Reflexões sobre Segmentação, Desumanização e Violência

May 30, 2017 | Autor: Eduardo Ayrosa | Categoria: Violence, Segmentation (Marketing), Consumer Studies
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Reflexões sobre Segmentação, Desumanização e Violência Autoria: Renata Couto de Azevedo de Oliveira, Eduardo André Teixeira Ayrosa, João Felipe Ramell Sauerbronn

Resumo Apesar da segmentação de mercado ser frequentemente utilizada na tomada de decisões estratégicas em marketing, pouco se discute tanto no âmbito acadêmico, quanto entre praticantes sobre um aspecto peculiar dessa técnica: a desumanização dos parceiros de troca que ela promove (Hill & Martin, 2014). Discurso hegemônico, a segmentação inevitavelmente marginaliza um conjunto de atores e vozes (Lengler, Vieira, & Fachin, 2002), falhando em reconhecer o aspecto humano das pessoas que atinge. Procura-se, neste trabalho, refletir sobre a possibilidade da segmentação de mercado se apresentar como uma prática violenta, uma vez que de acordo Bouchet (2015), violência se traduz na negação do limite do outro, de sua alteridade. Palavras-chave: Estratégia de Marketing, Segmentação de mercado, Desumanização, Violência, Estudos Críticos de Marketing. 1. Introdução O mercado é formado por vários elementos, entre eles pessoas. Contudo, a teoria de marketing, que inicialmente estava enraizada na própria noção de mercado (Bartels, 1962 como citado por Araujo & Kjellberg, 2010) transformou-se continuamente em um conjunto de teorias e práticas gerenciais, evoluindo até um paradigma ancorado numa noção genérica de troca, afastando-se teoricamente da noção de mercado (Hunt, 1976, p.25; Kotler, 1972, p.48 como citado por Araujo & Kjellberg, 2010). Acredita-se que esse afastamento fez o marketing ser encarado como um conjunto de técnicas portáteis, dissociadas de questões morais e éticas, o que contribuiu para a desumanização dos parceiros de troca (Hill & Martin, 2014). Fala-se em consumidores, informantes e sujeitos (Hill & Martin, 2014), indivíduos despersonalizados, segmentados de acordo com nichos identificados de mercado e oportunidades de diferenciação de produtos (Dickson & Ginter, 1987), mas não se fala em pessoas. Fala-se em segmentos de consumidores, não em classes (Hemais & Faria, 2015). O que deveria existir para servir pessoas e facilitar seu acesso aos bens produzidos, falha ao reconhecer sua humanidade. Se, por um lado, uma parcela da população se beneficia com o acesso aos bens, por outro lado, uma outra parcela (entre 70% e 85% da humanidade) sofre com restrições significantes no mercado (Hill & Martin, 2014), quando não sua total marginalização em seu contexto. Nem mesmo as pessoas com acesso à abundância dos bens disponíveis nos mercados estão seguras: as estratégias de marketing, que deveriam facilitar suas escolhas, parecem gerar uma opressora angústia existencial (Hill & Martin, 2014) e, como consequência extrema, uma separação do mercado que já não dialoga com estruturas de necessidade (Iyengar & Kamenica, 2010 como citado por Hill & Martin, 2014). A parcela da humanidade que sobrevive em condições abjetas de pobreza (metade das pessoas no planeta, segundo Hill e Martin, 2014) ou enfrenta significantes restrições de mercado (por exemplo, pessoas com deficiência) tem que lidar não apenas com um sentimento coletivo de mal-estar (ill-being, segundo Chakravarti, 2006) devido à impossibilidade de superar tais circunstâncias de vida, mas também com reações negativas decorrentes delas. Tais pessoas também enfrentam a ausência, segundo Hill e Martin (2014),

