Subsídios para o estudo da propriedade comum na Ribeira Lima

June 30, 2017 | Autor: Fabiola Pires | Categoria: Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica, Floresta, Propriedade, Baldíos
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SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DA PROPRIEDADE COMUM NA RIBEIRA LIMA Fabiola Franco Pires

Muito se poderia dissertar acerca do tema propriedade: desde a sua origem como entidade colectiva, até ao seu reconhecimento (ou apropriação) como algo privativo, de um só senhor. Não é este o espaço, porém, onde possa caber tão extenso estudo, pelo que será apenas tratado o tema em questão na sua vertente comum, em alguns espaços da Ribeira Lima, mais especificamente no concelho de Viana do Castelo, e focando especialmente os séculos XVI a XIX, sendo este primeiro onde se dá o pontapé de saída para a preocupação com as aptidões naturais da floresta e das zonas incultas, sendo um bom exemplo a Lei das Árvores, de 1562, que obrigava os municípios a mandar plantar árvores para madeira, indicando o pinheiro-bravo como uma das espécies a adoptar1, atravessando esta ideia “os séculos com maior ou menor relevância, consoante a pressão da exploração nas matas, o grau de desarborização, e as tentativas de plantações levadas a cabo pelas instituições centrais.” 2 Serão, portanto, e como já vinquei no título, apenas “subsídios” ou pequenos contributos para a compreensão desta utilização peculiar de espaços tão diversificados, que a todo tempo poderão e deverão ser acrescentados, corrigidos ou enriquecidos.

OS BALDIOS Segundo a Lei nº68/93 de 4 de Setembro - Lei dos Baldios, Cap. 1, Art.º 1, são os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, sendo esta o universo dos compartes, ou seja, os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio. Constituem, em regra, logradouro comum para efeitos de apascentação de gados, recolha de lenha ou matos, de culturas e outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola. Os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento destes, bem como a sua posterior transmissão, são considerados nulos. Ministério Público, representante da administração central, regional ou local da área do baldio, órgãos de gestão deste ou qualquer comparte, têm legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio no todo ou em parte 3. A sua desamortização, divisão e apropriação individualizada, com a finalidade de converter as terras incultas em cultivadas foi um movimento que se acentuou a partir de 28 de Agosto de 1869, e que vai durar até 8 de Dezembro de 1932, caracterizando-se por uma distinção 1

Pereira, João Santos (2014). O Futuro da Floresta em Portugal: Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 31. 2 Devy-Vareta, Nicole (1989). Os Serviços Florestais no século XIX: os homens e as ideias: Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 105. 3 http://dre.pt/pdf1sdip/1993/09/208A00/46664673.pdf. [consultado em 5 de Outubro de 2014].

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em termos de aproveitamento das terras, sendo divididas em baldios e logradouros comuns, sendo estes últimos espaços em que se operava um efectivo aproveitamento dos pastos, matos, lenhas, etc., pelos moradores de determinado(s) lugar(es) ou freguesia(s). A desamortização incidiu assim sobre essas superfícies incultas não apropriadas individualmente e das quais supostamente ninguém tirava proveito algum, justificando-se por isso as acções que se seguiram da realização de diversos aforamentos e alienações dos baldios, um pouco por todo o país. Paralelamente, inicia-se em 1888 (com os Regulamentos para a arborização nos dois primeiros perímetros florestais criados na Serra do Gerês e na da Estrela) a florestação dos baldios serranos, que irá ganhar uma maior efectivação prática a partir de 1903 (Lei e Regulamento instituindo as modalidades do Regime Florestal)4. Deixemo-nos guiar pelas palavras de Alberto Sampaio, em finais do século XIX, que nos descreve assim os montados minhotos: “Ainda n’este seculo, até quasi ao fim do segundo quartel, a maior parte dos montes da provincia eram todos baldios ou comuns aos vizinhos d’uma parochia ou logar, que por costumes antigos quer por provisões regias, que não tinham outro fim senão sancionar o uso tradicional contra as pretensões de algum rico senhor da vizinhança. Ali pastoreava o gado de todos, ali roçava o mato ou cortava lenha quem queria. No meio d’estes terrenos via-se raramente n’um ou n’outro sitio uma tapada particular e outras vezes apareciam as sortes, glebas soltas em que o roço era de propriedade individual, mas o pasto commum. Tapadas e sortes eram a excepção, mostrando esta segunda palavra qual o regime anterior.”5. Porém, e como veremos no decorrer deste pequeno contributo, muita coisa mudou, e no Minho os baldios começaram a desaparecer precisamente a partir desta data, transformando-se o que até aí era de fruição comunitária, em terreno privado e encerrado. Também o regime misto de propriedade particular quanto ao roço e privada quanto ao pasto desapareceu, por via da vedação das sortes, como veremos mais adiante. A arborização dos baldios será realizada em grande escala durante o Estado Novo, através do Plano de Povoamento Florestal (1938-68), que toma conta de todos estes espaços à população para serem geridos pelo Estado, sendo estes devolvidos às populações com a lei de 1976 (DL nº39/76 de 19/01), mas permanecendo sob o regime florestal parcial, escolhendo a maioria das

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Estêvão, João Antunes (1983). A Florestação dos Baldios: Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 3º, 4º, e 5º, 1157. 5 Sampaio, Alberto (1886) – A apropriação da terra e as classes que constituem a população campestre: Guimarães. Estudos d’economia Rural do Minho, 22. “O sorteio era um uso muito antigo que as populações da Grécia e da Itália praticavam sempre para a apropriação da terra e sem o qual parecia não ser possível constituir-se a propriedade particular… Na linguagem popular possuir pela sorte significava – possuir com exclusão dos outros. Quando se queria dizer que um homem de simples ocupante se tornava proprietário em virtude d’um titulo regular, dizia-se que possuía não por ocupação mas por sorte, ex occupatione tenebat in sorte.”. Coulanges, Fustel de (1875) Histoire des institutions politiques de l’ancienne France, 194.

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comunidades a modalidade de administração em associação com o Estado, passando a receber parte das receitas dos produtos lenhosos explorados nos baldios6.

