Tarkovsky: Intersubjectividade e Tempo

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Personagens dos livros «Crime e Castigo» e «Os Irmãos Karamazov» de Fyodor Dostoyevsky
Gilles Deleuze on Cinema - What is the Creative Act? (1987) http://www.youtube.com/watch?v=7DskjRer95s
Ver por exemplo, "A Interpretação dos Sonhos" de Sigmund Freud
Na conferência "Tarkovsky Interruptus", 2012, http://www.youtube.com/watch?v=o4JyapuJyvY



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Trabalho para o Seminário
CINEMA CONTEMPORÂNEO
Mestrado Ciências da Comunicação - Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias
Docente Professora Doutora Inês Gil



-Tarkovsky
Intersubjectividade e tempo-
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Ano lectivo 2013/2014
Paulo Moisés Silvestre de Figueiredo
Nota: este trabalho foi escrito de acordo com a ortografia antiga


"A vida é mais fantástica do que qualquer fantasia."
Fyodor Dostoyevsky



Falar de Andrei Tarkovsky é falar da arte como busca da verdade absoluta. Nas palavras do próprio, "a arte, como a ciência, é um meio de assimilação do mundo, um instrumento para conhecê-lo ao longo da jornada do homem em direcção ao que é chamado "verdade absoluta"." (Pág. 39) Numa luta particular contra um sistema totalitário e censurante que buscava precisamente o mutilar do corpo e usar a arte como propaganda, Tarkovsky utilizou o domínio da intersubjectividade como forma de luta contra uma dimensão política-comunista, que forçou várias vezes o cineasta a rever os seus filmes para que pudessem ser exibidos. A consequente emigração levou-o a realizar filmes em associação com suecos e franceses. Viria a falecer em Paris a 28 de Dezembro de 1986, data que apareceu vários anos antes numa sequência de «Stalker» (imagem em cima). Para Tarkovsky, a função do cinema deveria ser a de despertar a alma e os desejos, e como legado deixa-nos um Sino, um Espelho, a Zona e Solaris, como pontos de encontro para reflexão sobre a humanidade.






Introdução

O presente trabalho visa fazer uma análise a dois filmes de Andrei Tarkovsky, «Solaris» e «Stalker», tendo como pano de fundo o livro de Gilles Deleuze, «Cinema II: Imagem – Tempo». Proponho-me a trabalhar a distinção entre cinema clássico e moderno, mais concretamente a noção de zona de indeterminabilidade e de que forma esta se manifesta em Tarkovsky e que conclusões podemos daí retirar. Se no primeiro filme é o próprio planeta Solaris que traça esta zona, em «Stalker» o espaço de reflexão é apelidado precisamente de Zona. Irei distinguir em Tarkovsky dois conceitos principais: intersubjectividade e tempo. No primeiro debruçar-me-ei na forma como o cineasta convida o espectador a entrar na acção, interpretando-a e construindo pontos de encontro entre todos os intervenientes, actores, personagens, espectadores e o próprio Tarkovsky. Num segundo momento, irei referir as consequências que os planos-sequência e outras técnicas/aspectos em Tarkovsky têm no resultado dos filmes e na sua interpretação.
Nestes dois momentos parece-me ser diagnosticável todo o processo que Gilles Deleuze descreve em «Cinema II: Imagem – Tempo». Seja a dimensão interpretativa ou a reinvenção do tempo, Tarkovsky ao longo da sua filmografia debruçou-se sobre os efeitos no espectador, sobre a função do cinema e da arte em geral, condenou o cinema de montagem, curiosamente a estrela mais brilhante do cinema russo a partir de Sergei Eisenstein. Através de seu pai, Arseny Alexandrovich Tarkovsky, poeta conceituado, transformou os seus filmes em "poética das imagens", usando a vasta obra de Arseny quer directamente no argumento, quer como inspiração para construír a mise-en-scène. Tarkovsky afirmava que a mise-en-scène servia "para expressar o significado do que está a acontecer; nada mais que isso. Mas definir dessa forma os limites da mise-en-scène equivale a seguir um caminho que leva a um único fim: a abstracção." Dessa forma Tarkovsky acreditava que o "director tem de trabalhar a partir do estado psicológico dos personagens, através da dinâmica interior da atmosfera da situação, e reportar tudo isso à verdade do facto directamente observado e à sua textura única. Só então a mise-en-scène alcançará a importância específica e multifacetada da verdade concreta" (Pág. 85-86). O cineasta, na sua obra literária «Esculpir o Tempo», exemplifica da seguinte forma o que pretende dizer com apelar à "dinâmica interior": "Friedrich Gorenstein, por exemplo, escreveu num roteiro que o quarto cheirava a poeira, flores mortas e tinta seca. Gosto muito disso, pois me permite começar a imaginar como é aquele interior, e sentir a sua "alma"." (Pág. 86). Tarkovsky gostava de sentir o sabor das palavras e da sua alma. Gostava de sentir a emoção que lhe transmitiam. Não era de todo fã de argumentos puramente técnicos e racionais, e para ele a melhor forma de transmitir essas emoções era através da poesia. Depreendemos assim que Tarkovsky tinha a intenção de convocar uma reacção, um estímulo, não estruturado ou manipulatório, mas inteiramente subjectivo. "Através da arte o homem conquista a realidade mediante uma experiência subjectiva" (pág. 42) diz em «Esculpir o Tempo». Esta é a condição premente na filmografia de Tarkovsky, pedir ao espectador um investimento espiritual que o leve a comunicar consigo e com o mundo. Veremos mais a fundo esta característica em exemplos de «Solaris» e Stalker». Primeiramente irei recapitular os principais pontos que Deleuze aponta na passagem da imagem-movimento, para a imagem-tempo.

