Regulação local de infra-estruturas e direitos urbanos fundamentais

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Regulação local de infra-estruturas e direitos urbanos fundamentais Thiago Marrara Doutorando do Instituto de Política e Direito Público da Universidade de Munique (LMU), Alemanha Graduado e mestre em Direito do Estado pela USP. [email protected] Resumo: O presente artigo aborda a relação entre infra-estruturas de serviços urbanos e direitos fundamentais a partir da idéia de cidades coerentes. Em segundo lugar, define o que se entende por regulação local de infra-estruturas, buscando verificar em que medida as normas que compõem esse tipo de atividade reguladora estatal é capaz de ampliar o exercício de direitos nas cidades. Enfim, algumas normas que compõem o sistema de regulação local de infra-estruturas adotado no Município de São Paulo com a edição da Lei n. 13.614 de 2003 são discutidas de modo a ilustrar a hipótese apresentada. Palavras-chave: regulação local; infra-estruturas; cidades; direitos fundamentais Sumário: 1 Introdução - 2 A cidade, seus espaços e os direitos fundamentais - 3 A nova Carta de Atenas e as cidades coerentes - 4 A problemática das infra-estruturas de serviços nas cidades - 5 A regulação local de infra-estruturas na construção de cidades coerentes - 6 São Paulo: notas sobre um modelo de regulação local de infra-estruturas - 7 Conclusão Referências 1 Introdução O objetivo desse ensaio é duplo: inicialmente, busca-se verificar como as infra-estruturas de serviços urbanos de interesse geral (como água, energia elétrica, telefonia etc.) relacionamse com o exercício de direitos fundamentais e, por conseguinte, de que forma elas contribuem para a construção de cidades coerentes; em segundo lugar, pretende-se analisar o papel exercido pela legislação urbanística como um instrumento de gerenciamento do uso do espaço urbano para a implantação dessas infra-estruturas. O desenvolvimento dessa proposta dependerá, em primeiro lugar, de uma análise da relação entre os direitos fundamentais e a cidade. Pretende-se verificar como esses direitos se concretizam nos diversos espaços urbanos e como tais espaços os condicionam. A concepção de cidade como espaço de realização de direitos fundamentais será, em seguida, emoldurada pelo conceito de “cidades coerentes”, consagrado na Nova Carta de Atenas. Feito isso, serão então apontados alguns problemas que decorrem da instalação de infraestruturas no meio urbano para que, enfim, discuta-se um conceito de regulação local de infra-estruturas tomada como instrumento urbanístico, expondo-se as diretrizes e algumas regras que caracterizam o modelo adotado na cidade de São Paulo. 2 A cidade, seus espaços e os direitos fundamentais O desenvolvimento justo e equilibrado das cidades depende do emprego adequado de instrumentos urbanísticos, dentre os quais se incluem as normas jurídicas. Isso significa que

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o Direito, como conjunto de normas, regras e princípios, constitui um meio de efetivação de ideais urbanísticos. Por sua vez, o Urbanismo, como a ciência da cidade, permite que se compreendam as razões determinantes à não-implementação de direitos específicos, ou melhor, a relação entre os elementos espaciais do sistema urbano e a eficácia dos direitos – especialmente dos direitos fundamentais. Essa inter-relação entre Urbanismo e Direito também se encontra na descrição dos componentes que constituem um sistema urbano. Existe uma relação íntima entre direitos e espaços urbanos que influencia a formação e a estrutura territorial das cidades, determinando a divisão de seus espaços conforme certas modalidades de utilização. A compreensão da estrutura espacial do sistema urbano sob o enfoque jurídico não significa, porém, que esse ou aquele tipo de direito somente possa ser exercido em um ou outro espaço. Na verdade, existe apenas uma tendência de que certos direitos e liberdades sejam concretizados em espaços fechados e exclusivos, como o domicílio, enquanto outros sejam tradicionalmente exercidos em espaços públicos, abertos e de uso coletivo. Por força dessa tendência, é possível afirmar que a cidade se estrutura territorialmente sobre as propriedades urbanas e o domínio urbano. As propriedades urbanas são os espaços que se sujeitam à apropriação por um indivíduo ou por uma pessoa jurídica (empresas, associações e entes públicos na prestação de serviços). Sua marca essencial não se encontra na natureza pública ou privada do seu proprietário, mas fundamentalmente nas finalidades de seus mais diversos usos. Na propriedade urbana se praticam atividades de interesse privado ou empresarial e predominam os interesses particulares dos indivíduos ou de uma entidade. Por essa razão, funcionalmente, o espaço delimitado pela propriedade urbana se destina primordialmente à concretização do direito à intimidade, à vida privada, ao domicílio e à família.1 Destina-se, além disso, à realização das liberdades de empresa e trabalho, entendidas como liberdades econômicas. Em contraste com esses espaços, existem outros que estão predominantemente sob propriedade dos entes públicos e que se destinam à satisfação de interesses da coletividade. Esse grupo, aqui chamado de domínio urbano, compreende o domínio viário (ruas, avenidas, vias etc.) e as áreas públicas (como as praças e parques).2 Diferentemente do que ocorre com a propriedade urbana, o domínio urbano existe basicamente como uma condição para que os indivíduos exercitem os mais variados direitos culturais, sociais e políticos. Assim, a existência e a qualidade urbanística desses espaços estão intimamente relacionadas com a qualidade de vida na cidade (neste sentido, CYBRIWSKY, 1999, p. 224).

