Tradução e Paratradução da Literatura da Shoah na Lusofonia

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VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010

Tradução e Paratradução da Literatura da Shoah na Lusofonia Xoán Manuel Garrido Vilariño Universidade de Vigo Grupo de Investigação Tradução e Paratradução

1. Introdução

Tratar da Literatura da Shoah na Lusofonia pode parecer um pouco estranho, porque os espaços em que ocorreram os massacres totalitários nazis ficam longe dos territórios da histórica língua galaico-portuguesa. Porém, temos os testemunhos do brasileiro Stanislaw Szmajner, Inferno em Sobibor : a tragédia de um adolescente judeu (1968) o da portuguesa Ilse Losa O Mundo em que vivi (1949) e o da galega Mercedes Núñez Targa: El carretó dels gossos : una catalana a Ravensbruck (2005). Trata-se de três obras de criação no âmbito da lusofonia, vocacionadas, desde a sua criação, a serem vertidas para outras línguas e que, contudo, constituem três fracassos de tradução, por motivos distintos, em cada um dos casos. O testemunho de Stanislaw Szmajzner serviu de base a um livro em inglês do jornalista Richard Rashke, Escape from Sobibor (1982) bem como a um filme que “impossibilitaram” a sua tradução para outras línguas. Quanto a Ilse Losa, saiu mais realçada a sua faceta como escritora de literatura infantil e juvenil do que o aspecto respeitante às perseguições dos judeus na Alemanha. Finalmente, para exemplo galego, temos o caso de Mercedes Núñez Targa, catalã de origem galega, cujo testemunho relativo aos campos nazis ainda não foi alvo de tradução.

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Dizer brasileiro, portuguesa e galega é apenas uma denominação territorial que não exprime qualquer dado sobre os factos que os levaram à escrita do seu testemunho. Stanislaw Szmajner é judeu originário da Polónia, falante de polaco e ídish, Ilse Losa é judia originária da Alemanha, falante de alemão, e Mercedes Núñez Targa, falante de catalão, espanhol e galego. Com este plurilingüismo presente em cada um dos autores, também não a língua, nem a materna, nem a língua de adopção, serve para proceder a qualquer género de classificação. Porém, o ponto que os três têm em comum é a forma como traduzem o trauma da sua perseguição, por motivos de “raça” no caso de Stanislaw Szmajner e Ilse Losa sob o totalitarismo nazi e por motivos políticos no caso de Mercedes Núñez Targa sob o totalitarismo franquista.

A tradução do acontecemento para as línguas e culturas de adopção foi em primeiro lugar um exercício de memória individual quer para gerir o tumultuoso passado, quer para denuncia-lo, mas não atingiu de forma suficiente a entidade para poder incorporarse nas memórias colectivas nacionais porque os títulos produzidos tiveram uma recepção marginal. Também não deram o salto “internacional” e não fazem parte do cânone da chamada Literatura da Shoah ou do Holocausto.

Quando fazemos menção do género da Literatura do Holocausto ou da Shoah deve este conceito ser entendido como um conjunto de intertextos (não apenas literários) que se caracterizam por apresentarem a estrutura de um testemunho em forma de memória, autobiografía ou confissão sob a enunciação de um “eu” –escritor/sobrevivente, e por tratarem o tema da Shoah/Holocausto como central (utilizamos ambos os termos sem atribuir-lhes nenhuma conotação especial.) São, além disso, intertextos que questionam constantemente o modo de enunciação e o modo discursivo que o locutor-escritor deve adoptar para transmitir a sua mensagem, estabelecendo-se assim um diálogo

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metalinguístico. Tanto o emissor como o receptor partilham um horizonte genérico que no caso do primeiro é quase contemporâneo da enunciação e que o segundo interpreta como pertencendo à Literatura, à História ou às duas simultaneamente.