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de bens e serviços que garantem uma boa qualidade de vida (de bancos a supermercados). Ironicamente, pelo menos nos países desenvolvidos, o acesso dessas pessoas marginalizadas a bens e serviços de alto risco é notável, com destaque para o consumo de cigarros e álcool (Disantis, Isselmann, Grier, Young, Baskin, & Carter-Edwards, 2013 como citado por Hill & Martin, 2014). Não se questiona sobre o porquê de tais produtos serem voltados para tais pessoas. Percebemos, portanto, que a segmentação promovida pelo marketing não apenas desumaniza quem se torna consumidor. Tal processo também se encarrega de excluir enormes porções da humanidade (Hill & Martin, 2014): existem aqueles que possuem meios financeiros, tornando-se consumidores viáveis, e aqueles que não possuem tais recursos e, portanto, não são dignos da classificação como consumidores. Existem ainda aqueles que, destituídos de sua humanidade, têm acesso ao mercado através de produtos de alto risco posicionados para esse segmento e que se mostram quase sempre irrelevantes para elevar suas condições enquanto humanos. Visando compreender tal cenário, voltamos nossa atenção para o marketing, que segundo Bouchet (2015), se apropria de questões fundamentais com as quais a humanidade se defronta, como desejo, ansiedade e violência, e as transforma em algo que pode ser vendido e comprado. Através de suas estratégias, o marketing impõe sua lógica às pessoas e à coletividade, não respeitando as alteridades presentes na sociedade. Assim, quando segmentamos segundo os princípios do marketing, não estaríamos desumanizando alteridades? Consideremos o exemplo dado por Hill e Martin (2014) ao falar sobre uma pessoa como target: trata-se de uma mulher “entre 25-45 anos, renda anual entre 20 e 35 mil dólares, afro-americana e urbana” (Hill & Martin,, 2014). Essa é uma construção baseada em “montanhas de dados coletados ao longo de décadas que sugerem como, onde e o que ela pode comprar para o resto de sua existência” (Hill & Martin,, 2014). Nos esquecemos, porém, que essa consumidora é uma mulher chamada “LaToya Jackson que vive com sua avó idosa que a criou desde o nascimento. Ela acaba de fazer 26 anos e tem uma filha de sete anos. Ela terminou o ensino fundamental numa área pobre da Filadélfia e trabalha desde esse tempo, tendo enfrentado dois períodos significantes de inatividade. Seu objetivo de vida é comprar uma pequena casa ao norte da cidade ara que sua filhas possa freqüentar escolas melhores e ter um lugar para chamar de casa. Ela acredita que a cor de sua pele a impediu de conseguir empregos melhores e ela gostaria de freqüentar a faculdade comunitária para tornar-se enfermeira” (Hill & Martin,, 2014, p.20). Ao nos darmos conta, com base no exemplo acima, de como a segmentação de marketing atua à despeito das alteridades com as quais se depara, poderíamos questionar se não estamos frente a uma prática violenta. A violência, para Bouchet (2015), começa com a negação do limite do outro. Trata-se de “uma expressão da falta de respeito pelos outros precisamente como sendo outra pessoa (grifo nosso)”, uma violência contra subjetividades (Bouchet, 2015). Face ao exposto acima, este ensaio teórico espera fazer uma reflexão sobre a prática de segmentação. Assim como Lengler, Vieira e Fachin (2002) em seu trabalho sobre desconstrução de tal prática, este ensaio não visa desconsiderar tal estrutura conceitual, mas ressalta a necessidade de observá-la por um outro ângulo, questionando-se sobre seus objetivos e, principalmente, sobre suas consequências.



