seria Hesíodo, que emprega a mesma declinação no verso kradíē d’édak(e), “e morde o coração” (TD, 451) referindo algo que “rói” ou “atormenta” um coração devido a uma falta.96 Com essa palavra-flecha dotada de boca a canção morde como a “doce flecha do olhar” (ὀμμάτων βέλος) de que fala Ésquilo (Agam. 741-742) com o mesmo verbo (δῆξις < δάκνω) que “morde o coração” (δηξίθυμον). Na tradução de Trajano Vieira: “flor de éros mordiscando o peito”. Mas seria desorientador procurar aqui algum “pensamento oculto” ou “sentimento profundo”. Se o “eu” põe desejo na canção, é o mélos que o transporta que se torna capaz de “fisgar” aquela que está agora em condição de “ouvir atentamente”, (h)ypakoúo, com a cabeça inclinada “para baixo” (katá), na posição que o poema assinala, desde o princípio, à que é “semelhante às deusas”.

Rio das Ostras – Campos – Lumiar, jan. 2016-jan 2017

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Com sentido de privação: κραδίην δ' ἔδακ' ἀνδρὸς ἀβούτεω, “e morde o coração dos homens sem bois” (TD.451).

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O intraduzível e a intradução

A perspectiva que orientou esse trabalho partiu de uma premissa poundiana, do paideuma, aplicado ao leitor de poesia: “a ordenação do conhecimento, de sorte que o próximo homem (ou geração) possa encontrar da maneira mais rápida a parte viva da tradição, e gastar o menos tempo possível com caminhos obsoletos”. Trata-se de encurtar o caminho para o próximo pesquisador ou leitor que se ocupe com o mesmo objeto e, no caso de um estudo sobre poesia, porque não, de orientar a pesquisa para o próximo tradutor ou poeta que também possa encontrar “nutrição de impulso” na reflexão crítica? A título de conclusão, proponho, portanto, comentar algumas operações de leitura do fr.31V, a fim de explicitar as escolhas mais divergentes adotadas na tradução crítica que se segue na miniantologia Safo: desafio à tradução. Como não se trata de uma tradução “poética” propriamente dita, a que faço, senão uma ferramenta de estudo interpretativo, aproveito para indicar o que permanece a espera de melhor solução, repropondo, a título de desafio a outros tradutores – especialmente ao tradutor-poeta mesmo não leitor de grego – um texto-base, acessível e repassado pelo crivo da análise literária, capaz de estimular novas versões e reinvenções de Safo. Como acredito que o interesse imediato que esse trabalho pode apresentar está na leitura do fr. 31 V como uma modalidade de “mímesis da produção” (Costa Lima) anterior à formação do horizonte do sujeito moderno, qual seria a melhor demonstração dessa tese do que uma tradução capaz de recriar a dimensão fictiva da performance verbal de Safo na forma de um verdadeiro poema em português? Ora, o exemplo existe: a intradução Pseudopapyros, na qual Augusto de Campos recria o poema Phaínetaí moi, junto de outros fragmentos de Safo, em diálogo com o miniepigrama Papyrus de Pound, na forma de um verdadeiro “realismo de linguagem” (Haroldo de Campos). Deixo para outra ocasião, no entanto, a análise deste poema, que requer um estudo à parte, limitando-me a indicar que a leitura atenta do fragmento de Safo se faz indispensável para a própria decifração da peça do poeta concreto. Na medida que sua “intradução” se converte em “operador de leitura” do poema a ser traduzido (tradução como forma de crítica), o poeta privilegia aspectos da linguagem geralmente ignorados pelo intérprete e tradutor especializado – o dito “intraduzível” –, permitindo ao crítico um ponto ótimo de contraste da perspectiva de uma análise interessada na forma interna do poema. Não por acaso, muitas interpretações de partes do fr. 31 V me foram direta ou indiretamente sugeridas pela leitura comparada com as técnicas de tmese, palimpsesto e do realismo de linguagem no Pseudopapyros. Nas notas que seguem, procuro me concentrar principalmente nesses nós de linguagem do poema que constituem o “umbigo” da tradução poética. 386

versos 3-4:

ἆδυ φωνεί- | σας âdy phōneísas

A tradução mais próxima seria: “falando docemente”. Porém, a marca de feminino no particípio “falando” não tem equivalente literal. A fim de recuperá-la, propus empregar uma oração adjetiva com sentido atributivo, “a que é doce falando”. O que acentua a generalidade da cena de abertura, presente em óttis, “quem quer que” (verso 2). Perde-se em sonoridade, mas explicita-se a forma elusiva de representação do “tu” feminino. Por outro lado, a construção “pesada” compensa a perda da sonoridade estranha do pronome indeterminado no verso 2. Já que ali era preferível manter apenas o relativo “o que”, em favor da atualidade da cena no presente imperfeito, i.e., no tempo da performance. O uso do colchete assinala a quebra métrica de “falan[do”, na forma icônica de uma lacuna fictícia, do mesmo modo que o verso 7 “fal[ar” e o verso 11 “sobre[zum- | bem”, aproximando visualmente os três verbos “sonoros” do poema, como Safo os aproxima oralmente pela “rima” do corte métrico.

verso 4:

ὐπακούει ypakoúei

Literalmente: “escuta inclinando a cabeça para baixo (hýp-)”, com conotações de atenção, submissão e cumplicidade. Não encontrei equivalente para o paralelismo e a oposição, sonora e semântica, que o verbo estabelece com ἐπιβρό- | μεισι δ’ ἄκουαι nos versos 11-12, onde se escuta o eco do mesmo radical (yp)akoúei / (d’) ákouai e se estabelece uma inversão dos pré-verbos: hyp(o)(para baixo) / epi- (para cima). Mantive apenas o sentido específico do verbo “atento escuta”, como uma peça-chave no poema: pois é essa conotação de “cumplicidade” e “participação” no pré-verbo hyp(o)- que configura a cena inicial como uma oaristýs, um “colóquio amoroso” e antecipa a posição da interlocutora como “atenta ouvinte” na cena invertida do colóquio a duas, em que o “eu” assume a palavra para proferir “doces sons” à destinatária, na forma de canção.

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verso 5:

γελαίσας ἰμερόεν gelaísas imeróen

Mesma dificuldade que o particípio dos versos 3-4. A tradução mais próxima seria “rindo desejavelmente”. Nesse caso, embora a concordância com “a que é doce...” já bastasse para indicar o gênero feminino da segunda pessoa, optei por recuperar, novamente, a marca de gênero com o adjetivo “luminosa” que traduz literalmente a raiz gel- (brilhante, luminoso, radiante) do verbo “rir”. Elemento importante no verso, pois se a “voz” da falante se dirige ao verbo “ouvir” do homem na terceira pessoa (verso 4), o aspecto visual-luminoso do “sorrir” se relaciona simultaneamente com o verbo “ver” na primeira pessoa (verso 7).

verso 6:

καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόαισεν kardían en stḗ thesin eptóaisen

Tentei recuperar o aspecto iterativo do verbo eptóaisen, assinalado na marca de passado (aumento e-), por uma expressão típica da mélica arcaica e recorrente em Safo, “outra vez”, equivalente ao tópos “Éros, de novo...” (dēûte), que aparece igualmente no fr. 22 V de Safo, relacionado aos mesmos verbos (v.14 eptóais’ ídoisan), porém, sem abrir mão do tempo presente, cuja importância se mostra na dimensão da atualidade da performance. Se a paráfrase “perde” a estranheza do tempo verbal em grego, o substantivo “coração” grafado com um “κ” (káppa), citando a solução de Augusto de Campos para o verso seguinte, introduz um significante eólico kóra (menina dos olhos, pupila) dentro dos “olhos” e do “peito” da locutora, equivalente à tmese do pronome “ti” (sé) dentro do verbo “olho para” (eisídō) no verso 7: s’ídō. Do ponto de vista sonoro, procurei responder à repetição do fonema nasal -ν em todas as palavras do verso (“um som que pode enfatizar o significado sufocante, doloroso do verso”, Sinos, p.29), com uma aliteração icônica do “tremor” em TR: “me estremece outra vez o κoração no esterno”. Com isso, mantive o termo da mesma raiz de stḗ thesin, “esterno”, a partir do cognato stérnon, “helenizando” o verso sob vários aspectos.

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verso 7:

σ’ ἴδω βρόχε’ὤς s’ ídō brókhe’ ṓ s

As duas tmeses são praticamente intraduzíveis, fazendo ouvir outras palavras dentro das palavras, sobre o mesmo som em grego: s’ ídō (olho para ti), dentro de eisídō (olho para); brókhe’ ṓ s (um momento, então), dentro de brokhéōs (em pouco tempo, brevemente). Para a primeira, Augusto de Campos encontrou o “lance de escrita” mais próximo do efeito criado por Safo: o pronome “tu” dentro dos olhos do eu, na tmese do verbo “ver”, central na topologia erótica do poema. Para a segunda, uma sugestão hiperliteral seria “um momen’ tão logo”, com tmese de “então”. Mas nesse caso posso apenas dar um mau exemplo, pois teria o inconveniente de introduzir um “momentão” no lugar onde a tmese realiza exatamente o inverso: a abreviação e a intensificação do instante de um “breve olhar”. O que soaria muito artificial, ao contrário da aparência de clareza, sem segundos planos, da primeira camada do verso de Safo.

verso 7-8:

ὤς με φώνη- | σ’ οὐδὲν ἔτ’ εἴκει ṓ s me phṓ nēs’ oudèn ét’ eíkei

Literalmente, lê-se, numa ordem inteligível: “então, não falar nada mais me é possível”. Porém, o verbo *eíkō, usado aqui na forma impessoal, contém uma polissemia implícita. Pode significar tanto (i) “é possível”, indicando uma impossibilidade de falar (estado de impotência, amēkhanía), no sentido de uma inatividade da língua (glōssargía); como (ii) “é provável”, o que introduz a mesma indeterminação dos verbos phaínein, nos versos 1 e 16, com sentido de “parecer, ser provável, verossímil”. Mas o verbo também pode indicar que, (iii) sempre que a locutora olha para a amada ou escuta sua doce voz, ela é tomada por não só por desejo “que torna o herói covarde”, mas por um desejo de falar (glōssalgía) que, nesse momento, não seria “adequado ou conveniente”, no sentido em que Horácio parafraseia o verso, como um “silêncio indecoroso” (Carmen IV.1.3536), e como a própria Safo censura a Alceu em sua resposta à intenção de dizer as coisas “vergonhosas” que o poeta cala (fr.137V).

389

verso 9:

ἀλλὰ κὰμ μὲν γλῶσσα ἔαγε allà kàm mèn glôssa éage

A minha leitura procurou mostrar que os dois elementos centrais do verso: o hiato entre as vogais breves de glôssa éage, que introduz uma irregularidade métrica e prosódica no “verso grego normal” (Lobel), e a tmese do verbo kàm... éage (katágnymi), “quebrar-se inteiramente”, que levam os editores a crucificar a passagem, constituem peças de uma elaborada construção de linguagem, a partir de precedentes épicos, e exemplificam uma técnica de composição (sýnthesis) mimética bem atestada e conhecida pelos alexandrinos (cf. cap. 3.2.3). Ao mesmo tempo que o verbo está literalmente fraturado pela sintaxe e a língua foneticamente interrompida por uma “quebra” (pausa prosódica), o pré-verbo antecipado compõe junto com a conjunção allá, uma escuta em palimpsesto, introduzindo a expressão all’ ákan (mas, docemente), dentro de allá kàm (mas, inteiramente). O próprio verbo ágnymi, cita uma passagem de Hesíodo que o emprega na expressão formular: perì dé sphisin ágnyto ēkhṓ , “e o som se quebrava em volta deles” (Scut.279, 348). Onde o verso assume o sentido específico de um “som” que se divide em partes, multiplicando-se em “ressonâncias”, literalmente, produzindo “ecos”, duplos sonoros. É particularmente significativo que o sujeito ēkhṓ , associado ao uso mais frequente do verbo “quebrar” em relação ao “som”, segundo Bailly, também possa conter os sentidos opostos de “canto” (como a voz doce, nos versos 3-4) e “zumbido no ouvido” (como no verso 11-12). O conectivo mèn (i) sublinha a ruptura adversativa que abre o verso (“mas, decerto”), mas também (ii) destaca o sentido etimológico da conjunção allá (de állos, “outro”) podendo compor uma adversativa desdobrada (“mas, ao contrário”); (iii) funciona para “cimentar” a tmese de kàm (mèn)... éage e (iv) estabelece o início da parataxe (mèn... dé... dé... dé...) que introduz a série dos signa amoris. Mas também sugere (v) a escuta de outras vozes, destacando dentro do verso a expressão katá + glôssa (uma tmese dentro da tmese), que sublinha a sonoridade “estrangeira” das palavras “raras” (glôtta) que ecoam nas dobras da voz da poeta. Uma acústica sofisticada (por homonímia e homofonia) que supõe uma escuta atenta (hypakoúei), capaz de ouvir as palavras sob as palavras, na forma de um palimpsesto oral. Se a primeira camada literal “mas decerto a língua se quebra inteira” denota um estado de “silêncio” (que é um dos sentidos do advérbio ákan, sobrescrito em eco), a adversativa allá introduz uma contradição com o verso anterior. Literal e logicamente os versos diriam: “falar não me é possível... mas a língua emudece”. Porém, assim como o verso 8 contém uma duplicidade de sentidos, a segunda camada acústica do verso 9, ressalta os valores de “doçura” (*akḗ ) e de uma língua “refinada”, capaz de “doce canto feminino” e de realizar “carícias com a língua” (kataglōtízdō), 390

introduzindo, o sentido oposto ao da primeira camada: ao invés de uma “língua silenciosa”, o verso dá a ouvir uma multidão de vozes, demonstrando uma “língua tagarela”, “cheia de palavras” (katáglossa). Ou seja, exatamente o avesso da cena representada, como se o verso se escrevesse literalmente “ao contrário”, állōs. É importante notar, por fim, que o verso realiza uma separação (krísis), implicando uma divisão entre “aquele que fala” (prósopon, pessoa falante) e “aquele de que se fala” (hypokeímenon, sujeito verbal). Na paráfrase de Plutarco: o “eu” está mudo, mas se olhássemos para seus olhos, seríamos tomados por um desejo ardente de ouvi-lo falar, pois assim como o verso de Safo, o jovem filósofo se mostra silencioso, mas vemos que ele está pleno de palavras. A solução que propus com a tmese do epíteto de Éros “doceamargo” (gykýpikron), utilizado por Safo no fr.130(a)V, procura recuperar a escuta da segunda camada acústica contendo ákan (doce) e manter o hiato no verso (língua amarga), que sublinho com uma sequência de três hiatos seguidos na locução “doce a língua amarga”, para responder ao uso de monossílabos e dissílabos sáficos, a fim de criar o mesmo efeito de interrupção prosódica. Sendo impossível recriar em português a dupla tmêsis do verso – o “corte” literal, morfossintático, do verbo “quebrar-se inteiramente” (kàm... éage) e o corte figurado da “língua loquaz” (kàm... glôssa) – optei por um caminho indireto, como Safo. Recuperando o sentido literal do hiato, que significa “choque de forças” (sýnkrousis), como um símile etimológico, na tensão entre as sensações opostas de éros, definido como “doce” e “amargo” ao mesmo tempo, através da citação do fr.130(a)V o verso 9 explicita o sentido erótico de kàm... glôssa éage como imagem concreta do segundo epíteto de Éros: uma língua (membro do corpo, órgão da fala) afetada por éros “quebra-membros” (lysimélēs). De modo que a quebra que pode significar tanto (a) um sentimento doloroso, particularmente “amargo”, ligado ao estado inelutável (amákhanos) de mudez, como efeito negativo de éros; quanto (b) uma sensação agradável, associada às palavras segundas que “ressoam” na canção quando a língua-mélos (membro da frase musical) se parte, produzindo “ecos” e “doces sons”. Aparecendo a título de suplemento fictício, o epíteto “doceamarga”, como atributo erótico da língua, permite manter a leitura da primeira camada (mas a língua se quebra) sem os termos entre colchetes. Com isso, tive que abrir mão dos advérbios “decerto” (mèn) e “inteiramente” (kàm), com perda de paralelismos acústicos entre màn (v.5), mèn (v.9) e dḗ (v.13); kàm (v.9), kád (v.13) e kak(v.13).