2. Marco teórico

As pesquisas sobre a tradução da Memória levaram-nos a criar um espaço de análise que foi denominado “Paratradução” 1 e a constituição do grupo de investigação “Tradución e Paratradución” na Universidade de Vigo. Este artigo deve ler-se em conjunto com o de Luisa Langford e o de Helena Guimarães, duas investigadoras que fazem parte deste grupo, cuja análise reflecte, a nosso ver, as diferentes vertentes de um mesmo entendimento da literatura do testemunho e da Memória. As produções textuais que apresentamos são periféricas, quer pela língua em que foram escritas quer pelo seu território de origem: Ilse Losa, judia alemã escreve em português o seu testemunho, Errikos Sevillias, escreve o seu testemunho em grego que só virá a ser conhecido depois de traduzido para inglês. Primo Levi, embora se tenha vindo a transformar num autor muito conhecido, o seu testemunho, publicado em 1947, não foi na altura escutado, e sem antes terem passado várias décadas. Stanislaw Szmajzner escreve o seu testemunho em português do Brasil, testemunho esse que só virá a ser conhecido por ser publicado em inglês por um jornalista americano em forma de documento romanceado e, enfim, Mercedes Nuñez Targa, catalã, cujo testemunho escrito nunca foi traduzido ao galego. O marco teórico da Paratradução constrói-se desde o produto, quer como texto traduzido como operação inter-linguística, quer como criação original e realizando as pesquisas intra e extra-textuais necessárias para indicar os modelos que se seguiram para produzir a obra final. Como bem demonstram Luisa Langford e Helena Guimarães 1

Para uma génese do conceito veja-se o website de T&P http://webs.uvigo.es/paratraduccion/Doctorado_T&P_2008-2010/t_p.htm#paratraduccion [08-03-2009]

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nos seus artigos “Brief comparative analysis of Si questo è un uomo, by Primo Levi and Athens – Auschwitz, by Errikos Sevillias” e “Comparative Analysis of Paratranslational Aspects in Primo Levi’s Se questo è un uomo and Dante’s Inferno” a trans-textualidade nos testemunhos da Shoah não são apenas de modos de enunciação, senão que se incluem imagens e formas de representação que se foram acumulando na cultura ocidental. Uma referência em termos epistemológicos é para nós Walter Benjamin quem em «Die Aufgabe des Übersetzers» 2 (1923) faz uma reflexão teórica sobre a tarefa ou missão de quem traduz, partindo da experiência individual e legitimando a sua actividade filosófica em busca do geral, da linguagem humana, isto é, do nexo social e histórico de que o indivíduo faz parte e perante o qual reage. O projecto filosófico de Walter Benjamin no que se refere á História e, posteriormente, da Escola de Frankfurt era compreender por que razão o ser humano tende a identificarse com o poder dominante, isto é, por que razão, no momento histórico preciso em que, graças ao desenvolvimento técnico e científico da humanidade, seria possível alcançar a emancipação individual se produz, exactamente, o contrário: a aniquilação massiva de indivíduos em Auschwitz. Assim, o ensaio de Benjamin insiste sobre a autonomia do processo tradutivo relativamente a qualquer atitude de submissão face ao dever de comunicação (Baltrusch et al., 2007:85) Que ‘di’ logo unha creación (poética)? Que é o que transmite? Pouca cousa a quen a entende. A súa natureza fundamental non é a de manifestar algo. Non obstante, a tradución que queira comunicar, podería non transmitir máis cá propia comunicación, isto é, aquilo que non forma parte da natureza da obra.

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As referências a este texto procedem da tradução galega (Baltrusch et al., 2007) para a qual se utilizou a editio princeps em Charles Baudelaire: Tableaux Parisiens. Deutsche Übertragung mit einem Vorwort über die Aufgabe des Übersetzers von Walter Benjamin. Heidelberg:Richard Weissbach 1923, VII-XVII.

