Recensão A nossa casa é onde está o coração, de Toni Morrison.

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Op. Cit. Revista de Estudos Anglo-Americanos A Journal of Anglo-American Studies

II Série, N.º 4: 2015 2nd Series, No. 4: 2015

Citation: Cholant, Gonçalo. Recensão de Toni Morrison. A nossa casa é onde está o coração. Tradução de Manuela Madureira. Lisboa: Editorial Presença, 2015. Op. Cit.: A Journal of Anglo-American Studies. 2nd Series, No. 4 (2015). Online since November 30, 2015. URL: https://sites.google.com/site/opcitapeaa/home

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Morrison, Toni. A nossa casa é onde está o coração. Tradução de Manuela Madureira. Lisboa: Editorial Presença, 2015. 144 pp. ISBN: 978-972-23-5496-7.

Gonçalo Cholant Universidade de Coimbra

Toni Morrison, reputada autora afro-americana, detentora de importantes prémios, como o Nobel da literatura e o prémio Pulitzer, encontra nos anos 50 do século passado um momento interessante para repensar a história e as histórias contadas sobre a fartura do pós-guerra nos Estados Unidos. A obra Home, lançada nos Estados Unidos em 2012, chega a Portugal pela Editorial Presença, em 2015, em tradução a cargo de Manuela Madureira. A nossa casa é onde está o coração já levanta no título a problemática tarefa da tradução, que deve adequar-se aos mercados editoriais, ao mesmo tempo que tenta transmitir a ideia da obra original numa língua estrangeira. A economia de Home, monossílabo emblemático que compreende uma panóplia de possíveis significados — uma casa? Um lar? Uma nação? Um sentimento de pertença? Um lugar de refúgio? — acaba numa escolha que nos direciona para uma leitura sentimentalista que muito se distancia do projeto original de Morrison, ou pelo menos o reduz. Esta escolha não reflete o texto original como um todo, cujo conteúdo tramita entre o trauma, a violência, o racismo e sua crítica, numa história concisa e pungente sobre a dura experiência afro-americana numa década de ouro para os brancos, desdobrando-se numa retórica que versa justamente a não-pertença à grande nação. O título em Português dirige a leitura para uma vertente simplificada e unidimensional, equacionando o sentimento de pertença a este lugar material, esta casa. É possível, no entanto, acreditar que esta decisão estilística é fundamentalmente editorial e que a busca por uma maior adesão do mercado influencie um título mais descritivo, que seduza o possível público leitor a interessar-se pela obra.

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A versão francesa da obra editada pela 10 X 18, traduzida por Christine Laferriere, manteve o título Home, como no original estado-unidense, ao invés de buscar uma versão francófona para este desafio. Se, de facto, a nossa casa é onde está o coração, Frank Money, o protagonista deste romance, ficaria confuso ao tentar apontar na direção certa. Lotus, a pequena e odiada vila ficcional onde nasceram Money e sua irmã Ycidra, está longe de ser o lugar onde está a casa e, por consequência, o coração perturbado de Money. Money é um veterano da guerra da Coreia numa jornada que atravessa os Estados Unidos ainda racialmente segregados. Vai em busca de sua irmã, a qual está em perigo de morte, mas também ele se debate com seus próprios demónios internos advindos da experiência na Guerra da Coreia. Ao regressar aos Estados Unidos, Money demonstra sintomas de estresse pós-traumático. É precisamente num hospital psiquiátrico que conhecemos o nosso protagonista adulto, justamente após um episódio de confusão do qual nem ele próprio se recorda com precisão. Na viagem de Seattle até Atlanta e depois em direção a Lotus, Money depara-se não somente com episódios de alucinação, com as repetidas memórias traumáticas que involuntariamente regressam durante os mais variados momentos, mas também com a violência que permeia a realidade de um país ainda marcado pela separação entre as raças. O exército em que serviu Money poderia ter tropas integradas, mas, ao regressar, Money encontra a violência de um país dividido pela raça e onde a separação é reiterada a cada encontro racial que foge do protocolo. Durante a viagem, Money testemunha, entre outros episódios, um ataque a um casal de negros que tenta comprar café num restaurante para brancos, e o caso de uma família que teve um filho alvejado pela polícia e que, por consequência, perde a sensibilidade num braço. Money também é abordado pela polícia num momento da jornada sem motivo aparente exceto a sua raça, sendo revistado e libertado somente por ser um veterano de guerra. Outro episódio de violência central à trama diz respeito ao motivo pelo qual Money tem de ir ao encontro de Cee (diminutivo de Ycidra), o qual não é claro para o protagonista durante toda a sua jornada e lhe será revelado somente quando a mesma é resgatada e subsequentemente encontra ajuda. Cee, após um casamento falhado, encontra emprego na casa de um médico, que aos olhos inocentes da personagem parece ser um homem bom, empenhado em ajudar os seus pacientes. Cee ignora completamente os livros sobre eugenia que povoam as prateleiras de seu empregador e acaba por ser ela um dos experimentos do médico, que a deixa à beira da morte e permanentemente estéril. Ao ler os vários títulos que não compreende, Cee culpa a sua falta de instrução formal pela sua ignorância e a voz narradora já aí anuncia o destino que a aguarda. A história contada por Morrison consegue descrever, através de seu estilo e recursos literários, a errante vida do ex-soldado traumatizado, num país que 2