Passagem do cinema clássico ao cinema moderno

Deleuze propõe nos dois volumes de Cinema 1 e 2 a existência de dois grandes regimes de imagens do Cinema: o da imagem-movimento, que irá dominar até à Segunda Guerra Mundial e o da imagem-tempo, que se começará a assumir a partir dos anos 40 durante o período que conhecemos como neo-realismo italiano.
Jacques Rancière sintetiza da seguinte forma a primeira destas imagens: "A imagem-movimento seria a imagem organizada segundo a lógica do esquema sensório-motor, uma imagem concebida como elemento de um encadeamento natural com outras imagens dentro de uma lógica de montagem análoga àquela do encadeamento finalizado das percepções e das acções." (Rancière 2001) A imagem paradigmática deste regime será precisamente o da imagem-acção, que explora essencialmente o valor da acção num movimento de causa-efeito, acção-reacção, que nos é dado pelo plano e a montagem organizados de forma a percepcionarmos uma continuidade sem cortes das situações e do movimento das coisas. É uma imagem que Deleuze identifica como realista, ou do "Realismo". Como diz Deleuze, "o que o espectador apreendia era então uma imagem sensorial motora em que ele participava mais ou menos, por identificação com as personagens (…) [em que] a banalidade quotidiana é submetida a esquemas automáticos já montados". (Deleuze 1985/2006, 13-14) O cinema explorava situações do tipo acção-reacção, estímulo-resposta através da planificação racional e montagem de planos que dela decorre.
Deleuze diz-nos no último capítulo de Cinema 1 e no primeiro de Cinema 2 que será justamente pela crise da imagem-acção que um outro tipo de imagem irá surgir. Esta mudança da imagem não é súbita, e a imagem-acção não deixa simplesmente de existir. O que nos vamos apercebendo é que algumas das suas características mais importantes, os elos das situações sensoriais motoras, se vão enfraquecendo. Surge um cinema do banal ou excepcional, com montagem frágil e precária. Uma narrativa aberta, incerta, seguindo as pisadas do real que procurará restituir e interpretar. Como diz Rossellini, "as coisas está aí, para quê manipulá-las?". Este regime instaura o corpo, o gesto, a plasticidade dos corpos, uma "descrição visual que tende para um ponto de indiscernibilidade do real e do imaginário" (Deleuze 1985/2006, 25). A "impressão" realista da imagem que nos dava uma descrição e continuidade totais (do Todo) do movimento do real, vai cedendo lugar a uma imagem que em vez de nos dar o Todo do real nos passa a "apontar" partes desse universo. No cinema do anterior "regime" o olhar do herói mediante determinada situação estimulava nele uma acção ou reacção, situação na qual, por empatia com a personagem, o espectador imergia. Com o neo-realismo a relação do herói com a imagem é de uma outra natureza: mais do que reagir a ela o herói "demora-se" a vê-la e a analisa-la. Mas não só os personagens, é também o espectador que em vez de ser alvo de um estímulo-resposta passa a ser requisitado para que interprete o que está a ver. Passamos assim de um cinema reactivo para um cinema reflexivo, onde a percepção deixa de se transformar em acção para se transformar em tempo. "Grava mais do que reage" as imagens e os sons dos espaços que atravessa (Deleuze 1985/2006, 13). Deleuze descreve a chegada do herói de «Ossessione» de Visconti à pensão como alguém que "toma posse visual" do espaço. (Deleuze 1985/2006, 15) Não é a situação de alguém que chega, domina e transforma com as suas acções o espaço, é a situação puramente óptico-sonora de alguém que o apreende com os olhos e com os ouvidos, "apontando" com eles objectos, gestos e sons, que perdem eles também uma relação com os aspectos mais ligados à acção para adquirirem um valor próprio, distanciado da sua funcionalidade como ferramentas. Deleuze assinala a importância do papel da criança como protagonista em alguns destes filmes neo-realistas, pois ela é, a partir do lugar que ocupa no mundo, mais um espectador que um actor, mais vidente que agente, relativamente impotente ao mundo dominado pelos adultos. Deleuze identifica ainda, para além da percepção, duas outras dimensões de distinção entre a imagem-movimento e a "nova imagem". A primeira resulta de uma "indeterminabilidade" entre real e imaginário. Sendo que o real são as imagens da acção que contêm coordenadas percepcionáveis (um lugar, um espaço, um personagem, uma narrativa)..., mas que está em constante tensão com o imaginado, ou seja, com a interpretação que se faz desse próprio real. A segunda dimensão tem que ver com a indiscernibilidade resultante do processo anterior que se traduz em incerteza sobre o tempo e que origina um conflito. Os acontecimentos por vezes surgem desafiando uma lógica linear do tempo e do espaço, camadas do passado coexistem como ponte do presente desarticulado, misturam-se e deixam-nos na dúvida.
Assistimos a uma performatividade dos corpos com gestos teatrais em que, sem marcações ou linhas demarcadoras rígidas, não parece existir um limite estabelecido mas um amplo espaço para a improvisação. Os personagens revelam-se a si próprios e ao espectador nesse exercício de performatividade dos corpos e gestos. Esta sequência demonstra o que Deleuze identifica como "enfraquecimento da imagem-acção". Quer ele dizer que não há ruptura entre imagens, a imagem-movimento e a nova imagem (-facto), mas uma sobreposição de ambas (com a imagem-tempo a emergir) alterando a percepção do espectador que deixa de se resumir a um exercício de estímulo-resposta, para ser convidado a interpretar situações que ficam em aberto.
É uma imagem objectiva ou subjectiva, realidade ou fantasia, aquele momento terá ou não acontecido? Embora o espectador se sinta tentado a procurar resposta para estas perguntas, o filme deliberadamente não esclarece nem nos desassombra essas dúvidas. Há um princípio de indeterminabilidade que é explorado. Os factos não deixam de ser factos pelo facto de serem visões. Lembremo-nos que este é um cinema de videntes, de pessoas que são mais impressionáveis do que impressionam. É um cinema regido por um "princípio de indeterminabilidade" que se nos revela oscilante, "ora é a banalidade quotidiana, ora são circunstâncias excepcionais ou limites. Mas, sobretudo, são imagens subjectivas, recordações de criança, sonhos ou fantasmas auditivos e visuais, em que a personagem não age sem se ver agir, espectadora complacente do papel que ela própria representa". (Deleuze 1985/2006, 17) Onde se criam zonas de indistinção e se exploram "tempos mortos da banalidade quotidiana (...), um tratamento das situações limite que as impele até paisagens desumanizadas, espaços esvaziados" (Deleuze 1985/2006, 16). O autor acrescenta que "somos remetidos à primeira forma do espaço qualquer: espaços desconectados".(Deleuze 1985/2006, 20) Deleuze interpreta-os como sendo "espaços quaisquer" ou como Bazin os chama, de "puros" onde um tempo e espaço próprios emergem de dentro da acção.
O facto é um facto (mesmo que seja do passado) é um sempre presente num espaço qualquer. O espaço qualquer também já não é um espaço particular, "o da situação sensorial motora, um meio bem qualificado, que supõe uma acção que a faz descobrir, ou suscita uma reacção que a ela se adapta ou a modifica. Mas uma situação puramente óptica ou sonora estabelece-se naquilo a que chamamos «espaço qualquer», quer desconectado; quer vazio" (Deleuze 1985/2006, 16-17).
Resumindo, a emergência do novo realismo instaura-se a partir de uma cisão entre o formalismo do cinema clássico e um novo regime que procura nos signos e na imagem interpretações diferentes para tratar a realidade. Ao primeiro regime corresponde uma descrição que supõe independência do objecto, valendo como realidade pré-existente. Ao segundo corresponde pelo contrário uma realidade que corresponde ao objecto e que contradiz, desloca ou modifica descrições precedentes.