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A tradução é uma forma (Idem, 85), na medida em que é um procedimento transitório e provisório com vista à interpretação do que cada ser e cada língua tem de singular. Ela é apenas um momento numa tentativa de alcançar a designada pura língua “reine Sprache” (Walter Benjamin, apud Baltrusch et al., 2007:90). Assim entendida, a tradução é algo mais do que comunicação. A sobrevivência manifesta-se pela contínua transformação com vista à harmonia dos modos de significação. A tradução é, assim, mais importante do que a crítica para a sobrevivência das obras. Ao considerar a tradução como uma forma, o que conta para Benjamin é a intenção e não o objecto, isto é, ela é o modo próprio que cada língua tem de se referir ao objecto. A tarefa da tradução é pois conseguir que se estabeleça um espaço de complementaridade, de harmonia, entre os modos em que cada comunidade cultural organiza o seu sistema simbólico. Por um lado, a tradução contribui para a sobrevivência do original, o que poderá ser visto como a sua acção positiva. Por outro lado, a tradução é um documento de cultura. Vista sob esta perspectiva, a tradução pertence ao vencedor da história, já que faz eco da sua ideologia. Sob este prisma, a acção da tradução teria um carácter negativo. A questão que se coloca é, pois, a seguinte: Será que a tradução carrega consigo o germe da barbárie? A tradução não deve, a nosso ver, estar unicamente ao serviço da comunicação, isto é, ela não deverá ser feita pensando apenas no seu receptor (tal como acontece com a obra de arte). Com esta postura Walter Benjamin, torna clara a sua rejeição da tradução como mera apropriação do “outro”, do estrangeiro. A tradução seria, assim, um prenúncio da linguagem da verdade, na medida em que seria uma busca de complementaridade no sentido, uma conjunção das diversas «intenções» no sentido de nos aproximar do âmago do que, em cada língua, em particular, se manifesta de forma incompleta.

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Walter Benjamin combina um modelo histórico complexo com um certo sentido do sagrado, logo, a verdade que Benjamin defende sobre a função primordial da tradução na interpretação e na crítica deve ser, hoje, entendido como o valor do desvelamento epistemológico. A posição do tradutor, tal como a do historiador, é difícil de definir e captar. Entendemos, contudo, que o seu trabalho se situa algures no seio da manipulação ideológica, podendo ser submetido pelo poder de quem domina a História. Daí, propormos, tal como Benjamin, uma reorientação do pensamento e da acção, na política, na arte e na razão, que inclua o passado, não na sua forma tradicional de memória laudatória do vencedor, mas sim como reconhecimento das vítimas passadas, que, na história tradicional, foram submetidas às estratégias do esquecimento. Em Benjamin, não há lugar para teorias do conhecimento que ocultem as vítimas da História e que não redimam a sua memória. O tradutor não deve ser cúmplice dessa farsa/disfarce. As nossas comunicações tratam da Memória e das Memórias dos Totalitarismos do século XX: o Holocausto/a Shoah e os vencidos da segunda República Espanhola. Como referência temos o filósofo da Memória e teórico da tradução (como forma de conhecimento) Walter Benjamin. Além dele, temos ainda as obras que re/constroem a Memória do sobrevivente, sendo o nosso objectivo descrever a forma como se realiza a mediação e transmissão dessa Memória. Enfim, falaremos de Políticas da Memória inseridas no seu momento histórico. Desde este marco crítico e histórico, a Paratraduçao pretende: ƒ

Superar o conceito de tradução como operação interlinguística, mecânica e puramente verbal.

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Olhar/analisar a tradução como um fenómeno holístico e, consequentemente, chegar ao conceito de Paratradução.

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Entender o conceito de Paratradução de uma forma eminentemente instrumental que leva a inferir a Filosofia e a Ideologia da transmissão e/ou mediação de um produto cultural.

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Analisar os fenómenos paratradutivos (epitradutivos e peritradutivos) 3 presentes na transmissão e/ou mediação de textos da Memória do Totalitarismo.

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Ler e Interpretar nas margens da tradução para desvelar a Ideologia de/na tradução e daí deduzir os comportamentos tradutivos dos agentes intervenientes na transmissão e/ou mediação.

Lendo, interpretando e traduzindo nas margens do texto; daqui surgiu o conceito de paratradução. O que escrevem os nossos autores não é um texto literário qualquer, mas sim um texto de um sobrevivente de um campo de extermínio que quer testemunhar em nome dele e em nome dos que não sobreviveram. Para eles trata-se de um testemunho e não de um texto literário que poderia levar-nos a ver o testemunho como uma ficção, algo de não real. Isto não invalida que o receptor o sinta como um texto literário. De facto há um género literário designado como Literatura do Holocausto ou Literatura da Shoah.