391

Verso 9-10: λέπτον | δ’ αύτικα χρῶι πῦρ ὐπαδεδρόμακεν lépton d’ aútika khôi pŷr ypadedrómaken

Trata-se do primeiro pathémata não-homérico da série. Curiosamente os tradutores geralmente deixam de aproveitar a homofonia de lépton com “lépido”, palavra que traduz precisamente o grego através do latim lepidus. Literalmente o adjetivo significa “sem pele, fino, suave, tênue, sutil, delicado, magro, leve, ligeiro”. Mas o dado notável, aqui, parece o fato de que um fogo “sem pele” corra “sob a pele”. Optei por helenizar toda a expressão em português, numa tradução parafônica, sobre os mesmos radicais: “lépida pira”. O que carrega conotações especificamente femininas para o verso: caracterizando uma expressão refinada e “detalhadamente minuciosa” (katà leptón), ligada à esfera da tékhnē do trabalho manual finamente elaborado (roupas, armas, ornamentos, especialmente tecidos) e contendo a ideia de fineza e sutileza, caras a uma poeta que valoriza a hambrosýne, dentro de uma “cultura da delicadeza”. O fogo que corre sob a pele como “signo de amor” não tem precedente na poesia grega e a sintaxe do verso parece desarticular-se ainda sob o efeito de kàm... glôssa éage na linha anterior, dizendo literalmente: “ligeiro e súbito a pele um fogo subcorre”. Vide a intradução de Safo via Catulo por Augusto de Campos, no poema “olhos noite” (“e língua um torpor tênue em meu | corpo chama um som sem fim re- | tine”, etc.) que reproduz poeticamente essa “disrupção mimética da sintaxe” (Lidov). A fim de ressaltar o aspecto imediato, brusco, do presente perfeito do indicativo em (h)ypadedrómaken, “corre sob” = “já correu” (ação acabada), mantive o presente imperfeito de “corre” e o acelerei com um adjetivo em posição quase-verbal: “rastilho”. No entanto, optei por empregar uma tmese a fim de recuperar o pré-verbo “sob”, compondo a palavra-cabide “súb[ito per]corre”, com a expressão “subcorre”. O que também visa compensar a perda da tmese de kàm... éage no verso anterior.

392

versos 11-12: ὄρημμ’, ἐπιβρό- | μεισι δ’ ἄκουαι órēmm’ epibrómeisi d’ ákouai

Trata-se do segundo pathémata não-homérico da série. Não encontrei meio de traduzir, aqui, o verbo “ser” (émmi, sou) que soa dentro do verbo “ver” ([ór]ēmmi, vejo). Quanto ao sintoma “sem precedentes” do ruído nos ouvidos, mantive a solução de Jaa Torrano, que me parece a mais satisfatória: “sobrezumbem”. Destaco, propositalmente, a última sílaba, introduzindo uma ambiguidade: o verbo denota um ruído desagradável e talvez “alto” ou “agudo” (epi-); mas nos ouvidos reverbera um som agradável, em eco (bem), que ressoa “sobre” as palavras, com epicontendo a ideia de acréscimo e superposição, i.e., de simultaneidade de escutas e sentidos. O cód. Parisinus 2026 registra a forma epirrómbeisi, que Th. Bergk corrigiu para epibrómeisi a partir da citação desse verso por Apolônio de Rodes (Argonáutica IV.908). Na paráfrase, Orfeu faz os ouvidos de seus companheiros de navegação zumbirem, “ressoarem de barulho” (epibroméontai akouaì), tocando a fórminx de forma ruidosa para que não ouçam o canto das Sereias, evitando o engano de sua melodiosa “voz de lírio”. Porém nos dois casos, o verbo se liga a um campo semântico comum. O verbo broméō (ou brémō), “zumbir, ressoar, estrondar, bramir, troar, vibrar com estrépito, vociferar” e o verbo epibroméō, “berrar, rugir sobre” (com dat.), usado por Apolônio de Rodes para o mar (III.1371), para animais (IV.240) e para os ouvidos (IV.908), se liga ao epíteto de Dioniso, Brómios (Corrêa, 2008: 42 ss.). Por sua vez, o verbo rhombéō (ou rhémbō), que aparece no manuscrito de Ps.-Longino, “fazer girar como um rhómbos, turbilhonar, rodopiar”, contém a ideia de um movimento vibratório ou rotatório, rápido e circular, associado ao rhombós [bull-roarer], disco que ressoa girando em volta de uma corda durante os mistérios de Rhéa e Dioniso (Eur. Hel.1362); de efeito encantatório em magia de amor, nesse caso, sendo movido por Afrodite (Teócrito Idílio II.30); e que se liga ao som “batido” do tamborim ou tímpano de mesmo nome usado no culto a Dioniso. Note-se que o verbo também é usado com sentido de “vaguear, andar errante, ter o espírito inquieto”, daí a ideia de vertigem (ílligos) na primeira camada do texto, privilegiada pelos intérpretes antigos, como sugere o comentário em prosa de um papiro do séc. III d.C. (fr. 213 b V).

393

verso 13:

ἔκαδε μ’ ἴδρως κακχἑεται, τρόμος δὲ ékade m’ ídrōs kakkhéetai, trómos dè

Minha intenção, a princípio, era manter o termo “indecifrável” ékade intacto na tradução, como uma palavra-coisa precursora do termo noigandres de Arnault Daniel (canção 13), do ptyx de Mallarmé (Soneto em yx) e do Odradek de Kafka (Tribulações de um pai de família). Todos nomes “intraduzíveis” e geralmente intraduzidos, como espécimes da mesma modalidade de “realismo de linguagem”. A começar por algumas escutas possíveis de “outros sons” dentro de ékade. À primeira vista, mas jogando apenas com a aparência de sentido, já que o termo é geralmente considerado corrupto, costuma-se identificar as seguintes possibilidades: ek- (para fora), kad (= katá, para baixo), dé (conjunção coordenada “e”); ou numa edição alternativa a (artigo definido singular feminino em [ek] a dé, segundo Hélio Herodiano, séc. II d.C., adotado pela lectio communis do verso). Porém, a fim de propor que o termo não está corrupto e, sim, realiza um truncamento (entstellung) deliberado no verso, como um “hieróglifo necessário” (Schlegel), procuro mostrar que, numa segunda camada de leitura, a partir da diferença mínima de duração entre as mesma vogais breves e longas (ε/η), a poeta introduz novos “ecos” dentro da “palavra”, que passa a conter na performance oral as escutas de: êka (docemente = ákan no verso 9); dḗ (certamente, de fato = màn no verso 5 e mèn a no verso 9); (h)êka (1ª pess. sing. aoristo indic. ativo de ἴημι: eu falo, eu desejo ardentemente, eu lanço [água, dardos, fogo]); -de (sufixo formador de acusativo com sentido com sentido adverbial de “movimento para” = íēmi, “mover para frente”, frequentemente utilizado junto com este verbo para determinar o objeto). Na minha proposta de leitura, entendo que todos estes “ecos” internos da palavra são propositais e compõem um palimpsesto oral, semelhante ao verso 9, onde as camadas de leitura replicam-se e invertem-se, cada uma mostrando o avesso da cena representada pela outra. Assim como allà kàm mèn, com suas escutas segundas no verso 9, realiza na linguagem o contrário (állōs) do sentido literal aparente do verso, a palavra ékade cumpre no verso 13 a inversão da cena do colóquio descrita pelo sintoma literal. Na cena da representação (primeira camada), é o “tu” que fala com doçura e sorri despertando desejo, o que provoca uma série de reações em cadeia no “eu”, culminando, aqui, no “suor” que “derrama-se” da locutora. Porém, na performance oral, que coincide com a própria dimensão performativa do discurso (segunda camada), é o “eu” que assume a voz no poema e “derrama” doces sons, na forma de canção melodiosa, sobre a interlocutora-ouvinte. Na primeira cena, a água escorre “de mim” (ek moi), num sintoma (pathémata) carregado de conotações eróticas particularmente intensas, como em Mimnermo (fr.5 W); na segunda, subentende-se que o mesmo sujeito “água, suor”, convertido em objeto (lido pelo avesso e em concordância com o sufixo 394

de acusativo), é lançado pelo eu “para” (-de) a destinatária da canção, e derramado sobre o “tu” de modo semelhante aos olhares “molhados” (takéra) de éros em Íbico (fr.287 D) ou ao “desejo úmido” (póthos hygrós) de que fala o Hino Homérico a Pan (h.Hom.XIX.33). As duas preposições ek- e kad-, na primeira camada de escuta, podem formar tmese tanto com o verbo khéō quanto com o substantivo nominativo ídrōs, mantendo o encadeamento normal da parataxe com a coordenada dé. Nos dois casos, a ars combinatória da dupla tmese gera termos sinônimos: eksídrōs/kathídrōs, “exsudante, coberto de suor”, e ekkhéō/katakhéō, “derramar (água, dardo, canção, graça divina, etc)”. Ambos reiterando a intensidade do processo verbal. Mas como se explica o segundo katá no mesmo verso? Ele é não apenas desnecessário no caso de kakkhéetai como sublinha a estranheza da palavra ékade. Sua função não pode ser justamente a de sugerir uma segunda camada de escuta, acusando a insuficiência da primeira para elucidar o verso? Seja como for, na segunda camada, o termo inverte a relação entre as locutoras do poema, de modo que os dois ecos com vogal longa, o advérbio êka (docemente) e o verbo (h)êka (eu amo, eu desejo, eu falo), respondem, pontualmente, aos dois epítetos da segunda pessoa que aparece falando docemente (âdy) e rindo de um modo que acende o desejo (imeróen), em um rigoroso paralelismo. Daí a última sugestão de leitura que proponho: lida de trás pra frente, “pelo avesso”, como a própria cena que ela realiza na linguagem, a palavra ékade não poderia conter uma última escuta na forma do quasepalíndromo édake (3ª pess. sing. aoristo indic. ativo de δάκνω: “morder”)? Nesse caso, o verbo inverso poderia ser decifrado a partir do paralelo com o verso de Hesíodo: “e morde o coração” (kradíē d’ édake, TD 451) ou com a imagem de Sófocles da “doce flecha do olhar | flor de éros mordiscando o peito”, que contém o verbo deksíthymon, “mordendo o coração” (Agam. 741-742). Procurei recuperar alguns desses efeitos de som e sentido na tradução através de uma parafonia: “écode”, contendo as palavras “eco”, “de”, “ode” (que convertem o suor em “forma de som”, derramado pela voz da locutora), e, lido de trás para frente, a coordenada “e” e o adjetivo “doce” (em paralelo com âdy no verso 3 e ákan no verso 9). Porém, desloquei o verbo “eu desejo” (hêka), na forma “amo”, para o final do verso, introduzindo dentro do substantivo “tremor” um efeito acústico de “tremura”, na expressão “e treamor de | toda me toma”. Com o que, mantive o gênero feminino de pâsan (toda, inteira) no verso seguinte, privilegiando a escuta interna do sugestivo verbo “mor de”. A estranheza da locução “de toda” cumpre uma função análoga à de allá (verso 9) e à repetição de katá (verso13), chamando atenção para as outras escutas do verso.

Para resumir em poucas palavras, à medida que se desdobra por dentro numa segunda camada, compondo um colóquio dentro do colóquio, no qual o eu assume a locução na forma de uma diálogo “eu – tu” que inverte a primeira cena da oaristýs, o poema realiza a “aparição” da mulher amada como uma visão: ao descrever seus efeitos como análogos aos da própria divindade (primeira camada) – 395

como Éros, “quebra-membros” ou Afrodite, “a de olhos vivos” –, mas, particularmente, adscrevendo ao “tu” a posição de “atenta ouvinte” (segunda camada), na cena inversa à que figura “aquele homem”, identificando a interlocutora como “semelhante às deusas”. Do que decorre uma oposição, não apenas entre ele que parece “quase um deus”, enquanto “eu” pareço “quase morta”, mas entre ele, que apenas “parece” semelhante aos deuses, enquanto ela de fato o “é”, na medida que o poema realiza conversão do “tu” em uma epifania (imagem de desejo). Mas a visão (divina) da mulher não é dita, senão apresentada pelas palavras, de modo que a “aparição do tu” se constitui de modo análogo ao pronome s’ dentro do verbo eisído (verso 7), aparecendo dentro dos olhos do “eu” como produto de linguagem. Como diz Herman Fränkel, os sintomas não são signo de algo, o amor – eles são o próprio amor, i.e., o que aparece nas dobras das palavras: éros escandido em versus.

Rio das Ostras, fev. 2017

396

Safo: desafio à tradução (antologia de traduções do fr. 31 V) Safo fr. 31 Voigt Fontes principais: Pseudo-Longino de Subl. 10.1-3 [cod. P. 2036] + PSI - omagio all’ xi congr. internaz. di papirologia, Firenze, 1965, 16-17 (= fr. 213B Voigt); Apolônio Díscolo De pron.75 a, 106 a (= fr.165 Voigt); Anecd. Oxon. i 208, 15 Cramer (s.b. hidrṓ s na Ilíada 5.796 = Élio Herodiano. Perì klíseōs onōmáton, Hdn. Gr. II 763.23-27 Lentz; republ. GG III.2.2, p.763.23-4 Lentz [Choerob. 360.9 coll.361.8]); Anecd. Par. i 399 Cramer [cod. P. 2633] = (Plut. De profectu in virtude 81d); Hesíquio, b 1214, o 1173 L; Schol. Il. 22.2.; apogg. [cod. Vat. Gr. 2]; apogg. [cod. Vat. Gr. 3]. Paráfrases, citações e imitações: Teócrito Idílio II.82ss, 106-107, Idílio III.40ss.; Apolônio de Rodes Argonáutica I.1232, III.284ss., 297ss, 962ss, 1060ss., IV.908; Nicandro Theriaká 254-255; Calímaco Hymn. V.82; Lucrécio De Rerum Nat. III.153-156; Catulo Carmen 5 (séc. I a.C.); Horácio Carmen I.22.23-24, Carmen IV.1.35ss; Virgílio Eneida IV.23, Écloga VIII.41; Ovídio Heroides XV.110ss.; Apuleio Metamorfoses I.13, II.30, X.10; Longo Dafne e Cloé I.17.4; Plutarco Amatorius 763a, Demetretrius 38.4; Luciano Amores 46; Ruffino AP V. 94. Traduções e recriações modernas: Ronsard Chanson 86 (1560); Boileau Traité du sublime (1674); Augusto de Campos, Pseudopapyros (1973-1992).



φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν ἔμμεν’ ὤνηρ, ὄττις ἐνάντιός τοι ἰσδάνει καὶ πλάσιον ἆδυ φωνείσας ὐπακούει καὶ γελαίσας ἰμέροεν, τό μ’ ἦ μὰν καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόαισεν· ὠς γὰρ σ’ ἴδω βρόχε’ ὤς με φώνησ’ οὐδὲν ἔτ’ εἴκει, ἀλλὰ †κὰμ† μὲν γλῶσσα †ἔαγε† λέπτον δ’ αὔτικα χρῶι πῦρ ὐπαδεδρόμακεν, ὀππάτεσσι δ’ οὐδὲν ὄρημμ’, ἐπιβρόμεισι δ’ ἄκουαι, †ἔκαδε† μ’ ἴδρως κακχέεται τρόμος δὲ παῖσαν ἄγρει, χλωροτ⸤έρα δὲ π⸥οίας ἔμμι, τεθ⸤νάκην δ’ ὀ⸥λίγω ’πιδε⸤ύης φα⸥ ί̣ν̣ο̣μ’ ἔμ’ αὔτ̣[αι. ἀλλὰ πὰν τόλματον, ἐπεὶ †καὶ πένητα†

397

Edição moderna do fr. 31 V Manuscrito corrompido de Phaínetai moi no tratado Perì hýpsous de Ps-Longino Cod. Parisinus 2036 (séc. X d.C.)

Transcrição da scripta continua por W. Rhys Roberts φαίνεταίμοι|κῆνοσἴσοσθεοῖσινἔμμενωνἥρο*στισἐναντίοστοιζά|νεικαὶπλησίονἁδύφων·σαῖσὑπακούεικαὶγελᾶ* ισἰ|μερόεντὸμὴἐμὰνκαρδίᾱνἐνστήθεσινἐπτόᾱσεν·ὡσ|γὰρσἴδωβρόχεώσμεφωνὰσοὐδὲνἔτ’εἴκει·ἀλλὰκἂν|μὲνγλ ῶσσαἔαγελεπτὸνδ’αὐτίκαχρῶπῦρὑπαδεδρόμακενὀππάτεσιδ’οὐδὲνὁρῆμἐπιρομβεῖσιδ’ἄκουε·|έκαδεμ’ἰδρῶσψ υχρὸσκἀκχέεταιτρόμοσδὲπᾶ*σἀ|ναγρεῖχλωροτέραδὲποίαςἔμμιτεθνάκενδ’ολίγω|πιδεύσηνφαίνομαι·ἀλλὰπαντ όλμα*τονἐπεὶκαὶπένητα. Transcrição linear articulada:

φαίνεταί μοι | κῆνοσ ἴσοσ θεοῖσιν ἔμμεν ωνἥρ ο*στισ ἐναντίοσ τοι ζά|νει καὶ πλησίον ἁδύ φων· σαῖσ ὑπακούει καὶ γελᾶ*ισ ἰ|μερόεν τὸ μ ὴ ἐμὰν καρδίᾱν ἐν στήθεσιν ἐπτόᾱσεν· ὡσ | γὰρ σ ἴδω βρόχε ώσ με φωνὰ σ οὐδὲν ἔτ’εἴκει· ἀλλὰ κἂν | μὲν γλῶσσα ἔαγε λεπτὸν δ’αὐτίκα χρῶ πῦρ ὑπαδεδρόμακεν ὀππάτεσι δ’οὐδὲν ὁρῆμ ἐπιρομβεῖσι δ’ἄκουε·| έκαδε μ’ἰδρῶσ ψυχρὸσ κἀκχέεται τρόμοσ δὲ πᾶ*σἀ|ν αγρεῖ χλωροτέρα δὲ ποίας ἔμμι τεθνάκεν δ’ολίγω | πιδεύσην φαίνομαι· ἀλλὰ παν τόλμα*τον ἐπεὶ καὶ πένητα.

398

Transcrição do poema na editio princeps de Francesco Robortello De grandi sive sublimi orationis genere (1554)

[Ad marginem]: Erat corruptissima hac Saphum Ode in manuscripto libro. Nos verò ita emendavimus, ni hil addedo pror sus quare libuit asteriscos aponere, ubi versos minus integre vi debantur. Hoc unu effecimus, ut, cum ex numero agnosceremus esse metrum Sapphicu hendecasylabum, reciperet suam formam nec continuato sermone, ut in manuscripto describeretur: quod puto omnibus gratu fore

φαίνεταί μοι κεῖνος ἴσος θεοῖσιν ἐμπρέπων’ ἥρως, ὃς ἐναντιός τοι ἰζδάνει, καὶ πλησίον ἁδυφωνούσας ὐπακούει. καὶ γελᾶς δὲι ἱμερόεν, τό μοι κάρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπεπτόασεν. ὠς γὰρ ἴδω σε βρόχεωσ με φωνᾶς οὐδὲν ἔθ’ ἥκει. {ἀλλὰ καμμὲν γλῶσσ’ εάγ’· ἐν δὲ λεπτὸν} κ’αὐτίκα χρῶ πῦρ ὑποδεδράμακεν· ὀμμάτεσσιν δ’ οὐδὲν ὄρῶμι· * * κ’ἀπιβομβοισιν δ’ ἀκουαὶ * * ἐκ δὲ μοι ψυχρὸς ἱδρὼς ἐκχέεται, τρόμος δὲ πᾶσαν ἀγρεῖ, χλωροτέρα δὲ ποίας ἔμμι· * τεθνάκναι δ’ ὀλίγω δέω, σἢν * φαίνομαι ἀλλὰ πᾶν τολματὸν· ἐπεὶ πένητα θαυμαζεις.

399

Edição de Paulo Manúcio Dionysii Longini, De sublimi genere dicendi (1555)

φαίνεταί μοι κεῖνος ἴσος θεοῖσιν ἔμμεν’ ἦ μὴν, ὄς τις ἐνάντιός τοι ἰζδάνει καὶ πλησίον ἁδυφώνου σεῦ ὐπακούει· καὶ γελώσας ἱμερόεν, τό, μοι τὰν καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόασεν ὠς ἴδον σ’, ὣς βρόγχον ἐμοὶ γὰρ αὐδὰς οὐδὲν ἔθ’ ἥκει· ἀλλὰ καμμὲν γλῶσσ’ εάγ’· ἐν δὲ λεπτὸν αὐτίκα χρῶ πῦρ ὑποδεδρόμακεν· ὀμμάτεσσιν δ’ οὐδὲν ὄρημι· βομβεῦσ’ εν δ’ ἀκοαί μοι· καδδ’ ἱδρὼς ψυχρὸς χέεται· τρόμος δὲ παῖσαν αἱγρεῖ· χλωροτέρη δὲ ποίας ἔμμι· τεθνᾶναι δ’ ὀλίγου δέοισα φαίνομαι ἄπνους. ἀλλὰ πᾶν τολματὸν· ἐπεὶ πένητα.

Edição de Henri Estienne Ανακρέοντος, καὶ άλλων τινὼν: λυρικῶν ποιετῶν μέλε (1556)

φαίνεταί μοι κεῖνος ἴσος θεοῖσιν ἔμμεν’ ἀνὴρ, ὅστις ἐνάντιόν τοι ἰζάνει καὶ πλασίον ἁδυ’φωνούσας ὐπακούει, καὶ γελώσας ἱμερόεν· τό μοι τὰν καρδίαν ἐν στήθεσι ἐπτόασεν· ὠς ἴδον σε, βρόχον ἐμοὶ γὰρ αὐδᾶς σοὐδὲν ἔθ’ ἥκει. ἀλλὰ καμμὲν γλῶσσ’ ἐάγ’· ἄν δὲ λεπτὸν αὐτίκα χρῶ πῦρ ὑποδεδρόμακεν· ὀμμάτεσσιν δ’ οὐδὲν ὄρημι· βομβεῦσιν δ’ ἀκοαί μοι· καδδ’ ἱδρὼς ψυχρὸς χέεται· τρόμος δὲ πᾶσαν αἱρεῖ· χλωροτέρη δὲ ποίας ἔμμι· τεθνᾶναι δ’ ὀλίγου δέοισα φαίνομαι ἄπνους.

400

Tradução crítica

Safo fr. 31 V

Parece-me, aquele, semelhante aos deuses ser o homem, o que oposto a ti senta e perto, a que é doce fala[ndo, atento escuta, e rindo luminosa desejável. Isso, certo, me estremece outra vez o κoração no esterno: pois quando te vejo, um breve instante, então fal[ar nada me é possível mas [doce] a língua [amarga] se quebra, e lépida pira rastilho súb[ito per]corre a pele e com os olhos nada vejo, e sobre[zumbem os ouvidos écode suor derrama-se de mim, e treamor de toda me toma, e mais verde que a relva estou, e bem perto de acabar de morrer pareço a mim mesma mas tudo é suportável, já que †mesmo um pobre†...

(Thiago Castañon)

401

Safo em português

paráfrase de Tomaz A. Gonzaga (1792) (Marília de Dirceu Parte I, Lira IV, vv.1-21) Marília, teus olhos São reús, e culpados, Que sofra, e que beije Os ferros pesados De injusto Senhor. Marília, escuta Um triste pastor Mal vi o teu rosto, O sangue gelou-se,³ A língua prendeu-se, Tremi, e mudou-se Das faces a cor. Marília, escuta Um triste Pastor. A vista furtiva, O riso imperfeito, Fizeram a chaga, Que abriste no peito, Mais funda, e maior. Marília, escuta Um triste pastor.

versão de Boileau por Almeida Garrett (ca.1820-1854) (Ms. 127) Feliz quem juncto ati por ti suspira, Que gosa do prazer de ouvir fallar-le E docemente ve surrir-te ás vezes. Igualar-lhe em ventura os deuses podem? — Sinto chamma subtil de veia em veia Mal te vejo correr-me o corpo todo E nos doces transportes da minha alma. Nem voz, nem lingua sei achar, que a exprimão. Nuvem confusa me ennoitece os olhos: Não oiço, em doce languidez descaio. Sem cor, sem respirar, quasi sem vida. Tremendo em convulsões anceio, e morro. * Garrett anotou a sua versão de Boileau e deixou um espaço em branco para o poema que pretendia traduzir do original, a partir da edição, já então “rara”, de Henri Estienne. Seria a primeira tradução direta em português. Mas só nos chegou o esboço póstumo indireto, via Traité du sublime (1674).

* Nota-se a influência da imitação de Ronsard: “mon sang devient glacé” e talvez de Racine, no recorte da terceira estrofe.

Ventura, que iguala aos deuses, em meu conceito, desfruta quem, junto de ti sentada, as doces falas te escuta, goza teu mago sorrir. Quando imagino em tal gosto é minha alma um labirinto; expira-me a voz nos lábios; nas veias um fogo sinto; sinto os ouvidos zunir. Gelado suor me inunda; o corpo se me arrepia; foge-me as cores do rosto, como ao vir da quadra fria entra a folha a desmaiar. Respiro a custo, e já cuido que se esvai a doce vida! Arrisquemo-nos a tudo... contra uma angústia insofrida tudo se deve tentar.

Contemplo como o igual dos próprios deuses esse homem que sentado à tua frente escuta assim de perto quando falas com tal doçura, e ris cheia de graça. Mal te vejo o coração se agita no meu peito, do fundo da garganta já não sai a minha voz, a língua como que se parte, corre um tênue fogo sob a minha pele, os olhos deixam de enxergar, os meus ouvidos zumbem, e banho-me de suor, e tremo toda, e logo fico verde como as ervas, e pouco falta para que eu não morra ou enlouqueça. (Péricles Eugênio, 1964)

(António Feliciano de Castilho, 1857?)

402

Parece-me par dos deuses ser o homem que ante de ti senta-se e de perto te ouve a doce voz

Parece-me ser igual aos deuses aquele homem que diante de ti senta-se e de perto te ouve docemente falar

e o riso desejoso. Sim isso me atordoa o coração no peito: tão logo te olho, nenhuma voz me vem

e rir com encanto, isto em verdade estremece-me o coração no peito, pois quando para ti brevemente olho, já nada me ocorre falar,

mas calada a língua se quebra, leve e sob a pele um fogo me corre, com os olhos nada vejo, sobrezumbem os ouvidos

mas imóvel fica a língua, sutil sob a pele já um fogo percorre, meus olhos nada vêem, zumbem os ouvidos,

frio suor me envolve, tremo toda tremor, mais verde que relva estou, pouco me parece faltar-me para a morte.

um suor frio me envolve, um tremor apodera-se de mim, mais pálida que a relva estou, e para estar morta pareço carente de pouco.

Mas tudo é ousável e sofrível...

Mas deve-se ousar tudo, porque....

(Jaa Torrano, 1984)

(José Cavalcanti de Souza, 1984)

Parece-me igual aos deuses ser aquele homem que, à sua frente sentado, de perto, doces palavras, inclinando o rosto, escuta,

Igual aos deuses esse homem me parece: diante de ti sentado, e tão próximo, ouve a doçura da tua voz,

e quando te ris, provocando o desejo; isso, eu juro, me faz com pavor bater o coração no peito; eu te vejo um instante apenas e as palavras todas me abandonam;

e o teu riso claro e solto. Pobre de mim: o coração me bate de assustado. Num ápice te vejo e a voz se me vai;

a língua se parte; debaixo da minha pele, no mesmo instante, corre um fogo sutil; meus olhos não vêem; zumbem meus ouvidos

a língua paralisa; um arrepio de fogo, fugaz e fino, corre-me a carne; enevoados os olhos; tontos os ouvidos.

um frio suor me recobre, um frêmito me apodera do corpo todo, mais verde que as ervas eu fico e que já estou morta parece (...)

O suor me toma, um tremor me prende. Mais verde sou do que uma erva – e de mim não parece a morte longe...

Mas (...)

….............................

(Joaquim Brasil Fontes, 1ª versão, 1991)

(Pedro Alvim, 1992)

403

Igual a um deus esse homem me parece, O que sentado está, defronte de ti, E a voz te ouvindo, nela se entorpece, E tal por ti,

Parece-me aquele igual a deuses ser, o homem que diante de ti se senta e perto tua doce fala escuta

Pela visão de um riso aos lábios teus, Meu peito se consome, e a teu olhar, Que finge ver-me, a voz e o verbo meu Sinto que somem.

e teu riso sedutor - o que, a mim, o coração no peito dilacerou! Pois com te olhar apenas, já nada falar mais me é dado.

E se me parte a língua, e em tez e pele Espalha-se um tremor por mil sentidos, Embaçam-se as pupilas, e um zumbir Me implode ouvidos,

Faz-se minha língua em pedaços e, fino, logo sob a pele um fogo corre. Com os olhos nada vejo e ribombam-me os ouvidos.

Um suor o seio e púbis me percorre, E presa eu sou da angústia, e em mais palor Me sinto que uma ervilha, e a morte acorre A mim ansiada.

De mim suor frio escorre e um tremor toda me prende. Mais verde que erva estou – e, bem morta, por bem pouco, pareço...