Intersubjectividade

Voltemos definitivamente para Tarkovsky e para a sua obra, começando por delinear o conceito de intersubjectividade. Nos termos filosóficos conhecidos, intersubjectividade remete-nos para o relacionamento dialógico entre dois sujeitos ou mais sujeitos e para um "interaccionismo simbólico" como apontado por George Mead e Erving Goffman. Pressupõe um diálogo ou uma negociação no campo do simbólico entre dois actores sociais e podem ter ou não um objecto sobre o qual incidem esse diálogo. Goffman afirmava no entanto que a intersubjectividade estava condicionada pelo conjunto de máscaras e apresentações múltiplas que cada individuo faz de si mesmo, tentando na negociação com outros, conseguir prevalecer a sua identidade. Goffman considera a interacção como um processo fundamental de identificação e de diferenciação dos indivíduos e grupos. De resto, estes não existem isoladamente: só existem e procuram uma posição de diferença pela afirmação, na medida em que, justamente, são "valorizados" e usando uma expressão de Paul Ricoeur, "reconhecidos" por outros.
A diferença fundamental que encontramos em Tarkovsky é de que esta intersubjectividade não pretende valorizar esta ou aquela posição, mas tal como Deleuze afirma pretende "restituir-nos a crença na nossa relação com o mundo" (capítulo 7). O cineasta russo entendia que a grande função da arte "é a comunicação, uma vez que o entendimento mútuo é uma força a unir as pessoas, e o espírito de comunhão é um dos mais importantes aspectos da criação artística." (Pág. 42) Ou seja, não se trata de como no cinema clássico veicular por persuasão uma ordem de ideias, mas levar o espectador a reflectir sobre si próprio, os outros e desta forma, sobre o mundo. Trata-se portanto de uma intersubjectividade imersa em reflexividade e performatividade, já que é entregue ao espectador uma função de partilha e de interpretação, não de uma suposta mensagem que o filme trata, mas uma interpretação sobre a relação do individuo com o mundo em seu redor. "A arte é uma metalinguagem com a ajuda da qual os homens tentam comunicar-se entre si, partilhar informações sobre si próprios e assimilar a experiência dos outros." (Pág. 43)
Estamos portanto perante, como muitos afirmam, um cinema poético. Tarkovsky era apelidado de "Dostoyevsky do cinema". Como o escritor, Tarkovsky procura nos seus filmes empreender um resgate da espiritualidade do Homem. Algo comum em personagens como Rodion Raskolnikov ou Mitya Karamazov. Ele era na verdade um profundo crítico da "cultura de massas" que emergia no Ocidente, apesar de reconhecer que provavelmente tivesse tido um maior sucesso e reconhecimento se tivesse nascido um pouquinho mais a Oeste da Rússia. Dizia Tarkovsky que um dos mais desoladores aspectos da sua época é a "total destruição na consciência das pessoas de tudo que está ligado a uma percepção consciente do belo. A moderna cultura de massas, voltada para o "consumidor", a civilização da prótese, está a mutilar as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual." (Pág. 48).
Religar o espectador a este lado espiritual foi um dos objectivos que Tarkovsky perseguiu em toda a sua filmografia. A sua visão de arte assim o exigia e para tal, recorreu diversas vezes à obra poética do pai Arseny Tarkovsky por forma a conseguir transmitir toda a espiritualidade e emotividade que pretendia. «Stalker» (1979) é precisamente sobre essa busca.
Comecemos, trocando a ordem cronológica, por «Stalker». Filmado duas vezes entre 1976 e 1979, devido a defeitos técnicos dos primeiros negativos, «Stalker» (em russo, «Сталкер», e que em português pode ser traduzido para "perseguidor") foi filmado, na sua maior parte, na Estónia, então integrante da União Soviética. O argumento é uma adaptação livre da novela de ficção científica «Piquenique à Beira da Estrada», dos irmãos Strugatsky. Numa entrevista, Tarkovsky chegou a declarar que as semelhanças do filme com o livro restringiam-se ao uso das palavras "zona" e "stalker". «Stalker» conta a história de um homem humilde com a alcunha de Stalker que se torna um guia especializado em levar curiosos até à Zona, um local vedado por militares onde supostamente acontecem fenómenos inexplicáveis.

Stalker é assim contratado por um "escritor" e um "cientista" (Stalker faz um acordo com eles para nunca se revelarem os nomes verdadeiros) para os levar até ao epicentro da Zona onde, segundo se diz, os desejos dos viajantes são concedidos. A Zona é um local de reunião, mas que provoca simultaneamente desejo e pavor. Diz-se que perante o epicentro da Zona (o Quarto), os viajantes podem ver os seus desejos realizados. Porém, tal como Stalker conta ao Escritor e ao Cientista, não são os desejos conscientemente formulados que se materializam, mas os inconscientes. É contada durante o filme, a história de um outro Stalker que ter-se-á atrevido a atravessar o Quarto para que o seu desejo fosse materializado (o de ser rico), no entanto, quando regressa a casa, encontra não a riqueza esperada mas o irmão morto. Depois de regressar várias vezes ao mesmo local a fim de pedir o retorno do irmão, em casa descobre que fica a cada viagem ainda mais rico. O Stalker desgostoso acaba por se suicidar.
Desse modo, quando confrontado com a pergunta do Escritor, "porque não formulas o teu desejo, já que vieste à Zona muitas vezes?", a resposta de Stalker é algo ambígua, diz que o seu destino é ser Stalker, que a sua vida está profundamente ligada à Zona, mas que nunca se atreveria a desejar-lhe algo, pois sabe-se lá o que povoa o seu inconsciente. A sequência final do filme em que a sua filha que não tem pernas move objectos com a mente parece responder a essa questão. O interessante nesta troca de impressões um tanto quanto enigmáticas é que são provocadas por um espaço invisível ao qual é atribuído uma mitologia própria e que permite aos três viajantes se conhecerem a eles próprios. Conhecerem não o mundano, mas as suas reacções mais intempestivas. A Zona faz sobressair nos viajantes o seu lado profundamente humano, que são as emoções e fá-lo com a ajuda dos avisos de Stalker quando diz por exemplo, que a Zona está sempre a mudar, que os caminhos nunca são iguais e que perigos vários espreitam. Na verdade, durante toda a viagem nunca Tarkovsky coloca aos viajantes um perigo real ao não ser curiosamente quando têm de fugir dos militares na entrada da Zona. Parece haver mais perigo fora do que dentro da Zona. Mas ao longo da acção, através principalmente dos diálogos, constrói-se uma mitologia própria ao Quarto da Zona que quando lá chegamos o quarto desolado e em ruínas não impede que sintamos que ali se passam coisas estranhas ao nosso mundo. Ainda assim, apesar de a Zona ser o objecto de auto e mútuo reconhecimento entre os viajantes e de suscitar as mais diversas reacções no espectador, o que interessa no final, não é tanto a Zona em si, mas a influência das experiências acontecidas durante a viagem nos três personagens. É neles que Tarkovsky centra as suas atenções e não na Zona em si que nunca passa de casas desabitadas, campos enevoados, rios e cenários pouco idílicos como constatamos na sequência dentro dos esgotos.