3. O testemunho brasileiro

Stanislaw Szmajzner (Pulawy, Polónia 1927- Goiania, Brasil 1989) foi um sobrevivente judeu do campo de extermínio de Sobibor, o único lugar em que se produz uma sublevação contra os nazis e que teve relativo êxito. Em 1968, publica as suas memórias 3

A focagem paratradutiva analisa, desde o produto, um bem cultural ou obra (artística) para desvelar a ideologia política ou estética com que foi concebida (Garrido, 2005:32). Nos livros de testemunho da Shoah/Holocausto são fenómenos peritradutivos a linguagem verbal e icónica em/com que apresentados e dispostos os espaços marginais do livro como a capa, sobrecapa, rosto, aba etc., e os prefácios, epílogos, notas editoriais, etc. São fenómenos epitradutivos todos aqueles textos, recensões e críticas de autoridades que comentam a obra, em jornais e revistas gerais ou especializadas por exemplo, que embora estejam fora do seu espaço fisico, dirigem a recepção na sociedade que a acolhe.

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intituladas Inferno em Sobibor : a tragédia de um adolescente judeu (Bloch Editora). A sua aubiografia começa com a invasão alemã da Polónia ( 1. A Invasão e Êxodo), segue com a perseguição dos judeus e a sua segregação em guetos (2. O gueto de Wolwonice), a descrição das condições subhumanas em que foram obrigados a viver (3. Epidemia na Sinagoga), continua com a transferência para um outro gueto (4. O gueto de Opole), a deportação para o campo de extermínio (5. Viagem Rumo ao Desconhecido), o confinamento em Sobibor (6. Sobibor), a narração de como é salvo, ele e o seu irmão, da selecção ou não para a câmara de gás graças às suas habilitações como ourives (7. Mensagem em Sobibor) chega até à reflexão sobre a sua degradação moral para sobreviver “Passaríamos a empregar as mesmas armas dos nazistas: a fraude e o fingimento” (Szmajzner, 1968:162) presente no capítulo oitavo intitulado “O Diálogo com Nojech”. O aumento da máquina aniquiladora nazi relata-se nos eloquentes capítulos nono “Sobibor se Agiganta” e décimo “A Matança se Aprimora”. Stanislaw Szmajzner deixa os três seguintes para a narração da sublevação, com a elaboração do plano para a revolta “Começa a Reação”, “Preparativos para o Levante” e “Agora ou Nunca”, onde para além da fuga do campo, há um retrato da recuperação da condição de ser humano que lhes fora retirada pelos nazis e conclui com “Enfim a Liberdade” décimo-quarto e último capítulo. O livro reúne todas as características que costumam apresentar as memórias dos sobreviventes do Holocausto: a perseguição por causa da ideologia racial nazi, o confinamento em guetos e a degradação humana que sofre o narrador no campo de extermínio.

Stanislaw

Szmajzner

enquadra

cada

uma

destas

fases

numa

contextualização histórica ao descrever ao mesmo tempo o seu destino individual e o destino colectivo da comunidade a que pertencia.

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A experiência e o sofrimento são sempre individuais, se bem que, por sua vez, sejam reflexo dos conflitos não resolvidos da sociedade. Quando Stanislaw Szmajzner alcança a estabilidade vital e emocional e chega à idade madura no Brasil decide ajustar contas com o seu passado e denunciar perante o mundo de 1968 com Inferno em Sobibor : a tragédia de um adolescente judeu quais foram as causas do genocídio do seu povo, mas o mundo não estava preparado ideologicamente para a receber a sua mensagem. Até consegue que uma autoridade apresente a sua obra, assim, Pedro Ludovico Teixeira, senador federal, escreve um prefácio a Inferno em Sobibor em que ressalta a contradição de que num país tão civilizado como a Alemanha nidificasse o germe do totalitarismo e a febre exterminadora Todos êsses absurdos, tôdas essas violências foram praticadas em países que se diziam civilizados, que pareciam amadurecidos. Foram cenas de verdadeiro barbarismo que se registraram com a complacência, não raro, dos própios dirigentes dos povos perseguidos (Szmajzner, 1968: 12) O senador também reflecte sobre um dos temas centrais dos pensadores do século XX que derruba a crença cega na ideologia de progresso científico e técnico positivista como meio de redenção humana, porque a empresa de extermínio massivo foi possível graças precisamente ao avanço científico e técnico. Este senador também nos dá as poucas indicações sobre a vida de Stanislaw Szmajzner que conhecemos depois da sua chegada ao Brasil O autor de Inferno em Sobibor, vindo da Europa, combalido pela calamidade que presenciou, refez-se no Rio de Janeiro, onde passou a residir, entregando-se aos serviços de ourives e a outras atividades. Dentro de poucos anos, conseguiu amealhar alguma pecúnia e progrediu satisfatóriamente. Aborrecido da vida das grandes cidades, que jà habitara no exterior, vendeu o que possuía e adquiriu uma