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2. Referencial Teórico 2.1. Breves Considerações sobre Segmentação de Marketing Henry Ford, ao lançar o Ford-T, afirmou que as pessoas poderiam ter um carro ‘em qualquer cor, desde que preto’. Essa afirmativa ilustra o que conhecemos como marketing de massa, segundo o qual o produtor se dedica à produção, distribuição e promoção em massa de um produto para todos os compradores (Kotler & Keller, 2006). Hoje ultrapassada, tal abordagem deu lugar ao uso de teorias econômicas e comportamentais, bem como de técnicas analíticas sofisticadas visando identificar segmentos de mercado e oportunidades de diferenciação de produtos (Dickson & Ginter, 1987). O conceito que substituiu o de marketing de massa foi o de segmentação de mercado. Introduzido em 1956 no Journal of Marketing por Wendell Smith, o conceito marca presença até hoje em todo manual de marketing utilizado no ensino de Administração e é amplamente discutido no meio acadêmico, além de ser empregado na tomada de decisões organizacionais. Brito (1998) afirma que essa ferramenta surge para responder a três questões cruciais para empresas. Em primeiro lugar, identificar necessidades e oportunidades de mercado que se traduzam em bons negócios. Em segundo lugar, ajudar no desenvolvimento dos negócios ao nível do preço, da distribuição e de eventuais serviços associados. E por fim, em terceiro lugar, contribuir para uma correta e eficaz ação de promoção e comunicação. Para Wind (1978), segmentação é um processo proativo (ou seja, os segmentos são identificados propositadamente pelos tomadores de decisão nas organizações) que envolve a aplicação de técnicas analíticas para identificar segmentos. Trata-se de uma estrutura conceitual erguida ao longo de mais de quatro décadas e ainda fortemente empregada na tomada de decisões organizacionais, sendo encarada como manipulação da própria intencionalidade mercadológica das organizações (Lengler et al., 2012). Contudo, tal estrutura não é imune a críticas. Jenkins e McDonald (1997) apontam para a distância entre teoria e prática, afirmando que a teoria convencional da segmentação é fundada em conceitos, não em evidência empíricas, focando em como as organizações devem segmentar seus mercados ao invés de considerar como deveriam de fato construir homogeneidade no mercado. Acredita-se também que a estratégia de segmentação de mercado, pautada na crença de que os mercados não são homogêneos, mas divididos em subconjuntos de clientes com características e necessidades específicas, caminha para a obsolescência, perdendo terreno para o marketing individualizado e de relações (Brito, 1998). Para fins do presente trabalho, contudo, destacamos um outro tipo de crítica feita à segmentação de mercado, qual seja, a aventada por Hill e Martin (2014) em seu trabalho que versa sobre a ampliação do paradigma do marketing como troca e, em especial, sobre a desumanização decorrente de tal disciplina. Os autores argumentam que apesar da ampliação do conceito de marketing proposta por Kotler e Levy em 1969 incluir pessoas, lugares e coisas, o foco recaiu sobre o que tais trocas envolvem e como elas ocorrem ao invés de refletir sobre quem tem capacidade efetuá-las ou é excluído de sua realização (Hill & Martin, 2014, p.17). Ao ser concebido e aplicado dessa forma, o marketing abriu-se para críticas sobre sua relevância em três frentes, segundo Hill e Martin (2014, p.18): primeiro, o marketing desconsidera boa parte dos habitantes do planeta no desenvolvimento de suas teorias e perspectivas; em segundo lugar, reduz o valor das pessoas ao que elas podem comprar e como fazem isso, sem se preocupar se isso enriquece ou empobrece suas vidas através do uso de uma linguagem própria, pautada em termos como “valor do consumidor”, desumanizando até mesmo aqueles que se constituem como consumidores; e em terceiro lugar, ressaltam que a

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teoria da troca desconsidera os desafios e as realidades sistêmicas que as pessoas enfrentam diariamente. O tópico a seguir dedica-se ao aprofundamento da desumanização associada ao conceito de segmentação de marketing. 