Mas tudo, ó Agálida, se irá tentar.

Mas tudo é para ousar...

(Antônio Medina Rodrigues s/d)

(Jacyntho Lins Brandão, 1996)

Parece-me ser igual aos deuses esse homem que, sentado na tua frente, te ouve de perto falar docemente

Parece-me ser igual dos deuses aquele homem que, à tua frente sentado, tua voz deliciosa, de perto, escuta, inclinando o rosto,

e rir de maneira encantadora, o que me faz saltar o coração no peito. Pois, quando te olho por um momento, já não sou capaz de dizer nada,

e teu riso luminoso que acorda desejos – ah! eu juro, o coração no peito estremece de pavor, no instante em que te vejo: dizer não posso mais uma só palavra;

a minha língua silenciosamente gela e imediatamente um fogo subtil corre sob a minha pele. Deixo, subitamente, de ver, os meus ouvidos zunem

a língua se dilacera; escorre-me sob a pele uma chama furtiva; os olhos não veem, os ouvidos zumbem

e um suor frio cobre o meu corpo, dominado por intenso tremor. Fico então mais verde do que a erva e pareço pouco distante de morrer.

um frio suor me recobre, um frêmito do corpo se apodera, mais verde do que as ervas eu fico; que estou a um passo da morte, parece [

Mas tudo se deve suportar, porque…

Mas [

(Manuel Pulquério, 2001 prosa)

(Joaquim Brasil Fontes, 2ª versão, 2003)

404

Parece-me ser par dos deuses ele, o homem, que oposto a ti senta e de perto tua doce fa-la escuta,

Aquele parece-me ser igual dos deuses, o homem que à tua frente está sentado e escuta de perto a tua voz suave

e tua risada atraente. Isso, certo, no peito atordoa meu coração; pois quando te vejo por um instante, então fa-lar não posso mais,

e o teu riso maravilhoso. Na verdade isto põe-me o coração a palpitar no peito. Pois quando te olho num relance, já não consigo falar:

mas †se quebra† minha língua, e ligeiro fogo de pronto corre sob minha pele, e nada veem meus olhos, e zum-bem meus ouvidos,

a língua se me quebrou e um sutil fogo de imediato se pôs a correr debaixo da pele; não vejo nada com os olhos, zunem-me os ouvidos;

†e† água escorre de mim, e um tremor de todo me toma, e mais verde que a relva estou, e bem perto de estar morta pareço eu mes[ma.

o suor escorre-me o corpo e o tremor me toma toda. Fico mais verde do que a relva e tenho a impressão de que por pouco que não morro.

Mas tudo é suportável, já que †mesmo um pobre†

(Frederico Lourenço, 2006)

(Giuliana Ragusa, 2003)

Igual aos deuses me parece quem a teu lado vai sentar-se, quem saboreia a tua voz mais as delícias desse riso.

Ele me parece ser par dos deuses, o homem que se senta perante ti e se inclina perto pra ouvir tua doce voz e teu riso

Quem me derrete o coração e o faz bater sobre meus lábios. Assim que vejo esse teu rosto, quebra-se logo a minha voz,

pleno de desejo. Ah, isso, sim, faz meu coração ’stremecer no peito. Pois tão logo vejo teu rosto, a voz perco de todo.

seca-me a língua entre os dentes, corre-me um fogo sob a pele, ficam-me surdos os ouvidos e os olhos cegos de repente.

Parte-se-me a língua. Um fogo leve me percorre inteira por sob a pele. Com os olhos nada mais vejo. Zumbem alto os ouvidos.

Torna-se líquido o meu corpo: transpiro e tremo ao mesmo tempo. Vejo-me verde: mais que a erva. Só por acaso é que não morro.

Verto-me em suor. Um tremor me toma por completo. Mais do que a relva estou verde e para a morte não falta muito – É o que parece.

(David Mourão-Ferreira, 2009)

(Mas tudo se pode suportar, posto que mesmo a um pobre...) (C. Leonardo B. Antunes, 2009)

405

Parece-me ser igual aos deuses O homem, que à tua frente Se senta e de perto a tua doce voz Escuta

Parece-me igual aos deuses aquele homem que em frente a ti se senta e de perto tua doce voz escuta

E o teu riso apetecível. Isto, na verdade, Perturba-me o coração no peito. Assim que te olho brevemente, logo falar Me é impossível:

e teu riso adorável que feriu meu coração ao peito, pois cada vez que te olho um instante já não consigo falar;

A língua aguenta o silêncio, um tênue Fogo de súbito me corre debaixo da pele, Com os olhos nada vejo, zumbem-me Os ouvidos,

a língua entorpeceu e um sutil fogo corre sob minha pele nada vejo com os olhos, zunem-me os ouvidos;

Um suor frio escorre por mim, um tremor De mim se apodera, estou mais pálida que a Relva, e parece-me que por pouco quase Morro

um suor me umedece, um termor me domina, fico mais pálida que a relva e tenho a impressão de quase morrer

Mas tudo há-de ser suportado, depois que o pobre...

(Antônio Cícero, 2015)

(Sofia Gil, 2011)

406

Safo em latim Catulo 51 (séc. I a.C.) Ille mi par esse deo videtur, ille, si fas est, superare divos, qui sedens adversus identidem te spectat et audit dulce ridentem, misero quod omnis eripit sensus mihi; nam simul te, Lesbia, aspexi, nihil est super mi , lingua sed torpet, tenuis sub artus flamma demanat, sonitu suopte tintinant aures, gemina teguntur lumina nocte. Otium, Catulle, tibi molestum est; otio exultas nimiumque gestis. Otium et reges prius et beatas perdidit urbes.

Ele parece-me ser par de um deus, Ele, se é fás dizer, supera os deuses, Esse que todo atento o tempo todo Contempla e ouve-te doce rir, o que pobre de mim todo sentido rouba-me, pois uma vez que te vi, Lésbia, nada em mim sobrou De voz na boca Mas torpece-me a língua e leve os membros Uma chama percorre e de seu som Os ouvidos tintinam, gêmea noite cega-me os olhos. O ócio, Catulo, te faz tanto mal. No ócio tu exultas, tu vibras demais. Ócio já reis e já ricas cidades Antes perdeu.

(João Ângelo Oliva Neto, 1996)

407

Parece-me ser semelhante a um deus, e se me é permitido assim o dizer, parece-me superar os deuses aquele que imóvel diante de ti, repetidas vezes, te ouve e te contempla a sorrir docemente. Isto arrebata de meu pobre ser todos os sentidos. Pois mal eu te olho, Lésbia, nem um fio de voz me resta nos lábios, minha língua se entorpece, uma chama sutil se irradia dentro de meu corpo, meus ouvidos ressoam por suas próprias vibrações, meus olhos se cobrem com duas noites. A inação deste êxtase, Catulo, te é perniciosa, tu exultas de prazer nesta inação e demasiadamente te excitas. A inação deste êxtase, antes de ti, arruinou reis e cidades opulentas

(Lauro Mistura, 2003)

É como um deus, é mais que um deus (sem blasfêmia) aquele que pode sentar-se à sua frente, ouvi-la e contemplá-la, a sorrir docemente. Só eu, pobre, não posso: esvaem-se os sentidos, assim que te vejo, Lésbia: no mesmo ato, sinto um nó na garganta, parlisa-se a língua, uma chama febril rastilha nos membros; de dentro do ouvido, um zumbido ressoa na orelha e uma noite gêmea vela os meus olhos o ócio lhe faz mal, Catulo; o ócio exacerba os sentidos, o ócio já perdeu reis e levou cidades felizes à ruína

(Décio Pignatari, 1996)

408

topos do lance de olhos em Provença e no dolce stil nuovo (traduções de Augusto de Campos)

Bernart de Ventadorn (c.1150-1195) Se eu não vejo a mulher que eu mais desejo nada que eu veja vale o que eu não vejo (intradução Augusto de Campos)

Quant vey la lauzeta mover Ao ver a ave leve mover (vv.17-24) Eu renunciei a me reger Desde o dia em que os olhos pus No olhar que vi transparecer No belo espelho em que reluz. Espelho, pois que te vi bem, Morri na luz do teu reflexo Como, perdido de se ver, Narciso no seu próprio amplexo.

Arnault Daniel (1180-1210) (trechos) II. Canção de amor cantar eu vim À Dama ama e olha Arnault, cantor, que ante esse Amor todo outro amor se esfolha III. Que a folha caia Tudo regela, só eu me sinto arder, que o olhar da bela me faz reverdecer VII. Se eu não a tenho, ela me tem Se calo, é porque mais convém calar, em mim, o meu calor. A língua hesita, o corpo existe e doendo, acha pouco, sofre mas não reclama. […] É tal a luz que dela vem […]

409

O olhar me abranda, só os olhos têm vianda, e a ela vendo vou tendo mais distendida minha sobrevida IX. Aura amara E eu sofro a sorte: dizer louvor em verso só por aquela que me lançou do alto abaixo, em dor – má dama que me doma. Foi tão clara a luz do seu olhar que em meu coração gravou a imagem. […] Só tenho um norte: morrer de amor imerso no olhar da bela que me tomou de assalto, seu servidor ser, dos pés até a coma X. Neste poema agora quero [afirmação do eu e palimpsesto oral] Ieu sui Arnautz qu’ amas l’aura “Eu sou Arnault, que am(ass)o o (l)a(u)r(a)” XI. Em breve briga o tempo bravo* Meu coração se desregula quando eu a vejo. Mas sem seu encanto antes sofrer as penas do deserto que ave não vê, nem por milagre XII. Doces ais, gritos Deus dos aflitos, que vistes com brandura Longino, o cego, na mais dura hora, permiti que este amor que me consome se consume, afinal, em minha dama e que eu, em sua câmara jazendo, seu belo corpo aos beijos rindo abra e que o remire contra a luz do lume * nota a Arnault: Pound aproximou o poema Phaínetaí moi da canção de Arnault “Em breve briga o tempo bravo”, pela imagem dos versos 5-7 de Safo (“isso, certo | atordoa-me o coração no peito | pois sempre que te vejo...”) na variante: “Meu coração se desregula / quando eu a vejo”.

410

Guido Cavalcanti (1255-1300) Pegli occhi fere un spirito sottile, che fa ’n la mente spirito destare, dal qual si move spirito d’amare, ch’ogn’altro spiritel[lo] fa gentile. Sentir non pò di lu’ spirito vile, di cotanta vertù spirito appare: quest’ è lo spiritel che fa tremare, lo spiritel che fa la donna umìle. E poi da questo spirito si move un altro dolce spirito soave, che sieg[u]e un spiritello di mercede: lo quale spiritel spiriti piove, ché di ciascuno spirit’ ha la chiave, per forza d’uno spirito che ’l vede.

Pelo olhar fere o espírito sutil que faz na mente o espírito acordar, do qual se move o espírito de amar que faz de todo outro espírito servil. Não o descobrirá espírito vil, tal é o dom deste espírito sem par, espírito que faz tremer o ar do espírito que faz dama gentil. E deste mesmo espírito se move um outro doce espírito suave, que um espírito segue de mercê. O qual espírito espíritos chove e dos espíritos conhece a chave, por força de um espírito, que vê. (Augusto de Campos)

411

Guido Cavalcanti Chi è questa che vèn, ch’ogn’om la mira, che fa tremar di chiaritate l’âre e mena seco Amor, sì che parlare null’omo pote, ma ciascun sospira? O Deo, che sembra quando li occhi gira, dical’Amor, ch’i’ nol savria contare: cotanto d’umiltà donna mi pare, ch’ogn’altra ver’ di lei i’ la chiam’ira. Non si poria contar la sua piagenza, ch’a le’ s’inchin’ogni gentil vertute, e la beltate per sua dea la mostra. Non fu sì alta già la mente nostra e non si pose ’n noi tanta salute, che propiamente n’aviàn canoscenza.

Quem é esta a que toda gente admira, que faz de claridade o ar tremular, com tanto amor, e deixa sem falar, e cada um por ela só suspira? Ah, Deus, como ela é, quando nos mira? Que diga Amor, eu não o sei contar. De tal modéstia é feito o seu olhar, que às outras todas faz que eu chame de ira. Nem sei dizer do seu merecimento. Toda virtude a ela está rendida, beleza a tem por Deusa e assim a exalta. A nossa mente nunca foi tão alta, nem há ninguém que tenha tanta vida para alcançar um tal conhecimento. (Augusto de Campos)

nota a Cavalcanti: Se Arnault já assinala a assunção do “eu”, com Guido tem início uma progressiva interiorização de éros. Ao contrário da concepção grega arcaica das relações entre éros e olhar, na teoria medieval dos espíritos, o desejo passa a remeter a uma dimensão interior da fantasia. Pound aproximou os poemas Phaínetaí moi de Safo e a imagem do l’ aer tremare de Cavalcanti no primeiro dos Cantos Pisanos.

412

Dante Alighieri (1265-1321) soneto XI Ne li occhi porta la mia donna Amore, per che si fa gentil ciò ch'ella mira; ov'ella passa, ogn'om ver lei si gira, e cui saluta fa tremar lo core, sè che, bassando il viso, tutto smore, e d'ogni suo difetto allor sospira: fugge dinanzi a lei superbia ed ira. Aiutatemi, donne, farle onore. Ogne dolcezza, ogne pensero umile nasce nel core a chi parlar la sente, ond'è laudato chi prima la vida. Quel ch'ella par quando un poco sorride, non si pò dicer né tenere a mente, sì è novo miracolo e gentile. Tanto amor traz no olhar a minha amada que quem a vê, de vê-la se enobrece; todos se voltam quando ela aparece e àquele a quem saúda ao ser saudada, treme-lhe o peito, o rosto empalidece, que sente, suspiroso, a alma culpada e os ódios e a soberba logo esquece. Louvai comigo, damas: que a adorada dama que eu louvo, nossa voz consagre. Ela traz a doçura que enternece e louva a quem a viu (que assim se exalta). Para falar do seu sorriso falta palavra à idéia, que ela mais parece milagre novo e bem gentil milagre. (Jorge Wanderley) Nos olhos traz o Amor a minha dama e tudo o que ela olha se enobrece. Todos se voltam para vê-la – e aquece os corações, do seu aceno, a chama. Baixando os olhos, cada qual proclama suas culpas, num silêncio de prece e todo o mal de odiar desaparece: Moças, me ajudem a cantar sua fama. Tudo o que é doce, humilde, simples, vivo, brota no coração de quem a escuta, pois que, antes de ouvi-la, a viu, feliz. Basta um sorriso: o coração cativo não sabe mais o que a mente perscruta, pois tudo o que a supera ela não diz. (Décio Pignatari)

413

Dante Alighieri soneto XV Tanto gentile e tanto onesta pare la donna mia, quand'ella altrui saluta, ch'ogne lingua devèn, tremando, muta, e li occhi no l'ardiscon di guardare. Ella si va, sentendosi laudare, benignamente d'umiltà vestuta, e par che sia una cosa venuta da cielo in terra a miracol mostrare. Mostrasi sì piacente a chi la mira che dà per li occhi una dolcezza al core, che 'ntender no la può chi no la prova; e par che de la sua labbia si mova un spirito soave pien d'amore, che va dicendo a l'anima: Sospira.