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propriedade rural no Estado de Goiás, em região inteiramente sertaneja, organizando-a a seu modo e tornando-a mais ou menos confortável. Passava ali, contemplando os panoramas bucólicos das margens do caudaloso Araguaia e de suas cincunvizinhanças […] Não admitia a possibilidade daquilo em que tomara parte e de que fôra espectador revoltado. Era adolescente quando começou a ser vítima e testemunha da maldade humana, que se exercia de forma tão insolita […] resolveu escrever êste livro, o qual, por certo, acabará lido em todos os países, pois será traduzido em diversos idiomas. (Szmajzner, 1968: 17-18) Este augúrio repete-se na contra capa onde já intervêm os mecenas editoriais: Histórias reais de campos de concentração nazistas o brasileiro costuma conhecer de traduções. Esta, a grande contribuição das Edições Bloch no gênero: uma narrativa verídica, sofrida na Polônia, escrita no Brasil, directamente en português, e destinada, tal a sua dramaticidade, a fazer carreira também em outras línguas, em outros países, pois não se pode imaginar que nenhum editor estrangeiro se interesse por ela. (Szmajzner, 1968: contra capa) Há argumentos na autobiografía de Szmajzner que são considerados inadmissíveis para um sobrevivente do genocídio como é o da equiparação moral entre vítima e algoz. A voz do adolescente de Sobibor tem um discurso de poder e rebelião difícil de passar numa época de vitimização judia. Desde o primeiro capítulo declara que vai contar a sua verdade sem parar e pensar que poderá molestar alguém: O conteúdo dêste livro não terá contemplações para com ninguém, seja alemão, polonês, russo ou judeu. Trata-se da narrativa de uma epopéia, que não pode sofrer mutilações a bem do sentimentalismo e em detrimento da verdade crua e intangível, doa a quem doer. (Szmajzner, 1968:33)

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É um dos poucos testemunhos em que descreve e critica desde o começo as funções dos Conselhos Judeus dos guetos: O Judenrat, organismo que fazia as vêzes de uma espécie de Prefeitura Judaica, abrangia tôda a comunidade israelita citadina. Criada pelos invasores, era constituído pelos maiores comerciantes e pessoas influentes. (Szmajzner, 1968: 47) Evita o maniqueísmo e até nos algozes alemães vê o lado humano e isto era imperdoável pelo ponto de vista judeu americano e israelita acostumados à visão maniqueísta: Como os militares germânicos vindos dos campos de luta eram um pouco mais humanos, nossa situação melhorou algo. Sempre obtínhamos mais alguma ração dos alemães, e esta era, por sinal, de muito boa qualidade. (Szmajzner, 1968:55) Sua figura de bonachão, cheia de generosidade e lhaneza, estará para sempre estampada em minha lembrança. (Szmajzner, 1968:76) Eis o grande problema de Inferno em Sobibor : a tragédia de um adolescente judeu e que explica a sua exígua recepção primeiro entre a comunidade judaica do Brasil e depois entre a comunidade judaica internacional : a denúncia de que os próprios judeus colaboraram no massacre do seu povo. O público receptor não consegue ver que se trata de uma auto-crítica e assim menciona que até o pai era capaz de negar a sua fé judaica. Em poucos testemunhos vemos essa análise de si mesmo tão humana, na maior parte deles não se realiza autocrítica: Meu pai, ainda que religioso praticante, chegou ao ponto de fazer-se passar como católico, saindo do gueto e infiltrando-se entre aldeões das redondezas para pedir, com um saquinho pendendo do braço, uma esmola em nome de Jesus. (Szmajzner, 1968: 63)