2.2. A Face Desumanizadora da Segmentação de Marketing Dickson e Ginter (1987) afirmam que mercados são segmentados e produtos e serviços são diferenciados desde o momento no qual fornecedores diversificaram seus métodos de competição. Logo, desde sua criação, a segmentação é empregada academicamente e no mercado com o intuito de “fornecer subsídios para a tomada de decisão quanto ao composto mercadológico das organizações” (Lengler et al., 2002, p.85). Modernamente realizada com base em características psicográficas dos consumidores e benefícios esperados em relação ao produto (Lengler et al., 2002), a segmentação é um conceito sólido, fruto de mais de quatro décadas de pesquisa acadêmica. Beane e Ennis (1987, p.22) afirmam que ao segmentar com base em características psicográficas, tenta-se incorporar parte da pessoa interior dos consumidores na compreensão do mercado, não apenas sua expressão exterior, como ocorre na segmentação demográfica. A consideração anterior faz parecer que a prática psicográfica da segmentação seria mais humanizada ou pelo menos mais atenta à condição humana do consumidor do que a demográfica. Cabe também destacar que a prática da segmentação parte da hipótese de que o mercado não é inteiramente homogêneo (Beane & Ennis, 1987), o que poderia sinalizar, de certo modo, o reconhecimento da diversidade humana na “massa consumidora”. Contrastando com o exposto acima, devemos ressaltar que a segmentação se baseia em duas grandes razões (Beane & Ennis, 1987): em primeiro lugar, busca-se oportunidades para novos produtos ou espaços que sejam receptivos ao reposicionamento de produtos já existentes; e em segundo lugar, visa-se elaborar mensagens publicitárias aperfeiçoadas que proporcionem melhor compreensão de seus clientes. Percebe-se que, mesmo segmentando psicograficamente, não se leva em consideração aspectos relevantes da pessoa-consumidora. Não se aventa em momento algum as implicações sociais da prática de segmentação para certos grupos de pessoas ou para a sociedade como um todo. Não se questiona sobre as reais necessidades dos seres humanos dentro de determinado segmento de mercado. Olhando para o mercado, as organizações enxergam apenas segmentos (e não “classes”, termo que, segundo Hemais e Faria, 2015, foi banido da literatura) que se diferenciam em suas respostas a determinada mensagem, bem como em poder de compra, objetivos, aspirações e comportamento (Yankelovich & Meer, 2006). Falar em aspirações e objetivos das pessoas-consumidoras também parece sinalizar uma atenção quase “humanitária”, mas Hill e Martin (2014) apontam para uma outra realidade: o uso da linguagem e táticas de marketing, a segmentação entre elas, resultando numa visão restrita da humanidade das pessoas que falha em considerar de maneira mais abrangente suas necessidades e vidas (vide a descrição comparativa de uma consumidora feita por Hill e Martin, 2014 e reproduzida na introdução, que compara como a pessoa é na realidade e como o mercado a enxerga enquanto mera consumidora). Os autores acreditam que a linguagem e as práticas de marketing sempre se empenharam em comoditizar as pessoas (Kopytoff, 1986), seja tratando-as como processadores de informação (Chylinski, Roberts, & Hardie, 2012), como máquinas neurologicamente motivadas (Reimann, Castaño, Zaichkowski, & Bechara, 2012) ou como animais sociais (Liu, Smeesters, & Vohs, 2012). Isso atende aos interesses acadêmicos e à ambição das instituições em obter sucesso no mercado, mas contribui, ao lado de outros fatores, para a alienação das pessoas-consumidoras nesse mesmo contexto, bem como para o

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desenvolvimento de práticas gerenciais dissociadas de princípios morais e éticos (Hill & Martin, 2014). Vejamos, por exemplo, a questão das pessoas-consumidoras que formam o segmento conhecido como “base da pirâmide” (bottom of the pyramid, em inglês). Inicialmente, de acordo com os ensinamentos de Hemais e Faria (2015), os estudos sobre BdP (base da pirâmide) entre o final da década de 1960 e final dos anos 1970 refletiam uma preocupação com a assimetria de poder entre consumidores de baixa renda e grandes empresas. Tais considerações se dissipam com a ascensão do neoliberalismo e dos fundamentos de marketing nos meios acadêmico e empresarial e só são retomadas no contexto da globalização pósGuerra Fria, nos anos 2000. Nesse novo contexto, os consumidores de baixa renda (4 bilhões de pessoas) são encarados como “indivíduos economicamente menos favorecidos no mundo em desenvolvimento” (Hemais & Faria, 2015) que vivem como menos de dois dólares por dia. Fazendo uma conta rápida (Hill & Martin, 2014), temos US$ 2,00 x 365 dias x 4.000.000.000, representando um poder agregado de consumo que se traduz numa “fortuna” para empresas dispostas a adaptar suas ofertas (Hemais & Faria, 2015; Prahalad & Hart, 2002; Prahalad & Hammond, 2002). Atuando dessa forma, o marketing opera para construir um segmento homogêneo, rotulando-o, mas esquecendo de levar em conta os desafios e as realidades que as pessoas encaram cotidianamente. O relacionamento entre consumidores de baixa renda e empresas é tido como intrinsecamente benéfico para ambas as partes (Prahalad, 2006), porém essa realidade não se mostra como verdadeira face à expansão da desigualdade em escala global. Trabalhos como o de Hemais e Faria (2015) e Karnani (2007) apontam, respectivamente, para a retomada de considerações feitas pelos primeiros estudiosos sobre BdP, uma vez que o mundo em desenvolvimento carece de infraestrutura básica e determinados produtos, como telefones celulares, não