É tão gentil, é tão honesto o olhar da minha dama quando a alguém saúda que toda língua treme e fica muda e os olhos não a ousam contemplar. Ela se vai, sentindo-se louvar, benignamente em singelez vestida, como se fora coisa remetida do céu para um milagre nos mostrar. Mostra tanto prazer a quem a mira, que dá, através dos olhos, um dulçor que não pode entender quem não o prove, e de seus lábios como que se move um espírito suave, todo amor, que vai dizendo ao coração: suspira. (Augusto de Campos)

414

Tanto é gentil e tão honesto é o ar da minha amada, no saudar contida, que toda a língua treme emudecida e os olhares não se ousam levantar. Ela se vai, sentindo-se louvar, mas da própria modéstia tão vestida que parece milagre, concebida no céu, para na terra se mostrar. Tão suave se mostra a quem a admira que do olho ao peito leva uma doçura só compreendida por quem dela prova. E talvez no seu rosto já se mova o espírito de amor e de brandura que vai dizendo ao coração: Suspira. (Jorge Wanderley)

É tão gentil e de vaidade isenta a minha dama, quando alguém a saúda, que a língua logo trava, tartamuda, e a vista na visão não se sustenta. Quando ela passa entre os louvadores, lenta, afável na humiladede que não muda, lembra coisa do céu vinda em ajuda do todo aquele que um milagre alenta. Não há graça maior pra quem a mire: uma doçura, pelo olhar, vai fundo – e só quem já sentiu pode dizê-lo. Velando o seu semblante com desvelo, um espírito de Amor se mostra ao mundo, dizendo à alma, devagar: Suspire! (Décio Pignatari)

nota a Dante: o tópos admirari utilizado em “Tanto gentile e tanto onesta pare” já foi inúmeras vezes rastreado até Virgílio (ut vidi) e Catulo (simul te... aspexi), e através deles, indiretamente a Safo (ós... ído... ós), cf. Turyn, apud Lanata, p. 72; apud Lidov, p.XX; Francesco Citti, 2011.

415

Safo lírica francesa Pierre de Ronsard Second livre des amours (1560)

LXXXVI Chanson97 (Paráfrase de Safo) Je suis um Demi-dieu, quando assis vis à vis De toy, mon cher soucy, j’escoute les devis, Devis entre-rompuz d’un gracieux sou-rire, Sou-ris, qui me [retient] le coeur emprisonné: [Car en voyant tes yeux], je me pasme estonné, Et de mes pauvres flancz [un seul mot] je ne tire. Ma langue s’engourdist, un petit feu me court [Fretillant sous la peau]: je suis muet et sourd, [Un voile sommeillant dessus] mes yeux demeure: Mon sang devient glacé, [le courage me faut]. [Mon esprit s’evapore, et alors peu s’en faut] [Que sans ame à tes pieds estendu je ne meure].

Eu sou um semideus, quando sentado frente a frente De ti, minha querida, eu escuto o doce falar, Fala interrompida de um gracioso sorrir, Sorriso que me retém o coração aprisionado: Pois olhando teus olhos, eu pasmo estonteado, E do meu pobre peito, uma palavra já não tiro. Minha língua se entorpece, um pequeno fogo me corre Tremulando sob a pele; estou surdo e mudo. Um véu sonolento pousa sobre meus olhos: Meu sangue se gela, a coragem me falta. Meu espírito se evola, e então, pouco falta Que, sem alma, estendido, a teus pés, eu morra.

1556-1572: detient, “detém” 1584-1587: En contemplant tes yeux, “contemplando teus olhos” (6) 1584-1587: un seul vent, “um só vento” (8) 1556-1572: Honteux de sous la peau, “vergonhoso sob a pele” (9) 1556-1572: Et une obscure nuit de sur, “e uma obscura noite nos (meus olhos repousa)” (10) 1567: l’esprit fuit de mon corps, “o espírito foge de meu corpo” (11) 1556: Je tremble tout de crainte, et peut s’en faut alors; “eu tremo todo de pavor e pouco falta então”; 1567-1572: Mon coeur tremble (de crainte...), “meu coração treme (de pavor)” (12) 1556: Qu’à tes pieds estendu languissant je ne meure, “que a teus pés estendido, lânguido, eu morra”; 1557-1572: (Qu’à tes pieds estendu) sans ame je ne meure, “(que a teus pés estendido), sem alma, eu morra”. (4) (5)

97

texto e variantes da ed. crítica de Alexandre Micha (1951).

416

Nicolas Boileau-Despréaux tradução de Pseudo-Longino. Traité du sublime (1674) Heureux! Qui près de toi, pour toi seule soupire, Qui jouit du plaisir de t’entendre parler, Qui te voit quelquefois doucement lui sourire. Les Dieux dans son bonheur peuvent-ils l’égaler? Je sens de veine en veine une subtile flamme Courir par tout mon corps, sitôt que je te vois; Et dans les doux transports où s’égare mon âme, Je ne saurais trouver de langue ni de voix. Un nuage confus se répand sur ma vue, Je n’entends plus; je tombe en de douces langueurs; Et pâle, sans haleine, interdite, éperdue, Un frisson me saisit, je tremble, je me meurs. Mais quand on n’a plus rien, il faut tout hasarder... Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro! Quem goza o prazer de te escutar, quem vê, às vezes, teu doce sorriso. Nem os deuses felizes o podem igualar. Sinto um fogo sutil correr de veia em veia por minha carne, ó suave bem querida, e no transporte doce que a minha alma enleia eu sinto asperamente a voz emudecida. Uma nuvem confusa me enevoa o olhar. Não ouço mais. Eu caio num langor supremo; E pálida e perdida e febril e sem ar, um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo. [Mas quando não se tem mais nada, é preciso tudo arriscar...] (in: M. H. Leiria e S. Obiol [org.]. Clássicos do erotismo 2, ed. Samambaia, s/d, ca.1970-74)

Paráfrase de Racine (1677) (Fedra, Ato I, cena 3, vv. 273-277) Je le vis, je rougis, je pâlis à sa vue; Un trouble s’éleva dans mon âme éperdue; Mes yeux ne voyaient plus, je ne pouvais parler; Je sentis tout mon corps, et transir et brûler. Je reconnus Vénus et ses feux redoutables, Mal a vi, logo enrubesci, logo empalideci à tua vista; Uma perturbação se elevou em minha alma perdida, Meus olhos não viam mais, eu não podia falar; E senti todo meu corpo a transir e queimar. Reconheci Vênus e seus fogos temerários 417

Safo moderna

Celui-là me paraît être l'égal des dieux, l'homme qui assis en face de toi, de tout près, écoute tá voix si douce

Come uno degli Dei, felice chi a te vicino così dolce suono ascolta mentre tu parli

Et ce rire enchanteur qui, je le jure, a fait fondre mon coeur dans ma poitrine; car, dès que je t' aperçois un instant, il ne m'est plus possible d'articuler une parole;

e ridi amorosa. Subito a me il cuore in petto s'agita sgomento solo ache appena ti veda, e la voce

Mais ma langue se brise; et, sous ma peau, soudain se glisse un feu subtil; mes yeux son sans regard, mes oreilles bourdonnent, La sueur ruisselle de mon corp, un frisson me saisit toute; je devient plus verte que l'herbe, et, peu s'en faut, je me sens morrir (ô Agallis?)

si perde sulla língua inerte. Rapido fuoco affiora alle mie membra e ho buio negli occhi e il rombo del sangue alle orecchie. E tutta in sudore e tremante com’ erba patita scoloro: e morte non pare lontana a me rapita di mente.

Mais on doit tou oser, puisque... (Salvatore Quasimodo, 1ª versão, 1940) (Théodore Reinach, posthume, achevé par A. Puech, 1937)

Il me paraît égal aux dieux celui qui, face à face, assis tout près de toi, entend ta voix si douce, et ce rire charmant, qui, je le jure, dans ma poitrine affole mon coeur. Sitôt que je te vois, ne fût-ce qu'un instant, aucun son ne passe plus ser mês lèvres, mais ma langue se sèche, un feu subtil court soudain sous ma peau, mes yeux ne voient plus rien, mes oreilles bourdonnent, je ruisselle de sueur, un tremblement me saisit toute, je deviens plus verte que l'herbe. Il me semble que je vais mourir...

A me pare uguale agli Dei chi a te vicino così dolce suono ascolta mentre tu parli e ridi amorosamente. Súbito a me il cuore si agita nel petto solo ache appena ti veda, e la voce no esce e la língua si lega. Un fuoco sottile sale rapido alla pele, e ho buio negli occhi e il rombo del sangue alle orecchie. E tutta in sudore e tremante come erba patita scoloro: e morte non pare lontana a me rapita di mente. (Salvatore Quasimodo, 2ª versão, 1951/71)

(André Bonnard, 1954)

418

Fortunate as the gods he seems to me, that man who sits opposite you, and listens nearby to your sweet voice And your lovely laughter; that, I vow, has set my heart within my breast a-flutter. For when I look at you a moment, then I have no longer power to speak, But my tongue keeps silence, straightaway a subtle flame has stolen beneath my flesh, with my eyes I see nothing, my ears are humming, A cold sweat covers me, and a trembling seizes me all over, I am paler than grass, I seem to be not far short of death... But all must be endured, since... (Lobel e Page, 1955)

Me parece igual a los dioses aquel varón que está sentado frente a ti y a tu lado te escuta mientras le hablas dulcemente

Je le vois, (il se voit) l'égal des dieux, cet époux assis em face de toi qui écoute, de tour près, tá voix caressante

y mientras ríes com amor. Ello em verdade há hecho desmayarse a mi corazón dentro del pecho: pues si te miro um punto, mi voz no me obedece,

et ton rire désirable. Dans mon sein, mon coeur s'en affole, je t'assure: oui, quand je te vois, aussitôt je ne puis faire entendre ma voix,

mi lengua queda rota, um suave fuego corre bajo mi piel, nada veo com mis ojos, me zumban los oídos,

ma langue s'est figée, un feu subtil, en même temps, a couru sous ma peau, mes yeux ne voient plus rien, mes oreilles bourdonnent,

... brota de mí el sudor, um temblor se apodera de mi toda, pálida cual la hierba me quedo y a punto de morir me veo a mi mesma.

je ruisselle de sueur, un tremblement tout entière me saisit, je suis plus verte que l'herbe, peu s'en faut que je ne me voie moi-même morte.

Pero hay que sufrir todas las cosas...

Mais tout se supporte, dè lors que les choses en sont là...

(Francisco Adrados, 1980)

(François Lasserre, 1989, em prosa)

419

Un rival des dieux, tel me semble l'homme que je vois assis devant toi, de face, lui qui peut t'entendre, si proche – douce lorsque tu parles, saisissante, lorsque tu ris – ce rire qui, en moi, a bouleversé mon âme. Car à peine je t'aperçois, je reste toute muette; et ma langue est comme brisée ; se glisse, à travers mon corps, une fine flamme, et mes yeux, aveugles, se vident, mes o-reilles bourdonnent, la sueur ruisselle sur tous mes membres, un frisson me prend: plus livide encore qu’ herbe jaunissante, je crois sentir la mort qui s’approche. Tout est supportable, pourtant, si même pauvre...................................................

He looks to me to be in heaven, that man who sits across from you and listens near you to your soft speaking, your laughing lovely: that, I vow, makes the heart leap in my brest; for watching you a moment, speech fails me, my tongue is paralysed, at once a light fire runs beneath my skin, my eyes are blinded, and my ears drumming, the sweat pours down me, and I shake all over, sallower than grass: I feel as if I'm not far off dying. But no thing is too hard to bear; for [God can make] the poor man [rich, or bring to nothing heaven-high fortune.] (Martin West, 1993)

(Philippe Brunet, 1991)

He seems to me equal to the gods that man whoever he is who opposite you sits and listens close to your sweet speaking

He appears to me, that one, equal to the gods, that man who, facing you, is seated and, up close, that sweet voice of yours he hears,

and lovely laughing — oh it puts the heart in my chest on wings for when I look at you, even a moment, then no speaking is left in me

And how you laugh a laugh that brings desire. It just makes my heart flutter within my breast, You see, the moment I look at you, right then, for me, to make any sound at all won’t work any more.

no: tongue breaks and thin fire is racing under skin and in eyes no sight and drumming fills ears and cold sweat holds me and shaking grips me all, greener than grass I am and dead — or almost I seem to me.

My tongue has a breakdown and a delicate — all of a sudden — fire rushes under my skin. With my eyes I see not a thing, and there is a roar my ears make. Sweat pours down me and a trembling seizes all of me; paler than grass am I, and a little short of death do I appear to myself. (Gregory Nagy, 2007)

But all is to be dared, because even a person of poverty (Anne Carson, 2002)

420

Safo antilírica

Ezra Pound

Papyrus “um haicai grego” (intradução de Safo 95V) Lustra (1916)

ἦρ’ ἀ[ δῆρατ.[ Γογγυλα.[ spring... too long... Gongula... Domingo... tão longo... Gôngula... (trad. Augusto de Campos)

The formianus’ young lady friend (intradução de Catulo 43)

Carmen 43

After Valerius Catullus

Salve, moça de nariz não mínimo, De pé não lindo, De dedos não longos, De boca não breve, De linguagem não muito distinta, Amiga do debochado Formiano. A ti, beleza da província, Comparam minha Lésbia?

All Hail! young lady with a nose by no means too small, With a foot unbeautiful, and with eyes that are not black, With fingers that are not long, and with a mouth undry, And with a tongue by no means too elegant, You are the friend of Formianus, the vendor of cosmetics, And they call you beautiful in the province, And you are even compared to Lesbia.

Ó século sem graça e sem raça. (transcriação de Haroldo de Campos)

O most unfortunate age !

421

Canto 74 dos Cantos Pisanos (vv. 683-701) Ele disse que eu protestava demais [ele] queria instalar uma editora e publicar os clássicos gregos... periplum e o muito muito velho Snow criou uma considerável hilaridade citando o phaínet-t-t-t-ttt-taí moi em resposta a l'aer tremare a beleza é difícil […] e é (entre parênteses) sem dúvida mais fácil ensiná-los a rugir como gorilas do que escandir phaínetaí moi (José Lino Grünewald)

422

Augusto de Campos Pseudopapyros (1973/1992) (intradução de Safo 31 V e 71 V) Despoesia (1994)

423

Pseudo-transliteração do Pseudopapyros

ΠΣΕΥΔΟΠΑΠΥΡΟΣ

PSEUDOPAPYROS

I

I

ε κορασαο ]δευερας ]σπερο

]e coração ]deveras ]spero

]αντε δε μιμ ]μ σιντιλαντε β]ελο ροστο

]ante de mim ]m cintilante b]elo rosto

α[παρεσενδο ]μορ

a[parecendo ]mor

II

II

...μελ[οδι]οσα γαργαντα

...mel[odi]osa garganta

α μελουος... καν]τα

...a melovoz... ...[can]ta

ρουξινοις εμ χορ[ο]

rouxinóis em khor[o]

γοτας δε ορναλ...

gotas de orval...

