Scott Pilgrim contra o Mundo - A trilha sonora como elo da narrativa intertextual.

May 23, 2017 | Autor: Luan Oliveira | Categoria: Soundtrack Studies, Multimedia, Intertextuality, Scott Pilgrim
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Descrição do Produto

Escola de Comunicação/ UFRJ
Trilha Sonora
Professor: Ivan Capeller
Aluno: Luan de Souza Oliveira
Matrícula: 114166974






Scott Pilgrim contra o Mundo
A trilha sonora como elo da narrativa intertextual.
































"Scott Pilgrim contra o mundo" é um filme de Ação/ Comédia/ Fantasia lançado em 2010, dirigido por Edgar Wright. O roteiro, assinado pelo diretor em parceria com Michael Baccall, é uma adaptação de uma série de quadrinhos da autoria de Bryan Lee O'Malley, lançados entre Agosto de 2004 e Julho de 2010 pela editora canadense Oni Press. James Boyle foi o designer de som e Nigel Godrich assinou a trilha sonora, mas diversos nomes de peso do mundo da música ajudaram nas composições, como Nigel Godrich, Beck, Metric, Broken Social Scene, Cornelius, Dan the Automator, Kid Koala, e David Campbell.
Scott é um rapaz despreocupado e sem muito rumo na vida, que toca baixo numa banda e divide um apartamento com seu amigo Wallace. Quando começa a namorar Ramona Flowers, Scott acha que tirou a sorte grande. Entretanto, ele logo descobre que para poder ficar com a moça, terá que vencer seus sete ex-namorados do mal, desafio que se entrelaça com a Batalha das Bandas na qual seu grupo está inscrito.
A história é construída em cima de uma série de referências de cultura pop permeando os anos 2000 e parte da década de 90, e a trilha sonora é utilizada durante todo o filme para aproximar os significados de elementos distintos.
As relações com os videogames são as mais claras de se perceber: os aspectos da trama de maturação/ coming-of-age se baseiam numa estrutura de jogo de luta de fliperama, como "Mortal Kombat" ou "Street Fighter", no qual o protagonista enfrentava diversos adversários seguidos, aumentando sua experiência e força de vontade. As referências estão até nos menores detalhes. Por exemplo: quando Wallace se cansa de Gideon e orienta Scott a acabar com o rival, fala "finish him", a clássica sentença presente em todos os jogos da série "Mortal Kombat", entoada quando um jogador está prestes a aplicar uma combinação fatal de golpes sobre o inimigo. Além disso, diversos elementos visuais de jogos de baixa resolução estão presentes ao longo do filme, de maneira diegética ou ambígua. Quando Gideon aceita o desafio de Scott e desembainha sua espada, dando início à luta, uma "barra de vida" gigante, própria de "chefões" de videogame, surge na parte inferior da tela. O mais claro exemplo disso é a "vida extra" que Scott ganha depois de derrotar uma banda rival pela Batalha das Bandas. A vida extra é um desenho "pixelado" da cabeça de Scott (numa referência ao quadrinho base) que surge flutuando e girando ao lado do protagonista. Quando ele "pega" a vida, seus colegas de banda perguntam o que ele está fazendo. Ele responde "getting a life", uma expressão corriqueira da língua inglesa dita quando alguém decide "começar a viver uma vida mais completa e interessante", que ganha nesse contexto um significado literal, além do figurado. Essa vida extra é usada mais à frente no filme. Um exemplo de efeito possivelmente adiegético é a "barra de xixi", similar a barras de "vida" ou "magia" de videogames, que aparece no fundo do banheiro quando Scott usa o toalete, e se esvazia enquanto ele "se alivia". Não é possível saber até que ponto o efeito é adiegético, entretanto, pois o reflexo da barra aparece no espelho sobre a pia do banheiro.