Tarkovsky nunca quis privilegiar a componente da ficção-científica nos seus filmes. Em «Stalker» e «Solaris» que são assumidamente filmes com premissas sci-fi retiradas directamente de livros do género, o cineasta optou por reduzir o aparato tecnológico em «Solaris», decisão pela qual foi criticado pelo autor do livro, Stanislaw Lem. Ainda assim, Tarkovsky achou que muitas das cenas continham demasiadas distracções e achava que isso tinha desviado o espectador das propostas de reflexão que tinha incluído no argumento. Por essa razão, o consequente «Stalker» que é também uma adaptação literária foi totalmente despido de efeitos especiais. Se lermos a sinopse parece algo saído de Hollywood (espanta-me não haver um remake!), mas na prática a acção de «Stalker» nada tem a ver com o cinema americano. Aspecto que desenvolverei no capítulo dedicado aos aspectos mais técnicos.
Considerado o contraponto soviético ao filme «2001: Odisseia no Espaço», de Stanley Kubrick, sendo chamado de "anti-2001", «Solaris» é uma adaptação do livro com o mesmo título do escritor Stanisław Lem que por pouco não permitiu a adaptação de Tarkovsky, uma vez que o realizador inicialmente insistia em retirar do argumento toda a alusão à ficção científica, o que desagradou profundamente o escritor polaco. Tarkovsky acabou por ceder um pouco e considerou o filme como parcialmente falhado por desviar a atenção do espectador do que realmente importava. No filme, Solaris é o nome de um planeta recém-descoberto que é um oceano em toda a sua extensão. Os cientistas encetam uma série de estudos a que dão o nome de solarística e que tentam perceber se existe vida inteligente em Solaris, uma vez que são recorrentes acontecimentos estranhos como alucinações e sonhos por parte dos astronautas a bordo da estação em órbita do planeta. Para tal, um famoso psiquiatra, o Dr. Chris Kelvin (Donatas Banionis) é enviado para a estação espacial para compreender os eventos ocorridos. Uma vez no local, Kelvin começa a ser visitado de noite por Khari (Natalya Bondarchuk), um antigo amor que se suicidara dez anos antes. Kelvin lentamente começa a perceber que o planeta comunica com ele, materializando os seus desejos mais íntimos.

Neste filme a "zona" é o próprio planeta Solaris que intermedeia uma relação entre materialidade e espiritualidade que Tarkovsky tanto gostava de abordar. Mais que uma relação, tanto «Solaris» como «Stalker» falam de auto-confrontação, de encontrar um ponto de equilíbrio entre o que se deseja e um ideal estético e ético nem sempre fácil de encontrar. Tal como Tarkovsky tão bem salienta nem sempre o que desejamos conscientemente encontra esse equilíbrio, motivo pelo qual, o realizador entrega à materialidade cósmica de Solaris (e quem diz Solaris, diz a Zona de «Stalker») a tarefa de revelar que não é a busca por mais conhecimento científico que nos guia, mas um profundo desejo de reconexão com a humanidade como tão a sequência de «Solaris» entre 01:45:10 e 01:49:44 em que o protagonista Dr. Kelvin abandona a demanda de entrar no laboratório em que iria fazer uma série de experiências que poderiam levar a que Khari se desmaterializasse, para correr de volta para os braços de aparição da sua esposa Khari, uma redenção que acaba com Tarkovsky a filmar o planeta Solaris como que mediando o reencontro entre Homem e o seu Sonho. O próprio Tarkovsky encarava a sua obra como uma busca que leva um artista a "fazer descobertas espirituais, e a emprega o máximo de esforço espiritual. A aspiração ao absoluto é a força que impele o desenvolvimento da humanidade. Para mim, a ideia de realismo na arte está ligada a esta força. A arte é realista quando se empenha em expressar um ideal ético. O realismo é uma aspiração à verdade, e a verdade sempre é bela. Neste ponto, o estético e o ético coincidem." (133/134)
Mas tal como Deleuze nos aponta, a vontade maior (ou necessidade) que leva o artista a expressar-se artisticamente através de um objecto só é realizada no espectador, tal como também Marcel Duchamp nos havia apontado em «O Acto Criativo». Embora no caso de Duchamp, este acto criativo não se expressa conscientemente através do artista, o artista não é senão um meio através do qual a arte se expressa. Esta ideia de uma obra de arte que se realiza no espectador faz abandonar o regime da contemplação (característica do cinema reactivo clássico) para uma cultura da mediação. Isto é, a obra de arte ao incluir o espectador na sua realização organiza uma experiência e uma percepção, mediando uma relação ou uma experiência estética do homem com o mundo. Esta é de resto uma ideia moderna de comunidade e um processo que faz de novo emergir a arte como intersubjectividade, como comunicação.

Tarkovsky cita ainda Vyacheslav Ivanov sobre a imagem artística a que chama de símbolo: "Um símbolo só é um símbolo verdadeiro quando é inesgotável e ilimitado em seu significado, quando exprime, em sua linguagem oculta (mágica e hierática) de sinais e alusões, alguma coisa de inexprimível, que não corresponde às palavras. Tem uma multiplicidade de faces e abriga muitas ideias, permanecendo inescrutável em suas mais recônditas profundezas. E formado por processos orgânicos, como um cristal." (Pág. 53)
Esse interstício das palavras, o não-dito é o lugar de reflexividade do espectador e onde este se coloca perante outros espectadores e o mundo. Permite-lhe encontrar-se consigo próprio mas também com a restante comunidade, construindo-se como sujeito único mas partilhando um lugar-comum.

3. Tempo: planos-sequência, enquadramento, montagem, som e paisagem

Analisemos algumas questões concretas e mais técnicas, nomeadamente as perspectivas de ritmo e montagem em Tarkovsky, usando exemplos dos filmes em análise.