Σαπφω

Safo

nota a Augusto de Campos: a letra ς / σ (sîgma) contém uma ambiguidade de valores sobre o mesmo som na transliteração, podendo corresponder a “s” ou “c” conforme a posição da letra na palavra. O que sublinha a presença do verbo “sendo” dentro de “aparecendo”, na linha 7 do fr. I. O significante χορ[ο] no verso 5 do fr. II contém um truncamento fonético na transcrição, pode ser lido tanto como “coro” quanto como “choro”, conforme o khî (χ) seja transliterado com “kh” ou “ch”, sem que nenhuma pronúncia corresponda ao som da letra grega (= “ch” alemão).

424

Augusto de Campos olhos noite (2006) (intradução de Catulo 51) Outro (2016)

parece-me igual a um deus parece-me mais que um deus o que sentado a tua frente vê e ouve

quem sorrindo me tira – mísero – todo o senso, pois sempre que te vejo, Lésbia, em mim morre a voz na boca e língua um torpor tênue em meu

corpo chama um som sem fim retine

nos

olhos

ouvidos

retina

nos

noite

425

Documentos algumas fontes, variantes e paralelos do fr. 31 V

verso 1

Apolônio Díscolo Fr. 165 V (Ap. Dysc. Pron. 106 a) Αἰολεῖς (τὴν ‘οἷ’) σὺν τῷν Ϝ: φαίνεταί Ϝοι κῆνος Σαπφώ. Os eólios dizem hoî98 com um dígamma (Ϝ): Parece para si mesmo aquele ... Parece para ela aquele ... Safo.

Apolônio Díscolo Fr. 31.1 V (Ap. Dysc. Pron. 75 a) φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν ἔμμεν' ὤνηρ Parece-me, aquele, semelhante aos deuses ser o homem

“Ϝοι” (woi) forma eólica de “οἷ” (hoî), pron. refl. de 3ª pess. dativo masc. e fem.: “para ele (mesmo)”, “para ela (mesma)”, “para si (mesmo/a)”. A presença do dígamma no pronome de terceira pessoa em eólio é uma das raras exceções registradas por Edgar Lobel; segundo a tese de Milman Parry, a presença da letra arcaica não significa que fosse ouvida. O remanescente de uma dicção arcaica poderia atestar apenas uma letra muda, escrita ou lida, mas não pronunciada. 98

426

verso 2: óttis

Safo Fr. 16 V (vv.1-4) Ο]˻ἰ μὲν ἰππήων στρότον, οἰ δὲ πέσδων, οἰ δὲ νάων φαῖσ᾽ ἐπ[ὶ] γᾶν μέλαι[ν]αν ἔ]μμεναι κάλλιστον, ἔγω δὲ κῆν᾽ ὄττω τὶς ἔραται· U]ns, renque de cavalos, outros, de soldados, outros, de naus, dizem [s]er, sobr[e] a terra neg[r]a, a coisa mais bela; mas eu (digo), o que quer que se ame. (trad. Giuliana Ragusa)

Safo Fr. 26 V (vv.1-3) (P. Oxy. 1231) πῶς κε δή τις οὐ ˹θαμέω˺̣ς ἄ ̣ σαιτ̣ο Κύπρι, δέσπ̣ο̣ιν̣ ̣’, ὄ˹τ̣τ̣ιν̣ ̣˺˻α˼ [δ]ὴ̣ φι̣λ̣[είη καὶ] θέλοι μά˹λιστα π̣ά˺̣ λ̣ιν̣ ̣ κάλ̣[εσσαι; Como pode alguém não estar cego ˹novament˺e Cípris, soberana, por q˹uem quer qu˺e [verd]adeiramente am[a e] quer cha[mar] de vol˹ta acima de t˺udo?

427

versos 1-5 Luciano Amores 46 [séc. II d.C.] τίς οὐκ ἂν ἐραστὴς ἐφήβου γένοιτο τοιούτου; τίνι δ’ οὕτω τυφλαὶ μὲν αἱ τῶν ὀμμάτων βολαί, πηροὶ δὲ οἱ τῆς διανοίας λογισμοί; πῶς δ’ οὐκ ἂν ἀγαπήσαι τὸν ἐν παλαίστραις μὲν Ἑρμῆν, Ἀπόλλωνα δὲ ἐν λύραις, ἱππαστὴν δὲ ὡς Κάστορα, θείας δὲ ἀρετὰς διὰ θνητοῦ διώκοντα σώματος; ἀλλ’ ἐμοὶ μέν, δαίμονες οὐράνιοι, βίος εἴη διηνεκὴς οὗτος, ἀπαντικρὺ τοῦ φίλου καθέζεσθαι καὶ πλησίον ἡδὺ λαλοῦντος ἀκούειν [...] Quem não se tornaria amante de um tal efebo? Quem seria cego a esse ponto? Quem teria um tão fraco poder de raciocínio? Como não amaria esse outro Hermes nas palestras, esse outro Apolo como tocador de lira, esse outro Castor como cavaleiro, esse jovem que, com corpo mortal, persegue as virtudes divinas? Pela minha parte, ó deuses celestes, oxalá a minha vida fosse continuamente esta: estar sentado em frente de um tal amigo e escutar de perto a sua doce voz [...] (trad. Custódio Manguejo, 2012) Ruffino AP. V. 94 Gow [séc. IV-V d.C.] Ὄµµατ' ἔχεις Ἥρης, Μελίτη, τὰς χεῖρας Ἀθήνης, τοὺς µαζοὺς Παφίης, τὰ σφυρὰ τῆς Θέτιδος. εὐδαίµων ὁ βλέπων σε, τρισόλβιος ὅστις ἀκούει, ἡµίθεος δ' ὁ φιλῶν, ἀθάνατος δ' ὁ γαµῶν. Tens, Melite, os olhos de Hera, as mãos de Palas Atena, os seios da deusa Páfia, os tornozelos de Tétis. E feliz é quem te vê, mais sortudo se te escuta, um semideus o que te ama, imortal se te desposa. (trad. Luiz Carlos A. M. da Silva, 2011)

versos 3-5 Horácio Ode I .22 (vv.23-24) dulce ridentem Lalagen amabo, dulce loquentem a Lálage amarei, que, rindo, é doce doce, falando (trad. Bento Prado). 428

verso 7 Teócrito Idílio 2.82-83 Gow Φαρμακεύτρια (A feiticeira) χὠς ἴδον, ὣς ἐμάνην, ὥς μοι πυρὶ θυμὸς ἰάφθη δειλαίας [...] Vi-o, e variei, e no fogo caiu o meu coração, mísera! [...] (trad. Érico Nogueira, 2012) Idílio 3.42 Gow κῶμος (A seresta ou O cortejo do cabreiro a Amaryllis) ὠς ἴδεν, ὣς ἐμάνη, ὣς ἐς βαθὺν ἅλατ’ ἔρωτα. Tão logo o viu, pirou logo, e logo o amor bateu fundo (trad. Érico Nogueira, 2012)

Virgílio Écloga 8.41 ut vidi, ut perii, ut me malus abstulit error logo que te vi, perdi-me, e o mau engano me tomou. (trad. Thalita Morato Ferreira, 2013) Eneida III.306-309 ut me conspexit veinentem et Troia circum arma amens vidit, magnis exterrita monstris, diriguit visu in medio, calor ossa reliquit, labitur, et longo vix tandem tempore fatur Assim que me viu chegar, assim que avistou por toda parte as armas troianas, ela, fora de si, como aterrorizada por visões prodigiosas, petrificou-se ante aquele espetáculo; o calor abandonou seu corpo; tombou, e só muito tempo depois pôde finalmente falar. (trad. em prosa Rosemary Costhek) 429

verso 7-9 Safo Fr. 137 V (Arist. Rhet. I.9 1367 a 9-14) θέλω τί τ' εἴπην, ἀλλά με κωλύει αἴδως … αἰ δ' ἦχες ἔσλων ἴμερον ἢ κάλων καὶ μή τί τ' εἴπην γλῶσσ' ἐκύκα κάκον, αἴδως †κέν σε οὐκ† ἦχεν ὄππατ' ἀλλ' ἔλεγες †περὶ τὼ δικαίω† [Alceu] [Safo]

...quero algo te dizer, mas me impede a vergonha... ...mas se ansiasses pelo honrado e pelo belo, e tua língua não se animasse a dizer algo vil, a vergonha não tomaria teus olhos, mas dirias tua fala... (Giuliana Ragusa)

Horácio Carmen IV. 1 (vv. 35-36) cur facunda parum decoro inter verba cadit língua silentio? Por que em um tão pouco decoroso silêncio cai loquaz minha língua, no meio da fala? (…) (trad. A. P. Hasegawa, 2015)

Safo Fr. 158 V (Plutarco, De cohib. 456 e [séc. I-II d.C.]) καὶ παρὰ πότον μὲν ὁ σιωπῶν ἐπαχθὴς τοῖς συνοῦσι καὶ φορτικός, ἐν ὀργῇ δὲ σεμνότερον οὐδὲν ἡσυχίας, ὡς ἡ Σαπφὼ παραινεῖ σκιδναμένας ἐν στήθεσιν ὄργας πεφύλαχθαι γλῶσσαν μαψυλάκαν quando as pessoas estão bebendo, o que permanece silencioso é um peso cansativo a seus companheiros; mas quando alguém está com raiva, nada é mais digno do que a quietude, como Safo aconselha: … a raiva espalhando-se no peito, proteger-se da língua tagarela... (Giuliana Ragusa)

430

verso 9

Plutarco De profectu in virtute (81 d 22- e 1)99 [séc. I-II d.C.] νέῳ δ᾽ ἀνδρὶ γευσαμένῳ προκοπῆς ἀληθοῦς ἐν φιλοσοφίᾳ τὰ Σαπφικὰ ταυτὶ παρέπεται κατὰ μὲν γλῶσσά γε λεπτὸν δ᾽ αὔτικα χρῷ πῦρ ὑποδέδρομεν, ἀθόρυβον δ᾽ ὄψει καὶ πρᾶον ὄμμα, φθεγγομένου δ᾽ ἂν ἀκοῦσαι ποθήσειας.

Anecdota Parisiensis (i 399.25-29 Cramer) [cód. P. 2633 (séc. XV)] νέῳ δὲ ἀνδρὶ γευσαμένῳ προκοπῆς ἀλήθους ἐν φιλοσοφίᾳ τὰ Σαπφικὰ ταυτὶ παρέπεται κατὰ μὲν γλῶσσαν γελοπ * * * * αὐτίκα χρῷ πῦρ ὑποδέδρομεν, ἀθόρυβον δ᾽ ἅμα καὶ πρᾶον ὄμμα, φθεγγομένου δ᾽ ἂν ἀκοῦσαι ποθησείας.

mas com o homem jovem que prova o gosto de um verdadeiro progresso em filosofia, estas (palavras) de Safo estão sempre associadas: inteiramente decerto a língua †...†, [e lépida / … ] pira corre súbito sob a pele, não obstante, [poderás ver / ao mesmo tempo] um olhar calmo e sereno, e desejarias ardentemente ouvi-lo falando.

99

Utilizo a edição de Gregorius N. Bernadakis (1888) para o texto de Plutarco e a de Cramer para a An. Par. Na falta de uma tradução preexistente em português, a que segue é de minha responsabilidade. Usei para confronto a tradução em inglês de Frank Cole Babbitt (1927).

431

hiato do verso 9 Dionísio de Halicarnasso Perì syntéseōs onomátōn Cap. XX (trechos) De comp. XX.136-139, p.89.11-18 Usener-Radermacher ταῦτα δὴ παρατηροῦντα δεῖ τὸν ἀγαθὸν ποιητὴν καὶ ῥήτορα μιμητικὸν εἶναι τῶν πραγμάτων ὑπὲρ ῶν ἂν τοὺς λόγους ἐκφέρῃ, μὴ μόνον κατὰ τὴν ἐκλογὴν τῶν ὀνομάτων ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν σύνθεσιν. ὃ ποιεῖν εἴωθεν ὁ δαιμονιώτατος Ὅμηερος καίπερ μέτρον ἔχων ἓν ὡς καὶ ῥυθμοὺς ὀλίγους, ἀλλ’ ὅμως ἀεί τι καινουργῶν ἐν αὐτοῖς καὶ φιλοτεχνῶν, ὥστε μηδὲν ἡμῖν διαφέρειν γινόμενα τὰ πράγματα ἢ λεγόμενα ὁρᾶν. o bom poeta e orador deve ter isso em conta e ser capaz de representar as coisas sobre as quais pronunciam o discurso, não apenas através da escolha das palavras, mas também por síntese dos nomes. Essa é a prática de Homero, o mais demonioso dos poetas, embora disponha apenas de um metro e poucos ritmos, não obstante, ele está continuamente produzindo novos efeitos e refinamentos técnicos, de tal modo que ver as coisas acontecendo em nada difere de ouvi-las serem contadas para nós. De comp. XX.139, p.90.6-8 Usener-Radermacher πῶς οὖν δηλώσει ταῦτα μιμητικῶς κατ’ αὐτὴν τὴν σύνθεσιν τῶν ὀνομάτων, ἄξιον ἰδεῖν vale a pena observar como ele torna estas coisas visíveis mimeticamente através da própria síntese das palavras. De comp. XX.139, p.90.13-14 Usener-Radermacher ἐνταῦθα ἡ σύνθεςίς ἐστιν ἡ δηλοῦσα τῶν γινομένων ἕκαστον aqui, é a síntese que torna visível cada coisa sendo gerada. De comp. XX.141, p.91.14-17 Usener-Radermacher sobre o hiato entre os dois ômegas de ánō ṓ theske, “empurrava acima”, em Od. 11.596:

τὸ δὲ μεταξὺ τῶν ὀνομάτων ψῦγμα καὶ ἡ τῶν τραχυνόντων γραμμάτων παράθεσις τὰ διαλείμματα τῆς ἐνεργείας καὶ τὰς ἐποχὰς καὶ τὸ τοῦ μόχθου μέγεθος [ἐμιμήσαντο]. a pausa e retomada de fôlego no intervalo entre as palavras e a justaposição de letras ásperas representam as intermitências e interrupções no seu esforço, a magnitude do trabalho. De comp. XX.141, p.91.20-21 Usener-Radermacher καὶ ὅτι ταῦτα οὐ φύσεώς ἐστιν αὐτοματιζδούσης ἔργα ἀλλὰ τέχνης μιμήσασθαι πειρωμένης τὰ γινόμενα e isso não é o trabalho da natureza agindo espontaneamente, senão de uma arte que procura representar os acontecimentos. 432

Odisseia XI (vv. 593-600) O mito de Sísifo: Rock ’n roll de Homero

καὶ μὴν Σίσυφον εἰσεῖδον κρατέρ' ἄλγε' ἔχοντα λᾶαν βαστάζοντα πελώριον ἀμφοτέρῃσιν. ἦ τοι ὁ μὲν σκηριπτόμενος χερσίν τε ποσίν τε λᾶαν ἄνω ὤθεσκε ποτὶ λόφον· ἀλλ' ὅτε μέλλοι ἄκρον ὑπερβαλέειν, τότ' ἀποστρέψασκε κραταιΐς αὖτις ἔπειτα πέδονδε κυλίνδετο λᾶας ἀναιδής. αὐτὰρ ὅ γ' ἂψ ὤσασκε τιταινόμενος, κατὰ δ' ἱδρὼς ἔρρεεν ἐκ μελέων, κονίη δ' ἐκ κρατὸς ὀρώρει.