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Os direitos ao domicílio, à família e à vida privada estão previstos nos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos (artigos 17 e 23) e no de Direitos Econômicos, Culturais e Sociais, de 1966 (artigo 10), bem como em diversos dispositivos da Constituição Brasileira de 1988. 2

O domínio urbano assemelha-se ao urban public space, conforme empregado por CYBRIWSKY, 1999, p. 224.

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Estrutura da cidade: destaque dos elementos territoriais e físicos Atividades econômicas próprias População e culturas

CIDADE (sistema urbano)

Órgãos político-administrativos

SUPORTE TERRITORIAL E ELEMENTOS FÍSICOS

PROPRIEDADE URBANA: Terrenos, casas, prédios ligados a prestação de serviços e suas respectivas infra-estruturas.

DOMÍNIO URBANO: Domínio Viário, espaços públicos, redes de infraestruturas e equipamentos.

A interdependência entre a realização de direitos e os “espaços aparelhados” que compõem o domínio urbano pode ser compreendida pelas três funções urbanas e sociais3 que competem a esses espaços dentro da cidade, a saber, uma função provedora de acesso a serviços, uma função integradora e uma função de trânsito (MARRARA, 2005, p. 135). Os espaços urbanos cumprem uma função provedora ao fornecerem aos cidadãos acesso a diversos serviços. Isso se vê, quando se dispõem telefones públicos nas ruas ou quando as redes instaladas no domínio viário são utilizadas como intermediários físicos para a prestação de serviços que atendam a interesses individuais, tal como telefonia fixa e fornecimento domiciliar de água. A função integradora, por sua vez, revela-se à medida que esses espaços estimulam a socialização4 e a integração cultural dos indivíduos, além de autorizar o exercício de seus direitos civis e culturais de natureza coletiva, e seus direitos políticos fundamentais. Ao se realizarem encontros, reuniões, manifestações políticas e culturais, exposições e outros eventos em praças ou parques públicos os indivíduos interagem e se socializam. Trata-se aqui, porém, de uma integração informal, distinta daquela que ocorre pela atuação do indivíduo no mercado de trabalho ou por sua participação no funcionamento de instituições públicas (cf. GÖSCHEL, 2001, p. 5-6). Em terceiro lugar, o domínio urbano apresenta uma função de trânsito ou circulação, assim denominada pelo fato de que os espaços que o constituem são condicionantes da circulação de pessoas e animais, da distribuição e do consumo de serviços, e do transporte de objetos e mercadorias de uma localidade para outra. Essa função explica a razão pela qual o domínio urbano torna-se objeto de processos de racionalização5 e padronização espacial (SANTOS, 2002, p. 290). 3

O reconhecimento da função social dos bens públicos não é unânime dentro do direito administrativo. Aqui, no entanto, supõe-se que os bens públicos, inclusive o que constituem o domínio urbano, devam cumprir uma função social, ainda que de forma distinta da dos bens privados. A favor da função social dos bens públicos, cf. DI PIETRO, 1989, p. 56. Sobre a função social das redes de infra-estrutura, cf. MARRARA, 2003, p. 379 et seq. 4

A socialização está ligada basicamente a três fatores, a saber: interação cultural; domínio de um idioma; e afeto. “As pessoas, através da interação com outras, aprendem os padrões apropriados de comportamento; aprendem seus direitos, deveres e obrigações, e também quais as ações aprovadas e proibidas”. STEWART e GLYNN, 1978, p. 88 e GIDDENS, 2000, p. 63. 5

A racionalização consiste no “processo através do qual modos de cálculo e organização precisos, que envolvem regras abstratas e procedimentos, dominam cada vez mais mundo social”. GIDDENS, 2000, p. 708.

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De fato, a plena realização da atividade econômica não depende apenas da produção de bens e mercadorias ou da criação de serviços, mas sim do escoamento e do consumo desses bens e serviços pelo maior número de indivíduos. Neste contexto, por pressão de interesses econômicos locais e supralocais, o domínio urbano se transforma em um espaço de fluidez, um espaço de fluxos, através do qual bens e serviços são ou devem ser facilmente distribuídos para os cidadãos que se encontram na cidade.6 A despeito dessa problemática econômica, nota-se que a mera existência de um suporte territorial da cidade, dos espaços em si, e o reconhecimento teórico de suas funções sociais não é condição suficiente para que os indivíduos possam exercitar livremente seus direitos. As três funções do domínio urbano não se concretizam de modo natural ou automático na dinâmica urbana. Por isso, serve o planejamento e o direito urbanístico como método de transformação do território em espaços de direitos. Isso se dá a partir do momento em que os espaços sejam devidamente gerenciados de modo a não obstar a realização de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, de forma a ampliar o acesso dos cidadãos a serviços urbanos.7 Torna-se essencial controlar não somente o uso dos espaços, mas também a implantação de seus acessórios, ou seja, das redes e equipamentos de infra-estruturas sem os quais o espaço perderia grande parte de sua funcionalidade. A necessidade desse controle decorre do papel crucial das infra-estruturas de serviços urbanos para o consumo, a distribuição de serviços, a comunicação, o transporte e o conforto dos cidadãos. 3 A nova Carta de Atenas e as cidades coerentes Para melhor se compreender o papel da regulação de infra-estruturas no contexto urbano é relevante observar de que modo o Urbanismo encara a relação entre espaços e direitos a partir da idéia de “cidades coerentes”. Em 1933, sob influência de LE CORBUSIER, aprovou-se a primeira Carta de Atenas no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Nesse documento, imprimiu-se a idéia de cidades funcionais, buscando-se solucionar os grandes problemas das cidades industriais européias. A Carta pregava a divisão da cidade em zonas, nas quais se concentrariam estruturas vinculadas à moradia, ao trabalho e ao lazer, e a diferenciação entre o centro, com atividades político-administrativas, financeiras e culturais, e a periferia. Aproximadamente setenta anos mais tarde, tendo em vista a necessidade de se elaborar um documento que guiasse o desenvolvimento das cidades européias no século XXI, passou-se a discutir uma Nova Carta de Atenas. Os movimentos de elaboração desse documento se iniciaram em junho de 1994, por ocasião de uma Conferência proposta pela Associação Grega de Planejadores Urbanos e pela Municipalidade de Atenas.8 Além de se discutir os efeitos da antiga Carta de 1933, propôsse, neste momento, um documento que abordasse a situação e os problemas atuais e futuros das cidades européias e que apresentasse novas diretrizes de planejamento urbano.