Planos-sequência

O cinema de Tarkovsky com os seus longuíssimos planos-sequência abre um espaço para a penetração do filme pelo espectador (que, penetrando no filme, penetra em si mesmo) desconhecido até mesmo do cinema moderno. O tempo rápido, fragmentado e remontado – um tempo comprimido que se desdobra imaginariamente – foi uma marca do cinema moderno que reflectia a ideologia da duração do quotidiano. O procedimento de Tarkovsky é o exacto contrário: o tempo é uma célula de duração que se expande progressivamente pelo plano, tomando conta de todo ele e da sequência, do filme e do espectador. E em tempo real, não imaginário. Em ambos os filmes encontramos esta marca de Tarkovsky. Em «Stalker», ao entrar na Zona os três personagens colocam-se em cima de um comboio e sem cortes, é filmada a sua viagem (33:40 – 36:55). Parece tratar-se de um travelling em que são os próprios personagens que o protagonizam. Relembrando Serge Daney quando reverte para o travelling uma condição moral, Tarkovsky parece responder colocando o espectador na posição exacta dos protagonistas e de integrante no próprio travelling. Citando Daney: "o travelling era imoral pelo motivo que ele nos colocava lá onde nós não estávamos. Lá onde eu, em todo caso, não podia nem queria estar. Porque ele me "deportava" da minha situação real de espectador e me transformava em testemunha me incluindo forçosamente no quadro. Ora, que sentido poderia ter a fórmula de Godard senão que é necessário não se colocar lá onde não se está, nem falar em lugar dos outros." Normalmente, vemos um travelling acompanhar o movimento dos personagens, neste caso Tarkovsky enquadra simultaneamente o movimentos dos corpos e a técnica do travelling, não esquecendo de colocar o espectador dentro do comboio também. É de notar que o ângulo percorrido pela câmara é a de alguém que se encontra no comboio e não fora. Esta técnica pretende colocar ambos espectadores e personagens no mesmo ponto de partida, ou seja, a entrada num local místico e até perigoso do qual pouco ou nada se sabe, nem mesmo o Stalker que admite a constante mudança que a Zona opera dentro de si própria. Com isto, altera profundamente a designação de espectador em si mesma.
Em «Solaris», estes plano-sequência também são frequentes, contudo, limitado pelo espaço, Tarkovsky promove uma série de sequências num mesmo espaço, mas fica como que obrigado a recorrer a cortes para mudar o enquadramento. Por exemplo, entre 01:09:26 – 01:12:00 temos uma sequência onde pouco acontece, Kris acaba de ver o vídeo do suicídio de Gribaryan (Sos Sargsyan) e está no seu quarto. Tira as botas, deita-se, deambula pelo espaço sem que a narrativa se desenvolva, sabemos que o personagem pensa no vídeo assim como nós somos convidados a pensar naquela mensagem mórbida. Kris deita-se acompanhado da arma e adormece. Solaris irá por fim comunicar com ele…
Estes planos-sequência permitem assim não só cristalizar o tempo, como atribuir como veremos uma consciência a elementos não materializados na acção. Uma fixação do tempo num plano ou em uma sequência é algo que seria praticamente impossível ter em conta no cinema clássico mas que se revela essencial para compreender a obra de Tarkovsky. Como o próprio referia "do momento de acção e até ao corte, está-se a fixar tempo (…) o cinema fixa o tempo". Fixar o tempo significa não uma aparente estagnação, mas uma aproximação aos tempos circunscritos entre acções. O que o realizador tenta é cristalizar o tempo através de ritmos pulsantes mas vagarosos, recorrendo a planos-sequência longos, quase silêncios e enquadramentos (por norma) aproximados. Os filmes de Tarkovsky estão impregnados da forte gravidade da Terra, que parece exercer pressão sobre o próprio tempo, esta "paisagem terrestre" como lhe chama Zizek e que na qual me debruço mais à frente é construída através da forma como Tarkovsky se expressa com o ritmo dos seus filmes, "o factor dominante e todo-poderoso da imagem cinematográfica é o ritmo, que expressa o fluxo do tempo no interior do fotograma." (Pág. 134) Cada plano seria para ele o testemunho do tempo capturado, quase uma série de quadros artísticos colocados perante o espectador para que este experiencie não só uma narrativa mas também uma percepção estética e sensível do mundo colocado perante ele, uma característica que se encontra em outras formas de arte. Porém, Tarkovsky distingue o cinema das demais artes, "se compararmos o cinema com artes baseadas no tempo, como digamos, a música ou o ballet, veremos que a marca distintiva do cinema consiste em dar ao tempo forma real e visível. Uma vez registrado na película, o fenómeno ali está, dado e imutável, mesmo quando o tempo o for intensamente subjectivo." (Pág. 140) Ficamos com a noção de materialização de um tempo real através da sua captura, ao mesmo tempo que esse registo se perfila como subjectivo. Isto é, capturando o tempo por intermédio do jogo de ritmos, como diz Brian Masterson, "his contemplative, imagistic style emphasized the integration of characters with the world around them, both through their positioning in the frame and through the slow, probing camera movements he frequently employed."
Tarkovsky demarca-se assim do cinema clássico pela incisiva utilização destes planos-sequência longos que cristalizam o tempo, limitando a montagem dos seus filmes.

Montagem

A relação de Tarkovsky com a montagem foi problemática. O cineasta contrapunha o trabalho do seu compatriota Eisenstein dizendo não aceitar os princípios do cinema de montagem porque eles "não permitem que o filme se prolongue para além dos limites da tela, assim como não permitem que se estabeleça uma relação entre a experiência pessoal do espectador e o filme projectado diante dele. O "cinema de montagem" propõe ao público enigmas e quebra-cabeças, obriga-o a decifrar símbolos, diverte-se com alegorias, recorrendo o tempo todo à sua experiência intelectual." (Pág. 140)
Fica claro que Tarkovsky pretendia que o espectador construísse uma relação emotiva e não puramente racional com os seus filmes. Daí que os planos-sequência de que falámos fixassem o tempo por forma a permitir uma deambulação livre por parte de quem assiste. Mais uma vez recorro ao travelling do comboio quando os três personagens entram na Zona. A ausência de cortes ou de planos distantes (gerais, médios ou de conjunto) evidenciam a tentativa de tocar o menos possível no mundo que é apresentado ao espectador. Aliás, mais à frente falarei mais aprofundadamente da paisagem, mas em todo o filme «Stalker» prevalece um ambiente de natureza selvagem, onde os resquícios da sociedade se resumem a resíduos esquecidos no rio e a casas e carros abandonados reivindicados entretanto pela natureza da Zona. Tarkovsky prefere manter a paisagem intocada e a opção de usar longos planos em ângulos fixos (01:31:40 – 01:33:30), faz sobressair um realismo documental desconcertante, como se fossemos um quarto viajante: o Espectador. A montagem é preenchida em «Stalker» de campos abertos e proximidade humana (panorâmicas e grandes planos), e decorre em tempos lentos, evitando o que Tarkovsky apelidava de "enigmas e quebra-cabeças". Olhando para «Stalker» ou para «Solaris», sabemos exactamente o que temos diante de nós, sendo a interpretação de cada momento entregue a um domínio que exclui um regime de "causa-efeito, acção-reacção, que nos é dado pelo plano e a montagem organizados de forma a percepcionarmos uma continuidade sem cortes das situações e do movimento das coisas". Em suma, a montagem não coloca o espectador necessariamente num campo exterior resumido a um interpretante, no caso de Tarkovsky a montagem visa incluir o espectador dentro da própria obra.