O MATO É um dos produtos dos baldios, representando a palavra mato ou tojo pelo menos três ou quatro espécies botânicas, confundidas como termo geral na linguagem popular: tojo ou mato arnal; tojo; mato ou tojo molar e mato ou tojo gadanho 7, prestando, como principal função, auxilio à lavoura como aplicação nas camas dos animais (juntamente com a folhagem seca das árvores) e base de adubo dos campos8: “muitas vezes também o gado vai pastar nos matagaes e traz assim para o casal uma parte dos princípios fertilizantes que se encontraram no mato, cujos rebentos frescos come e na herva que cresce em volta d’elle.” 9 Este mato é cortado “rude e brutalmente com enxadas rombas, quando há vagar”, designando-se esta acção por roço, e é normalmente feito por conta própria no intervalo de outros serviços ou entregue a jornaleiros 10.

Fig. 1. A Ínsua Cavalar no Rio Lima. Foto da Autora, 2013

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Devy-Vareta, Nicole (2003). O Regime Florestal em Portugal através do século XX (1903-2003): Porto, Revista da Faculdade de Letras – Geografia, I série, vol. 19, 452. 7 Ver com maior aprofundamento: Sampaio, Alberto (1886). A cultura do mato. Estudos de economia rural do Minho: Guimarães, Revista de Guimarães, vol. II, nº4, 147. 8 Idem, Ibidem. 9 Rislers, Eugène (1894). Géologie Agricole: Paris, Institut National Agronomique. 10 Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 152.

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O corte deveria sempre ser feito desde Agosto até ao fim do Outono, como se verifica, por exemplo, na freguesia da Meadela, onde a abertura da época seria sempre no mês de Agosto “sendo boa a occasião da lua para os parochianos desta freguesia cholherem os roços e aduvos na insua cavallar sita no rio Lima nos lemites desta freguesia como é de costume antigo” 11, sendo sempre este acontecimento anunciado na missa, e estando presente a junta de paróquia e o regedor. À semelhança de outros espaços da freguesia, esta ínsua era exclusiva dos seus moradores, tendo-se registado inúmeras queixas de furto de junco contra os de outras freguesias, nomeadamente as vizinhas Santa Marta (de Portuzelo) e Darque 12. Acerca do valor da produção desta ínsua, veremos mais à frente os demais conflitos que acabou por causar, por “culpa” dos seus “aduvos salitrados e gordos”13.

Fig. 2. Largo do Carvalho, na Meadela (lugar de Portuzelo). Foto da autora, 2012.

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Arquivo da Junta de Freguesia da Meadela. Sessão de 30 de Julho de 1893: Livro de Actas da Junta de Paróquia da Meadela, nº 2. 12 “(…) n'este juizo pende um processo crime promovido pela junta de parochia d'essa freguesia que funcionava em mil e oitocentos e noventa e dous, contra varios moradores da freguesia de Santa Martha pelo facto de terem isso roçar junco á insua cavallar pertencente a freguesia da Meadella”, Arquivo da Junta de Freguesia da Meadela. Sessão de 3 de Setembro de 1893: Livro de Actas da Junta de Paróquia da Meadela, nº 2. "(…) alguns moradores da freguesia de Darque, tem no corrente ano; com grande empenho vindo a insua chamada Cavallar no rio Lima, em frente a freguesia da Meadella, e cujo rôço é do esclusivo uso e posse dos moradores desta mesma freguesia, e ahi tem tumultuariamente apanhado junco levando-o para a sua freguesia em barcos apesar das advertencias que lhes tem sido feitas.”, Arquivo da Junta de Freguesia da Meadela. Sessão de 16 de Junho de 1895: Livro de Actas da Junta de Paróquia da Meadela, nº 2. 13 Veloso, (Abade) Francisco José Pereira (1819) - Neste anno de 1819 unido aos lavradores desta frg.ª da Meadella viemos com embargos as pertençoes de Joze Caeteno da V.ª de Viana e ahi juis d’Almandega q patrocinado por Sebastião Correia pretendiao reduzir a Inçoa do meio do Rio Lima q he desta Igr.ª a seu domínio particular, e alcançamos a sentença q aqui copio pois se pode perder a própria, e he de m. to interesse p.ª esta Igr.ª e p.ª os R. Abb.es. Copia. Des.º do Paço: Epílogo de Usos e Costumes desta Igreja de Santa Christina da Meadella, fl. 530 a 532v.

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Este mato, depois de roçado, era transportado para a casa do lavrador e depositado no seu eido, eirado ou quinteiro, e em alguns lugares na própria rua, quando existia um espaço mais amplo junto ao casal ou lugar (como acontecia em Portuzelo, na freguesia da Meadela, no largo do Carvalho, serventia outrora da fronteira casa com o mesmo nome), sendo este estendido ao ar livre e ficando aí para ir sendo esmagado pelos animais no seu percurso diário. Depois, uma parte é passada para os estábulos e outra permanece ali, sendo empilhado com o das cortes. Segundo Alberto Sampaio, este é um método deficiente, sendo da opinião que este deveria, logo que roçado, ser guardado debaixo de um abrigo até ser introduzido nos estábulos, pois as chuvas vãono decompondo, levando-lhe os preciosos princípios que a planta tinha concentrado14. Para além de crescer naturalmente, ele pode também ser semeado, picando a terra à profundidade de 0,20m, e se a sementeira for em terreno coberto de urzes, é necessário queimar os torrões, pois estas matá-lo-iam, fazendo-se esta cavagem entre Julho e Agosto: em Novembro grada-se a terra e semeia-se, ou só ou associado ao centeio ou com tremoços15. Os matos dos baldios e maninhos de cada freguesia e concelho eram divididos pela respectiva junta de paróquia, proporcionalmente, entre todos os fogos no mês de Março de cada ano, sendo esta divisão publicada na porta da igreja paroquial respectiva para cada chefe de família ou pessoa por ele designada para ir cortar a porção que lhe coubesse em partilha, dentro do prazo de dois meses desde a data da publicação, perdendo o direito a esse mato caso não o fizesse, sendo este posteriormente vendido pela junta de paróquia em hasta pública e o seu produto aplicado para a sustentação e reparos da escola da respectiva freguesia, quando existia, e não havendo, para as despesas da paróquia. Se alguém, antes ou depois de ser feita a partilha, fosse apanhado a roçar mato, incorreria numa pena de 1000 réis de multa 16. O fogo era, como hoje, uma preocupação constante, sendo mesmo o crime de incêndio dos matos e arvoredos aquele a que se aplicava a multa mais pesada existente nas Posturas Camarárias (20 000 réis), mesmo estando esse mato já roçado depositado nos campos ou caminhos17. A remoção de cascas de árvores alheias e a secagem das mesmas é igualmente alvo de pena, não podendo o infractor servir-se da respectiva madeira18.