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Os judeus e o mercado negro: (…) Judeus exploravam judeus, e as utilidades só eram conseguidas a pêso de ouro. (Szmajzner, 1968: 91) Assim, involuntàriamente, tanto eu como também outros companheiros muito contribuímos para que os nazistas obtivessem êxito no seu desavergonhado desiderato de fazer com que os chegados a Sobibor de nada suspeitassem. (Szmajzner, 1968: 239) A ciência tão pouco escapa à crítica, é dos primeiros a empregar o termo Holocausto: Os nazistas […] Haviam instalado “usinas de genocídio” e treinavam com afinco técnicos e mão-de-obra especializada. Chegaram ao requintado estágio de aperfeiçoar também os métodos pelos quais seria tratada a “matéria-prima”, fazendo com que o Grande Holocausto fôsse extremamente simplificado. Para isso, notáveis químicos envidavam o melhor dos seus esforços à procura da letalidade. (Szmajzner, 1968: 156) Critica a Deus e ao Conselho judeu dos guetos: Deus? ... Onde está o seu Deus que permite que meus pais sejam eliminados desta maneira? (Szmajzner, 1968:158) Então foi criado o Judenrat. De que nos serviu êle? De que valeram as orações e a boa-fe dos judeus do Judenrat? (Szmajzner, 1968:159) Quase todos êsses varões já não eram iguais à grande massa de judeus que se deixaba influenciar pelo Judenrat de seus antigos guetos. Não estavam acostumados a seguir os seus conselhos ou acatar-lhes as ordens. Devido à sua própia boa-fé, milhões de ingênuos já tinham sido exterminados pelo só motivo de se deixarem levar pelos elementos do Judenrat que por sua vez, eram dominados pelos boches e cumpriam fielmente a suas ordens. (Szmajzner, 1968:227)

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A denúncia de colaboração no genocidio dirigida contra os Judenrat ou Conselhos Judeus já merecera a desqualificação, por parte da comunidade hebraica internacional, através da filósofa, Hannah Arendt. Esta autora recolhera no livro Eichmann in Jerusalem ; a report on the banality of evil (1963) o acompanhamento que fez para o jornal americano New Yorker do julgamento do nazi Adolf Eichmann celebrado em Israel em 1961. Mas a repercusão mediatica que teve a discípula de Heidegger não estava à altura da de um sobrevivente como Stanislaw Szmajzner, embora tratassem o mesmo tema e uma maneira de silencia-lo foi não traduzi-lo para inglês, como aliás, também não se traduziu para qualquer outra língua. Não foi traduzido, mas sim vampirizado. Em 1982, o jornalista americano, Richard Rashke, publica Escape from Sobibor, uma espécie de ensaio-reportagem onde recolhe os testemunhos dos protagonistas sobreviventes da sublevação do campo de Sóbibor. Percorre a Rússia (em plena guerra fria), Israel e Brasil entrevistando os protagonistas ainda vivos daquele feito pouco usual e heróico dos campos de extermínio. Comparando o que escreveu Szmajzner em 1968 e a visão final da revolta de Rashke, vemos que coincidem ponto por ponto ainda que o americano declare que não considerava a fonte de todo fiável nos feitos que não presenciara (Rashke, 2004: 561). Tudo o que é politicamente incorrecto para os americanos e israelitas nem aparece mencionado. No entanto, o testemunho do soldado soviético de Alexander Pechersky, diz que tem um ar de propaganda comunista (Rashke, 2004: 559). Em 1987, o director de cinema, Jack Gold estreia um filme com o mesmo título e baseado no livro de Rashke. Portanto foi vampirizado por duas vezes mas em nenhuma delas há rasto da denúncia dos Judenrat ou dos Conselhos Judeus. Podemos aventurarnos a dizer que também esta paratradução ajudou a que o original em português não visse a luz em inglês.