O filme é ambientado numa atmosfera underground alimentada pela cultura musical de bandas independentes, lojas de álbuns e filmes de baixo orçamento. Entretanto, a maior referência é aos quadrinhos independentes, principalmente à obra-base. O filme começa com um "recordatório", corpo de texto usado para situar o leitor (no caso, a audiência) quanto ao estado da história no momento em que começa a ser contada. Esse recordatório é narrado por uma voz em off. Quadros pretos com letras brancas são usados durante o filme para "etiquetar" certos itens, como o que pertence a Scott e o que pertence a Wallace na quitinete que dividem - assim como o são nos quadrinhos de O'Malley. Quando Todd diz que "não sabe o que significa 'incorrigível'" um quadro aparece ao seu lado relatando que "ele realmente não sabe". Ao longo do filme, diversos gráficos de onomatopéias surgem acompanhando ações como socos, impactos e cliques. Em determinado momento, Scott toma um soco e voa na direção do céu: seu grito é composto de letras "A" que diminuem de tamanho à medida que ele e o som de sua voz também diminuem, em sua trajetória ascendente. Quando Gideon diz que ama a Sex Bob-Omb (a banda de Scott), um rabisco escrito "pee" (xixi) aparece, com uma seta apontando para as calças de Stephen Stills, o líder da banda, cujo sonho era assinar com uma gravadora e ter sucesso como a banda.
As referências aos quadrinhos se mesclam ao enfoque musical quando, por exemplo, as bandas se apresentam durante o filme. Na abertura do filme e na primeira batalha das bandas, as músicas são acompanhadas por símbolos que emanam das bandas, que se movimentam para longe e para perto, no mesmo ritmo da música tocada. Os símbolos se aproximam da denotação visual de histórias em quadrinhos que simboliza sons saindo de caixas de som. E esses símbolos são tematizados: quando a Sex Bob-Omb toca, raios holográficos surgem de seus corpos, pois sua música é elétrica. A Crash and the Boys tem um som mais voltado ao emocore, e os símbolos que acompanham suas músicas são mais associáveis a essa tribo urbana: caveiras, estrelas e corações partidos. Na segunda batalha de bandas, a Sex Bob-Omb conjura um gorila holográfico elétrico que combate o dragão de duas cabeças da banda rival, que toca um som eletrônico mais frio, dando ao seu avatar poderes de gelo. Em suma, o filme é uma mistura visual dinâmica de videogame e revista em quadrinhos.
Ao longo de todo o filme, o som é um item vital para a integração da história com os elementos exóticos escolhidos pelo diretor. As lutas são cheias de sons artificiais de deslocamento de ar e impactos associados aos golpes, sons estes similares aos de jogos de luta. Quando Scott acaba com seus inimigos, ouve-se o "K.O.", o anúncio de nocaute que encerra lutas de videogames. Ao morrer, os vilões explodem em nuvens de moedas, acompanhadas do som tilintante associado a moedas de jogos de baixa resolução. Quando Scott desafia Todd para uma batalha de baixos, só o que os personagens conseguem ver é uma série de "D"s surgindo do buraco escuro onde o protagonista foi arremessado, uma referência a nota ré repetida que Scott toca no baixo. Onomatopeias gráficas acompanham suas contrapartes sonoras, desde os golpes nas lutas até detalhes aparentemente desimportantes. Quando Scott liga a luz em determinado momento, por exemplo, um "click" escrito surge sobre sua mão no interruptor. A onomatopeia surge de súbito, em ressonância com a ação, mas some gradualmente, como se dissolvesse no ar, tal qual o som.
O filme não faz esforço para esconder uma certa auto-consciência quanto à sua realidade de cinema e, mais que isso, adaptação cinematográfica de um quadrinho sobre videogames. A produção se vale de táticas metalinguísticas para deixar claro que sabe o que está fazendo. Desde os recordatórios usados à guisa de introdução ao filme e ao show da Clash at Demonhead, passando pelas inscrições sobre a projeção. Quando Julie Powers, a colega de trabalho de Stacey, xinga, uma tarja aparece sobre sua boca, e o som se torna embaralhado: Scott repara e pergunta como ela faz aquilo. Quando Scott fala sobre seu último término de relacionamento, enche a narrativa de eufemismos, mas nas pausas entre as falas uma narração em off alinhada a uma animação sobre a tela revelam as verdades quanto à história. Em determinado momento, Scott diz algo constrangedor e Kim faz uma arma de dedos e finge dar um tiro na própria cabeça, simulando inclusive a queda ao chão. Entretanto, enquanto vemos uma onomatopeia gráfica de "blam" surgir ao lado oposto daquele no qual ela colocara as pontas dos dedos, o som utilizado é o de uma pessoa imitando com a boca o som do engatilhar e do tiro. Na luta final, quando Scott e Knives se unem para acabar com Gideon, a cena é acompanhada pela trilha sonora do videogame que os dois jogavam no começo do filme.