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GRAHAM e GUY, 1995, p. 15-16, observam como as infra-estruturas são utilizadas pelas prestadoras para ganhar os melhores nichos de consumo, às vezes, inclusive, por meio de “social dumping”. 7

Sobre acessibilidade e equidade, TSOU, HUNG e CHANG, 2005, p. 426.

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O processo de elaboração do novo documento iniciou-se na Conferência “Em direção de uma Nova Carta de Atenas: da Cidade Orgânica à Cidade dos Cidadãos”.

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Assim, com base em um esboço preparado por especialistas de diversos países,9 aprovouse em maio de 1998, em uma nova Conferência, o texto definitivo da Carta, consagrando-se o ideal de “cidade coerente”, na qual se atingiria a harmonia visual e material dos elementos físicos urbanos e “a coerência entre as diversas funções urbanas, as redes de infraestruturas e a utilização das novas tecnologias de informação e de comunicação”. Conforme determina a Carta, “a cidade coerente do século XXI deverá procurar também a maior diversidade de oportunidades, de escolhas econômicas e de emprego para todos os que nela habitam e trabalham, e deverá assegurar um melhor acesso à educação, à saúde e ao maior número de equipamentos possível”. O conceito de cidade coerente decorre da necessidade de se reconstruir a coesão social nos espaços urbanos, superando-se problemas de exclusão social, racismo e conflitos civis. Para se construí-la, é preciso que o planejamento urbano e, por conseqüência, o direito urbanístico, como seu instrumento, considerem as diferenças e as desvantagens de certos grupos sociais em relação a outros dentro de cada cidade. O planejamento deve transformar a cidade em um espaço igualitário para seus habitantes e em um ambiente apto a integrar, social e culturalmente, novos cidadãos – uma cidade para todos. A Carta sugere a superação do planejamento simplesmente voltado para a forma física e para os problemas decorrentes do uso do solo e corrobora medidas político-administrativas que considerem os aspectos socioeconômicos da cidade. Assume importância uma visão de recriação urbana baseada na gestão dos aspectos físicos da cidade combinada com técnicas de revitalização econômica e engenharia social. Nesta linha, não apenas o estímulo ao emprego, como também ao acesso igualitário de todos os cidadãos às infra-estruturas e aos serviços urbanos devem ser preocupações centrais do planejamento urbano no século XXI.10 Em termos gerais, o planejamento urbano deverá ainda levar em conta os elementos espaciais da cidade, ou seja, sua localização, seus recursos físicos e naturais e sua estrutura, buscando resolver conflitos de interesses que surjam nesses espaços a partir do princípio da supremacia do interesse público. Segundo a própria redação da Carta, a concretização do(s) interesse(s) público(s) pressupõe a distribuição equânime de recursos e serviços urbanos entre os cidadãos.11 O acesso a serviços constitui, assim, um pilar fundamental dessa concepção de planejamento urbano.12 A gestão das infra-estruturas de serviços e de sua alocação no solo, subsolo e espaço aéreo das cidades tornam-se, assim, meios imprescindíveis para construção de cidades para todos. Além dessa interdependência entre cidades coerentes e infra-estruturas de serviços, afirmada na Nova Carta de Atenas, vale notar que, no Brasil,13 há uma vinculação teórica 9

O documento preliminar foi preparado por especialistas indicados pelo Conselho Europeu de Planejadores Urbanos: o francês CHARLES LAMBERT, o dinamarquês FLEMMING THORNAES, o grego ALEXANDER TRIPODAKIS e o inglês JED GRIFFITHS. A elaboração da Carta recebeu colaborações de especialistas da Alemanha, Bélgica, Chipre, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Polônia, Portugal, Reino Unido, Suíça e Turquia. 10

Item 3.6. da Nova Carta de Atenas.

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Itens 2.6, 2.7. e 1.8 da Nova Carta de Atenas.

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Cf. ZÉRAH, 1998, p. 285.

