Sobre o uso (ou, para alguns, o abuso) musical do aparelho celular no cotidiano de uma escola municipal carioca (II Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II)

June 19, 2017 | Autor: Zeca Teixeira | Categoria: Music, Education, Violence
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MESA REDONDA Tema: QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DA EDUCAÇÃO MUSICAL: MEUS ALUNOS GOSTAM DE FUNK, PAGODE E GOSPEL Convidados: José Carlos Teixeira Junior Adriana Rodrigues Didier Eduardo Prestes Massena Mediadora: Inês de Almeida Rocha ________________________________________________________________________ José Carlos Teixeira Junior [email protected]

SOBRE O USO (OU, PARA ALGUNS, O ABUSO) MUSICAL DO APARELHO CELULAR NO COTIDIANO DE UMA ESCOLA MUNICIPAL CARIOCA O presente texto propõe discutir brevemente algumas questões que teceram minha pesquisa de doutorado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, mais especificamente na linha do Cotidiano, que teve como objetivo principal a seguinte questão: conhecer a prática de tocar-ouvir música mediada pela apropriação de arquivos MP3 no cotidiano de uma escola municipal carioca. Em linhas gerais, trata-se de uma pesquisa que assumiu, como nos diria Gilroy (2001), “a música e seus rituais” (p. 20) como um posicionamento epistemológico no debate com a Educação, entendendo esta epistemologia, contudo, como as estreitas e complexas relações entre conhecimento, política e estética. Compositor A escola em questão é a Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga, local em que trabalho como professor de Música desde meados de 2008. Fundada no início da década de 1990 e localizada em Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, esta escola tem sido cotidianamente (e, por que não, musicalmente) chamada por seus alunos, responsáveis, professores, funcionários e direção de “a Compositor”. Composta por turmas do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental, tanto nos turnos da manhã como da tarde, a maior parte de seus alunos reside em Cidade de Deus (enquanto uma minoria reside em Gardênia Azul e Rio das Pedras, localidades não muito distantes da escola). Cidade de Deus, comumente chamada de CDD por seus moradores, surgiu na década de 1960 como um conjunto habitacional construído para receber famílias removidas de diferentes favelas da cidade, sobretudo da Zona Sul. No início da década de 1980, ela foi campo de pesquisa da antropóloga Alba Zaluar, em seu estudo sobre organizações ANAIS do II Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II, Departamento de Educação Musical, Rio de Janeiro, 6 e 7 de novembro de 2015.

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populares, o qual resultou em seu livro A máquina e a revolta (ZALUAR, 2000), assim como também oficialmente reconhecida como bairro pela prefeitura. Na década de 1990, Cidade de Deus tornou-se a 34ª Região Administrativa da cidade do Rio de Janeiro, deu nome ao primeiro livro de Paulo Lins e já se apresentava como um dos principais palcos do funk carioca. O famoso “Rap da Felicidade”, dos MCs Cidinho e Doca, é um bom exemplo disso. Já na década de 2000, ela deu nome ao premiado filme de Fernando Meireles, longa-metragem baseado no romance citado de Paulo Lins, e foi a segunda favela carioca – a primeira fora da Zona Sul da cidade – a receber uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). A UPP consiste no principal programa da Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro nos atuais governos de Sérgio Cabral e Pezão e tem sido duramente criticado pela Paz Armada (BATISTA, 2012), que tem instalado nas periferias da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, enfim, Cidade de Deus conta com mais de trinta e seis mil habitantes, um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do município e uma série de conflitos e tensões que têm sido historicamente regulados pelo estereótipo de violência e de pobreza (ZALUAR, 2000). Os proibidões da sala de aula: o celular e o funk carioca O interesse em tentar conhecer a prática (CERTEAU, 1994) de tocar-ouvir música mediada pela apropriação de arquivos MP3 no cotidiano da escola municipal, surgiu, mais especificamente, da percepção de como ela tem sido reiteradamente regulada pela própria escola. Trata-se de uma regulação que tem insistentemente procurado enquadrar esta prática musical – quase sempre realizada pelo uso (ou, para alguns, pelo abuso) de aparelhos celulares nos mais diferentes cantos da escola – em limites pré-estabelecidos. Em primeiro lugar, poderia citar a Lei municipal 4.734, de 2008, que proíbe o uso de aparelhos celulares e similares nas salas de aula do município do Rio de Janeiro. Em seu projeto de lei, esta proibição justifica-se pelo “transtorno à ministração de aulas” e pelo “desrespeito à autoridade do professor e a paciência dos alunos que querem aprender” que realiza, pois, segundo este documento, “a utilização de tais equipamentos, causa a desconcentração e inibe a memorização dos demais alunos” (TEIXEIRA, 2007, p. 2). Em segundo lugar, poderia citar a criminalização de parte significativa do repertório musical tocado pelos alunos através destes mesmos aparelhos, ou seja, dos comumente chamados funk-proibidão, funk-putaria e funk-ostentação. Funks estes que, sob esta mesma perspectiva reguladora, aparecem como diferentes categorias classificatórias do funk carioca cujo conteúdo literário remete à apologia aos chamados tráfico de drogas, pornografia e consumo alienado, respectivamente. Gonzagão Digital Como principal orientação teórico-metodológica para a realização da referida pesquisa, procurei assumir como principal condição de produção do conhecimento os conflitos que surgiram no cotidiano escolar quando o que estava em jogo era justamente a realização da referida prática musical. Em outros termos, optei por assumir estes conflitos cotidianos como elemento estruturante das relações intersubjetivas tecidas no movimento de pesquisa e não como crise ou exceção de um (pré)determinado padrão de sociabilidade. Bakhtin (2010), por exemplo, nos ajuda a abordar estes conflitos ao propor o discurso como uma arena de sentidos em permanente disputa. ANAIS do II Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II, Departamento de Educação Musical, Rio de Janeiro, 6 e 7 de novembro de 2015.