Enquadramento

Um comentário comum relativamente a «Stalker» é a utilização de enquadramentos enigmáticos. Como Geoff Dyer aponta, "you don't know who is doing the looking" (2012). Espreitemos alguns exemplos:
Na sequência à entrada do túnel, por exemplo, (01:27:51) vemos os personagens a partir de dentro do túnel, e sentimos a diferença espacial palpável entre o estar à porta a olhar para o túnel e o estar de costas para o túnel. Sentimos os três personagens a olharem para algo estranho, mas a perspectiva do espectador não deixa ver o quê. Depois de vermos o túnel de frente, o receio dos três sobre o caminho a seguir e o desconforto quase nos faz olhar por cima do ombro, pois a partir daquele primeiro ângulo o perigo está nas costas do espectador.
No final, no plano-sequência em que a esposa de Stalker faz o discurso para a câmara (02:28:00 – 02:30:40), o enquadramento não é fixo, a câmara oscila ligeiramente, e tenta captar os movimentos aleatórios de Zhena. O seu discurso é confessional, alterna entre secretismos e revelações. Tarkovsky escolhe um plano centrado que capta Zhena dos joelhos para cima (plano americano, Zhena até puxa de um cigarro, imagem de marca da independência no cinema americano) passando progressivamente para um meio primeiro plano, com um enquadramento da cintura para cima, e no final para um primeiro plano, com o enquadramento do peito para cima. Tudo isto à medida que Zhena aprofunda a sua confissão ao espectador. Esta escolha de enquadramento é peculiar na medida em que todo o filme foge bastante a esta formalidade/sequencialidade, preferindo enquadramentos mais enigmáticos como por exemplo os que se seguem.
Comecemos pela estranha mudança de planos na sequência (56:00 – 58:50). O Escritor decide investigar umas ruínas contra indicação do Stalker. Após acatar uma série de conselhos, o Escritor dirige-se para o local. O primeiro enquadramento fica nas costas dos personagens num plano geral dos três a discutir como será a aproximação às ruínas. A câmara mantem-se fixa e observamos o Escritor lentamente a afastar-se do Cientista e de Stalker, começando a integrar no enquadramento o destino (as ruínas propriamente ditas) do Escritor. De repente, Tarkovsky faz um corte e ainda que continuando nas costas do personagem, surgimos na nuca do Escritor (56:46), como se escolhêssemos não ficar para trás, mas arriscar uma aproximação às ruínas misteriosas. Tarkovsky tem aqui um momento digno de um filme de suspense, poderíamos dizer que é em «Stalker» um momento à Hitchcock. O silêncio dos personagens prevalece, mantendo-se os ruídos de animais distantes. Não fazemos ideia do que irá acontecer e este tempo suspenso refugia o espectador entre o real e o imaginário, uma zona de indeterminabilidade, como Deleuze havia diagnosticado. O mais surreal acontece a partir daqui.

Aos 57:10, após uma indecisão do Escritor e consequente entrada do seu rosto frontal no plano, subitamente, Tarkovsky abandona este "plano de nuca" (usados até à exaustão por Tarkovsky e recuperados por Gus Van Sant em «Elephant» em 2003) e coloca-nos na perspectiva das ruínas (ou da Zona, se quisermos) como se esta ficasse também subitamente consciente da indecisão do Escritor em efectivar a sua aproximação. Neste momento também perdemos do enquadramento os restantes viajantes, até que uma voz lhe pede que pare. A câmara recua para dentro das ruínas, como se percebesse que o Escritor não está sozinho e que um Stalker o acompanha. A câmara coloca em enquadramento Stalker e o Cientista que discutem quem terá pedido ao Escritor para parar, saltando de novo para o "plano de nuca" (que podemos interpretar como sendo o quarto viajante, o Espectador) do Escritor que recua acatando o conselho vindo não se sabe bem de onde. A câmara volta à primeira forma, ficando por detrás do Cientista e de Stalker, observando o Escritor a regressar ao grupo, desistindo da sua solitária demanda. Este jogo de enquadramentos, com diversos cortes, pretende colocar em acção diversas perspectivas, até de intervenientes (que eu diria serem a Zona e o Espectador) que não estão materializados no filme, requerem uma percepção do espectador para tal.
Na sequência 47:52 – 49:25, Tarkovsky faz aproximar a câmara de um carro abandonado por intermédio de um travelling. A sensação inicial é de que se trata da perspectiva dos personagens. Porém, assim que a câmara alcança o veículo, estes aparecem do outro lado, um por um. Notamos inclusivamente o pormenor aos 48:26 de um som de pisar da relva como se tratasse de um travar de passada (a relva mexe-se inclusivamente). De quem se tratava o ponto de vista? Do espectador? Estará ele também dentro da zona? Ou é a perspectiva da própria Zona? Neste caso e/ou no caso anterior, a Zona adquire um estatuto de sentiente.
Estas não são as únicas vezes que Tarkovsky aufere a Zona uma vida própria. Na sequência quando o Escritor tenta arrancar o que parece ser uma raíz de uma árvore (53:18-53:50), Stalker responde violentamente atirando-lhe um ferro, "já disse que isto não é um passeio. A Zona exige respeito, caso contrário, castiga". Os diálogos quase mitológicos de Stalker ao contar os perigos que espreitam e os episódios ali passados, constituem à Zona uma subjectividade própria, um pouco como nós personificamos a o planeta em Mãe-Terra. Porém, Tarkovsky sempre rejeitou simbolismos superficiais. Aqui trata-se de construir uma consciência que oscile livremente entre materialidade e espiritualidade. Essa tentativa de personificar a Terra é confrontada precisamente pela condição consciente que Tarkovsky imprime aos objectos.
Isto acontece, por exemplo, na sequência no Quarto no centro da Zona, em que um telefone inesperadamente toca (01:48:45 – 01:52:00). Esta sequência é desconcertante em vários aspectos. Primeiro porque sai totalmente fora de contexto com a conversa séria entre os personagens que decidem quem será o primeiro a pedir o seu desejo. Segundo, porque obviamente não se espera que no ambiente apocalíptico da Zona algum telefone toque. Terceiro porque é no preciso em que um cão que os persegue (e que pode ser eventualmente a perspectiva não revelada na sequência do carro) entra na sala e passamos a ver os três personagens pelo que tudo indica que são seus olhos (ou os olhos da Zona, caso se queira ir mais longe). Tarkovsky relativiza assim a subjectividade de cada um colocando na mesma sequência diferentes ângulos e todos de características extremamente pessoais. Depois a conversa que o Cientista tem ao telefone pode ter variadíssimas interpretações: uma conversa factual entre ele e um seu rival, ou uma conversa entre ele e uma alucinação provocada pela Zona, ou seja, uma conversado Cientista com a sua própria consciência.
Num outro caso, já no Quarto quando após o Escritor renunciar ao desejo e o Cientista desistir de armar a bomba que levava com ele para destruir a Zona, subitamente a câmara passa para dentro do Quarto (02:12:58) e passamos a ver os personagens a partir de dentro do Quarto num plano aberto de ambientação, como se a Zona ou o espectador tivesse o seu desejo satisfeito. A câmara afasta-se lentamente dos personagens e revela o interior do Quarto (até aí escondido do espectador), com a tonalidade de cores a mudar inclusivamente sobressaindo assim um diferencial entre dimensão em que os personagens se encontram e o enigmático interior do Quarto.
As diferenças entre este jogo de enquadramentos e perspectivas de «Stalker» e em «Solaris» estão na materialização/ imaterialização dos desejos. Se em «Stalker», Tarkovsky optou por nunca colocar directamente a Zona ou os desejos dos viajantes num plano objectal, em «Solaris», os desejos do profundo inconsciente destes aparecem na sua forma humana, sendo personagens no filme. A irrupção de Khari na sequência 01:31:10 – 01:32:20, pretende precisamente inferir que o inconsciente quer queiramos ou não, encontra forma de emergir no consciente. Tarkovsky parece adoptar por diversas ocasiões premissas da psicanálise, sendo Khari um excelente exemplo de um "retorno do recalcado" que irrompe na consciência, por mais que sublimemos essas memórias. Nesta sequência, Tarkovsky é "obrigado" a fazer um corte, complementando-a com uma luz azul a incidir sobre o rosto de Kelvin.
Outro exemplo, ocorre no plano-sequência 01:42:42 – 01:44:20, Khari, materializada por Solaris, pede a Kelvin que conte as suas memórias acerca dos dois. É desta forma que o planeta tenta comunicar com os humanos, porém, é assim também que Khari reconstrói a sua subjectividade perante o espectador. O espelho é um dispositivo onde o humano se reconhece a si mesmo como um ser de linguagem, e este enquadramento de Khari e Kelvin, perante o espectador, permite não só a reconstrução das memórias de Khari como também preencher a memória do espectador com a relação passada dos dois. Os personagens deparam-se com a construção da sua própria narrativa, como se para trás não houvesse nada, colocando-os numa posição similar ao espectador. Khari é a materialização do desejo mais profundo de Kelvin que ganha vida e subjectividade perante um espelho e perante uma outra janela (a câmara) e o espectador, criando um espaço de intersubjectividade entre planos materiais e imateriais.