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Sampaio, Alberto (1886). op. cit., p.152. Idem, Ibidem, p.153. 16 Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Regulamentos e posturas da Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1898, art.º 26º, 27º, 28º e 29º. 17 Idem, Ibidem, art.º 385 § único. 18 Idem, Ibidem, art.º 383 e 384. 15

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DEFLORESTAÇÃO Nos finais da Idade Média (séculos XIV e XV), o território nacional estava praticamente desarborizado19, havendo relatos, no século XVI, que afirmavam que os montados de Viana estavam nus: a presença constante do gado não permitia o desenvolvimento da floresta, encontrando-se árvores apenas nas coutadas privadas, situadas na baixa encosta. Por essa razão, os lavradores de Viana e seu Termo estavam obrigados, desde 1517, a plantar quatro árvores por ano preferencialmente carvalhos, castanhos, nogueiras e salgueiros, sendo necessário importar madeira da Galiza, Biscaia, Flandres, bem como dos vizinhos concelhos de Ponte de Lima e Barcelos20. Viana já não teria as madeiras adequadas para a construção de barcos, sendo a Serra d’Arga “une haute montagne stérile”, como observa um frade beneditino que viajou para Portugal, em 153321. Em 1620 passou-se igualmente a restringir as licenças de entrada de gados estranhos nos montados do concelho, pelo mesmo motivo 22, e em 1717, incitava-se os moradores a semear pinhões nos baldios adequados para esse fim, bem como castanheiros, carvalhos e outras árvores convenientes, nos que não fossem, definindo-se mesmo uma pena para quem não o fizesse (à excepção dos pinheiros) de 200 réis por pessoa23. Apenas entre o século XVIII e a segunda metade do século XIX se dá a reviravolta: “o saldo da florestação/desarborização é finalmente favorável à florestação”, ajudando o Romantismo a criar a sua base ideológica24. A venda dos bens nacionais provoca o desmantelamento da floresta eclesiástica, que passa para as mãos dos ricos lavradores e proprietários urbanos, revertendo uma pequena parte para a Administração-Geral das Matas25. Já na entrada do último quartel do século XIX, exaltava-se a importância das matas e terrenos arborizáveis na Estatistica do Districto de Vianna do Castello, afirmando que “tão benéficos resultados offerecia, não só em relação á influencia muito directa que elle exerce sobre o clima, pela barreira que oppõe ao desabrimento dos temporaes de vento (…) e pela coadjuvação que presta á permanencia das aguas nas localidades (…) porque faz abundar as madeiras de construcção e para combustível, das quaes já se vae sentindo muito a falta no districto (…) como também porque a sua plantação nos montes e areiais faz com que as terras se consolidem e

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Pereira, João Santos (2014). Op. cit., 48. Arquivo Municipal de Viana do Castelo: Livro dos Acórdãos Municipais de Viana do Castelo, 1538, 2, 10. Moreira, Manuel António Fernandes (1986). O Município e os Forais de Viana do Castelo. Câmara Municipal de Viana do Castelo, 158. 21 Devy-Vareta, Nicole (1986). Op. cit., 12. 22 Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Livro dos Acórdãos Municipais de Viana do Castelo, 1620, 11, 17; idem, 1517, 1, 3, in Moreira, Manuel António Fernandes (1986). Op. cit., 158. 23 Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Regulamentos e posturas da Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1717. 24 Pereira, João Santos (2014). Op. cit., 49. 25 Devy-Vareta, Nicole (2003). Op. cit., 448. 20

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resistam á acção impulsiva das torrentes.” 26. Informa-nos ainda que “este ramo da agricultura tem sido sacrificado pela especulação, debastando-se as matas e pinhaes existentes, ou reduzindo a terrenos de cultura cereatica muitos d’aquelles que sempre estiveram cobertos de frondosos arvoredos.”27.

Fig. 3. Espécies arbóreas no monte e zona de cultivo da Meadela no início do século XX. Foto de vidro cedida por Luís de Amorim de Abreu e Lima.

Sabemos também, por aqui, que algumas medidas foram tomadas no sentido da arborização de espaços propícios: em 29 de Julho de 1843, o Governo Civil expediu uma circular às Câmaras Municipais para que enviassem uma nota dos terrenos baldios de cada Concelho e declarassem a quantidade de semente que necessitavam para esse fim, renovando-se estas ordens em 1849 e 1853. No entanto, todas as Câmaras do Distrito foram unânimes em afirmar que essa medida seria prejudicial às localidades, pois o tojo que ali nascia era o único adubo de que os lavradores dispunham, devendo esperar-se que se opusessem a semelhante plantação 28. Portanto, o que se tinha feito até à data tinha sido exclusivamente nos terrenos arenosos da beira-mar. E opuseram-se, de facto, como nos relata Alberto Sampaio em 1886: “em muitos sítios houve levantamentos da população pobre e sobretudo dos pequenos lavradores, a quem faria falta o logradouro commum.”29. No entanto, lugares houve, como em Monção, segundo o

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Coelho, Eusébio Cândido C. P. Furtado (1860). Estatistica do Districto de Vianna do Castello: Lisboa, Imprensa Nacional, 27. 27 IDEM, Ibidem. 28 Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 155. 29 Coelho, Eusébio Cândido C. P. Furtado (1860). Op. cit., 27. O autor revolta-se, no entanto, com o facto de, naquela época, já se conhecerem substitutos para os adubos vegetais – o guano artificial, e portanto essa

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Recenseamento Geral dos Gados de 1870, “que está coberto de pinhaes, tendo talvez a melhor agricultura do districto, muitos gados e vivendo bem os povos sem os baldios.” 30

Fig. 4. Estacadas de pinheiro para suster as margens do rio Lima, em Subportela. Foto da autora, 2013.

Curioso é perceber que o concelho de Viana, ao contrário de todos os outros, não apresentava números para estes terrenos, desculpando-se o autor da estatística com o facto de, em compensação, este ter extensos areais onde se deveria proceder à plantação de pinheiros, especialmente na zona do Cabedelo, de forma a amenizar o clima da cidade e a impedir que o leito do rio crescesse em elevação, impedindo os barcos de fundear, e contribuindo assim para o abandono do porto31. No ano de 1898, avisam-se os proprietários “de terras confinantes com os carregadouros designados” que eram “obrigados a meter nas suas tomadas estacas de pinheiro com o comprimento de dez palmos dos quaes somente cinco ficarão enterrados, e o restante ficará para encosto do terreno”, de forma, mais uma vez, a conter as margens, e ao mesmo tempo permitir a atracagem de barcos para os carregar 32.

não ser uma desculpa muito plausível para a “continuação da existência inculta de uma tão extensa porção de terreno, naturalmente destinado para ser arborizado.”. 30 Recenseamento Geral dos Gados: Relat. Do snr. J. Lino Emilio, 1870, p.349. 31 Coelho, Eusébio Cândido C. P. Furtado (1860). Op. cit., 30. 32 Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Regulamentos e posturas da Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1898.