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Assim, a partir do debate com os alunos do sexto ao nono ano do segundo segmento do Ensino Fundamental do turno da manhã sobre “o que é o cotidiano?” e “como é o cotidiano de nossa escola?” e, em seguida, mergulhando na arena polifônica (BAKHTIN, 2010) que foi o processo de criação e gestão participativa de uma equipe de som escolar (a chamada Gonzagão Digital), eu procurei dialogar com os diferentes sentidos em disputa que tecem esta prática musical (cf. ARAÚJO et al., 2006). Com um Virtual DJ instalado em um netbook da escola conectado, por um lado, a uma caixa amplificada via cabo P2-RCA e, por outro lado, a um aparelho celular via cabo USB, a Gonzagão Digital funcionava (e ainda hoje funciona) no pátio interno da escola durante os vinte minutos de recreio das sextas-feiras. Uma equipe de som, dentre tantas outras criadas por jovens da Cidade de Deus e das localidades próximas, que se tornou o principal (e bastante tenso) cronotopo da pesquisa. Acervos e montagens Dos conflituosos diálogos que surgiram neste cronotopo de pesquisa, eu gostaria de destacar duas questões em específico. Em primeiro lugar, o uso do aparelho celular como um acervo vivo. Ao propor algumas reflexões a partir da documentação do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, o antropólogo Celso Castro (2005, p. 39) nos sugere que “naquilo que foi preservado há sempre a intervenção de circunstâncias variadas e de pessoas que fazem seleções e determinam o que é e o que não é relevante guardar”. Ainda segundo este mesmo autor, “todo [acervo] revela a intencionalidade de quem o produziu e, por outro lado, de quem o organizou e guardou, mesmo quando o [acervo] parece ter sido simplesmente deixado ‘do jeito que estava’, sem qualquer cuidado”. Sob esta perspectiva, podemos sugerir que muito longe de um arquivo de registros musicais, neutro e totalitário, constituído quase que naturalmente ou espontaneamente de funk carioca (ou, quando muito, de pagode e música gospel) e cujo uso na escola corresponde a um “transtorno à ministração das aulas” e um “desrespeito à autoridade do professor e a paciência dos alunos que querem aprender”, a seletividade dos permanentes movimentos de gravação, desgravação, compartilhamento e execução de músicas mostrou os aparelhos celulares no cotidiano escolar como um acervo vivo. Um acervo cuja seletividade permanente possibilitou a emergência não apenas de outros repertórios musicais (como música eletrônica, rock, erudita, forró, dentre outros), mas também (e tão importante quanto isto) de seus próprios e tensos conflitos. “Música de bandido”, “música de paraíba”, “musica de maluco”, “música de velho” e “música de viado”, por exemplo, foram alguns estereótipos (dentre tantos outros narrados) bastante utilizados pelos próprios alunos para se referirem aos diferentes movimentos seletivos destes repertórios presentes nas memórias dos aparelhos celulares. E foi justamente mergulhando e transitando na seletividade deste mesmo acervo vivo, em segundo lugar, que emergiram também os chamados funk-montagem. Num primeiro momento, o funk-montagem mostrou-se como apenas mais uma categoria classificatória do funk-carioca ao lado daqueles outros funks já assinalados (proibidão, putaria e ostentação). Contudo, não demorou muito para ver sua complexidade surgir, sobretudo pelos deslocamentos que realiza. Diferentemente daqueles outros funks centrados no conteúdo literário, o funk-montagem mostrou-se centrado naquilo que Gilroy, ao abordar a ANAIS do II Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II, Departamento de Educação Musical, Rio de Janeiro, 6 e 7 de novembro de 2015.