resolvem os problemas das pessoas. Ao invés de considerar as pessoas na BdP como alvos exploráveis, perdendo uma perspectiva mais completa da sua humanidade, faz-se mandatório retomar as primeiras considerações feitas pelos estudiosos da fase do movimento consumerista (entre o final da década de 1960 e final da década de 1970), como o oferecimento de educação para que tais pessoas aprendessem a consumir, evitando a compra de produtos desnecessários, bem como a maior participação governamental no mercado (Hemais & Faria, 2015). Com relação ao uso da linguagem empregada pelo marketing, Hill e Martin (2014) sugerem que associações de marketing e subgrupos afiliados absorvam a evolução dos diálogos presentes em pesquisas publicadas visando desenvolver um extenso dicionário de termos e significados de marketing, com o intuito de que praticantes e acadêmicos compreendam melhor as pessoas que se pretende servir através do sistema de trocas (p. 20). 2.3. Seria a Segmentação de Marketing uma Prática Violenta? Leite, Pinto, Teixeira, Joaquim e Andrade (2015) chamam nossa atenção para as disfunções do marketing em seu trabalho. Os autores argumentam que como o marketing é submisso ao empirismo lógico, seu desenvolvimento tem como escopo maximizar a performance da atividade de negócios, distanciando praticantes e acadêmicos de questões sociais, bem como facilitando que pesquisas sobre comportamento do consumidor ignorem ou quantifiquem “questões como percepções, desejos, valores, sentimentos de uma forma mecanizada e desprovida de qualquer perspectiva humana” (p. 267). Tal pensamento também encontra amparo no trabalho de Tadajewski (2010) e Tadajewski e Brownlie (2008), bem como no de outros inúmeros autores que consideram o marketing como a menos crítica dentre as disciplinas negociais, reafirmando seu

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compromisso com o consumerismo e com o gerenciamento tecnocrático da sociedade (Alvesson, 1994; Alvesson & Willmott, 1996; Willmott, 1999 como citado por Tadajewski, 2010). Tadajewski (2010) também cita autores que consideram o marketing como nãohistórico (Fullerton, 1988), mas ressalta que seu entendimento sobre o que é o conhecimento crítico de marketing envolve o uso de alguma forma de teoria social, seja uma teoria crítica neo-Marxista, alguma variação do humanismo, feminismo, ou qualquer uma associada ao material referenciado pelas pesquisas de, por exemplo, Benton (1985a, 1985b), Burton (2001), Bradshaw e Firat (2007), Saren (2007) e Tadajewski e Brownlie (2008). Entende-se, contudo, que o marketing como operacionalizado por praticantes e muitas abordado dentro da academia se consolida como uma ciência instrumental (Leite et al., 2015), voltada quase que exclusivamente para a consolidação de sua ênfase gerencialista, tornandose sua principal característica identitária e afastando-o de preocupações com outros stakeholders em sentido mais amplo (Tadajewski, 2010). Acredita-se também que não se discute (ou discute-se muito pouco) dentro das organizações se o emprego das ferramentas de marketing promove melhorias, responsabilidade social e justiça distributiva (Dholakia, 1988). E se não se faz isso, é ainda menos provável que avente-se à possibilidade de uma abordagem ética, assim como propôs Benton (1985b), projetada para oferecer diretrizes normativas para acadêmicos e praticantes. A segmentação de mercado ao fazer emergir, delimitar e especificar alvos (targets), possibilita sugerir que sua atuação vai além da desumanização de parceiros de troca. Acreditase que da forma como é posta em prática, tal ferramenta desconsidera alteridades (Bouchet, 2015) e reifica (Kopytoff, 1986; Hirschamn & Hill, 2000) pessoas, falando-se em “alvos”, “clientes”, “consumidores”, “segmentos”, nunca em pessoas cujas vidas não podem ser reduzidas a estilos de vida ou sexo, faixa etária e renda anual. Acreditamos que, nesse sentido, as críticas à segmentação de marketing se aproximam, de certa forma, das críticas feitas por Ladson-Billings (2000) à epistemologia (entendida nesse contexto como um “sistema de conhecimento com lógica interna e validade externa”, p. 257) Euro-americana, que classifica como “uma forma eficazmente agressiva” (p. 257). A autora afirma que epistemologia e visão de mundo estão intimamente ligados, ou seja, estão relacionados simbioticamente. Nesse contexto, a hegemonia do paradigma dominante reivindica para si o título de única forma legítima de ver o mundo (p. 258), distorcendo as realidades dos outros num esforço de manutenção das relações de poder. Isso ocorre através da manutenção do que Ladson-Bllings (2000) denomina “grupos liminares” como alter ego do self ideal ou alteridade prescrito pelo modelo cultural dominante, baseado no ideário judaico-cristão ocidental. Percebe-se, então, que é o sistema de conhecimento hegemônico que atua de forma taxonômica definindo quem