Relatório sobre o Projecto Espiões de Filipa Francisco

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RELATÓRIO SOBRE PROJETO ESPIÕES DE FILIPA FRANCISCO

Lisboa, Teatro Maria Matos, 01/10/2016

Com Francisco Camacho, Miguel Pereira e Sílvia Real

Teatro Maria Matos, dois homens, uma mulher.
Em palco, encontram-se três painéis de madeira, verticais, com uma estrutura de ardósia e rodízios com travão onde os performers escrevem com giz, sentados no chão, de costas para o público, à medida que este entra na sala e se senta nos seus lugares. Levantam-se, escrevem, reescrevem por cima, com setas e riscos, de forma maquinal e repetitiva, evocando o caminho do ano 2016 em direcção a 2017. Apagam e tornam a escrever, numa espécie de palimpsesto, quer em Português quer em inglês, textos que inicialmente têm um sentido e que vão adquirindo outros bem diversos, depois de apagadas algumas palavras e excertos.
"BERLIN" torna-se "BE" (do verbo to be em inglês), rapidamente transformado num "BERLINDE", bem português, depois de acrescentadas as restantes letras. Num dos quadros, onde a mancha gráfica ocupa já a totalidade da superfície de ardósia, o performer começa a escrever em redor, tal qual uma moldura de letras, dando alguns saltos e pinotes, enquanto escreve a palavra "JUMP". Depois, apagam os quadros deixando, bem visível, uma questão principal: "What do you want me to be?"
Ouve-se música, excertos de composições dos anos sessenta e alguma clássica - fragmentos. A frase "mind the gap" do metropolitano de Londres ecoa repetidas vezes. O espaço onde se encontram os performers a escrever nos quadros é amplo, o palco é negro, com a iluminação a incidir sobre a zona dos painéis, há três linhas de pó branco do giz que cai, no sítio onde se encontram a escrever. Os fragmentos de música continuam. Viram-se para o público; a performer, que se situa no lado esquerdo do palco, faz gestos com os braços, Miguel, a meio, escreveu o seu nome no quadro, o mesmo que ostenta na t-shirt branca que usa, enquanto a performer (Sílvia Real) continua com os seus gestos e esboços de dança. O Miguel começa a trautear a música do Cabaret e imita, pretensamente, os passos da Liza Minelli. O terceiro elemento movimenta as mãos e os pulsos em sentidos contrários, ascendentes e descendentes e emite ruídos com a boca e os lábios imitando pássaros e beijos, num esquema e num ciclo repetitivos, ao mesmo tempo que eleva os joelhos como se marchasse sem sair do sítio.
De seguida, Miguel apresenta-se: "Olá, sou o Miguel, sou licenciado em economia, fui fazer um casting para dança e fui ficando", (apontamento de humor e crítica, a que se assistirá, de novo, mais adiante, aos programas tipo: "Achas que sabes dançar?").
O público ri-se.
O outro performer continua alheado e a movimentar-se. Empurram os painéis para o fundo do palco junto à cortina. O terceiro elemento (no lado direito) movimenta-se, rebola no chão, dança e começa a alargar o seu espaço de intervenção. Ela grita, mexe no cabelo, Miguel vai despindo várias t-shirts brancas que traz vestidas umas sobre as outras com anos diferentes (2000, 2011, 2016, 2017) e coloca-se na frente do palco, a meio, encarnando personagens de todos os continentes; falando em português, francês, inglês e espanhol, ironizando com o fenómeno global dos programas de dança aos quais acorrem concorrentes que, em determinado ponto, explicam como chegaram a bailarinos por acidente.
"Estou a estudar e a trabalhar nas obras para ganhar uns cobres".
Uma crítica explícita aos programas anteriormente referidos tipo "Achas que sabes dançar? ", aos concursos, à fama, à volatilidade e superficialidade. Empurram os painéis para o fundo do palco imobilizando-os com os rodízios travados. O elemento da direita começa a dançar até meio do palco, Miguel continua a despir t-shirts (2000, 2011…) e o discurso é o mesmo: de gente que diz que gosta de dançar e que explica como chegou ali. Sílvia Real, a performer, vai buscar um microfone e respectivo suporte, num subtil jogo com o anacronismo dos aparelhos de som de cassettes e cd's, onde põe música dos anos sessenta e noventa a tocar em pequenos fragmentos. O terceiro bailarino, Francisco Camacho, evolui em palco; ela pega no microfone e dá-lhe voz; ele grita e escreve. O Miguel, que ora é Miguel, ora Joachin ou outro qualquer, ora é Lisboeta, Francês ou Uruguaio, continua a falar.