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No entanto, o Relatorio acerca da arborização geral do paiz, realizado em 1886, calcula a área de bravio em 224 000 hectares, contando esta região 33 com 23 000, apenas suplantada pelos retalhos incultos que cercam o Neiva 34, calculando-se a relação entre a área total da província do Minho e o terreno inculto em 1 de bravio para 3,4 da superfície geral, aos quais teríamos de “deduzir o espaço total ocupado peças cidades, casas dispersas, leito dos rios, estradas, etc., e acrescentar às segundas a somma de todas as parcelas, a que anteriormente nos referimos, o que daria certamente a relação de 1:1 ou antes com mais verdade uma maior extensão das ultimas” 35. Na verdade, os dados disponíveis sobre a floresta portuguesa em meados de oitocentos são ainda inconclusivos pois são sobretudo de carácter qualitativo, mostrando porém que o uso dos solos era dominado por incultos, pousios e charnecas em quase metade do território segundo o Relatório acerca da arborização geral do paíz de 1868. “No litoral, pouco tinha avançado a fixação e arborização das dunas, decretada em 1802 sob o impulso do cientista José Bonifácio de Andrade e Silva. Nas serras, as encostas e os cumes encontravam-se fragilizados pela sobreexploração dos recursos arbóreos e dos pastos.” 36.

PASTORÍCIA Era este, de facto, o cenário que se mantinha, pelo menos, desde a Idade Média, onde o foral de Viana nos mostra que D. Afonso III teve a preocupação de doar ao concelho a posse e exploração dos montados de S. Lourenço 37, sendo este um direito exclusivo, e pagando todos os lavradores estranhos ao concelho de Viana uma taxa anual38. De Maio a Outubro, os gados eram enviados para as pastagens situadas nas zonas altas, por longos períodos, sob a guarda de assalariados ou em vezeira. Também na serra de Santa Luzia, como supõe Manuel F. Moreira, existira outro montado de pequena dimensão que era propriedade do concelho, denominado Agrova, situado na freguesia de Outeiro e estando, segundo o Tombo de 1498, arrendado em finais do século XV 39. Dentro dos limites do concelho existiam, igualmente, outros espaços dedicados à pastorícia que o Foral de Viana designa por maninhos, que integravam as serras de Santa Luzia, Perre e Amonde, sendo exclusivas dos vizinhos do concelho de Viana e não podendo ser 33

Que engloba aqui “ao poente das serras de Miranda e da Boalhosa, compreendendo as da Labruge, d’Arga, de Perre, de Santa Luzia e de Faro, situadas entre os valles do Lima e Coura, e nas de Carvalho e Sampaio, entre os valles do Coura e Minho”. Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 157. 34 Relatorio acerca da arborização geral do paiz: Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1868. 35 Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 158. 36 Devy-Vareta, Nicole (2003). Op. cit., 448 e 449. 37 “Que os povoadores de Viana uzem do monte de Arga para pastos de seus gados e da maneira que nelle ouver, assi como uzão os outros vizinhos que vivem ao pé do dito monte.”. Moreira, Manuel António Fernandes (1986). Op. cit., 183. 38 “E nenhua pessoa receberá, nem levará montados dos gados de Viana.”. Idem, Ibidem, 183. 39 Idem, Ibidem, 184.

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arrendadas a estranhos nem apropriadas por particulares 40. Estes seriam, segundo o Elucidário de Viterbo, bens que ficavam para a Coroa por morte de homem ou mulher casados, sem filhos e sem testamento, não tendo parente até ao décimo grau 41, sendo constituídos por terrenos abertos onde se produz mato, lenha e plantas silvestres, utilizados como logradouro comum do povo e propriedade do município42, sendo diferenciados dos baldios apenas por este facto. Em inícios do século XVIII era por isso proibido aos “moradores da banda do Lima”, para não destruir os pastos, roçar mato no monte com enxadas43, e em 1898 os terrenos deviam ser fechados com “paredes de sette palmos […] de sorte que não entre gado” 44. Em finais do XIX, são regulados pela Câmara Municipal (depois de ouvida a respectiva Junta de Paróquia) os locais destinados ao pastoreio nos baldios, sendo os donos dos animais responsabilizados com uma multa de 1500 réis por cada cabeça de gado se apanhados a apascentá-los fora dessas circunscrições, só podendo pastorear nos baldios e maninhos da freguesia os proprietários ou lavradores lá residentes, sendo essa residência de pelo menos um ano e comprovada perante a Câmara, que passaria igualmente uma licença designando o número máximo de cabeças de gado lanígero e cabrum 45. Esta questão da correspondência da residência com os locais de pastoreio aplicar-se-á também, como veremos, às sortes, pelo que deve ter sido uma forma de controle adoptada nessa época para não haver abusos no corte e uso dos montados.

TOMADAS E AFORAMENTOS No início século XVIII nota-se a preocupação em penalizar quem fazia tomadas nos 46

baldios , tendo-se mesmo implementado a considerável multa de seis mil réis, sendo este acto apenas autorizado pela Câmara Municipal. O abade da Meadela, João de Barros Lima, escreve no seu Epílogo de usos e costumes, em 1748, que “(…) nenhuma pessoa pode senhorearse deles [baldios e maninhos], nêm por nelles foros sem espicial ordem de El Rey = Na Villa de Vianna, e todo seu termo são do Conselho, e do povo por lhes ser concedido no contracto celebrado com El Rey Dom Afonço 3º, e pelo foral de El Rey Dom Manoel, e se lhe não pode impor foro, ou tributo