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ainda não sabe reconhecer os contributos daqueles que julga inferiores pela raça, ao mesmo tempo que descreve o delicado estado mental de uma vítima a sofrer daquilo que antes era caracterizado como shell shock. A recursividade cíclica na narração dramatiza o curso da memória traumática que insiste em voltar atrás, impedindo que a vítima supere a experiência para poder mover-se em frente. A desordem temporal e a constante alternância entre as vozes narradoras contribuem para a composição de uma trama complexa e fragmentada, a qual ecoa o trauma vivenciado por Money. O testemunho italicizado em primeira pessoa compete com as diferentes vozes que narram a vida de Money em diversos momentos de sua vida, ora corroborando as verdades propostas por esses discursos, ora contrapondo-os e ratificando a história que contam sobre ele. A confissão final de Money, velada em toda a narrativa, ajuda-nos a compreender alguns dos motivos pelos quais os ataques de alucinação do protagonista são despoletados e, por fim, percebemos que as consequências do trauma extrapolam os limites da violência direta da guerra. Morrison é celebrada também por ser capaz de trazer ao público leitor um universo linguístico que durante muito tempo permaneceu fora da literatura, nomeadamente o vernáculo afro-americano, o qual se diferencia do inglês dito padrão dos Estados Unidos. Esta dimensão linguística do texto é de grande importância, pois através dela é possível uma maior aproximação do público leitor com as realidades representadas nas narrativas, juntamente com o enriquecimento da literatura como um todo. Esta visibilidade de cadências da oralidade e estruturas desviantes da língua dita “culta”, características do Black English, acaba por ser mais um desafio durante a tradução da obra para Português. Passemos a um exemplo: a seguinte passagem retrata um diálogo entre Money e o taxista em direção a Lotus:  hen they left the bus, it took a while to locate a gypsy cab parked away W from the line of licensed taxis waiting, and more time to persuade the driver to accept the probable ruin of his backseat. “She dead?” “Drive.” “I am driving brother, but I need to know if I’m going to jail or not.” “I said, drive.” “Where we going?” “Lotus. Twenty miles down Fifty-Four.” “That’ll cost you.” “Don’t worry ‘bout it.” (Morrison 2012: 114).  uando saíram da camioneta, demorou um pouco a localizar um táxi ilegal Q estacionado longe da fila de veículos com licença, e ainda mais tempo a convencer o motorista a aceitar a provável ruína do seu banco traseiro.

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Ela está morta? Guia. Estou a guiar, irmão, mas preciso de saber se vou parar à cadeia ou não. Já disse, guia. Onde é que vamos? Lotus. Trinta quilómetros pela cinquenta e quatro. Isso vai ficar-te caro. Não te preocupes. (Morrison 2015: 110)

O que encontramos na tradução portuguesa é uma versão tradicional da norma culta desta língua. Embora não seja possível transladar de forma fiel a versão em Black English utilizada por Morrison, é certamente possível pensar em alternativas em língua portuguesa que acomodariam este aspecto da obra original, num esforço de transcriação. É importante relembrar que o português europeu não é alheio às variantes africanas advindas do processo colonial e, mesmo na sua vertente dita “europeia”, é constituído por um léxico amplo, rico, híbrido e flexível. O que vemos entretanto é a opção por um registo linguístico neutro, uma opção que resulta em apagamentos e silenciamentos das expressões racializadas e culturalmente conscientes feitas por Morrison para exprimir a diferença na sua narrativa. A voz da tradutora faz-se ouvir também num total de quinze curtas notas de rodapé que trazem clarificações da tradução, informações relevantes para a compreensão do contexto dos Estados Unidos e, por fim, referências traduzidas de objetos culturais citados pela autora. Através destes notas temos acesso a informações que não estão presentes explicitamente na obra original, mas que são de grande ajuda para a compreensão das obras citadas por Morrison para compor esta década problemática, tais como os autores eugenistas de O Declínio da Grande Raça ou Hereditariedade, Raça e Sociedade, ou a perseguição de comunistas trazida para a obra através do caso Morrison de 1950. Estas notas são de grande ajuda para um público leitor distanciado da história dos Estados Unidos, auxiliando e enriquecendo a experiência de leitura. O que fica claro entretanto é que a impossibilidade de acomodação de uma língua noutra, a de destino, acaba por gerar um novo objeto e que por consequência a tradução de uma obra acaba por tornar-se uma nova obra. A voz tão singular de Toni Morrison e as escolhas que lhe renderam os frutos e as distinções obtidos até hoje, ficam em segundo plano na obra em português. Contudo, A nossa casa é onde está o coração cumpre sua função de expandir o alcance da obra de Morrison para outros mercados e públicos leitores, divulgando assim esta narrativa que pungentemente questiona se os anos dourados dos Estados Unidos poderiam ser assim caracterizados pela totalidade de cidadãos e cidadãs deste país, ainda mais ironicamente por aqueles que, apesar de contribuírem para a glória nacional, ao voltarem para casa são recebidos como parentes distantes com os quais nada se tem em comum.

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Gonçalo Cholant é Doutorando em Estudos Americanos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal, Mestre em Estudos Feministas pela mesma Universidade, e Licenciado em Letras pela UFPEL – Rio Grande do Sul – Brasil. [email protected]

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