Som

Quer em «Stalker», quer em «Solaris», Tarkovsky recorre amiúde a silêncios, ou relativos silêncios. Não ouvimos diálogos, nem se recorre a voz off, mas o realizador deixa o som natural ganhar o seu espaço na tela. Em «Stalker» os sons da natureza, os pássaros, a água, as árvores (49:50 – 52:00) servem de banda sonora para o avanço cauteloso dos personagens. A música não reforça mas cria desta forma um ambiente próprio, ao mesmo tempo que subjaz a ideia de que cada instante tem uma melodia e que essa melodia é diferente para cada um de nós, enquanto espectadores.
Também não é menos verdade que Tarkovsky recorre inúmeras vezes a dobragens em estúdio, isto é, o som foi adicionado depois da captação de imagens e não admira que em muitas ocasiões os personagens estejam de costas para a câmara, já que este pormenor ajudava sobremaneira a esconder essa técnica. Edward Munch aponta também o uso de sintetizadores como forma de conferir um ambiente atípico e sombrio ao filme, como por exemplo, na sequência em que Stalker, Cientista e o Escritor viajam em cima do comboio (33:40 – 36:55).
Em «Solaris» o som é forçosamente diferente. Nas sequências "silenciosas" ouvimos não a natureza, mas ecos reverberantes e o vazio de uma tecnologia abandonada pelos seus tripulantes que entretanto se encontram remitidos aos seus quartos (45:40 – 48:00). O completo vazio sonoro é de resto um dos aspectos mais perturbantes de «Solaris». Tarkovsky consegue incomodar o espectador com longos silêncios, como se o convidasse a uma introspecção com os personagens. Não obstante, faz notar o quão incómodo é esse vácuo, no notável diálogo entre Kris Kelvin e Snaut:
(01:26:11 – 01:26:45)
Kelvin: "Aqui, a noite é o melhor período do dia. É como se estivesse na Terra"
Snaut: "Cola estas listas de papel no ventilador"
Snaut baixa um tubo ventilador com as mãos e cola umas listas de papel no rebordo
Snaut: "Faz lembrar o sussurro da folhagem. Foi uma invenção de Gribaryan. Simples como tudo o que é genial. Copiei-o imediatamente. O Sartorius gozou muito connosco, mas sei que também tem isto no quarto escondido no armário"
A diferença entre ambos os filmes é distinguir o dispositivo que influencia a percepção do som. Se em «Solaris» os sons de fundo são produto da tecnologia da estação espacial, em «Stalker» são originários da natureza circundante. O que Tarkovsky me parece querer sublinhar, já que como sabemos «Stalker» é uma resposta a «Solaris», é que neste último o dispositivo cinematográfico foi interceptado pelo dispositivo tecnológico nele presente, o que erguia uma barreira entre o espectador e o ambiente da narrativa propriamente dita. Deste modo, o realizador optou por resumir ao mínimo dos mínimos a presença desse dispositivo tecnológico e, na verdade, a sua presença em «Stalker» fica totalmente eclipsada pelo dispositivo narrativo.

Paisagem, materialidade, terra, humidade, rostos

A paisagem é distintiva em Tarkovsky. Recuperando filmes como «Zerkalo» ou «Andre Rublev», a importância atribuída às panorâmicas e aos planos de transição entre espaços (ver exemplos em baixo) permitiam jogar com temporalidade e espacialidade com outra dinâmica e colocando esses aspectos em benefício da narrativa.

Contudo, para «Solaris», Tarkovsky deparou-se com um problema: como captar a paisagem ou o ambiente em redor dos personagens sem com isso sacrificar a narrativa? Na verdade, em «Esculpir o Tempo», o cineasta confessa não ter sido capaz de manter-se fiel à sua visão, ainda assim a paisagem onírica e surreal do planeta Solaris e mesmo que não esteja no enquadramento, está sempre presente na mente do espectador, marca um contraponto entre a paisagem austera, fria e tecnológica da estação espacial. Aliás, um único plano-sequência na estação espacial não invoca esta sensação de desconforto, entre 01:55:25 e 02:06:40 onde Tarkovsky remete os personagens para um ambiente mais quente e confortável, com referências à cultura terrestre que destaco mais à frente.
Talvez em «Solaris» haja mais imagem que movimento (o que é antípoda ao cinema de Hollywood). Na verdade, o intenso movimento está na interioridade típica dos personagens de «Solaris». É através deste movimento íntimo dos personagens que Tarkovsky nos apresenta suas inquietações filosóficas. Por outro lado, as imagens de «Solaris» são singelas, fluidas, de uma perenidade que inquieta. Cenas da Natureza exuberante em contraste com a civilização da Técnica (exemplos em baixo), mas uma Natureza que se impõe ao homem.

Nas imagens de abertura do filme, Kris aparece imerso na Natureza exuberante do bosque próximo a sua casa de campo. São cenas fabulosas e de uma poesia intensa. Cada imagem contém elos significativos com inquietações íntimas do personagem central - Kris Kelvin. É em torno dele que se desenvolve a trama de «Solaris». No filme de Tarkovsky, o preto-e-branco e o colorido se alternam, como se expressassem uma mescla de sentimentos e de percepções sobre o desconhecido (a Natureza e dentro dela, nós mesmos). Além disso, outro detalhe importante na cenografia de «Solaris» é a presença de ícones da modernidade e do seu imaginário científico (bustos de filósofos antigos, seja na casa de campo de Kelvin, seja na Estação orbital); ou até imagens de santos da Igreja ortodoxa. Enfim, estamos diante de uma justaposição quase-kitsch de ícones do tempo passado e do tempo presente, algo que em «Stalker» também acontece na sequência onírica entre 01:21:00 – 01:24:10.