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Idem, Ibidem. Viterbo, Joaquim de Santa Rosa de (1798). Elucidário das Palavras, termos e frases, que em Portugal antigamente se usaram, e que hoje regularmente se ignorão: obra indispensável para entender sem erro os documentos mais raros, e preciosos, que entre nós se conservão: publicado em beneficio da literatura portugueza: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Tomo II, 76. 42 Machado, José Pedro (coord.) (1991). Grande Dicionário da Língua Portuguesa: Lisboa, Círculo de Leitores, Vol. IV, 19. 43 Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Regulamentos e posturas da Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1717. 44 Idem, Ibidem, 1898. 45 Idem, Ibidem, art.º 24. 46 “q nenhúa pessoa fassa tomadas nos baldios sem licença da Camera pena de se lhe derribar, e de pagar as penas da ley e seis mil rs’.”. Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Regulamentos e posturas da Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1717. 41

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pella camara quando esta permite licença para se fazerem algumas tomadas, ou arrumadiços, que não costuma conceder sem primeiro ouvir os homens bons, e elleytos das freguesias, como se declara no mesmo foral.”47. Nas Posturas Municipais de 1898, e apesar de os baldios do monte já serem consideravelmente mais raros por via da sua divisão, continua a penalizar-se quem fizer “(…) alargada ou alargar tapada que já estiver feita sem título legal de aforamento.”48 No entanto, excepções havia em que parte destes terrenos eram alienados em proveito particular, como é o caso do Visconde da Carreira, a quem em 1844 é aforado em fateosim perpétuo “(…) o terreno baldio que fica ao sul e nascente da sua Quinta de São Francisco do Monte, sita no lugar da Abelheira, no qual terreno tem grande numero de arvores, para fazer uma entrada mais suave junto ao caminho baixo, e aformosear e regularizar.” 49. Está patente aqui, e noutros casos que exemplificarei a seguir, a revolta que causava aos lavradores esta apropriação do espaço que lhes era indispensável. Neste caso do baldio de S. Francisco, a Câmara afirma mesmo que o requerimento apresentado por eles não tem cabimento, pois “(…) não pode absolutamente acreditar-se que hum terreno de tão pouco valor e extensão (…) com a insignificantíssima produção verificada em vistoria faça falta a agricultura e menos havendo emdirectamente a quinta/extincto convento de Sam Francisco, pelo norte e nascente extensos montes.”50. Não sucedeu o mesmo na Meadela, em 1819. José Caetano da Costa Correia, Juiz da Alfândega de Viana, em representação de Sebastião Correia de Sá, senhor da Casa de Paredes da mesma freguesia, apela ao rei que afore a este nobre a Ínsua Cavalar “(…) da qual o centro pertencia a Caza de Paredes, e (…) as extremidades devedidas por marcos herao baldios incultos, e por q o proprietário do dito centro hia arolar a sua respectiva parte, e vedar-lhes a intrada das Agoas para reduzir a cultura, e por q ele queria aproveitar a ocasião para fazer o mesmo as pontas.”51. Auxiliados pelo abade da paróquia, Francisco José Pereira Veloso, os lavradores da Meadela ganharam a causa, argumentando que a povoação tinha mais de oitenta casas 52 e não tinha montes suficientes para extrair adubos e ração (junco e feno, especialmente no Inverno, em que havia falta de palha) para apascentarem os seus gados, sendo a Ínsua a única alternativa que 47

Lima, (Abade) João de Barros (1748). Notícias a respeyto dos Montes baldios e maninhos deste termo da Villa de Vianna: Epílogo de Usos e Costumes desta Igreja de Santa Christina da Meadella, fl. 395. No foral manuelino refere, de facto, essa excepção: “Os quaes maninhos não se tomarão, daqui adiante, posto que não hajam por elles de pagar foro à dita Villa, senão por officiaes e homens bons para isso elegidos, que, ouvidas as partes a que tocar, não se dêm, senão naqueles lugares que não fizerem damno à serventia do Concelho ou República, sem mais outro foro.”. Moreira, Manuel António Fernandes (1986). Op. cit., 244. 48 Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Regulamentos e posturas da Câmara Municipal de Viana do Castelo,1898. Neste e nas outras transcrições foram sempre desdobradas as abreviaturas para uma melhor leitura. 49 Arquivo Distrital de Viana do Castelo. Escritura de aforamento Fateosim perpétuo que faz a Câmara Municipal desta cidade ao Excelentíssimo Visconde da Carreira: Notariais, Tabelião Bento José da Costa Amorim, 02/05/1844, fls. 39 a 42v. 50 Idem, Ibidem, fls. 39 a 42v. 51 Veloso, (Abade) Francisco José Pereira (1819). Op. cit., fl. 530 a 532v. 52 Comparemos com a dimensão que agora tomou a freguesia.

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tinham, caso contrário teriam de ir buscar esses mantimentos muito longe e a elevados preços. Seria também terra de grande lavoura, excedendo a sua produção os cem mil alqueires de milho, e portanto todo o adubo que a Ínsua produzisse era altamente necessário 53. Nas Instruções para regular os processos de aforamento emitidos pela Junta Geral do Distrito de Viana do Castelo, em 1879, podemos perceber que se distinguem os baldios dos logradouros comuns, como já vimos acima, sendo que se trata do mesmo tipo de terreno e aproveitamento, com a diferença que os segundos, ao contrário dos primeiros, “são indispensáveis para as necessidades domesticas e para a industria, (…) e não podem ser alienados.” 54. Partindo deste pressuposto, os pedidos de aforamento dos baldios seriam posteriormente avaliados em sessão camarária, resolvendo-se aí a conveniência de serem postos em prática, e procedendo-se posteriormente a uma vistoria por três louvados nomeados nessa ocasião. Os seus nomes, bem como o dia, a hora e o local, deveriam ser publicados com 15 dias de antecedência em edital afixado à porta da respectiva igreja paroquial, à entrada dos paços do concelho, e em anúncio num periódico da localidade, caso existisse. Esta vistoria deveria ser assistida pelo presidente da câmara, de um vereador nomeado, e do escrivão, lavrando este último um auto “em que será mencionado o dia e hora em que começaram os trabalhos, o deferimento de juramento aos louvados, e as declarações d’estes emquanto á medição, confrontações, situação, valor do terreno, e qual o fôro arbitrado, fazendo-se mensão de qualquer oposição que n’esse acto apareça.”. Se não houver oposição, a câmara designará o dia da arrematação, sendo esta publicada em editais de vinte dias e um anúncio no periódico da localidade, contendo as declarações feitas no auto da vistoria55, podendo o processo ser examinados por todos os interessados, durante este prazo, e podendo ser o aforamento impugnado até o julgamento definitivo pela Junta Geral 56, não pertencendo mais ao conselho de distrito depois de concluído, mas ao poder judiciário, pois envolve conhecimento da questão da propriedade, de posse e exame de títulos 57. No dia e hora designada para a arrematação (que deveria ser domingo ou dia santo), adjudicar-se-á o terreno a quem mais oferecer, e será lavrado auto 58. No caso de o aforamento ser requerido pela maioria dos moradores da freguesia, este seria concedido sem hasta pública a todos os vizinhos e moradores, compreendendo os que não residem na freguesia mas que nela tenham propriedades, mesmo arrendadas, sendo logo no auto da vistoria repartido entre eles pelos louvados e regulada a