se encaixa como Outro, como alteridade, contrastando com as perspectivas próprias de quem se encontra nessa condição. Dessa forma, as realidades dos outros são distorcidas visando desfavorecer aqueles que se encontram fora do mainstream. A segmentação de marketing reflete o poder hegemônico e poderíamos até mesmo dizer que trata-se de uma relação assimétrica essa estabelecida entre organizações e pessoasconsumidoras. Da mesma forma que colocado por Ladson-Billings (2000), a segmentação constrói, como seu Outro (sua alteridade), segmentos internamente homogêneos de mercado segundo um sistema de conhecimento de marketing que, como vimos, pauta-se em dezenas de milhares de informações sobre as pessoas que são quantificadas, virando dados sobre raça, idade, sexo, grupo social ao qual pertencem, entre outras categorias. Até mesmo aqui desconsidera-se o fato de que tais segmentos são formados por pessoas cujas realidades e desafios representam uma miríade de formas de vida, ocultas sob sua descrição objetiva, por mais estatisticamente rigorosa e estreita que seja.



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Bouchet (2015) considera violência como uma desconsideração das alteridades, qualquer forma de desrespeito ao outro. A segmentação de mercado poderia, desta forma, ser tratada como uma prática violenta naturalizada, que contribui para a tomada de decisão de marketing, reproduzindo o discurso hegemônico de que aproxima as organizações das necessidades e desejos de segmentos com características homogêneas, com o objetivo de identificá-los e eventualmente satisfazê-los, resultando numa lucratividade maior para quem a adota. A transformação desta prática em princípio fundamental de marketing e a sua consequente "tecnicização" contribuem enormemente para a sua naturalização junto a profissionais de gestão. Por outro lado, poderíamos argumentar que, uma vez posta em prática, a ferramenta da segmentação, que pertence ao sistema de conhecimento de marketing, que, por sua vez, pode ser considerado como atemporal, acrítico e sem preocupações morais, seria uma violência quando encarada pelo ponto de vista das pessoas, não apenas daquelas que se tornam consumidores, bem como segundo aquelas que são excluídas (ou seja, sequer são vistas como alteridades, são simplesmente desconsideradas por completo), uma vez que não representam, de acordo com os dados coletados pelas organizações, targets ou potenciais consumidores de seus produtos. Tal entendimento sobre segmentação de marketing conforme praticada hoje nos remete, de certa forma, ao pensamento utilitarista associado ao marketing. Como já mencionado anteriormente, o marketing é considerado como uma ciência instrumental (Leite et al., 2015). Moura, Rossi e Pinto (2009) traçam uma comparação entre a medicina ocidental contemporânea e sua racionalidade clínica e marketing, tendo como pano de fundo a discussão sobre utilidade e o utilitarismo, que descrevem como círculos concêntricos, sendo o da utilidade o maior, externo, enquanto o utilitarismo seria o de menor raio (p. 42). Os autores consideram o marketing como uma tecnociência, assim como a medicina, sendo composto por uma dimensão procedimental terapêutica, na qual se encontra sua utilidade, e uma outra dimensão, denominada cirúrgica, na qual se encontram técnicas de intervenção funcional, “agressivas, invasivas e estruturais” (p.44). Moura et al. (2009) colocam que o marketing terapêutico, clínico/cirúrgico, seria um conhecimento de natureza técnica, interessado em determinados desfechos e pronto para intervir e controlar a realidade social e econômica, sendo, portanto, utilitário. Neste contexto, a transação/troca, “objeto ôntico por excelência da epistemologia de marketing” (Hunt, 2002 como citado por Moura et al., 2000), constitui-se como “fenômeno sobre o qual aplicar seus procedimentos ‘terapêuticos’” (p. 44). Indagam os autores, nesse momento, para a saúde e sobrevida de quem isso seria feito. Prosseguem aqueles, afirmando que ciência e técnica são atualmente inseparáveis e que disso decorre uma visão operatória da ontologia, vista “como um conjunto de processos contingentes e modificáveis, de acordo com os interesses utilitários dos patrocinadores da produção e do conhecimento” (p. 45). Assim, nos deparamos novamente com os ensinamentos de Ladson-Billings (2000), uma vez que o marketing, enquanto tecnociência, “transmuta-se em eficaz instrumento de legitimação do poder instituído, de reforço da dominação do homem pelo homem, através da dominação da natureza” (Habermas, 2006 como citado por Moura et al., 2009). Nos parece possível, nesse contexto, pelo menos questionar as motivações subjacentes à técnica da segmentação de marketing. Não pretende-se aqui bater o martelo sobre sua caracterização enquanto prática violenta naturalizada, mas espera-se abrir o caminho para futuras e mais profundas reflexões sobre o tema.



