TOMMY: O MITO DO CRISTO-NARCISO — SIMBOLISMOS NO FILME DE KEN RUSSELL

June 1, 2017 | Autor: Guilherme Kujawski | Categoria: Religion, Symbolism, Movies, Rock Music
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CINEMA DOS ANOS 70 CENTRAL GALERIA TOMMY: O MITO DO CRISTO-NARCISO — SIMBOLISMOS NO FILME DE KEN RUSSELL Por Victor Lema Riqué e Guilherme Kujawski

APRESENTAÇÃO Muito já se discutiu sobre o filme Tommy (1975), de Ken Russell. Há verdadeiras exegeses a respeito desse estranho épico cinematográfico, mistura de teatro vaudeville (sim, pois aquilo mais parece um entretenimento pop do que uma “ópera-rock” propriamente dita) e obra de arte total, no sentido wagneriano do termo. Adiantamos que não queremos assoberbar o leitor com mais uma exegese. Queremos, em nossa abordagem, inserir algumas imagens do filme no plano de uma ordem mitológica. Além disso, tanto a narratologia, como as técnicas cinematográficas (o uso da grande angular, o uso do zoom, o início do chroma key, interpolação de animações e outras peculiaridades), também contríbuiram para tal tomada de posição. Se muito já foi dito sobre Tommy, concordamos com Andre Gide: "todas as coisas já estão ditas; mas como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre." [1]

As imagens ao longo do filme são quase denotações: guerra, morte, contracultura, o individualismo e todo o contexto político, social e artístico que formam um painel crítico do standard way of life do pós-guerra e dos anos 70. As partes menos interessantes são aquelas que transformam a obra num pastelão, quase num “slapstick”, mas mesmo esses momentos são memoráveis, como as cenas do primo Kevin e do Tio Ernie (interpretado por Keith Moon) torturando e sodomizando um Tommy indefeso. Porém, estamos mais interessados no segundo plano, nas figuras de fundo, nos quadros subliminares e nos fantasmas da máquina semiótica que animam o filme. Com a ajuda de Andre Gide e da teoria do mito de Cristo, acreditamos ser o protagonista uma espécie de epitome de duas grandes imagens que vagam pelo inconsciente coletivo há tempos imemoriais: Cristo e Narciso. De tal feita que Tommy, tanto na forma de um autista, quanto na forma de um messias, seria a própria encarnação do CristoNarciso, uma hipostasia dos dois personagens.

PARTE 1 - NARCISO E O ESPELHO O espelho é uma das imagens chave no filme, um tipo de McGuffin, um elemento ao qual o protagonista almeja com força, uma metáfora de si mesmo, um meio de comunicação “intra-subjetivo”, já que a única coisa que Tommy consegue enxergar no espelho é o seu Id do outro lado (ou seria seu ego, como veremos adiante?). Ironicamente, há também a percepção de que não há nada do “outro lado”, aqueles seriam apenas espelhos de superfície, ou, como imagina Andre Gide, espelhos com “[b]ordas simples, como uma moldura bruta, onde se recolhe a água, como um espelho sem aço; onde nada se veria atrás; onde, atrás, se espalharia o tédio vazio.” [2] Espelhos como motif de pintura renascentista. Nesse momento é possível exumar aquele diagrama de Lacan, aquele do olhar e do sujeito da representação, onde se vê que o objeto do desejo emerge no cruzamento entre o olhar do observador e o olhar do observado, sendo que os dois olhares são dirigidos pela mesma pessoa.

Tommy é, antes de tudo, uma versão new age de Narciso. Interessante lembrar que o poeta francês Andre Gide formulou uma teoria do símbolo por meio exatamente do mito de Narciso. No conto O Tratado do Narciso, o personagem entende o espelho como uma forma de aproximar o significante do significado, ou seja, para ele, o objeto e sua representação são uma coisa só. Mas depois percebe a falácia dessa noção e passa a entender o espelho apenas como uma superfície polida que reflete a realidade, ou seja, reconhece a materialidade banal do objeto causador de sua ilusão. Isso também acontece com Tommy no filme, quando sua mãe Nora, com ciúmes do outro Tommy, arremessa-o de encontro a um espelho, que se quebra inteiro. É o espelho como portal de passagem, mas também como materialidade absoluta. As formas circulares do espelho, no filme de Russell, remetem sempre a outras formas isomórficas, como o olho, o sol e até uma bola de futebol (uma variação da bola metálica dos fliperamas?). É possível até criar uma teoria e especular que todos esses McGuffins marcantes (sol, olho, esfera, bola de fliperama, bola de futebol, etc.) são apenas metáforas do espelho, esse sim o McGuffin-mor de um CristoNarciso. PARTE 2 - CRISTO E A CRUZ A cruz é outro McGuffin-mor no filme, mostrada na forma de bombardeiros, de broches perfurantes de uma dama-de-ferro psicodélica, como iluminação de um palco de rock gospel, etc. A igreja messiânica de Tommy, por exemplo, é representada por uma cruz que tem a esfera metálica na parte de cima, lembrando um pouco a cruz Ansata, que consiste em um hieróglifo simbolizando a regeneração e a vida eterna (basicamente, a ideia expressa na simbologia da cruz egípcia é a do círculo da vida sobre a superfície da matéria inerte). Existe também a interpretação que faz uma analogia de seu formato ao de um ser humano, onde o círculo representa sua cabeça, o eixo horizontal os dois braços e o vertical o torso e as pernas. A cruz também afirma a relação entre o celestial e o telúrico, e que é através da crucificação, o conhecimento dos opostos, que se chega ao centro da consciência. No filme, Tommy promete a iluminação ao