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Veloso, (Abade) Francisco José Pereira (1819). Op. cit., fl. 530 a 532v. Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Instruções para regular os processos de aforamento: 1880. Ord. L. 4, tit. 43 §§ 9, 10 e 15, alv. De 23 de Julho de 1766 § 6, Lei de 13 de Março de 1772, alv. De 11 de Abril de 1815 § 4, e de 24 de Novembro de 1823 § 6, Lei de 28 de Agosto de 1869; Art. 2, n. 3, reg. de 25 de Novembro de 1869, art. 42, n. 3. 55 Lei de 28 de Agosto de 1869, art. 11, cod. Adm. Art. 370. 56 D.D.C.d’E. de 3 de Setembro de 1863; Resolução do Tribunal Administrativo de 16 de Agosto de 1871. 57 Port. 18 de Julho de 1838, D.D.C.E. 16 de Agosto de 1859, e 15 de Março de 1860 – Port. De 9 de Setembro de 1872, código adm., art. 252. 58 Código do Processo Civil, artigo 841, § 2.º. 54

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quantia do foro que pertencerá a cada um 59. Esta divisão não deveria ser por cabeça, mas em atenção às necessidades da agricultura e circunstâncias especiais de cada um, entrando todos proporcionalmente na partilha60. Finalizado o aforamento, deveria ser remetida à Direcção Geral dos Próprios Nacionais, pelo Delegado do Tesouro, cópia autêntica do contrato, a fim de se proceder à respectiva desamortização 61. Os terrenos de logradouro comum permaneceram, então, indivisíveis, continuando a ser alvo de discordância entre as várias juntas de paróquia que os partilhavam. Nas actas da junta de Perre é visível a preocupação de delimitar rigorosamente, através de descrições e marcos, cada um desses espaços, neste caso com a Meadela e Outeiro. Os caminhos de serventia dos montados de ambas as freguesias ficariam, igualmente, sempre “libres e francos, para quem por eles quizer transitar.”62.

AS SORTES OU LEIRAS, BOUÇAS, SOUTOS E DEVESAS Como diria, mais uma vez, Alberto Sampaio, “Foi assim que nos últimos cincoenta annos se tem transformado a propriedade dos montes. Divididos e aforados aos vizinhos d’um 63

logar ou parochia, que já os possuiam em commum, cada um recebeu a sua gleba, sorte, que limitou com marcos. O roço é exclusivo, mas o gado pastorea ainda livremente. Depois o dono da sorte, veda-a d’uma maneira continua, e aparece então a bouça, que termina a série e estabelece definitivamente a propriedade particular. Assim se taparam e se estão tapando todos os montados, assim vão desaparecendo os baldios n’estes terrenos.” 64.

Fig. 5. Devesa/bouça na Insuela, Meadela (lugar de Portuzelo). Foto da autora, 2013. 59

Alv. De 27 de Novembro de 1804, § 10; Lei de 28 de Agosto de 1869, art.º 11, § único; Reg. de 25 de Novembro de 1869, art. 52, § 1º. 60 Ord. L. 4, tit. 43, §§ 9, 12 e 15; art. 436 do Código Civil com relação á divisão de águas comuns. 61 Arquivo Municipal de Viana do Castelo. Instruções para regular os processos de aforamento, 1880. 62 Arquivo da Junta de Freguesia de Perre. Acta da sessão de quinze de Semptembro de mil oito centos e setenta e nove: Actas da Junta de Paróquia de Perre, 1879. 63 Escrevia ele em 1886, no seu artigo A cultura do mato. Estudos de economia rural do Minho. 64 Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 23.

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A bouça era portanto o termo mais comum para designar uma parcela vedada de paredes ou valos e semeada de mato, geralmente com árvores, carvalhos e sobreiros no Minho central, pinheiros bravos (pinus marítima) na zona litoral; encontravam-se por toda a parte, podendo também intercalar-se com os campos. Nos locais onde os terrenos eram todos cultiváveis, as bouças afastavam-se e estabeleciam-se mais longe, onde o solo era rebelde à cultura, sobretudo nos montes65. Quando a extensão de bouça vedada era muito grande e a parede excedia 1,30m a 1,40m, a gleba tomava o nome de cerca, nos finais do século XIX apenas possuída pelas grandes quintas e conventos, e apenas diferindo da bouça por ter árvores maiores pois os proprietários ricos podiam-nas conservar mais tempo66. Existia, nesta região, o termo devesa, que segundo Alberto Sampaio, “designava especialmente uma plantação de carvalhos de “talhadia” 67. Nos concelhos do nordeste montanhoso chamam-se mato: carvalhal que se corta de tempos a tempos, sendo o principal e quase único rendimento a lenha e a casca que é aproveitada para ser vendida aos fabricantes de couros.”68, estando normalmente misturada com o terreno lavradio. No entanto, Almeida Fernandes alerta-nos para a proximidade deste topónimo com bouça, que abordei anteriormente. Devesa, segundo ele, teria “significação de terreno ocupado por árvores, enquanto que bouça era mais de matos – mas, de frequente, nota-se bastante indecisão quanto à distinção entre uma e outra, porque uma bouça pode conter também árvores; e uma devesa, matos. Em 1743, de facto, diz-se da bouça que a igreja da Meadela tinha em 1540 na Bouça Longa, o seguinte: «no presente está esta bouça toda de devesa e se costuma chamar a Devesa de Santo Amaro por ficar perto da capela do mesmo santo, e está toda cerrada e circundada sobre si por paredes»”69. No século XX, os lavradores desta região parecem identificar mais a devesa como um terreno cultivável mais próximo da casa de lavoura que a bouça, sendo esta última sempre composta por terreno inculto, ao contrário da devesa.