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4. O testemunho português

Estabelecer a filiação de Ilse Lieblich Losa (Buer, Alemanha 1913- Porto 2006), seja territorial, nacional ou cultural é jà descrever uma vida marcada pela migração (forçada) e pela mestiçagem (cultural). Costuma-se apresenta-la como uma escritora portuguesa de origem alemã e de ascendência judaica. A sua primeira infância foi passada com os avós paternos, como está reflectido no seu primeiro livro. Frequenta o liceu em Osnabrük e Hildesheim e o Instituto Comercial em Hannover. Devido à sua condição de judia é perseguida pela Gestapo e tem de abandonar o seu país, refugiando-se em Portugal onde chega em 1934, radicando-se no Porto. Adquire a nacionalidade portuguesa ao casar com arquitecto Arménio Losa. No seu país de adopção é colaboradora habitual de jornais e realiza uma obra que inclue romances, contos, crónicas, literatura para crianças, mas sobretudo traduz. É uma mediadora privilegiada entre a cultura alemã e a portuguesa, tendo colaborado na organização e tradução de obras portuguesas publicadas na Alemanha. Este caminho é de ida e volta porque foi Ilse Losa quem fez a primeira tradução para o português do Diário de Anne Frank (1958?) 4 . Não ressalta muito este facto na recepção da sua obra sendo como foi um trabalho impagável e só uma sensibilidade como a sua pôde situarse na pele da menina exilada na Holanda. Ilse Losa, além de traduzir escreve o prefácio que apresenta o Diário e nessa escrita encontramos mais do que empatia na voz da exiliada portuguesa (Losa, 2004:8-9): Anne Frank vivia torturas que marcam qualquer indivíduo de qualquer idade mas muito especialmente um indivíduo em formação. Forçada a viver como o pássaro

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A data de publicação é aproximada, porque nos paratextos da edição de 2004 não há qualquer datação.

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na gaiola (...), afina os sentidos, concentra-os sobre o pequeno espaço em que a sua vida e a dos companheiros de destino se move, procura não só desabafar a sua revolta de adolescente, de judia expulsa da comunidade dos homens, de vítima de uma guerra impiedosa, mas, também, encontrar as interpretações de tudo isto. (...) Reencontramo-nos em Anne! Sentimos a verdade, nua e crua, em cada uma das suas palavras. E é precisamente por isso, pela identidade dos sentimentos humanos, independentes de latitudes e de raças, que esta obra ganha cunho de universalidade, de documento humano. Pode haver maior auto-identificação? 5 Pôde o público português ter melhor introdutora, mediadora ou tradutora de “documento humano” obrigado a viver no limite? Só uma vitalidade forçada a situar-se na margem da sociedade é capaz de traduzir Anne Frank, e traduzindo-a ela está a traduzir-se a si própia, explicando-se e interpretando-se. Da mesma maneira que a missão tradutora de Ilse Losa ficou à margem da recepção da sua obra, os valores que pretendia transmitir com a primeira publicação em 1949 da sua autobiografia O mundo em que vivi, isto é, a perseguição dos judeus na Alemanha antes de 1934, o antisemitismo secular da cultura europeia, a assimilação da identidade alemã abandonando o ascendente judaico ou, ao contrário, promovendo a identidade judaica com o sionismo face à rejeição ambiente, ficaram apenas como contexto em que se desenvolve um romance sobre a formação de uma menina judia nascida na véspera da Primeira Guerra Mundial, criada com os avós na aldeia e afastada dos pais até chegar à idade adulta. Pouco sabemos da forma como foi acolhida esta primeira edição na época do Portugal de Salazar, só que o ditador e parte da classe política não estavam muito inclinados para que o país se convertesse num refúgio de judeus, embora contasse entre os seus 5

Até traduz No rasto de Anne Frank de Ernst Schnabel (2001), onde quarenta e duas testemunhas que a conheceram depõem sobre a pequena.