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Os princípios da Nova Carta de Atenas são também aplicáveis no cenário brasileiro, pois são compatíveis com a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade, o qual determina que as políticas urbanas devam garantir o uso sustentável do espaço e outros recursos urbanos e promover o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte, ao Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.01-15, abr./maio, 2007

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entre infra-estruturas e moradia digna. Entendida como o núcleo habitacional que disponha de instalações sanitárias adequadas e que seja atendida por serviços de interesse geral, tal como água, esgoto, energia elétrica, iluminação, coleta de lixo, pavimentação, transporte coletivo, educação e saúde,14 a moradia digna é o fundamento de uma cidade justa e, em razão de seus próprio conceito, depende inteiramente das políticas de gestão do espaço urbano e de implantação de infra-estruturas de serviços. 4 A problemática das infra-estruturas de serviços nas cidades A necessidade de se controlar e gerenciar as infra-estruturas no nível municipal, tendo em vista as dificuldades, interesses e objetivos de cada comunidade local, não decorre apenas de uma afirmação teórica sobre um modelo de cidade ideal para o século XXI. As infraestruturas de serviços, na sociedade de redes e no território dos fluxos de pessoas, serviços, mercadorias e informações geram diversos problemas que exigem especial atenção dos juristas e urbanistas. Na verdade, existem duas problemáticas distintas. Em primeiro lugar, há dificuldades que surgem de variações demográficas de uma ou outra área urbana. Em áreas de expansão populacional e territorial, presentes principalmente em países em desenvolvimento, o desafio urbanístico consiste em ampliar a oferta de infraestrutura de modo adequado a todas as camadas da população, enquanto, em zonas de retração populacional e de redução do uso de serviços, busca-se evitar que a subutilização de infra-estruturas instaladas gere, entre outras coisas, aumento nos custos dos serviços para os cidadãos, como já ocorre em algumas cidades alemãs.15 A par desta discussão, existe uma problemática que se pode dizer comum a diferentes áreas urbanas.16 Neste caso, as infra-estruturas de serviços se apresentam, por exemplo, como fontes de conflitos relativos à administração do uso do espaço urbano e à convivência ambiental. De fato, a alocação de redes e equipamentos urbanos na cidade envolve um conjunto de interesses econômicos e políticos que nem sempre são compatíveis. É possível que surjam disputas entre os entes político-administrativos municipais, responsáveis pela gestão do espaço urbano, e prestadores de serviços, interessados em instalar, duplicar, expandir ou remover suas infra-estruturas. No caso de Estados Federados, como o Brasil, a existência de um poder municipal de conceder ou não o uso do subsolo, solo ou espaço aéreo local para a instalação de infra-estruturas não somente condiciona a oferta de alguns serviços na cidade, como também compromete os objetivos políticos de outras esferas federativas, especialmente do governo federal. As dificuldades não se reduzem, porém, a possíveis limitações do uso dos espaços urbanos pelas prestadoras de serviços. Discute-se, ainda, se cabe ao Município cobrar das prestadoras de serviços pelo uso do domínio urbano, determinar regras técnicas para instalação das infra-estruturas ou exigir seu compartilhamento entre diversos prestadores. trabalho, aos serviços públicos e ao lazer para as gerações presentes e futuras. Não bastará, no entanto, o acesso a qualquer tipo de serviço, mas tão somente a serviços de qualidade, aptos a atenderem os interesses e as necessidades da população local. 14

O direito à moradia também aparece no art. 11 do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Culturais e Econômicos de 1966. 15

KOZIOL, 2004, em geral.

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MARRARA, 2003, p. 379.

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Nessas hipóteses surge uma tensão entre a autonomia municipal e a necessidade de se proteger o domínio urbano como um recurso comum local e, de outro lado, a imprescindibilidade desses recursos para o exercício de liberdades econômicas, o que os torna verdadeiras essential facilities.17 Sob o ponto de vista ambiental, os problemas mais comuns referem-se à convivência de infra-estruturas, aqui entendida como fonte de dois conjuntos de tensões: 1) uma tensão geográfica ou arquitetônica entre infra-estruturas instaladas e infra-estruturas que se deseja instalar no domínio urbano e 2) uma tensão entre o conjunto de infra-estruturas que aparelha a cidade e os cidadãos que nela habitam. Obviamente, essas tensões transformam-se em diversos conflitos de ordem jurídico-urbanística. Problemas de convivência urbana: 1ª TENSÃO: 2ª TENSÃO:

a) Infra-estruturas instaladas x Infra-estruturas instaladas b) Infra-estruturas instaladas x Infra-estruturas futuras c) Infra-estruturas instaladas x Interesses e direitos individuais d) Infra-estruturas instaladas x Interesses e direitos coletivos e difusos

Na primeira hipótese, existem incompatibilidades técnicas e geográficas entre duas ou mais infra-estruturas ou equipamentos, as quais podem comprometer a prestação de algum serviço ou a entrada de uma prestadora no mercado.18 Na segunda hipótese, a tensão surge pelo fato de que as infra-estruturas, como elementos do ambiente urbano, são capazes de alterar e, inclusive, de prejudicar o pleno exercício dos direitos fundamentais pelos indivíduos, por exemplo, do direito à locomoção ou do direito à moradia digna,19 e de agredir bens difusos e coletivos, como a saúde pública ou o equilíbrio do meio-ambiente urbano. 5 A regulação local de infra-estruturas na construção de cidades coerentes Essa ampla problemática urbanística gerada pela presença das infra-estruturas de serviços exige dos entes locais o desenvolvimento de políticas públicas e a respectiva edição de normas jurídicas capazes de conter seus efeitos nocivos e estimular seus efeitos positivos dentro da cidade. É neste ponto que assume relevância a regulação local de infra-estruturas, entendida como um conjunto de normas expedidas pelos Municípios ou outros entes locais com a finalidade de prevenir e solucionar conflitos que se originam da alocação, substituição ou remoção de infra-estruturas de serviços no território urbano. Em última instância, o “objetivo central da regulação e do controle sobre as infra-estruturas e os serviços a ela associados é garantir seu caráter efetivamente público”.20

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O domínio urbano pode ser analisado dentro da teoria norte-americana das essential facilities desde que seja considerado essencial e insubstituível para o exercício de atividades econômicas. Sobre essential facilities, cf. PITOFSKY, PATTERSON e HOOKS, 2002, p. 443-462. 18

