Rosa não era uma Dália // A autobiografia de Rosa (tradução)

August 1, 2017 | Autor: I. Cardoso Martin... | Categoria: Gertrude Stein, Translation
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Rosa não era uma dália Inês Cardoso Martins Moreira

I am Rose my eyes are blue I am Rose and who are you I am Rose and when I sing I am Rose like anything I am Rose said Rose and she began to sing. I am Rose but I am not rosy All alone and not very cosy I am Rose and while I am Rose Well well Rose is Rose.1

Esses versos são do livro O mundo é redondo2, escrito por Gertrude Stein em 1938 e dedicado a Rose Lucie Renée Anne d´Aiguy, que tinha, na ocasião, nove anos e a quem Stein chama, em sua dedicatória, de “uma Rosa francesa”. “A autobiografia de Rosa”, por mim traduzida para este número da Revista Portfolio, é um estudo, feito por ela, para esse livro. Escrito em outubro de 1936, o texto se insere no conjunto de autobiografias steinianas, que teria início com A autobiografia de Alice B. Toklas (1933) à qual se seguiria A autobiografia de todo mundo (1937). Autobiografias aparecem também ao longo de The geographical history of America or the relation of human nature to the human mind (1935), obra na qual a escritora trabalha livremente com os gêneros literários, libertando-os das suas formas padronizadas. Neste livro, em dado momento, Stein passa a escrever microautobiografias que vai enumerando de modo propositadamente desordenado: “autobiografia I”, “autobiografia número II”, “autobiografia número III”, voltando, em seguida, para a “autobiografia número II”, à qual se seguem três autobiografias número I seguidas, por 1

Sou a Rosa tenho olhos os azuis / Sou a Rosa e quem és tu / Sou a Rosa e quando canto / Sou Rosa como tudo / Sou a Rosa disse Rosa e começou a cantar / Sou Rosa mas não sou rosadinha / Só e não muito aconchegadinha / Sou a Rosa e sendo Rosa / Bem bem Rosa é Rosa. (tradução de Luísa Costa Gomes) 2

Disponível em tradução portuguesa de Luísa Costa Gomes, publicada no volume STEIN, Gertrude. O mundo é redondo. Ilustrações Jorge Nesbitt. Tradução Luísa Costa Gomes. Lisboa: João Esteves de Oliveira Galeria de Arte Moderna e Contemporânea, 2009.

sua vez, de “Autobiografia um de novo”, sugerindo-se, assim, novos recomeços constantes para o seu exercício autobiográfico. Procedimento semelhante ao empregado no livro de 1935 será trabalhado por Stein na sua “Autobiografia de Rosa”. Nela o título voltará dez vezes, ao longo do curto texto, indicando possibilidades variadas de abordagem autobiográfica para uma única personagem. Se “A autobiografia de Rosa” se insere num conjunto de textos autobiográficos steinianos, o texto pode ser compreendido também como uma forma de retrato, outro dos gêneros característicos da escritora. Alguns desses portrait writings”, se acham traduzidos para o português por Augusto de Campos. Muitos deles foram publicados em 1989 pela editora Noa Noa no volume “Porta-retratos: Gertrude Stein”. Escolho dois deles para citar como exemplos, “Um retrato de um. Herry Phelan Gibb” ou “Se eu lhe contasse. Um retrato acabado de Picasso”, este último bastante conhecido na voz da própria Gertrude Stein (para quem nunca ouviu, há a gravação no site Ubu web: http://www.ubu.com/sound/stein.html). “A autobiografia de Rosa” faz parte também de um conjunto de textos reflexivos de Stein que versam sobre a questão da identidade; reflexões estas que foram expostas em palestras (“O que são obras primas e porque existem tão poucas”), em textos ensaísticos (The geographical history of America), em peças (“Dr. Faustus liga a luz”) e, é claro, em autobiografias (A autobiografia de todo mundo). Depois do sucesso da Autobiografia de Alice B. Toklas, o seu primeiro texto no gênero, Stein passaria a refletir, frequentemente, sobre a interferência do público no ato de escrever e sobre como a identidade — aquela construída pelo público para toda e qualquer celebridade —, atrapalha o próprio ato de criação. A questão da identidade será tema de reflexão também da menina Rosa de “A Autobiografia de Rosa”: Rosa “sabe que o nome dela é Rosa porque a chamam de Rosa”. A frase, como já observou Robert Bartlett Haas, espelha as reflexões contidas na fórmula steiniana “eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece”, usada pela escritora para problematizar a identidade criada pelo público. O cachorrinho, explicaria Stein em “O que são obras-primas e porque existem tão poucas”, é o público, mas para criar algo é preciso não se reconhecer como quem o seu cachorrinho diz a você que você é. E se o público de Rosa diz a ela que o nome dela é Rosa, por outro lado, Rosa sabe se desvencilhar dessa identidade criada para ela. E esquece que seu nome é Rosa ou esquece quem o seu público diz a ela que ela. Assim ela pode criar, desvencilhando-se do rótulo prévio que o público lhe atribui:

Rosa podia olhar para si mesma e quando ela via a si mesma e sabia que o nome dela era Rosa ela podia olhar para si mesma e não ver que o nome dela era Rosa. Ah ela podia sim. Ela podia ver que talvez o nome dela não fosse Rosa.

É possível notar, no caso desse personagem, outro desdobramento ainda para as discussões acerca da identidade nos textos steinianos. O que se dá a ver é a discussão em torno do nome, da própria ideia de nome: “se não a chamassem de Rosa será que o nome dela seria Rosa.” Na palestra “Poesia e gramática”, Stein discorreria mais longamente sobre a utilidade dos nomes: Um substantivo é um nome de uma coisa, ora já que uma coisa tem nome escreva sobre ela. Um nome é adequado ou não é. Se é adequado então porque continuar a chamá-lo, se não é então chamá-lo por seu nome não vale a pena. As pessoas se você gosta de acreditar nisso podem ser feitas por seus nomes. Chame qualquer pessoa de Paulo e acabará sendo um Paulo e chame qualquer pessoa de Alice e acabará sendo uma Alice talvez sim talvez não (...). As coisas uma vez nomeadas o nome não continua a fazer nada por elas e assim sendo por que escrever em substantivos. Os substantivos são o nome de qualquer coisa e limitar-se a nomear nomes está certo quando queremos fazer uma chamada, mas será que serve para alguma outra coisa. Decerto em alguns lugares da Europa e da América as pessoas gostam de fazer chamada.3

Se o nome não serve para mais nada a não ser para fazer chamadas, Stein propõe, em diversos de seus textos, que os personagens mudem de nome. É o que se pode observar em uma das versões do romance Ida: Você pode muito bem pode muito bem chamá-la de Bessie como chamála de Ida e se ninguém gostar disso você pode chamá-la de Emily. Talvez Henrietta seja melhor porque você pode dizer Henrietta não vai abandoná-la.4 Tradução do poeta Mário Faustino para a palestra “Poetry and Grammar”, de Gertrude Stein, publicada em 1957, no Suplemento Literário do Jornal do Brasil. 3

4

STEIN, Gertrude. “Ida” In: STEIN, Gertrude. How Writing is written. The previously uncollected writings of Gertrude Sten, v.2. Edited by Robert Bartlett Haas. Los Angeles: Black Sparrow Press, 1974. p.43-47 (tradução minha)