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obra de arte negra na era digital, chamou de “justaposição de sons” (GILROY, 2001, p. 212). Trata-se de um deslocamento que não exclui este conteúdo literário, mas o posiciona sob o protagonismo do DJ, ou seja, daquele que se apropria de diferentes sonoridades mediadas pelos usos de determinadas reprodutibilidades técnicas (BENJAMIN, 1983) como, por exemplo, fita de rolo, LP, CD ou, neste caso em específico, arquivos MP3. Ao abordar o processo de emergência do disc jockey como artista, Bacal nos sugere que a figura do DJ está “intimamente [ligada] com as inovações tecnológicas que se abrem para experimentações em esferas musicais, viabilizando novos modos de criação musical, novos modos de musicalidade e novos artistas” (BACAL, 2012, p. 19). O funk-montagem aparece, assim, como uma performance musical cuja fertilidade encontra-se justamente na capacidade de rasurar não apenas as fronteiras aparentemente estáveis daquelas categorias classificatórias do funk carioca citadas anteriormente, mas também de outros repertórios e até mesmo de outros cronotopos. Uma rasura que possibilita, assim, a emergência dos mais diferentes conflitos que tecem o cotidiano destes jovens como, por exemplo, a violência, a questão racial, a sexualidade, o consumo, os territórios de pertencimento, dentre outros. Considerações finais Diante do brevemente exposto, a insistente tentativa de enquadrar a prática de tocar-ouvir música mediada pela apropriação de arquivos MP3 no cotidiano da escola municipal carioca em questão em limites pré-estabelecidos mostrou-se muito mais como uma forma de negligenciar as complexas relações entre conhecimento, política e estética que tecem a Educação. E os conflitos cotidianos decorrentes da emergência desta complexidade mostraram-se como uma possibilidade bastante fértil (ainda que bastante tensa, certamente) de construir um currículo musical mais polifônico e dialógico. Referências ARAÚJO, Samuel et al. A violência como conceito na pesquisa musical; reflexões sobre uma experiência dialógica na Maré, Rio de Janeiro. In: Transcultural Music Review, n. 10, 2006. BACAL, Tatiana. Música, máquina e humanos: os DJs no cenário da música eletrônica. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BATISTA, Vera Malaguti (org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2012. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época das técnicas de reprodução. In Textos escolhidos. 2. ed. (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1983. CASTRO, Celso. A trajetória de um arquivo histórico: reflexões a partir da documentação do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. In Revista de Estudos Históricos, n. 36. Rio de Janeiro: FGV, 2005. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. ANAIS do II Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II, Departamento de Educação Musical, Rio de Janeiro, 6 e 7 de novembro de 2015.

24 TEIXEIRA, Vereadora Pastora Márcia. Projeto de Lei 1.107. Rio de Janeiro: Câmara dos Vereadores, 2007. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado de pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.

________________________________________________________________________ Adriana Rodrigues Didier [email protected]

Gostaria, em primeiro lugar, de agradecer o convite do prof. Roberto Stepheson e parabenizar toda a equipe do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II, pela iniciativa desse encontro. Foi muito emocionante entrar no Campus Centro para a Cerimônia de Abertura do II Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II, e poder observar a arquitetura do prédio, o jardim interno, os corredores, o Salão Nobre, e, ainda, ouvir o concerto belíssimo do Coral de Alunos do Campus Engenho Novo II, sob a regência da prof.ª Neila Ruiz Alfonzo, e os depoimentos emocionados de toda a equipe do colégio. Ao entrar no prédio, como não lembrar da mãe de D. Pedro II, a austríaca D. Leopoldina, que se apaixonou por nossa flora, fauna e que tinha enorme curiosidade pela cultura dos escravos que trabalhavam ao seu redor, atitude absolutamente incomum para a corte? O botânico von Martius e o zoólogo von Spix (1981) faziam parte da comitiva trazida por D. Leopoldina e que, por nossa sorte, também eram musicistas pois ao registrarem suas descobertas científicas, aproveitaram para também anotarem o que ouviam. Devemos a eles a coleta e publicação de relevante material, principalmente a de um lundu anônimo. Aproveito esse “gancho” para minha primeira reflexão sobre o tema sugerido. Em algum momento na história da Educação Musical na cidade do Rio de Janeiro os professores devem ter conversado entre si constatando com algum espanto: meus alunos gostam de lundu, samba e rock. Imagino os professores do final do século XIX boquiabertos ao saberem que alguns de seus alunos ricos e brancos não só frequentavam como dançavam e acompanhavam com palmas os batuques de lundu realizados em lugares distantes do centro (TINHORÃO, 2002). Assim como os professores do Colégio São Bento nas primeiras décadas do século XX poderiam ficar escandalizados ao saber que seu aluno de classe média e branco, Noel Rosa, subia ao morro para ouvir um samba “diferente” e convidava seus amigos Cartola e Ismael Silva para serem parceiros (MÁXIMO; DIDIER, 1990). Na década de 60 os professores talvez não gostassem muito de saber que seus alunos gostavam de guitarra e ouviam rock. Com o slogan “Defender O Que É Nosso”, a “Passeata da MPB”, ficou conhecida como a “Passeata Contra A Guitarra Elétrica”, aconteceu em 1967, em São Paulo (MELLO, 2003). Liderada por Elis Regina, Jair Rodrigues, Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4, e Gilberto Gil, a passeata comprovava o medo e o estranhamento causado por esse novo som.

ANAIS do II Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II, Departamento de Educação Musical, Rio de Janeiro, 6 e 7 de novembro de 2015.

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