As dificuldades de se compatibilizar infra-estruturas de serviços essenciais, como águas, energia, drenagem urbana e telefonia, surgem de modo mais comum em áreas que passaram por movimentos de urbanização sem qualquer participação do Estado, ou seja, de modo não-planejado – como ocorre nas favelas brasileiras. 19

Isso se vê, por exemplo, quando a instalação de infra-estrutura gera poluição sonora e ambiental incompatível com zonas residenciais ou quando a implantação não-planejada de infra-estruturas compromete a circulação dos cidadãos em certos trechos do domínio urbano, tal como ocorre em São Paulo, onde cabos e postes impedem, por vezes, o uso normal de calçadas e outras áreas do domínio urbano. 20

TOLEDO SILVA, 1999, p. 263.

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Assim como normas que protegem a concorrência e o meio-ambiente, as normas de regulação local assumem um caráter horizontal, pois permeiam as políticas setoriais, por exemplo, na área de energia, recursos hídricos e telecomunicações, conferindo um caráter orgânico à regulação pública em geral.21 Nos Estados federados, a regulação local surge como expressão de três atividades básicas que competem aos entes locais, aos Municípios, quais sejam: 1) o dever de planejar o desenvolvimento da cidade, ou seja, a tarefa de planejamento urbano; 2) o poder de polícia dentro de seus limites territoriais, o que lhes autoriza a controlar determinadas ações no âmbito da cidade com a finalidade de defender a segurança da coletividade ou outros interesses locais, como o meio-ambiente natural e construído, e 3) o direito de gerir os bens que estão sob sua propriedade, notadamente os bens do domínio público urbano, composto pelo domínio viário e pelas áreas públicas locais, como praças e parques. Em resumo, a regulação local de infra-estruturas urbanas é o conjunto de normas expedidas por entes políticos locais, nos limites de suas competências políticas, como resultado do planejamento urbano, do exercício do poder de polícia ou dos poderes inerentes à propriedade pública, e que tem como meta, de uma parte, a prevenção de conflitos ocasionados pelas infra-estruturas de serviços na cidade e, de outra, o estímulo à boa gestão desses objetos e do território urbano em prol dos interesses públicos locais. Sob o ponto de vista teórico, para que esses objetivos sejam atendidos, deve-se desenvolver um conjunto de normas que, respeitadas a distribuição das competências políticourbanísticas de cada Estado22 e as normas de cada setor econômico, disponham sobre: I)

o tipo da outorga23 de uso do solo, subsolo e espaço aéreo urbano para a instalação das infra-estruturas, tratando suas condições de expedição, preço e outras obrigações a cargo das prestadoras de serviços e dos entes locais. Na realidade, a questão do tipo de outorga é uma das mais importantes do ponto de vista econômico e urbanístico, porque condiciona o tempo de uso dos espaços urbanos, define as obrigações das prestadoras e orienta a tomada de decisões das prestadoras em relação aos investimentos que fará em redes e equipamentos nos limites de cada cidade;

II) o tratamento discriminatório entre prestadoras de serviços de interesse geral e interesse restrito, seja na preferência pelo uso do domínio urbano, seja na fixação de critérios diferenciados para a fixação do preço de outorga desse uso. A previsão legal da preferência pelo uso do solo, subsolo e espaço aéreo urbano por prestadores de serviços de interesse geral, como água, energia e telefonia, deve evitar que surjam conflitos de uso decorrentes da escassez de certos espaços ou conflitos entre infraestruturas existentes e futuras, principalmente em zonas não-planejadas, como favelas, ou em áreas que sejam objeto de reurbanização; III) a compatibilização entre os diversos usos dos espaços urbanos, buscando-se sempre conciliar as funções de circulação, de integração e de acesso do domínio urbano em favor da distribuição justa de vantagens e desvantagens pelos habitantes e pelo território urbano;

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TOLEDO SILVA, 1999, p. 272.

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Na Espanha, essa problemática foi abordada por RÍOS, 2001, especialmente a segunda parte.

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A outorga de uso assume várias formas jurídicas, inclusive dentro de um mesmo país. São exemplos de outorga de uso de bens públicos, as concessões, as permissões, as autorizações e, no caso das cidades, as licenças urbanísticas.