Diferentemente de Ida e de outras figuras steinianas, a autora não sugere, todavia, um nome alternativo para Rosa. Rosa não é só o nome da menina Rosa. Rosa é também a flor rosa, remetendo a figura de Rosa para a flor rosa do famoso verso “Rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”. E, nesse caso, então, é preciso afirmar que a Rosa é a Rosa e não outra flor qualquer, como observa Stein em O mundo é redondo: “Rosa era uma rosa, não era uma dália, não era um ranúnculo-mata-boi (que é amarelo), não era um brinco-de-princesa nem um aloentro espirradeiro.” É possível voltar também ao verso “Rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa”, que apareceria pela primeira vez em “Sacred Emily” (1913), e voltaria a ser empregado em diversos textos de Stein, surgindo mais uma vez em O mundo é redondo. “A autobiografia de Rosa”, não é, portanto, apenas o retrato biográfico da menina Rose Lucie Renée Anne d´Aiguy, mas pode ser vista também como a biografia do próprio verso steiniano, que atravessa toda a sua obra, verso esse que aponta para o seu diálogo com Shakespeare. Rosa não pode ser uma dália, ao contrário de Ida que pode ser uma Bessie, porque se Rosa fosse uma dália, não haveria diálogo possível com os versos shakespearianos extraídos da peça Romeu e Julieta, que cito a seguir: “Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com outro nome exalaria o mesmo perfume tão agradável”5. Se Shakespeare afirma que a rosa teria o mesmo cheiro mesmo se o seu nome não fosse rosa, Stein, em resposta a ele, indaga: “Se o nome dela é Rosa, será que Rosa é a natureza dela”, confundindo, aí, o nome próprio da menina, a cor rosa e a flor rosa. Num diálogo com Shakespeare que prossegue em toda a sua obra — e a cada volta da imagem da rosa. Stein segue assim refletindo sobre os nomes, sobre a natureza humana, sobre a identidade. Como fez na micropoética em que se constitui a sua “Autobiografia de Rosa.”

5

SHAKESPEARE, William. “Romeu e Julieta” In: SHAKESPEARE, William. Tragédias. Traduções de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

A AUTOBIOGRAFIA DE ROSAi (Gertrude Stein. Tradução de Inês Cardoso Martins Moreira) Como ela sabe que o nome dela é Rosa. Ela sabe que o nome dela é Rosa porque a chamam de Rosa. Se não a chamassem de Rosa será que o nome dela seria Rosa. Ah sim ela sabe que o nome dela é Rosa. Essa é a autobiografia de Rosa. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA Rosa sabia o que era sentir medo e quando aconteceu ela sabia o que era sentir medo. O que aconteceu foi isso. Grama que é cortada é feno. Lá tem sol Aqui tem neve Lá tem um garotinho Aqui tem uma garotinha Lá o nome dele é Allan Aqui o nome dela é Rosa Isso é interessante. Rosa tem uma autobiografia mesmo que o nome dela não seja Rosa. Vamos fazer de conta que o nome dela não é Rosa. E se o nome dela não é Rosa qual seria a autobiografia dela. Não seria a autobiografia de Rosa porque o nome dela não seria Rosa. Mas é a autobiografia de Rosa mesmo se o nome dela não é Rosa ah sim é sim é a autobiografia de Rosa. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA O que aconteceu. Feno é grama quando é cortada. Feno não tem nada a ver com água. Pântanos têm a ver com água mas feno não.

Mas quando o feno está na encosta de uma colina e há água. O feno pode estragar a água. E Rosa, Rosa com o seu pai e a sua mãe pode ser apanhada por toda essa água mas Rosa e sua mãe e seu pai foram apanhados por toda essa água. Isto é a água foi embora. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA Ninguém deixava de lembrar que o nome dela era Rosa. E se o nome dela era Rosa teria isso algo a ver com jogar damas e levar surras da avó, ah não isso não tinha nada a ver com o nome dela ser Rosa. Rosa sabe sim a diferença entre verão e inverno e isso tem algo a ver com o nome dela ser Rosa. Isso tem algo a ver com o nome dela ser Rosa. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA Rosa podia olhar para si mesma e quando ela via a si mesma e sabia que o nome dela era Rosa ela podia olhar para si mesma e não ver que o nome dela era Rosa. Ah ela podia sim. Ela podia ver que talvez o nome dela não fosse Rosa. Se Rosa era o nome dela será que Rosa era a natureza dela. Ela não sabia a diferença entre Rosa e Rosa ao menos ela disse que não sabia a diferença entre Rosa e Rosa. Ninguém disse. Ninguém faz diferença alguma em o nome dela não ser Rosa. Rosa é o nome dela foi isso o que ela disse. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA É mais alto ser mais alto. É mais velho ser mais velho. É mais jovem ser mais jovem. É mais velho ser mais velho. É mais alto ser mais alto. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA Uma pena de vidro ah sim uma pena de vidro.