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Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 154 e 155. Idem – Ibidem, p.154. 67 Corte dos troncos e recolha do material lenhoso, deixando que as copas regenerem por via vegetativa a partir dos rebentos que emanam das toiças (cepo ou base do tronco que se mantém enterrado no solo após corte da árvore. Pereira, João Santos (2014). Op. cit., 32. 68 Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 154 e 155. 69 Fernandes, A. de Almeida (1994). Meadela Histórica: Paróquia de Santa Cristina da Meadela, 44. 66

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Fig. 6. Souto da Silva, em Santa Marta de Portuzelo (lugar de Portuzelo). Foto da autora, 2010.

Na Ribeira Lima e um pouco por todo o Minho, “(…) quando as habitações se agrupam, quasi nunca arruadas, mas espaçadas e separadas pela horta e curtelho ou curtinha, ficava em face, como ainda hoje é vulgar, um terreno de logradouro commum, plantado de carvalhos ou castanheiros – o souto. Actualmente dividido em leiras abertas, aos donos de cada uma pertencem a lenha e os fructos das arvores; mas o logradouro quanto á passagem, reunião, entrada e saída do gado, etc., é de todos os vizinhos. Quando se fizeram os aforamentos estes terrenos ficaram sem duvida no uso colectivo: mais tarde foram divididos, ficando os lotes soltos: modernamente estão a desaparecer, ou a reduzir-se pela vedação de todas ou algumas leiras. N’esta especie encontramos o mesmo processo que se adoptou na transformação do regime dos montes.” 70. Normalmente, o souto é composto unicamente por árvores de uma só espécie (usualmente castanheiros, mas outras há, como os plátanos, por exemplo, no caso do Souto de Santa Marta), e onde o mato não cresce. Todas estas terras de bravio não têm um valor independente no cálculo geral de uma propriedade, pois são consideradas como auxiliares indispensáveis das outras, não se lhes atribuindo rendimento directo. As de lavradio terão mais ou menos valor segundo possuam anexadas as glebas de mato em maior ou menor quantidade, e mais ou menos próximas: “como aquelle produto vem fertilizar as últimas, é evidente que o lavrador que o vendesse, esterilisaria os seus campos. Na compra d’uma propriedade que não tem bravios, o comprador calcula o mato que será necessário e abate-lhe o seu valor.”71 Como vimos acima, o aproveitamento dos baldios por parte das populações, começou por ser “alvo de ondas sucessivas de protestos (nomeadamente a partir da segunda metade do século XVIII) por parte de algumas camadas esclarecidas [como Herculano e Oliveira Martins] e ao 70 71

Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 25. Sampaio, Alberto (1886). Op. cit., 156.

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nível governamental, [que] já viam nessa prática um obstáculo ao progresso económico e agrícola”, argumentando que estes deveriam ser extintos para aumentar a produção e superfície agrícola, continuando até bem entrado o século XX72. Quanto à desamortização ou aforamento dos montados nas freguesias da região de Viana, foram pioneiras as do litoral atlântico: Areosa (1844), Carreço (1849) e Afife, seguindo-se, já junto ao Lima, Meadela (1867) e Perre (1880)73. A Câmara exercia o domínio directo sobre estes espaços, mas o domínio útil era das populações, tendo estas que pagar à Câmara um foro, remido em 1922, e ficando a população com os dois domínios74. No caso da Areosa, e como nos relata António Viana, os seus habitantes “ficaram na posse pública e pacífica dos montados para os gozarem em comum, com excepção de uma pequena porção «na vertente e falda do monte, ao poente a qual foi dividida pelos moradores, apropriando-se cada um deles da sorte ou quinhão que então lhes coube (…) semeada de pinhão, e com efeito se acha actualmente povoada de pinheiros que representam um considerável valor.»”75. O restante monte baldio passou a ser dividido a cada ano, pela Primavera, em parcelas para o roço do mato: “A demarcação foi feita por José Parente, do lugar de S. Mamede, a qual ficou por 140 réis cada parcela (ou sorte). Era esse Monte baldio dividido em longas tiras, de norte a sul, as quais eram parceladas, em grupos a corresponder aos lugares da freguesia: Povoença, Meio e Além do Rio. Cada ano sorteava-se uma partilha (uma das tais tiras), tirando cada Casa, "à sorte", a sua parcela, pagando uma importância (em 1886 foram 200 réis) para pagar ao demarcador e o remanescente era para beneficiar os caminhos de aceso ao Monte: Barros Longos, Costa, Penedeira.”. Em 1921, foi decidido que uma parte do monte da freguesia fosse dividido em sortes definitivas, originando assim as sortes de 20 anos, já que a lei não permitia que fossem definitivas.76 Na Meadela, a repartição dos montados, que sempre foram de logradouro comum e uso público dos moradores da freguesia desde tempos imemoriais, iniciou-se em Novembro de 1867, como já vimos, nomeando-se uma comissão de 15 cidadãos para estabelecer como esta deveria ser feita. Decidiu-se em cinco artigos que: 1º - Das vertentes do monte aforado ficaria uma porção de terreno para os pobres da freguesia edificarem casa e horta, no lugar da Cova;

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Estêvão, João Antunes (1983). A Florestação dos Baldios: Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 3º, 4º, e 5º, 1158. 73 Contando apenas com os dados destas, pelo que teria de ser feito ainda um levantamento mais significativo para toda a Ribeira Lima, de forma a perceber a “vaga” de adesão a este movimento. 74 Viana, António Martins da Costa (2012). O nosso monte: Vinha de Areosa, III Série, Ano XXXV, nº 485, Novembro/Dezembro, 4. 75 Idem. Ibidem. 76 Idem. Ibidem.