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IV) outros critérios de discriminação de uso do domínio urbano e de cálculo do preço de uso. Isso porque, nos países em que se permite a exigência de preços ou tributos pela utilização empresarial do espaço urbano para instalação de infra-estruturas, não se afigura adequada a cobrança que tenha por reflexo um aumento do preço do serviço, pois, a primeira vista, serviços mais caros seriam contrários aos interesses da coletividade local. Em outros casos, essa cobrança poderia gerar efeitos extraterritoriais. O preço do uso do espaço urbano em certa cidade poderia implicar um aumento no preço da tarifa de serviços de interesse geral para outras coletividades. Isso ocorreria se a fixação do preço dos serviços não se baseasse em critérios locais, mas sim regionais. Haveria, nesta hipótese, uma transferência indireta e indevida de recursos de uma comunidade para outra em virtude dos efeitos econômicos gerados pelas políticas de regulação local; V) normas técnicas sobre a instalação das infra-estruturas, operações de manutenção, remanejamento e remoção, tendo em vista, em primeiro lugar, a necessidade de se proteger o patrimônio e a segurança dos habitantes da cidade contra riscos causados pela existência de infra-estruturas em espaços de uso comum e, em segundo lugar, a busca de soluções para os mencionados problemas de convivência entre duas ou mais infra-estruturas urbanas em um mesmo espaço escasso, evitando, entre outras coisas, que a instalação de certas redes ou equipamentos cause danos físicos ou operacionais a outros já instalados; VI) sanções administrativas pelo descumprimento das normas de regulação local, incluindo não somente a possibilidade de aplicações de multas, mas também a possibilidade de intervenção do Estado na propriedade dos equipamentos e redes de infra-estruturas como medidas de proteção de interesses públicos. Assim, sempre respeitados princípios de cada sistema legal, é importante que se trate, entre outras coisas, da possibilidade de remoção emergencial de infra-estruturas frente a situações de grande risco ao meio-ambiente ou à população; VII) e, enfim, o relacionamento entre o ente local, as prestadoras de serviços de grande interesse urbano e os órgãos de regulação setorial de infra-estruturas, principalmente as agências e os Ministérios que disciplinam os setores de água, energia e telecomunicações em cada país. A comunicação entre as diversas esferas políticas é fundamental para que se organizem investimentos e se conciliem os interesses e os planos de desenvolvimento nos níveis local, regional e central, evitando medidas contraditórias ou ineficientes.24 Dentre todas essas normas, assumem fundamental importância as relativas ao tratamento especial das prestadoras de serviços de interesse geral, para quem o uso do domínio urbano para implantação de infra-estruturas supõe uma relação de inegável função econômica não somente para as próprias empresas (aumento dos mercados, expansão dos serviços etc.), mas também para os cidadãos, usuários atuais ou potenciais desses serviços (ampliação do acesso e aumento do bem-estar individual e coletivo). As redes e equipamentos vinculados aos serviços de grande utilidade pública são fundamentais para a construção de espaços de direitos e cidades para todos. Como objetos que permitem a concretização de direitos fundamentais e, portanto, como meios imprescindíveis à proteção do interesse público, tais infra-estruturas não podem ser geograficamente preteridas em razão de outras, vinculadas à realização de interesses 24

Na verdade, é mais adequado que esse sistema de relacionamento entre os entes políticos da Federação no campo urbanístico decorra diretamente de lei federal, tal como ocorre na Alemanha por força de algumas regras da Raumordnungsgesetz, que determinam a comunicação de atividades de planejamento urbano tanto na direção local-central, quanto central-local (Gegenstromprinzip).

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meramente particulares ou empresariais. Eis aqui um postulado do princípio da supremacia dos interesses públicos sobre os particulares, reconhecidos não somente em vários sistemas jurídicos por força do republicanismo, mas também na Nova Carta de Atenas. 6 São Paulo: notas sobre um modelo de regulação local de infra-estruturas Para se ilustrar o que vem a ser, na prática, a regulação local de infra-estruturas de serviços, vale tecer alguns comentários sobre as políticas adotadas na cidade de São Paulo, a maior e uma das mais complexas cidades brasileiras.25 Após longos debates e discussões acerca da problemática das infra-estruturas de serviços e, principalmente, a respeito dos efeitos de uma possível cobrança pelo uso do solo, do subsolo e dos espaços urbanos, chegou-se a elaboração da Lei Municipal no 13.614, de julho de 2003,26 a qual consagrou uma verdadeira política para o uso do domínio urbano por prestadoras de serviços privados ou de interesse geral.27 Essa política de uso dos espaços para a instalação de infra-estruturas guia-se e se sujeita a um amplo rol de diretrizes que visam: ordenar e otimizar a ocupação das vias e outros espaços; minimizar o impacto gerado pelas obras de engenharia; preservar a paisagem urbana, bem como proteger o meio-ambiente e a segurança da população. Tais diretrizes impõem resumidamente: 1) a economia no uso do espaço urbano, estimulando-se o compartilhamento interno e externo28 de redes e equipamentos, bem como a construção de galerias técnicas, nas quais várias infra-estruturas seriam concentradas espacialmente; 2) a proteção e a melhoria do meio ambiente urbano, impondo-se, entre outras medidas, a substituição de equipamentos e redes aparentes (instaladas no solo ou espaço aéreo) por subterrâneos e o emprego de métodos e tecnologias não-destrutivos na implantação, realocação e remoção de infra-estruturas; 3) a redução de desigualdades sociais, incentivando-se a criação de uma rede pública de transmissão de dados e a instalação de infra-estruturas de serviços urbanos essenciais em “regiões de interesse do Poder Público”, de modo a se expandir o acesso a esses serviços para áreas urbanas mais carentes e precárias, em benefício de grupos sociais de menor renda;29 4) o planejamento da gestão do domínio público urbano por meio do “mapeamento da cidade em base cartográfica digital única”, oficial e de uso público, e do controle prévio e posterior30 do uso dos espaços 25

Sobre o caso de São Paulo, em detalhes, cf. MARRARA, 2005, capítulo IV. Entre outros estudos sobre a implantação de infra-estruturas nas cidades brasileiras, cf.: DI PIETRO, 2005, p. 395-418; SUNDFELD, 2003, p. 20-31; VALLE FIGUEIREDO, 2003, p. 109-125; DALLARI, 2001, p. 29-52; VALLE FIGUEIREDO, 2001, p. 01-17; MACHADO, 2001, p. 1-13; MARQUES NETO, 1999, p. 97-110; GRAU, 1999, p. 343-356; FIGUEIREDO, 1999, p. 287-295. 26

A Lei “estabelece as diretrizes para a utilização das vias públicas municipais, inclusive dos respectivos subsolo e espaço aéreo, e das obras de arte de domínio municipal, para a implantação e instalação de equipamentos de infra-estrutura urbana destinados à prestação de serviços públicos e privados”. 27

A execução dessa política caberá basicamente ao CONVIAS, órgão da Secretaria de Infra-Estrutura Urbana de São Paulo, o qual será auxiliado por um colegiado composto por membros das Secretarias do Meio-Ambiente, Cultura e Negócios Jurídicos. 28

O compartilhamento externo ocorre quando prestadoras de serviços de dois setores distintos utilizam uma mesma rede ou equipamento, enquanto o compartilhamento interno envolve apenas prestadoras de um mesmo setor. 29

COUTINHO, 2002, p. 67.