Depois da dança, o terceiro elemento senta-se à secretária que se encontra à direita média do palco com um computador. O tempo evolui com essa simulação da sua passagem marcada pela alteração do suporte da música de cassette para cd e da escrita da ardósia para o computador. Os outros performers juntam dois painéis e formam uma superfície maior onde são projectadas frases e pedaços de textos sobre o quotidiano e a existência que o terceiro performer vai escrevendo no computador. A Sílvia veste uns folhos, e simula os passos de uma bailarina clássica. O Miguel fala da sua experiência da audição para a Pina Bausch, percorrendo todo o espaço do palco sempre ao fundo, em grande correria, a toda a volta, identificando o espaço e indicando o lugar onde foi fazer a audição tentando, assim, criar um quadro vivo.
"Aqui havia um aparelho. Aqui havia um varão e a Pina Bausch sentada numa cadeira a meio do palco".
Viraram os painéis que, por dentro, eram constituídos por uma barra semelhante ao de instrução e ensaio dos bailarinos onde ele se agarra a simular um pas de deux e inversões e descreve a cena: "O palco estava cheio de bailarinos, muito movimento e confusão e, quando fiz uma evolução, esbarrei num bailarino que tinha unhas grandes e me enfiou a mão no olho". Os companheiros levam-no para a direita alta do palco onde ele, deitado, vive as dores da altura, deram-lhe água, ventilaram-no, sopraram e abriu o olho e viu a Pina à sua frente.
E pronto!
Pelo menos não chegou a saber o que era a rejeição. De seguida, os três sentam-se perto do público e conversam sobre as suas experiências em relação a audições. Pintam um olho num painel, um olho grande, Miguel corre atrás da Sílvia com esse painel como um espião ou um crítico, em cima dela. Ela relata: "Vais a uma audição, gostam de ti e depois ligam-te: não arranjaram financiamento para a peça…" Evocam as rejeições quando os coreógrafos com uma ideia bem definida, procuram determinadas caras ou corpos para determinada personagem. Assistimos a três amigos sentados no chão a falar de rejeição, de como se conheceram, dos projectos. Levantam-se. A Sílvia faz o quadro do "idoso" e, para isso, mexe na sua expressão facial que apresenta, agora, as feições chupadas, e um queixo marcado pela falta de dentes. Abre os pés como os ponteiros do relógio "dez para as três" e arrasta-os, arrasta-se em pequenos círculos e semi-círculos em palco. Enquanto isso, vão escrevendo e apagando. Miguel fala na gravidade. Levanta um braço até meio do corpo, depois o outro e diz que resiste à gravidade, depois levanta uma perna e aguenta, mas não consegue levantar-se totalmente do chão. Descalça-se, segura um dos ténis, larga-o a meia altura e ele cai, segura o outro e acontece o mesmo. Tira os calções porque eles não caem sozinhos. Despe-se. Fica nu em palco. Ao fundo, no painel junto à direita alta, escrevem: Sentir-se exposto.
Miguel avança do meio do palco para a frente, perto do público da primeira fila e fita esse mesmo público, depois projecta o olhar no vazio e fica ali, hirto. Em seguida, corre, salta, dança e faz figuras ridículas. No painel do lado direito escrevem: "Relação do nu destrói o belo". (sentido do ridículo da sua dança?). Salta, brinca com os testículos, simula o acto sexual com um dos ténis que se encontra no palco, sobe e desce escadas entre o público. Dançam com os painéis (Miguel) empoleira-se num deles, dança e anda à roda todo nu. A Sílvia senta-se e observa, o Francisco Camacho também. Ambos "espiam" à vez. Conceito de espiar, diferentes formas de espiar. Ela, por sua vez, dança encostada ao quadro, mexe braços e pernas como se fossem asas, simula voos, simula ballet, as mãos cruzadas sobre a cabeça a mexer imitando o vôo das borboletas.
Pára de novo, encara-nos. Quer apalpar o nosso desconforto, a nossa reacção ao despojamento de si. Quem dança despe a alma, e pretende convocar-nos para essa entrega. Obriga-nos a ver, a rodar a cabeça, a participar. Espiamos o seu acto sexual com os ténis. Quando o Miguel faz o gesto das aspas a imitar uma concorrente de um qualquer programa tipo achas que sabes dançar é um mundo entre aspas, que é criticado. Veste-se. Deitam um olhar inquiridor ao público, movem-se em direcção aos bastidores, ouvimos as suas conversas sobre a performance; o esforço versus inspiração, as vozes ouvem-se mais sumidas e mais ao longe, a luz diminui de intensidade até se apagar. O último sentido que se esvai é o da audição e restamos nós, público, como espectadores/espiões das vidas, convocados para ficar à espreita, no escuro.
Fim.

50974 – Luís Alberto Gonçalves Bento
Este texto não foi escrito ao abrigo do novo Acordo ortográfico

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