Em diversos momentos, o som do filme é elaborado de forma a sobrepor elementos secundários ao primeiro plano dos acontecimentos, fazendo esses dois âmbitos da narrativa se mesclarem e se confundirem. O centro das atenções e o ambiente ao seu redor perdem um pouco da fronteira entre si. Quando Lucas Lee explode ao fim da segunda luta, ouve-se diretor do filme que estava sendo filmado nas redondezas falar "that's a wrap, everybody" (jargão clássico usado quando acabam as gravações de uma cena ou do filme inteiro): não se sabe se ele testemunhou a morte de seu ator principal ou se apenas acabava uma cena enquanto a luta se descortinava, mas a inserção pontual da fala deixa claro que aquele segmento do filme se encerrou. Da mesma forma, o diálogo tenso de Scott com Envy na cafeteria é acompanhado do som de água fervendo, e os diálogos na Rockit, a casa de show da primeira batalha de bandas, são pontuados por sons típicos do ambiente, como microfonias quando personagens trocam olhares tensos. Assim, sons dos ambientes são usados para sublinhar elementos visuais não relacionados diretamente.
O roteiro, a montagem e a fotografia contribuem para essa ambiguidade entre som paralelo e desenrolar visual. Enquanto Stephen sofre com o medo da apresentação, repete "isso é ruim, isso é péssimo" várias vezes. No próximo plano, do ponto de vista de Scott, vemos a moça pela qual ele está apaixonado conversando com a namorada com quem ele ainda não terminou. A mensagem é clara: Scott e Stephen estão preocupados com coisas distintas, mas o primeiro sente seu medo em silêncio enquanto o segundo extravasa-o torrencialmente: suas falas expandem a cena temerosa que Scott visualiza. Sua obliviedade à preocupação de Stephen é demonstrada na próxima sequência, quando a voz do vocalista da banda é abafada enquanto ele tenta chamar sua atenção. O abafamento não é o suficiente, entretanto, para ignorarmos a urgência em suas palavras, acentuada pela expressão do personagem. Complementarmente, suas falas são acompanhadas por textos brancos sobre a tela que aumentam de tamanho à medida que seu desespero cresce.
Alguns minutos depois, Wallace hostiliza a Crash and the Boys e estes dedicam a ele sua próxima música: "We Hate You, Please Die" (Nós te Odiamos, Por Favor Morra). Wallace, com os olhos fixos no palco, diz "love this one" enquanto coloca a mão sobre o braço do namorado de Stacey, por quem tem interesse. Mesmo sons completamente adiegéticos são usados para aplicar significado nas ações da tela. Quando Scott diz que seu término com Knives correu bem, ouve-se distintamente um "no" (não) prolongado e sofrido na voz da jovem. Quando Scott discute com Stacey e Wallace no mesmo telefonema, o movimento da boca de seu vizinho de quarto é sincronizado com o som de sua voz através da linha, apesar dele estar no mesmo cômodo que o protagonista, cuja voz é escutada sem filtros. Essas sobreposições ajudam a dinamizar o filme e aumentar a atenção da audiência.
O alinhamento entre roteiro, direção, montagem e som é vital nas apresentações musicais. Durante o show da Clash at Demonhead, há uma tensão no ar entre Scott, Ramona, Envy e Todd, um quadrilátero amoroso. Um compasso quaternário fortemente marcado pela banda separa os versos da música, cantado com pouco acompanhamento instrumental. Quando essas marcações ressoam, a tela se divide entre Scott e Envy, Todd e Ramona, e Scott e Todd, e as telas piscam no ritmo da batida.
Por sinal, a música que a Clash at Demonhead toca ("Black Sheep") é a mesma que toca nos alto-falantes da loja de CDs quando Scott termina com Knives: no próximo plano, quando vemos a reação de choque e tristeza da jovem, a música é substituída pelo som do vento passando por um ambiente inóspito e árido.
A cena na qual Scott chega em casa depois de seu segundo encontro com Ramona poderia ser apenas mais uma cena de um filme contemporâneo de comédia, mas a trilha sonora é trabalhada para fazer referência a sitcoms dos anos 90, principalmente "Seinfeld". Na cena anterior, a tela fica preta assim que Scott e Ramona se beijam: ouve-se um som de torcida comemorando. Depois do corte, Scott aparece chegando em casa ao som de um riff de baixo muito similar aos de "Seinfeld". A partir daí, seu diálogo com Wallace é pontuado por sons típicos de claques de estúdio, como comemoração, admiração ou zombaria, até que Wallace desfaz o clima ameno com uma intimação tensa.