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A fiscalização será efetuada pelo CONVIAS em conjunto com agentes das subprefeituras competentes e com os órgãos municipais de trânsito.

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urbanos para instalação de equipamentos e redes de infra-estruturas. Além desse rol de princípios, foram igualmente criadas técnicas de gestão de uso dos espaços urbanos para a instalação de infra-estruturas, incluindo a cobrança pelo uso desses espaços, a ser calculado de acordo com a área utilizada, a localização e a extensão das infra-estruturas, bem como pelo tipo de serviço prestado e as soluções tecnológicas adotadas (métodos menos danosos ao meio-ambiente urbano e possibilidade de compartilhamento das redes e equipamentos instalados). Entre tantos dispositivos da lei, os referentes à variação do preço pelo uso do espaço urbano e ao sistema de sanções administrativas adotado merecem especial atenção, pois são fortes instrumentos de direcionamento do desenvolvimento urbano. Para utilizar o preço pelo uso dos espaços urbanos com um instrumento de melhoria dos espaços urbanos,31 adotou-se, em São Paulo, um mecanismo de variação do preço de uso do solo, do subsolo e espaço aéreo, estimulando-se, com isso, certos comportamentos por parte das prestadoras de serviços públicos e privados. Caso a prestadora interessada em implantar suas infra-estruturas no espaço urbano construa galerias técnicas cujo espaço excedente possa ser utilizado por outras prestadoras de serviços ou, em outra hipótese, caso ela contribua para a implantação da rede pública de transmissão de dados, “disponibilizando espaço em seu duto ou rede, ou fornecendo os equipamentos de infra-estrutura urbana para sua instalação”, prevê-se a seu favor um abatimento de 30% sobre o valor total de sua retribuição mensal pelo uso do espaço urbano – benefício que poderá durar até dez anos, reduzindo significativamente os cursos fixos da empresa com a oferta dos serviços na cidade. O mesmo desconto será concedido pelos órgãos locais àquelas prestadoras que substituírem suas infra-estruturas aparentes por subterrâneas e também àquelas que estenderem seus serviços para áreas de interesse do Município. Neste aspecto, os benefícios financeiros visam claramente estimular as prestadoras a colaborarem tanto com a melhoria do meio-ambiente urbano, seja pelo lado estético, seja pelo aumento da segurança dos espaços, quanto com a redução de desigualdades sociais na cidade por meio da distribuição mais equânime das infra-estruturas pelo tecido urbano. A equidade espacial é, afinal, um dos pressupostos da equidade social,32 principalmente em sistemas urbanos onde os meios de transporte público são deficientes e insuficientes – a exemplo de diversas metrópoles latino-americanas. Valendo-se ainda do preço como estímulo financeiro, prevê-se que a prestadora de serviços que não substituir suas infra-estruturas aparentes por redes e equipamentos subterrâneos em áreas de reurbanização terá sua contraprestação pecuniária pelo uso do espaço público majorada em 33% (trinta e três por cento) ao ano. Além disso, caso os órgãos locais assumam os custos e a execução das obras mencionadas, a prestadora deverá assumir todos os custos financeiros, acrescidos de uma taxa de administração. Na verdade, como ao Município não cabe negar o uso dos espaços urbanos às prestadoras de serviços de interesse geral, tendo em vista que se trata de uma essential facility sem a qual certa atividade econômica não seria realizável e, por conseqüência, a qualidade de vida dos cidadãos locais restaria prejudicada, restou ao Município empregar tais regras de aumento do preço de uso do solo como uma medida de pressão sobre as prestadoras.

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Sobre as modalidades de cobrança pelo uso do solo, subsolo e espaço aéreo urbanos e seus pontos de tensão legal, cf. MARRARA, 2005, p. 231 e seguintes. 32 TSOU, HUNG e CHANG, 2005, p. 425. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.01-15, abr./maio, 2007