Será que Rosa ia preferir um cachorrinho chamado Pépé ou uma pena de vidro. Uma pena de vidro não escreve muito bem e um cachorrinho chamado Pépé não se deixa acariciar muito bem, então no final das contas não há escolha não há escolha entre um cachorrinho chamado Pépé e uma pena de vidro não há escolha para Rosa porque nem um nem outro não ofereceram a ela nenhum ah não não ofereceram a ela nem um nem outro. A autobiografia de Rosa a quem não ofereceram nem um nem outro. Se não ofereceram a ela nem um nem outro o que é a autobiografia dela. A autobiografia dela não é sobre não terem oferecido a ela nem um nem outro. Não é não. Mesmo que não tenham. E agora preparem-se todos. Vão oferecer um a Rosa. Qual deles. Qual deles será oferecido a Rosa a pena de vidro ou um cachorrinho chamado Pépé. Qual deles. Este aqui. E qual é este aqui. Ah qual é este aqui. Essa é a autobiografia de Rosa, qual é este aqui. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA Quando Rosa era jovem ela é jovem agora mas quando Rosa era jovem. O quanto Rosa precisa ser jovem para ser jovem. Ela era jovem ela é jovem, ela era muito jovem ela é jovem o bastante para ser jovem. O quanto você precisa ser jovem para ser jovem. Sete anos é muito jovem, e ela sabe tudo sobre ser jovem o suficiente para ser velha para um cachorro mas não velha para Rosa. Sete não é velha para Rosa mas será que é jovem. A autobiografia de Rosa é que ela era jovem. E quando ela era jovem ah sim quando ela era jovem ela disse que ela tinha sido jovem e que é bem certo que ela tinha sido jovem. Estaria ela se lamentando de ter sido jovem tão jovem, estaria ela se lamentando de alguma coisa. Se ela estava se lamentando de alguma coisa ela não era jovem, o quanto você pode ser jovem para ser jovem. Toda vez que Rosa era jovem ela era jovem. Toda vez e toda vez era toda vez. E agora. Toda vez é toda vez. E Rosa é jovem. Será que Rosa tem uma autobiografia. Rosa tem uma autobiografia. Será que ela tem uma autobiografia de quando ela era jovem. Rosa tem uma autobiografia de quando ela era jovem. Um jardim e um jardineiro são duas coisas para Rosa. E então uma coisa segue outra. Uma escola sucede um jardim. E um jardim sucede uma escola. E mais tarde mais tarde sucede um jardim. Mais tarde nunca soa mais jovem. Ó não ó céus não.

Mais tarde nunca soa mais jovem. Mais velho até aqui. Não tem mais velho e não até aqui. E assim não tem mais velho até aqui. Deste modo mais velho não segue mais tarde. E não até aqui. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA Lá fora agora não tem Rosa alguma embora no inverno sim no inverno frequentemente no inverno quase tão frequentemente quanto no inverno tem uma Rosa. E como o outono não segue o inverno, o outono vem primeiro e como a primavera muito frequentemente não segue o outono o inverno vem primeiro e como o verão muito frequentemente vem depois qual é o problema de Rosa saber bem isso. Ela bem sabe isso bem. Essa é a autobiografia de Rosa não que ela saiba isso bem. Se ela soubesse a diferença entre o verão e o inverno e a primavera e o outono ela saberia isso de cara, o que ela muito frequentemente sabe e o que ela muito mais que frequentemente sabe. De modo geral não. Rosa tem só uma autobiografia. Essa é a autobiografia de Rosa. A cada instantezinho ela não se descuida de ser mais alta não mais velha. A cada instantezinho ela não se descuida. De ser mais alta. Não mais velha. A AUTOBIOGRAFIA DE ROSA. Rosa. Do que ela pode se lembrar. Pode ela se lembrar de Rosa. Será que ela pode. Eu fico pensando. Para Rosa. Quando lhe perguntaram se ela ia ser boa, ela disse que ela ia saber tudo sobre isso de todo modo, e de todo modo ela pode saber tudo sobre isso. O que é um prazer para sua amiga, Gertrude Stein. 1937 STEIN, Gertrude. “The autobiography of Rose” In: STEIN, Gertrude. How Writing is written. The previously uncollected writings of Gertrude Sten, v2. Edited by Robert Bartlett Haas. Los Angeles: Black Sparrow Press, 1974. p.39-42 i

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