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2ª - A junta de paróquia deveria ficar com uma porção do monte para ser cultivado para pagamento do foro anual à Câmara Municipal e deveria ser reservada outra porção para novos fogos a edificar na freguesia, de acordo com a sua classe; 3º - O monte seria repartido em 1ª e 2ª classe, e cada habitante receberia a sua leira, conforme a sua classe. 4º - O aforamento teria o prazo de 100 anos, e nas leiras seriam feitas sementeiras de pinhão e mato, sendo obrigatoriamente tapadas com paredes pelas testadas, por cada usufrutuário, para que os gados não comessem as sementes, sendo as laterais tapadas de combinação. Ao centro ficariam divididas por marcos. Nenhuma leira dividida nesse aforamento seria tapada ou reunida a qualquer prédio de domínio directo, ficando sempre separadas por caminhos contra os prédios antigos, para serventia e uso público; E 5º - toda a despesa com este aforamento seria paga por casa usufrutuário de acordo com a classe a que pertencia, não se entregando nenhuma leira sem que tivesse sido paga primeiro. Para uma correcta identificação, os números das leiras foram gravados em cada uma delas sobre pedra ou rocha, com tinta de óleo vermelha. Cada leira era considerada pertença do fogo do seu usufrutuário, pelo que quando este se dava como extinto, perdia-a e esta passava para a Junta de Paróquia. Era considerado extinto um fogo cujo casal ou pessoa ocupante não tivesse descendentes com carácter de paroquianos, ou um que fosse vendido ou herdado com a propriedade a que pertencia, e cujos donos saíssem da freguesia, ou que o novo dono fosse de fora dela. No entanto, se no prazo de 6 meses o proprietário do fogo viesse da sua freguesia para a Meadela, ficaria com a usufruição da sorte correspondente; de outro modo, isso só aconteceria caso este depositasse no cofre da junta a quantia de 12.000$000 réis como esmola para obras da paróquia. Foi o que sucedeu com o casal António Soares Rodrigues e mulher Joana Gonçalves Cancela, que por falecimento do primeiro viram o seu fogo extinto: “Esta Junta de Parochia estando siente que faleceo o parochiano Antonio Soares Rodrigues = sua molher Joana Gonçalves Cancella e que não deixharao sessão nem sucessores a quele fogo com carater de parochiano neim avitante algum desta freguezia ali e combibente como tal aquele fogo desde já fica aquele fogo considerado istinguio para os ifeitos de que se trata nesta sessão como determina o Artigo 325 A4 codigo administrativo.”77. Seis meses depois, uma sobrinha da mulher deste casal, Joana Gonçalves Cancela, da freguesia de Santa Marta, vem reclamar, na qualidade de herdeira, a usufruição da leira que pertenceu ao fogo dos seus tios, tendo que pagar “uma ismola para obras da Parochia da coantia de doze mil reis em atenção ao benefissio que a junta e comição lhe

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Arquivo da Junta de freguesia da Meadela. Livro 1 de Actas da Junta de Paróquia da Meadela, fls. 132v.

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conçedeo de continuar na usufruição sendo esta de fora da freguezia, ao que ela prontamente sedeo por sua bontade”78. Fizeram-se, na Meadela, ainda mais duas repartições nos mesmos moldes da primeira: a 2ª, pelo lado da Costa de S. Francisco, em Janeiro de 1879, e a 3ª na Fonte Verde, em Abril de 188379. Relacionados com o primeiro artigo considerado para a repartição dos montados da freguesia ficam-nos alguns pedidos onde está patente a dimensão dos lotes destinados a habitação e a horta, bem como os nomes de quem os requisita: “Aos trinta dias do mês de Janeiro do anno de mil e oito sentos e setenta e dois no sitio do monte da Coba desta freguesia = sitio q ficou na repartição do monte rezerbado para Caza e orta para filhotes desta fr.zia comparçeo Manoel Afonco Carbalhido E Molher Maria Loisa Fernandes Riguenga pedindo e reqerendo na coalidade de pobres = Parante a respectiva Junta de Parochia terreno para Caza certa para biberem com com seos filhos, A Junta de Parochia na coalidade de ifiteuta e como reprezentantes desta freguezia da Meadella Deliberarao e demercarão uma piquena porção de terreno do aforado na istenção a correr de nascente a poente com trinta metros de comprido por binte de largo = terreno sofeciente para casa e orta atendendo a outros pobres q tem de seguir na rezerva destinada pela Junta e Comição da repartição do monte desta freguesia para o mesmo fim. E nada mais tinhao a deçedir a serqa da reclamação pedida e junta. Meadella 30 de Janeiro de 1872. Manuel Martins Branco secretário q escrebi e asignou” 80 A todas estas fontes preciosas sobre a prática de divisão dos montados, juntam-se as listas dos proprietários, o nº da sua leira, e respectiva classe, informações essenciais para compreender como se dividia o monte (desta freguesia em particular e de outras, na generalidade, que ainda os guardem no seus espólios), bem como a relação destas parcelas de terra com a respectiva casa de lavoura já que, como vimos, a parcela (no singular, por inicialmente ser apenas uma) estava associada à casa em si, ou à família que nela habitava, e não a uma pessoa singular. Naturalmente, com o passar dos anos e já chegados aos finais do século XIX, inícios de XX, a quantidade de leiras que pertenciam à mesma casa ou pessoa, dependia única e exclusivamente do seu poder económico. Naturalmente, também com os casamentos e heranças, a restrição inicial do usufruto exclusivo das sortes por parte dos moradores de determinada freguesia foi-se diluindo. Infelizmente, e omitindo aqui a história do século XX relativa a todos estes espaços, tendo sido alguns, como sabemos, apropriados pelo Estado para a reflorestação do país, e continuado outros na posse e usufruição dos seus proprietários (individuais e colectivos), assiste-se hoje a um abandono e progressivo esquecimento dos mesmos, reforçado pela decadência da agricultura. As lógicas ancestrais de organização e apropriação do território não são mais legíveis nele: não 78

Idem. Ibidem, fls. 136v. Idem. Ibidem, fls. 93v a 131. 80 Idem. Ibidem, fls. 93v a 131v. 79

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descortinamos mais os caminhos de serventia destes espaços, não conseguimos identificar, sequer, os próprios, que outrora foram parte da riqueza das freguesias e da sobrevivência de cada um dos seus habitantes. Não raras vezes encontramos pessoas que herdam estas propriedades e não as conseguem localizar de nenhuma forma: o cadastro (ou a falta dele) não é esclarecedor, os topónimos desapareceram ou mudaram, os locais deixaram de estar acessíveis ou a sua fisionomia foi completamente alterada, deixando-os irreconhecíveis. O meu desejo é que esta pequena exposição seja mais um contributo ou reflexão sobre a propriedade comum (que em alguns casos, como as sortes, passou a privada, ainda que se possa entender de uso colectivo), e que possa despertar consciências para o que, a curto prazo, será uma enorme dor de cabeça no que diz respeito à gestão do território, que seria, a meu ver, garantidamente minimizada se houvesse interesse em aliar a investigação histórica de cada localidade e suas especificidades, através da análise da sua documentação ancestral, ao mapeamento do território por parcelas de propriedade: o tão aclamado cadastro que tarda em aparecer para o Norte de Portugal.

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