Dialogamos com o tempo futuro – «Solaris» é o tempo futuro, de uma situação limite que atinge a civilização e seu dogma principal: a Razão clássica tal como se constituiu desde Sócrates (os bustos parecem ser de filósofos gregos antigos). Ciência, Arte, Religião – existe um intenso diálogo entre as formas supremas de virtualização do homem. Ao centro, o homem e suas inquietações existenciais. Por exemplo, um dos grandes temas filosóficos de «Solaris» são suas reflexões sobre o amor, o afeto universal que une pessoas, criador de laços societários através do tempo. Aliás, foi o tempo ao lado de Khari - tempo passado e tempo presente – que constituiu seus laços de afetividade com sua visita. Snaut diz a certa altura: "Se passar muito tempo ao teu lado, ela tornar-se-á humana". Na verdade, em Tarkovsky, o tempo constitui o ser humano, pois é com ele que se sedimenta os laços de amor. Como diz Saint-Exupéry (no conto "O Pequeno Príncipe"): "para se cativar é preciso ter tempo". Existe um tratado sobre o amor em «Solaris», é Kris Kelvin que diz que "o homem ama o que pode perder".
Em «Stalker» como diz Zizek, "a paisagem tarkovskiana por excelência é a de um ambiente húmido, rio ou charco junto a uma floresta, cheio de restos de artefactos humanos. Os próprios rostos dos actores, em particular o de Stalker, são únicos com a sua mistura de rugas vulgares, pequenas feridas, manchas escuras ou esbranquiçadas e outros sinais de decadência, como se tivessem sido expostos a uma substância química ou radioactiva venenosa, ao mesmo tempo que irradiam uma bondade e uma confiança ingénuas essenciais" (47:2008). Esses "ambientes húmidos" são captados recorrendo de diversas perspectivas. Entre 00:41:45 – 00:43:00, Tarkovsky inicia filmando a intensa vegetação e lentamente, eleva-se dos escombros por cima da vegetação revelando um poste de electricidade capturado pela natureza e uma casa abandonada, onde decorrerá a sequência já mencionada do Escritor a aproximar-se sozinho da entrada dessa casa.

Entre 00:49:42 – 00:51:50, uma pós-apocalíptica paisagem de veículos militares abandonados é revelada por uma panorâmica que se eleva por detrás dos personagens quando estes iniciam a descida de um monte, como se, mais uma vez, os estivéssemos a seguir. Ou ainda, no início da segunda parte aos 01:02:40, quando Tarkovsky faz um travelling diria convencional quando comparado com o utilizado no plano-sequência no comboio, em que acompanha Stalker através de uma paisagem obscura e pantanosa. E finalmente, no túnel seco (alcunha que proporciona um diálogo a que se convencionou apelidar hoje de gag relief) entre 01:07:20 - 01:09:17, em que os personagens começam a dirigir-se às entranhas da Zona, onde o ambiente é cada vez mais austero e repleto de perigos. Tarkovsky pretendia com estas paisagens decadentes criar a atmosfera ideal para retractar as preocupações espirituais que atravessam cada um dos personagens. Para tal, outra paisagem é igualmente importante: a do rosto humano. Os grandes e muito grandes planos, surgem com frequência e nos quais sentimos quase o odor do suor dos protagonistas, podemos traçar-lhes o mapa das suas cicatrizes e ler as suas almas. Os actores tornam-se opacos e transparentes para o espectador que os vê, é entregue ao corpo uma performatividade e plasticidade que Deleuze identifica como essencial na imagem-tempo.















Conclusão

Zizek diz que "Tarkovsky constituía o exemplo mais claro daquilo a que Deleuze chamou a imagem-tempo, em lugar da imagem-movimento. Este tempo do Real não é o tempo simbólico do espaço diegético nem o tempo da realidade da nossa visualização do filme, mas um domínio intermédio (…) daquilo a que Schelling chamou Geistige Körperlichkeit, a corporalidade espiritual." (2008) Acrescenta que "no universo de Tarkovsky penetramos na dimensão espiritual através de um contacto físico directo e intenso com o peso húmido da terra (ou da água estagnada). A experiência espiritual suprema ocorre quando um homem está estendido na superfície terrestre, meio submerso em água estagnada". (idem)
Esta ligação profunda à terra e à natureza é a proposta de Tarkovsky para uma religação do homem com o mundo. Pessoalmente, creio que «Stalker» é bastante mais eficaz nesta mensagem, embora não saibamos exactamente que planos teria o realizador para «Solaris», uma vez que o guião original apresentava diferenças consideráveis para a versão final (é o próprio Tarkovsky que o diz). O planeta que materializa os nossos desejos parece ser um espaço cósmico distante sem a relevância terrestre e familiar que a Zona transmite. No entanto, como verificada Solaris faz reencontrar no homem a capacidade de sonhar em oposição à dimensão da ciência e da técnica que Tarkovsky achava ser castradora da espiritualidade. Como gostava de dizer, "tem tempo para te conheceres a ti mesmo", frase que parece assentar bem na filmografia de Tarkovsky. O tempo é realista, por vezes surrealista, e o seu propósito é precisamente que neste espaço-tempo que se abre para espectador, este se aprenda a conhecer-se a si mesmo.



Bibliografia

DANEY, Serge (1992) O Travelling de Kapo
DELEUZE, Gilles (2006) A Imagem-Tempo, Cinema II, Lisboa, Assírio & Alvim
DYER, Geoff (2012) Zona, Vintage, Inglaterra
FARAGO, France (2002) A Arte, Porto, Porto Editora
GOFFMAN, Erving, (1993) A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa : Relógio d'Água
TARKOVSKY, Andrei (1998) Esculpir o Tempo, 2ª edição, Brasil, Martins Fontes
ZIZEK, Slavoj (2008) Lacrimae Rerum, Lisboa, Orfeu Negro

Outros documentos consultados online:

DE OLIVEIRA, Roberto Acioli, http://cinemaeuropeu.blogspot.pt/2009/03/zona-de-tarkovski.html

MASTERSON, Bryan, Cinematic Synthesis in the Poetic Work of Tarkovsky in http://www.academia.edu/5743146/Cinematic_synthesis_in_the_poetic_work_of_Tarkovsky

Fichas técnicas:

Solaris (1972)
167 min.
Realizador: Andrei Tarkovsky
Argumento: Stanislaw Lem (Livro), Fridrikh Gorenshteyn (adaptação)
Actores: Natalya Bondarchuk, Donatas Banionis, Jüri Järvet
Música: Eduard Artemev
Cinematografia: Vadim Yusov
http://www.imdb.com/title/tt0069293/fullcredits

Stalker (1979)
163 min.
Realizador: Andrei Tarkovsky
Argumento: Arkadiy Strugatskiy e Boris Strugatskiy (livro e adaptação)
Actores: Alisa Freyndlikh, Aleksandr Kaydanovskiy, Anatoliy Solonitsyn, Nikolay Grinko
Música: Eduard Artemev
Cinematografia: Aleksandr Knyazhinsky
http://www.imdb.com/title/tt0079944/fullcredits



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