seus fiéis através do jogo de fliperama, mas acaba notando, assim como Narciso, a falácia de suas suposições fundamentalistas (do tipo: “para se chegar à iluminação é necessário passar por toda sorte de privações físicas”, etc.) Outras imagens da simbologia cristã abundam na obra de Russell: templos, cruzes, uma festa natalina, hóstia (barbitúricos), vinho (whiskey), batismo, comunidades religiosas do tipo Waco e muita religiosidade comercial. Mas essas formas não servem para exaltá-la, e sim para destruí-la e descontruí-la. Tommy é, desde pequeno, quando quebra um presépio, um verdadeiro iconoclasta. Sua iconoclastia é afirmada com a destruição da estátua de Marilyn Monroe, um dos ícones mais fortes da contemporaneidade. Nesse sentido, Tommy é mais radical que o Cristo bíblico vandalizando os cambistas do Templo de Herodes. Porém não apenas os vendilhões de Russell são caricatos, mas seu próprio Cristo é tremendamente caricato, na verdade um Black Bloc de ícones, iludido primeiro com o choque de realidade de uma vida desperta, espiritualmente desperta; e depois por experimentar o gosto do conhecimento por meio da crucificação narcisista. Afinal, nosso Cristo-Narciso é uma sensation que voa de asa delta, uma combinação de Jesus Christ Superstar e médico de almas sem fronteiras. PARTE 3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS No plano da ordem mitológica o filme é perfeitamente sensato. Os três sábios macacos, Mizaru, Kikazaru e Iwazaru, são a mais perfeita tradução dos indivíduos dispostos a nunca cometer mal algum, mesmo que para isso tenham que se isolar do mundo ficando cegos, surdos e mudos. Também podemos falar da relações edipianas de Nora e Tommy, em alguns momentos as imagens são quase incestuosas. Sob as imagens mais evidentes OP como as que atacam o consumerismo (cemitério de bens de consumo, a aura de propagandas de feijões em lata e sabão em pó transbordando literalmente da tela de uma TV, etc.), as que são puro pastelão e as imagens de referência (a lavagem cerebral de Laranja Mecânica, a explosão de bens de consumo de Zabriskie Point, etc.) OP espreitam outras, essas sim mais poderosas, como o olho dentro da esfera

inserido quase subliminarmente na edição, representação clássica de dispositivos presentes em uma sociedade de vigilância. Nessa era pós-PRISM, estaria Ken Russel querendo sutilmente nos alertar, por meio de um mito precário, para o futuro distópico? NOTAS 1. Ver André Gide, O Tratado do Narciso (Teoria do Símbolo). Tradução: André Vallias. 2. Ibdem. O parágrafo completo é: Não há mais margem nem nascente; nem metamorfose, nem flor à vista; — nada além do solitário Narciso, portanto, somente um Narciso sonhador isolando-se na névoa. Na monotonia inútil da hora, ele se inquieta e seu coração incerto se interroga. Ele quer conhecer, enfim, que forma tem a sua alma; ela deve ser, ele sente, excessivamente adorável, a julgar por seus longos frêmitos; mas seu rosto! sua imagem! Ah! não saber se nos amamos... não conhecer a própria beleza! Eu me confundo nesta paisagem sem linhas que não contraria seus planos. Ah! não poder se ver! Um espelho! um espelho! um espelho! um espelho! E Narciso, que não duvida que sua forma esteja em algum lugar, se levanta e parte à procura dos contornos desejados, para envolver, enfim, a sua grande alma. À margem do rio do tempo, Narciso parou. Fatal e ilusório rio, onde os anos passam e escoam. Bordas simples, como uma moldura bruta, onde se recolhe a água, como um espelho sem aço; onde nada se veria atrás; onde, atrás, se espalharia o tédio vazio. Um morno, um letárgico canal, um espelho quase horizontal; e nada distinguiria do ambiente incolor esta água fosca, se não se percebesse que ela escoa. REFERÊNCIAS GIDE, Andre. O Tratado do Narciso (Teoria do Símbolo). Cultura E Barbárie, Julho de 2013. Disponível em:
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