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3. Conclusão Até que ponto é possível pensar diferente ao invés de legitimar o que já é conhecido? (Foucault, 1992, p.9) O presente trabalho não pretende simplesmente rejeitar a estrutura conceitual da segmentação de marketing. Tendo como referência trabalhos como o de Lengler et al. (2002), Tadajweski e Brownlie (2008), Tadajewski (2010), Hill e Martin (2014) e Hemais e Faria (2015), busca-se aqui refletir sobre tal prática criticamente, analisando-a e repensando suas conseqüências (Foucault, 1984, p.45). Como bem coloca Monieson (1988), a não-reificação só pode ocorrer quando deixamos de lado nosso mundo simulado e confortável e o desintegramos, produzindo duvida e ceticismo sobre tudo aquilo que previamente foi considerado como dado e certo. Portanto, o objetivo aqui é olhar a segmentação sob um novo ângulo, questionar suas consequências na sociedade, uma vez que seu papel só é analisado enquanto técnica gerencial de tomada de decisões que busca maximizar interesses organizacionais e, em segundo plano, atender os interesses de uma parcela bem reduzida da população. A expectativa com o presente trabalho é instigar o ceticismo sobre a prática de segmentação de marketing, para que não continuemos a adotar e exportar tal sistema de conhecimento de forma acrítica. Em primeiro lugar, tenta-se cumprir tal objetivo caracterizando tal prática como desumanizadora, tarefa que fica um pouco mais fácil graças aos trabalhos citados ao longo deste artigo. E em segundo lugar, aventa-se a possibilidade de que, ao ser desumanizadora, excludente, ferramenta de um sistema acrítico, sem comprometimento com melhorias e responsabilidade social, de caráter tecnocientífico e, portanto, utilitarista, a segmentação também desrespeita as alteridades que ajuda a construir dialeticamente, como oposição a si mesma e ao sistema do qual faz parte. Deixa-se aberta a discussão sobre se esse desrespeito as alteridades pode ser ou não caracterizado como prática violenta naturalizada. Acredita-se, pessoalmente e segundo os ensinamentos de Bouchet (2015), que estamos frente a frente com uma prática violenta tão sutil, tão enraizada num sistema dominante de conhecimento tido como verdadeiro, que tornase difícil buscar elementos que sustentem essa caracterização. Espera-se que futuros trabalhos possam partir dessa reflexão, agregando conhecimentos e críticas construtivas que ajudem a desvendar esse “mistério”. 4. Referências Araujo, L., & Kjellberg, H. (2010). Shaping Exchanges, Performing Markets: The Study of Market-Ing Practices. In MACLARAN, P.; SAREN, M.; STERN, B. & TADAJEWSKI, M. Handbook of Marketing Theory (pp. 195-218). Los Angeles: Sage. Beane, T. P., & Ennis, D. M. (1987). Market segmentation: a review. European Journal of Marketing, 21(5), 20-42. Benton, R. (1985a). Micro bias and macro prejudice in the teaching of marketing. Journal of Macromarketing, 5, 43–58. ___________. (1985b). Alternative approaches to consumer behavior. IN: DHOLAKIA, N. & ARDNT, N. (Eds.). Changing the course of marketing: Alternative paradigms for widening marketing theory (pp. 197–218). Greenwich: JAI Press. Bouchet, D. (2015, March). What is Violence?. In Journal of Macrmarketing. Vol. 35, No. 1, pp. 148-148. Thousand Oaks: Sage.

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