e vi decerto Sísifo suportando fortes dores, erguendo assombrosa pedra com ambas as mãos. Firmando, sim!, com pés e punhos, sus! pendendo, empurrava a pedra acima até o cume; mas quando quase a transpor o topo, uma força contrária revoltava para trás e pronto despencava aos trancos do alto a pedra despudorada. Então, de novo, retesando-se, empurrava-a para frente, enquanto o suor corria pelos membros, e sacudia a poeira da cabeça. (Thiago Castañon)

E dei com Sísifo, sofrendo penas duras. Empalmava um rochedo gigantesco. Os pés e as mãos firmava ao transportar penedo acima a enormidade pétrea; quase já nos píncaros, Violência o tresandava e a pedra novamente rolava plano abaixo, e ele, reaprumando-se, de novo a empurrava, os membros exsudantes, expelindo poeira da cabeça. (Trajano Vieira)

433

verso 9 Safo Fr. 130 (a) V (Heféstion, Inquérito sobre os metros [séc. II d.C.]) Ἔρος δηὖτέ μ' ὀ λυσιμέλης δόνει, γλυκύπικρον ἀμάχανον ὄρπετον Eros, de novo – o quebra-membros – me agita, doceamarga inelutável criatura... (Giuliana Ragusa)

Arquíloco Fr.193 W [epodo] (Estobeu 4.20.45) δύστηνος ἔγκειμαι πόθωι ἄψυχος, χαλεπῆισι θεῶν ὀδύνηισιν ἕκητι πεπαρμένος δι᾽ ὀστέων. Mísero estou, com desejo, sem vida, com dores atrozes, por vontade divina, trespassado até os ossos (Paula C. Corrêa)

Arquíloco Fr. 196 W [epodo] (Heféstion, Ench. 15.9) λὰ μ᾽ ὁ λυσιμελής, ὦ ᾽ταῖρε, δάμναται πόθος. Mas o desejo solta-membros, ó companheiro, subjuga-me (Paula C. Corrêa)

verso 11 Arquíloco Fr. 191 W [epodo] (Estobeu 4.20.43) τοῖος γὰρ φιλότητος ἔρως ὑπὸ καρδίην ἐλυσθείς πολλὴν κατ᾽ ἀχλὺν ὀμμάτων ἔχευεν, κλέψας ἐκ στηθέων ἁπαλὰς φρένας. – U – U – – pois tal desejo de amor, enroscado sob o coração, muita névoa sobre os olhos vertia, furtando o frágil juízo do peito (Paula C. Corrêa)

434

verso 13 Anecdota Oxoniensium Ὁμήρου Ἐπιμερισμοὶ [cod. nov. coll. 298 (An. Ox. I 208.13-17 Cramer)] Ἱδρώς

(Il.5.796): Τοῦτο παρ’ Αἰολεῦσιν θηλυκῶς λέγεται· ἀναδέχεται κλίσιν ἀκόλουθον θηλυκᾦ γένει· ἀδεμ’ ἱδρὼς κακὸς χέεται· ὅμοιον τᾦ ἠώς· εἶτα ἡ γενικὴ ἱδρῶς ἀμφότερα αντὶ τοῦ ἱδροῦς, ὡς μελάγχρως αντὶ μελάγχρους· καὶ “αἰδῶς ἄξιος” ἀντὶ αἰδοῦς·

Epimerismos homéricos Suor (Il.5.796): isto entre os eólios se diz no feminino; recebe a declinação que concorda com os gêneros femininos: e o suor nocivo escorre de mim; do mesmo modo que ēṓ s [aurora]; em seguida, o genitivo †em ambas† é hidrôs [de suor], ao invés de hidroûs; assim como melánkhrōs [de pele negra] ao invés de melánkhrous; e “aidôs áxios” [digno de respeito] ao invés de aidoûs.

Herodiano (séc. II d.C.) Περὶ κλίσεως ονομάτων [Choerob. 360.9 coll.361.8 (Hdn. Gr. II 763.23-27 Lentz)] παρ’ Αἰολεῦσι τὸ ἱδρώς θηλυκῶς λέγεται καὶ ἀναδέχεται κλίσιν ἀκόλουθον θηλυκῷ γένει “ἁ δέ μ’ ἵδρως κακχέεται” (Sapph. 31.13 V) ὅμοιον τῷ ἠώς· εἶτα γενικὴ “ἵδρως όμφόρα” ἀντὶ τοῦ ἱδροῦς, ὡς μελάγχρως αντὶ τοῦ μελάγχρους καὶ “Μέλαγχρος αἴδως ἄξιος” (Alc. 331 V) ἀντὶ τοῦ αἰδοῦς·

Sobre as declinações dos nomes entre os eólios o nome hidrṓ s se diz no feminino e recebe a declinação que concorda com os gêneros femininos: “e o suor escorre de mim” (Saf. 31.13V), do mesmo modo que ēṓ s [aurora]; em seguida, o genitivo é †“ranhuras de suor” (hídrōs ómphóra)† (fr. inc. auct. 12V), ao invés de hidroûs; assim como melánkhrōs [de pele negra] ao invés de melánkhrous, do mesmo modo que “Melancro digno de respeito (aidôs)” (Alc. 331V) ao invés de aidoûs.

435

verso 13 Nicandro Theriaká 254-255 Gow ὁ δὲ νοτέων περὶ γυίοις ψυχρότερος νιφετοῖο βολῆς περιχεύεται ἱδρώς. e, então, pelos membros úmidos um suor mais frio que a neve escorre em abundância.

Teócrito Idílio 2. 106-107 Gow πᾶσα μὲν ἐψύχθην χιόνος πλέον, ἐκ δὲ μετώπῳ ἱδρώς μευ κοχύδεσκεν ἴσον νοτίαισιν ἐέρσαις muito mais fria que a neve inteira fiquei, e da testa meu suor derramava-se igual a úmidas gotas de orvalho

Mimnermo fr. 5 W (= Teógnis 1017-1022)100 (vv.1-6 Theognidea 1017-22; vv.4-8 Stob. 4.50.69) αὐτίκα μοι κατὰ μὲν χροιὴν ῥέει ἄσπετος ἱδρώς, πτοιῶμαι δ’ ἐσορῶν ἄνθος ὁμηλικίης τερπνὸν ὁμῶς καὶ καλόν· ἐπὶ πλέον ὤφελεν εἶναι· ἀλλ’ ὀλιγοχρόνιον γίνεται ὥσπερ ὄναρ ἥβη τιμήεσσα· τὸ δ’ ἀργαλέον καὶ ἄμορφον γῆρας ὑπὲρ κεφαλῆς αὐτίχ’ ὑπερκρέμαται, ἐχθρὸν ὁμῶς καὶ ἄτιμον, ὅ τ’ ἄγνωστον τιθεῖ ἄνδρα, βλάπτει δ’ ὀφθαλμοὺς καὶ νόον ἀμφιχυθέν. De repente, um copioso suor corre em minha pele, estou tomado por um sentimento de paixão ao ver a flor agradável e tão bela da nossa idade; prouvera os deuses que ela fosse mais longa! Mas, como um sonho passageiro, passa a preciosa juventude; e logo a funesta e disforme velhice está suspensa sobre nossa cabeça, igualmente odiosa e desprezível, que torna irreconhecível o homem, e, ao envolvê-lo, debilita-lhe os olhos e o espírito. (G. Onelley & S. Peçanha)

Segundo a reconstrução proposta por M. West o fragmento de Mimnermo teria 8 versos, estando os 6 primeiros incluídos no Corpus Theognideus (vv.1017-22), o que permitiu ampliar o poema com mais 4 versos iniciais, que só conhecíamos através da atribuição a Teógnis. 100

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Íbico Fr.287 D (Platão, Parmênides 136e-137a; Schol. Sobre o Parmênides; Proclo, Comm. Parm. Plat. [séc. V d.C.]) Ἔρος αὖτέ με κυανέοισιν ὑπὸ βλεφάροις τακέρ' ὄμμασι δερκόμενος κηλήμασι παντοδαποῖς ἐς ἄπειρα δίκτυα Κύπριδος ἐσβάλλει· ἦ μὰν τρομέω νιν ἐπερχόμενον, ὥστε φερέζυγος ἵππος ἀεθλοφόρος ποτὶ γήραι ἀέκων σὺν ὄχεσφι θοοῖς ἐς ἅμιλλαν ἔβα.

Eros, de novo, de sob escuras pálpebras, com olhos me fitando derretidamente, com encantos de toda sorte, às inex-tricáveis redes de Cípris me atira. Sim, tremo quando ele ataca, tal qual atrelado cavalo vencedor, perto da velhice, contrariado vai para a corrida com carros velozes. (Giuliana Ragusa)

Eros, de novo, sob pálpebras sombrias, Lança-me olhares molhados De manhas mil, E me enreda nas malhas cerradas Da deusa da beleza. À sua aproximação, Tremo Como um cavalo atrelado, Antes pronto a vencer, Agora hesitante Ante carros mais rápidos. (Décio Pignatari)

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Píndaro Fr. 123 Snell [paidikón] (Ateneu, Banquete dos sofistas, 13, 564e [vv.2-6]; 601d [vv.1-15] [séc. II-III d.C.]; Plut. de inim. util. 9 p.90F [vv.4 ss.]; ser. num. vind. 13 p.558A [vv.5 ss.]) Encômio a Teoxeno Χρῆν μὲν κατὰ καιρὸν ἐρώτων δρέπεσθαι, θυμέ, σὺν ἁλικίᾳ· τὰς δὲ Θεοξένου ἀκτῖνας πρὸς ὄσσων μαρμαρυζοίσας δρακείς ὃς μὴ πόθῳ κυμαίνεται, ἐξ ἀδάμαντος ἢ σιδάρου κεχάλκευται μέλαιναν καρδίαν ψυχρᾷ φλογί, πρὸς δ’ Ἀφροδίτας ἀτιμασθείς ἑλικογ’λεφάρου ἢ περὶ χρήμασι μοχθίζει βιαίως ἢ γυναικείῳ θράσει †ψυχρὰν† φορεῖται πᾶσαν ὁδὸν θεραπεύων. ἀλλ' ἐγὼ τᾶς ἕκατι κηρὸς ὣς δαχθεὶς ἕλᾳ ἱρᾶν μελισσᾶν τάκομαι, εὖτ’ ἂν ἴδω παίδων νεόγυιον ἐs ἥβαν· ἐν δ’ ἄρα καὶ Τενέδῳ Πειθώ τ’ ἔναιεν καὶ Χάρις υἱὸν Ἁγησίλα. É preciso, ó coração, colher a justa medida dos amores com a juventude! Mas, após fitar os raios a faiscar dos olhos de Teoxeno, quem não for inundado com desejo, tem forjado de adamanto o negro coração, ou de ferro, com fria chama, e, não sendo honrado por Afrodite de vivos olhos, ou labuta compulsivamente por dinheiro, ou com ousadia feminina é levado a servir o caminho de todo †frio†101 Mas eu, por vontade dela, derreto como a cera da sacra abelha, picado pelo calor do sol, quando olho para a juventude dos jovens corpos dos meninos. Mas então em Tênedo, Peitó e Cáris moram no filho de Hagésilas ... (Giuliana Ragusa) Para o verso 8, Wilamowitz própõe o sentido “ou com a confiança de uma prostituta” (apud Race, p.99). O início do verso 9 é corrupto. Race traduz a pasagem como “ou trabalha comulsivamente por riqueza, / ou com coragem feminina ele é levado [a serviço de um caminho inteiramente / frio]”. Calame não lê “frio” (psykhron) mas “alma” (psykhḗ ): “ou então sua alma se deixa levar dominada pela insolência das mulheres / e ele não conhece outro camnho senão o de servi-las” 101

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verso 14-16 comentário anônimo em prosa sobre o fr. 31V (séc. III d.C) Fr. 213B Voigt (PSI 1965, 16-17) με ὁ βονβος ὁ ἰλ[ ὤτων καὶ ὁ τρόμ[ος τοῦ σώματος κα[ καὶ μετὰ ταῦτα τ[ φησίν· ... χλωροτ[έρα δὲ π]οίας ἔμμι, τεθ[νάκην δ’ ὀ]λίγω [[δ]] ἐπιδε[ύης φα]ί̣νο̣ ̣μ’ ἔμ’ αὔτ̣[αι. ... o zumbido, a (vertigem?)[ ... e o tre[mor ... do corpo ... [ e em seguida destes ... [ (ela) diz: ... e m[ais] verde [que a r]elva estou [e bem p]erto [[d]] [de es]tar mor[ta pa]ṛẹçọ eu mes ̣[ma.

Safo Fr. 26 V (vv.11-12) (P. Oxy. 1231 fr.16; Ap. Dysc. Pron. 64 b, 103 a) – U – X – ] ̣αν, ἔγω δ’ ἐμ’ ˻αὔται

τοῦτο σύ˼νοιδα – U – X – ] ... mas eu, em mim ˻mesma

disto estou ci˼ente

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verso 17 Arquíloco Fr.13 W [elegia] (Stob. 4. 56.30) Κήδεα μὲν στονόεντα, Περίκλεες, οὔτε τις ἀστῶν μεμφόμενος θαλίηις τέρψεται οὐδὲ πόλις· τοίους γὰρ κατὰ κῦμα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης ἔκλυσεν· οἰδαλέους δ᾽ ἀμφ᾽ ὀδύνηισ᾽ ἔχομεν πνεύμονας. ἀλλὰ θεοὶ γὰρ ἀνηκέστοισι κακοῖσιν, ὦ φίλ᾽, ἐπὶ κρατερὴν τλημοσύνην ἔθεσαν φάρμακον. ἄλλοτε τ᾽ ἄλλος ἔχει τάδε· νῦν μὲν ἐς ἡμέας ἐτράπεθ᾽͵ αἱματόεν δ᾽ ἕλκος ἀναστένομεν͵ ἐξαῦτις δ᾽ ἑτέρους ἐπαμείψεται. ἀλλὰ τάχιστα τλῆτε γυναικεῖον πένθος ἀπωσάμενοι. Os nossos lutos plangentes, Péricles, cidadão algum os repreende ao deleitar-se em festins, nem cidade alguma. Esses homens, a espuma do mar marulhante os engoliu, e entumecidos pela dor temos agora os pulmões. Os deuses, porém, para males incuráveis, meu amigo, a aturada resignação concederam como remédio. A uns e outros este mal sobrevém. Agora para nós se voltou, e choramos esta chaga cruenta. Em breve para outros se mudará. Vamos, sem demora! Tem coragem! Deixa de parte os lamentos de mulher. (Carlos. A. Martins de Jesus)

Fr.128 W (Stob. 3.20.28; Arist. Polit. 1328 a 3) θυμέ, θύμ᾽ ἀμηχάνοισι κήδεσιν κυκώμενε, ἄνα δέ, δυσμενέων δ᾽ ἀλέξευ προσβαλὼν ἐναντίον στέρνον, ἐν δοκοῖσιν ἐχθρῶν πλησίον κατασταθείς ἀσφαλέως· καὶ μήτε νικῶν ἀμφαδὴν ἀγάλλεο μηδὲ νικηθεὶς ἐν οἴκωι καταπεσὼν ὀδύρεο. ἀλλὰ χαρτοῖσίν τε χαῖρε καὶ κακοῖσιν ἀσχάλα μὴ λίην· γίνωσκε δ᾽ οἷος ῥυσμὸς ἀνθρώπους ἔχει. – U – U – σὺ γὰρ δὴ παρὰ φίλων ἀπάγχεαι. Coração, ó coração, por males sem remédio derrubado, ergue-te! Defende-te dos inimigos, opondo-lhes um peito adverso, firme suportando as ciladas dos que te são hostis! Se venceres, em demasia não rejubiles, nem, vencido, em casa te deites em pranto. Alegra-te antes com as alegrias, dói-te com as tristezas, sem exagero. Aprende bem o ritmo que domina os homens. (Carlos A. Martins de jesus)

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Teógnis 657-667 [West cita os versos “pois mesmo um homem pobre pode se tornar rico, e o rico pobre”, como exemplo de um lugar comum sobre a “reviravolta da fortuna”, a propósito da 5ª estrofe perdida do fr. 31 V, que começaria com um motivo semelhante: “mas tudo é suportável, já que mesmo um pobre...”. Obs. que o poeta usa, aqui, o verbo phéro para expressar a mesma ideia de tlemosýne. Nota-se a semelhança de expressões no v. 658 (epeì ést' andròs pánta phérein agathoû) e no v. 662 (kaì te penikhròs anèr | aîpsa mál' eploútese). A tradução de Onelley está encurtada no número de versos]

Não tenhas na alma tristeza em demasia, por causa de sofrimentos, nem te regozijes com a prosperidade, porque cabe ao homem de bem suportar tudo. † Não se deve jurar assim: “jamais este fato ocorrerá”; pois certamente os deuses irritam-se, por meio de quem tudo se realiza. E naturalmente cumprem uma coisa: do mal nasce o bem e do bem, o mal; o homem pobre enriquece repentinamente, e aquele que possui muitas coisas subitamente perde tudo, em uma só noite; o sábio falha, a glória acompanha muitas vezes o insensato e, embora seja inferior, obtém honra. (Glória Braga Onelley)

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458

__________. (org. e trad.) Safo de Lesbos. Hino a Afrodite e outros poemas. São Paulo:

Hedra, 2011. __________. “Tramas de Afrodite e Éros: sedução e capitulação na mélica grega arcaica”.