As referências a videogames são explícitas em muitos casos, como quando Scott começa a tocar o baixo da trilha sonora de um videogame clássico em certa altura, tentando se desvencilhar de um assunto desconfortável. Mas o filme se perfaz no uso de sons digitais de baixa resolução, associados a videogame. É o caso de Scott pegando a vida extra e da "barra de xixi" se esvaziando. O surgimento de letreiros é pontuado com "plins" típicos de videogames. Esta associação aproxima as cenas dos quadros informativos de jogos dos anos 80 e 90, principalmente "Super Mario World", no qual os quadros eram utilizados para orientar os jogadores quanto aos novos desafios do jogo. O símbolo da Universal, produtora do filme, é mostrado numa versão "pixelada", quadrada e serrilhada, e a versão da sua música que se escuta é sintetizada para remeter aos videogames antigos. O supervisor de som Julian Slater relatou em uma entrevista ao site Designing Sound (RIEHLE, Jake. "'Scott Pilgrim vs. The World' – Exclusive interview with Supervising Sound Editor Julian Slater". 2010. Disponível em http://bit.ly/2iZbCCn . Acesso em 22/12/2016) que o designer de som Jimmy Boyle usou um sintetizador em 8-bit feito a partir de um console Atari, mas que boa parte dos sons foram feitos em alta fidelidade e traduzidos para 8-bit, pois compor tudo em 8-bit não geraria os sons baixos necessários para uma trilha sonora cinematográfica. Os sons do jogo ficcional "Ninja Ninja Revolution" foram editados e mixados digitalmente e tocados num fliperama que o engenheiro de som tinha em sua garagem: o som emitido pelo console foi gravado e utilizado no filme, num processo conhecido como "worldize", criado por Walter Murch e George Lucas para a trilha de "American Graffitti".
Evan Puschak, o autor dos vídeos-artigos do canal "The Nerdwriter" no youtube, destaca que as propriedades do som são usadas até mesmo nas transições características do filme. Seu argumento é que as transições são pensadas para expressar o estado mental do protagonista. Portanto, o diretor se vale de elementos passando entre a câmera e seus sujeitos, como pessoas, cachorros, carros ou araras de roupas, para cortar entre uma cena e outra. Efeitos sonoros associados a esses elementos são introduzidos para ajudar a naturalidade da transição. Além disso, algumas outras transições são ainda mais sutis e súbitas ao mesmo tempo. Quando Scott está no telefone com sua irmã, logo no começo do filme, a tela se divide. Scott dá uma resposta que Stacey não gosta, e esta revira os olhos e se vira para o lado da tela no qual seu irmão está, como se quisesse direcionar a ele um olhar fulminante mesmo os dois não estando no mesmo ambiente (mais um exemplo de metalinguagem). Entretanto, no momento que ela se vira, a câmera faz um "pan" na direção de seu olhar, enquanto escutamos o som de uma campainha escolar e vemos a onomatopeia gráfica correspondente ao som surgindo da direção para onde a câmera está indo (PUSCHAK, Evan, "Scott Pilgrim: Make Your Transitions Count", https://www.youtube.com/watch?v=pij5lihbC6k). Já durante o encontro de Scott e Ramona, as passagens de tempo são pontuadas por quadros que dizem "15 minutos depois", "30 minutos depois" e "45 minutos depois": o surgimento desses quadros é acompanhado do som de um tique-taque de relógio.
Edgar Wright é um diretor meticuloso e dedicado. Julian Slater deixa isso claro em sua entrevista, quando diz que o diretor sabia sempre exatamente o tipo de som perfeito para as cenas gravadas, pedindo para as trilhas serem refeitas por um ou outro detalhe que completava o que o supervisor já achava que estava perfeito. Além disso, ele pensava nas impressões que a audiência teria ao assistir o filme de novo, pedindo trilhas que se sobressaíssem numa segunda audiência. Daí nasceram os "soundscapes" da cafeteria ou da Rockit, por exemplo. Essa dedicação se reflete no alinhamento entre os elementos do filme e no uso exemplar do som para avançar a narrativa e conduzir a sobreposição de elementos visuais de fontes diferentes.

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