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Desta forma, os órgãos locais podem acelerar a realização de processos de urbanização e reurbanização essenciais para o desenvolvimento da cidade. Enfim, a concretização dessas políticas urbanas, como de qualquer política pública, não seria possível sem eficientes mecanismos de sanção. Isso significa que a concretização dos objetivos da regulação local de infra-estruturas torna-se mais provável caso os entes públicos disponham de medidas de correção direta ou indireta de atos indevidamente praticados pelas prestadoras de serviços no território urbano. Em São Paulo, as sanções pelo descumprimento da política de regulação local de infraestruturas de serviços incluem a aplicação de multa por metro linear de obra, a apreensão de materiais e equipamentos de infra-estrutura urbana, a inutilização ou remoção dos equipamentos de infra-estrutura e a suspensão da expedição de novas autorizações para novas obras de engenharia. O Poder Público, ademais, poderá determinar à prestadora de serviços que houver instalado infra-estruturas sem permissão a repor o pavimento e/ou mobiliário urbano afetado. Apesar de sua inegável utilidade, esse conjunto de sanções deve ser utilizado e interpretado com cautela pelas autoridades responsáveis pela execução das políticas urbanas. Há, por exemplo, restrições lógicas à remoção, apreensão ou inutilização de infra-estruturas vinculadas a serviços de interesse geral, uma vez que tais medidas poderiam comprometer o acesso a serviços essenciais por parte da população local. As infra-estruturas de serviços, como parte do domínio urbano, estão vinculadas a funções urbanas de circulação, integração e acesso que não podem ser limitados livremente pelos órgãos locais. O limite dessas sanções se encontra, portanto, nessas funções sociais e urbanísticas e nos direitos fundamentais dos habitantes locais. A inutilização e a destruição de redes e equipamentos de infra-estruturas instalados de modo irregular também encontram limites no direito de propriedade das prestadoras de serviços, por se tratar de um direito fundamental consagrado nos sistemas jurídicos de países capitalistas. Assim, a inutilização de infra-estruturas apenas deve ser aplicada como última medida em caso de urgente defesa do meio-ambiente ou da população, ou melhor, em hipótese na qual as infra-estruturas coloquem em risco direto os interesses públicos. A adequação das sanções também dependerá da verificação de possíveis falhas no planejamento urbano ou na atividade de controle prévio das infra-estruturas pelas autoridades locais. Ao se constatar omissão ou falha do Poder Público municipal em suas tarefas de planejamento, ficará mitigada a culpa da prestadora pela implantação indevida das infra-estruturas e, por conseqüência, deverá ser reduzida ou até excluída sua responsabilidade em termos jurídicos e financeiros. Enfim, as questões acima apontadas são apenas exemplos da problemática que cerca a regulação de infra-estruturas de serviços na cidade de São Paulo, mas que, de modo algum, nega a utilidade dessas políticas urbanas em nível local. O modelo paulistano demonstra que é possível desenvolver políticas locais eficientes contra a má-utilização de recursos comuns locais, especialmente dos espaços urbanos, equacionando-se disparidades na oferta espacial dos serviços em favor da maior igualdade social e mantendo-se o efetivo controle sobre o território – sem perder de vista a possibilidade de se incrementar o orçamento municipal com as receitas obtidas das prestadoras de serviços em função do uso do solo, do subsolo e do espaço aéreo. Essa experiência revela, sobretudo, que é possível utilizar o Direito como um efetivo instrumento na construção de cidades coerentes, quer pelo combate às externalidades negativas oriundas da implantação de infra-estruturas de serviços nos espaços urbanos,

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quer pelo direcionamento das atividades das prestadoras de serviços em benefício da satisfação dos interesses urbanos da comunidade local e da implementação de seus direitos mais essenciais. 7 Conclusão O presente ensaio buscou demonstrar como as infra-estruturas de serviços (redes e equipamentos) atuam de modo favorável, mas também pernicioso no processo de desenvolvimento de cidades coerentes, “para todos”, i.e., cidades nas quais não somente um grupo, mas todos os indivíduos devem exercitar plenamente seus direitos humanos mais básicos, sejam eles de natureza liberal ou social. Frente a esse ideal teórico, os governos locais devem entender as redes e os equipamentos urbanos vinculados aos serviços de água, energia, telefonia e outros serviços de interesse público tanto como fontes de problemas ambientais, urbanísticos, econômicos e jurídicos, quanto como uma condição para a criação de uma cidade de direitos. A partir desse reconhecimento, é necessário elaborar sistemas de regulação local das infraestruturas de serviços nas cidades como expressão do poder de planejamento, de polícia e de proteção da propriedade e dos espaços públicos. Objetivamente, a regulação local deve enquadrar um conjunto de normas (princípios e regras) capazes de reduzir as externalidades e os efeitos negativos decorrentes do uso do solo, do subsolo e do espaço aéreo urbano para instalação de infra-estruturas necessárias à prestação de serviços públicos e privados. A partir do panorama traçado sobre as diretrizes e as regras que disciplinam o preço de uso do solo, subsolo e espaço aéreo e as sanções pela indevida implantação de infra-estruturas de serviços na cidade de São Paulo, demonstra-se que existem instrumentos legais extremamente eficientes sob o ponto de vista urbanístico para controlar e corrigir esses efeitos nocivos e, ao mesmo tempo, direcionar as atividades das prestadoras de serviços em benefício dos interesses locais. Esses e outros instrumentos revelam, em suma, como o Urbanismo pode-se valer de ferramentas jurídicas para atingir seus ideais e objetivos, especialmente na construção de espaços mais equânimes e cidades mais coerentes, nas quais todos os indivíduos possam exercitar satisfatoriamente seus direitos humanos fundamentais, sem prejuízo da liberdade econômica das prestadoras de serviços e da sustentabilidade do meio-ambiente urbano;33 cidades nas quais os objetivos econômicos se harmonizem com os bens ambientais e com os interesses presentes e futuros da coletividade. Abstract: This essay aims at discussing the relation between local infrastructures of public utilities and fundamental rights taking into account the concept of coherent cities. Besides that, it brings a definition of local regulation of infrastructures in Brazilian Law and it analyses to which extent such public regulatory activity may widen the exercise of rights in cities. In order to illustrate such assumption, it discusses furthermore some norms provisioned by Lei n. 13.614 from 2003, which creates a local regulation system at the Municipality of Sao Paulo. Keywords: local regulation; infrastructures; cities; fundamental rights

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Sobre sustentabilidade urbana, HAUGHTON, 1997, p. 190.

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