In: Nuntius antiquus, Belo Horizonte, v.VII, n.I, jan-jun 2011, pp. 61-78. _________. (org. e trad.) Lira grega: antologia de poesia arcaica. São Paulo: Hedra, 2013. __________. “De brotos, vergônteas e que tais: a imagem do jovem Meleagro no Epinício

5, de Baquílides”. In: Organon, Porto Alegre, v.31, n.60, p.63-83, jan/jun 2016. REINACH, Théodore. A música grega. São Paulo: Perspectiva, 2011. ROCHA, Roosevelt. “Lírica Grega Arcaica e Lírica moderna: uma comparação”. Philia & filia, Porto Alegre, vol.3, n,2, jul/dez 2012. ROSA, Guimarães. “Meu tio, o Iauaretê”. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, pp.191-235. ROSENMEYER, Thomas G. “Ancient Literary genres: a mirage?” [1985]. In: Laird, Andrew. Ancient literary criticism. Oxford: Oxford Press, 2006, pp.421-439. ROSSI, L. E. “I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche”. In: Bulletin of the Institute of Classical Studies, n.18, Wiley, 1971, pp.69-94. SANTORO, Fernando. (trad.). Poema de Parmênides: Da natureza. Rio de Janeiro: Azougue, 2009. SCANNAPIECO, Rosario. “Il morso dela vipera, il sudore dell’anima. Il. fr. plutarcheo 137 Sandbach”. In: A. Pérez Jiménez & I. Calero Secallis (eds.). Δῶρον Μνημοσύνης. Miscelánea de Estudios oferecidos a Mª Ángeles Durán López, Universidad de Málaga, Zaragoza (Pórtico), 2011, pp.243-270. SNELL, Bruno. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. São Paulo: Perspectiva, 2012. SOUZA, José Cavalcanti (org.). Os pré-socráticos. Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (col. Os Pensadores) SPATAFORA, G. “Il fuoco d’amore. Storia di un topos dalla poesia greca arcaica al romanzo bizantino”. Università degli Studi di Palermo. In: Myrtia, n.22, 2007, pp.19-33. STERZI, Eduardo. Por que ler Dante. São Paulo: Globo, 2008. __________. “Dante e a lírica: entre teoria e poesia”. Revista FronteiraZ, São Paulo, n.8,

julho de 2012.

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contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010, pp.51-86. __________. “Como um barco à deriva: três colegas no Collège de France”. In: Lima, L.

C. (org.) Mímesis e reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010, pp.217241. VERNANT, J.-P.; DETIENNE, M. Mḗ tis: as astúcias da inteligência. São Paulo: Odysseus, 2008c. WARNING, R. (org.). Estética de la recepción. Madrid: Visor, 1989.

460

7. Sites de referência

Chicago Homer: http://homer.library.northwestern.edu/html/application.html CHS – Center for Hellenic Studies. Harvard University: http://chs.harvard.edu/CHS/ Papyrus Oxyrhynchus Online: http://www.papyrology.ox.ac.uk/POxy/ Perseus Digital Library: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/ Portal Graecia Antiqua: http://greciantiga.org/ PSI – Papiri dela società italiana: http://www.psi-online.it/

8. Sites de pesquisa bibliográfica

Academia.edu: https://www.academia.edu/ Internet Archive: https://archive.org/ Jstor: https://www.jstor.org/

461

Anexos Tábua de transcrição do grego letra grega

nome

pronúncia

transliteração

α

ἄλφα – álpha

/a/ e /ʌ/ ou /a:/ e /ʌ:/

a/ā

β

βῆτα – bêta

/b/

b

γ

γάμμα – gámma

/g/ ou /ŋ/

g/n

sempre oclusiva velar surda (gue), menos antes de γ, κ, χ, ξ e μ, quando nasalisa a vogal anterior δ

δέλτα – delta

/d/

d

ε

ἔ ψιλόν – épsilon

/e/

e

ζ

ζῆτα – zdḗta

/zd/

zd

η

ἦτα – êta

/ɛ:/

ē

θ

θῆτα – thêta

/θ/ ou /th/

th

como th inglês, em theater e that ou encontro consonantal como em lighthouse) ι

ἰῶτα – iôta

/i/ ou /i:/

i / ī

κ

κάππα – káppa

/k/

k

λ

λάμβδα – lámbda

/l/

l

μ

μῦ – mŷ

/m/

m

ν

νῦ – nŷ

/n/

n

ξ

ξῖ – ksî ou ξεῖ –kseî

/ks/

ks / x

ο

ὄ μικρόν – ómikron

/o/

o

/u:/



ου π

πῖ – pî ou πεῖ – peî

/p/

p

ρ (ῥ- / -ρ-)

ῥῶ – rhô

/r/

rh- / -r-

sempre vibrante σ, ς (σ- / -σ- / -ς)

σῖγμα – sîgma

/s/

s

τ

ταῦ – taû

/t/

t

462

υ

ὗ ψιλόν – hŷpsilon

/y/ e /u/ em posição vocálica como “u” francês e “ü” alemão; em posição semivogal: “u” nos ditongos αυ /au/, ευ /eu/, ηυ /ɛ:u/, ου /u:/

y/u (vogal / semivogal)

φ

φῖ – phî ou φεῖ – pheî

/f/ ou /ph/

ph

χ

χῖ – khî ou χεῖ – kheî

/x/ ou /kh/

kh

como “ch” alemão em nachamung e como “j” e “g” castelhano (gente, jamás) ou encontro consonantal no inglês inkhorn ψ

ψῖ – psî ou ψεῖ – pseî

/ps/

ps

ω

ὦ μέγα – ômega

/Ɔ:/

ō

Ϝ

δίγαμμα – dígamma ou Ϝαυ – wau

/w/

w

Notas: Obs1: o circunflexo dispensa o mákron ( ̄), pois se entende que o perispômeno ( ͂) marca vogal longa (sempre η ou ω). Obs.2: nos ditongos, o acento e o espírito são sempre colocados sobre a semivogal, por convenção gráfica. Para evitar induzir o leitor em erro, deve-se entender que o acento está sempre fora do lugar prosódico: onde se lê eídōlon (εἴδωλον) e phaínetaí (φαίνεταί), pronuncia-se “éidōlon” e “pháinetái”. A exceção (o hiato) é sempre marcada por um trema. Obs.3: o trema em “ï” e “ÿ”, no sentido grego no sinal, serve para separar duas vogais (hiato) que, formariam um ditongo, não significa que o sinal está presente palavra grega: aӱ́pnos = “a-ýpnos” (e não “áu-pnos”), com /y/ vocálico. Referências IPA-2005, Alfabeto Fonético Internacional: http://www.fonologia.org/quadro_fonetico.php SBEC. Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. “Normas de transliteração de palavras do grego antigo para o alfabeto latino”. CABRAL, Luis Alberto Machado. Tábua de transliteração (in: B. Snell; estendida em Vernant). MURACHCO, Henrique. Língua grega. Omniglot (The online encyclopedia of writing systems & languages): http://www.omniglot.com/writing/greek.htm SORGILL - Society for the oral reading of greek and latin literature: http://www.rhapsodes.fll.vt.edu/Greek.htm UCL Division of Psychology & Language Sciences (University College London): http://www.phon.ucl.ac.uk/home/wells/greek.htm

463

Siglas das edições de referência Arquíloco, Calino, Tirteu, Semônides, Mimnermo, Hipônax, Sólon, Teognideia

W

West (1989-1992)

Álcman, Estesícoro e Íbico

D

Davies (1991)

Anacreonte e Simônides

PMG

Page (1955)

Safo e Alceu

V

Voigt (1971)

Baquílides

SM Ma

Snell-Maehler (1992) e Maehler (2004)

Píndaro

S SM

Snell (1964) e Snell-Maehler (1987)

Teógnis

Ger

Gerber (1999)

Teócrito

Gow

Gow (1952)

Calímaco

Pf

Pfeiffer (1965)

Antologia Palatina

Gow AP

Gow (1952) Burrière (1970)

D

Davies, M. (ed.). Poetarum Melicorum Graecorum Fragmenta I. Oxford: Clarendon Press, 1991.

Gow

Gow, A.S. F. Theocritus. 2 vols. Cambridge, 1952. Gow, A.S.F. Bvcolic Graeci. Oxford, [1ªed. 1952]

PLF ou LP

Lobel, E. e Page, D. (eds.) Poetarum Lesbiorum fragmenta. Oxford: Clarendo Press, 1ª ed. 1955. [LP (numeração individual de cada poeta) e PLF (numeração contínua)]

PMG ou P ou Page

Page, D. L. (ed.). Poetae Melici Greci. Oxford: Clarendon Press, 1955. [P (numeração individual de cada poeta) e PMG (numeração contínua)]

SM

Snell, B. & Maehler, H. (eds.) Pindarus – pars I: Epinicia. Leipzig: Teubner, 1987.

S ou Snell

Snell, B. (ed.) Pindarus – pars altera: fragmenta. 3ª ed.Leipzig: Teubner, 1964.

V ou Voigt

Voigt, E.-M. (ed.). Sappho et Alcaeus: fragmenta. Amsterdã: Athenaeu, Polak & Van Gennep, 1971.

W ou West

West, M. L. (ed.). Iambi et elegi Graeci. 2 vols. Oxford: Oxford University Press, 1989 (v.1), 1992 (v.2). [1as eds. 1971-1972].

464

Abreviações An. Par.

Anecdota Parisiensis, Inéditos Parisienses

An. Ox.

Anecdota Oxoniensium, Inéditos de Oxford

AP

Antologia Palatina ou Grega (Anthologia Palatina / Graeca)

apogg.

apógrafo, cópia de manuscrito

Choer.

Jorge Querobosco (Choreroboscus Grammaticus)

c.

circa: “cerca de”

cf.

confer.: “compare com”

cod.

codex, códice

cod. P ou Par. Gr.

codex Parisinus Graecus

col.

coluna (em transcrição de papiros e inscrições)

coll.

coleção

e.g.

exempli gratia: “por exemplo”

et al.

et alii: “e outros”

Hdn. Gr.

Élio Herodiano (Herodianus Grammaticus)

i.e.

id est: “isto é”

inv.

número de inventário (usualmente em museus e coleções)

ms.

manuscrito (plural mss.)

P. Köln.

Papiro de Colônia (Kölner Papyri / Universität zu Köln Papyrus)

P. Oxy.

Papiro de Oxirrinco (Papyrus Oxyrhynchus)

PSI

Papiri Greci e Latini, Pubblicazioni dela Società italiana per la ricerca dei papiri greci e latini in Egito (1912- )

s.b.

sub voce: “sobe a palavra” (em entradas léxicas)

sc.

silicet: “tácito, implícito, evitendemente”

Scut.

Escudo de Héracles (atribuído a Hesíodo)

TD

Os trabalhos e os dias de Hesíodo

Vat. Gr.

codex Vaticanus Graecus

Para abreviações de nomes de obras e autores antigos em geral, consultar: LSJ

Liddell, H. G; Scott, R. (ed.) A Greek-English Lexicon. Revised and augmented by H. Stuart Jones. Oxford, 1940.

OLD

Glare, P. G. W. (ed.) Oxford Latin Dictionary. Oxford, 1982.

465

Símbolos utilizados nas transcrições de poemas convenções de papirologia e epigrafia (sistema Leiden ampliado) αβγ

letras legíveis exclusivamente no testemunho de referência, não presente em nenhum outro testemunho

[αβγ]

suplemento de editor: letras restauradas conjecturalmente por scholar moderno indicado na sigla de numeração do fragmento

[

lacunas no papiro ou inscrição original

]

α̣β̣γ̣

(ponto subscrito) letra incerta, duvidosa, não seguramente legível no manuscrito ou papiro, posta em dúvida pelo editor

⸢αβγ⸣

(meio-colchete superior) sobreposição de fontes: de conformidade certa ou compatibilidade sujeita a concordância do editor.

⸤αβγ⸥

(meio-olchete inferior) complemento de testemunhos: letras legíveis apenas no(s) testemunho(s) complementar(es), ausentes no testemunho de referência

⸢α̣β̣γ̣⸣

sobreposição de fontes com falha de legibilidade

⸤α̣β̣γ̣⸥

complemento de testemunho com falha de legibilidade

[[αβγ]]

(colchete duplo) rasura no original, caracteres apagados por um escriba antigo

α(βγ)

expansão moderna de uma abreviação na fonte, explicitação do editor ou tradutor (e não suplemento)



omissão de letras no manuscrito original, por erro do escriba, interpostas pelo editor como suplemento

{αβγ}

letras supérfluas, erroneamente acrescentadas por um escriba, que o editor removeu

... ou (...)

trecho ilegível em geral

[.....]

(ponto dentro de colchetes) número aproximado de letras perdidas ou apagadas

].....[

(ponto fora de colchete) número aproximado de caracteres ilegíveis

(?)

dúvida do tradutor (não do editor) quanto ao suplemento ou entendimento da passagem



crux desperationis: indica passagem corrupta ou suspeita



corônis: fim de um poema e início de outro assinalado na fonte

U ou ̆

sílaba breve (bráquia)

– ou ̄

sílaba longa (mákron)

X ou ⏓

posição ancípite: que pode ser longa ou breve (anceps) 466

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