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diplomatas com personagens como Arístides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus, que concedeu vistos e passaportes a centenas de refugiados judeus de toda Europa entre 29 de Setembro de 1938 e 21 de Junho de 1940 (Fralon, 1999:39/68) Aliás, no mundo ocidental e democrático a visibilidade do genocídio tardou uns vinte anos depois de 1945. São os anos em que se silencia o Holocausto porque as potências vencedoras estavam mais inclinadas para lidar com a nova guerra de blocos que se instalava, qualificada como “fria”, do que em fazer justiça aos autênticos vencidos da história, os civis. Dois dos relatos mais importantes da história testemunhal foram publicados antes dos anos sessenta: Primo Levi, Se questo è un uomo en 1947 e Elie Wiesel, La nuit en 1958. Estas publicações, que vão marcar o cânone da nova literatura, não tiveram nenhum eco nesses anos de edição nem em italiano nem em francês respectivamente. Não obstante, vão ser recibidos internacionalmente quando são traduzidos para o inglês em 1959 o primeiro, e em 1972 o segundo porque também as circunstâncias sociopolíticas internacionais tinham mudado.

Passam trinta e oito anos entre a primeira e a segunda publicação de O mundo em que vivi (1987) e para esta edição, pela autora de mote próprio ou por sugestão editorial, há uma nova disposição do romance: separa-se a narração em capítulos de duas ou três páginas, embora sem numerar, escrevem-se frases muito mais curtas e troca-se a enunciação do eu por diálogo, Edição de 1949, p.22 Eu queria-os todos. A avó aproveitou este meu desejo para um discurso sobre a economia. (...) Escolhi então o vestido vermelho. Achava a cor alegre e linda. A avó não concordou. Fez ver que a cor não era prática, por se sujar depressa, e que, sem dúbida, se devia preferir o vestido azul escuro, pois, além de mais prático, era

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mais bonito. O avô pareceu compreender o meu desapontamento e, querendo ajudar-me, alegou que o vermelho era de facto mais alegre, portanto mais próprio para uma menina pequena, e que de resto ligava melhor com os meus cabelos claros. Edição de 1987, p.16 -Quero os três, precipitei-me. Isso levou a avó a falar, um longo bocado, sobre economia e utilidade. E, no seu tom austero, rematou: -Estás a sair ao teu avô, é pena. Apontei para o vestido cor de tijolo e disse, intimidada: -Quero este. É alegre. -Alegre?!, exclamou avó. Para quê um vestido alegre? A cor não é prática, suja-se com facilidade. E não é no lavadouro que os vestidos se conservam. De resto, uma menina judia não deve dar nas vistas. Esta última frase da “menina judia” que se acrescenta na nova edição, pode levar a pensar que se pretende reforçar o carácter judaico da protagonista. Achamos que acontece o contrário porque na primeira edição há uma vontade de explicar ao público português tudo o que é referente á forma de falar dos judeus na Alemanha. Assim, na página 49, há uma nota de rodapé que explica o termo “Goymes”; na página 100 transcreve-se em carateres hebraicos o primeiro verso da oração “Shemá Israel”, recitação que todo o judeu faz duas vezes por dia, com a sua tradução em português, abaixo e entre parénteses curvos ‘(“ Escuta, Israel, Deus é nosso Deus, Deus é um”)’; mas o dado mais interessente é que a edição de 1987 acaba com a frase “(...) que eu, judia Frankfurter, tenho cinco dias para deixar o país” (sic p.196), enquanto que a edição de 1949, para além de trocar “deixar” por “fugir” numa frase semelhante a esta,

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acrescenta um capítulo mais, de página e meia (pp. 321-322) em que trata do destino da sua família, desaparecidos quer como efeitos colaterais da guerra ou no campo de concentração. Achamos que esta omissão não é fruto do acaso, demonstra que na altura do pós-guerra a autora quer oferecer testemunho pelas pessoas que já não o podem dar ao morrerem sob a barbárie nazi. Poderá este ser um dos traços mais característicos da literatura de testemunho da Shoah/Holocausto que a autora marca verbalmente com a pergunta “Os meus?” (p.321) com espaços em branco entre parágrafos para evidenciar o vazio em que se encontra a voz enunciadora para depois continuar com a recitação do desastre do mundo em que viveu. Achamos que estamos em condições de lançar a hipótese que Ilse Losa se auto-traduz tendo como original a edição de 1949, para adequar o tom da narração a um público receptor que jà não é aquele que tinha em mente no pós-guerra, mas o dos anos oitenta. Há que dizer que os dados argumentais continuam a ser fundamentalmente os mesmos mas muda-se o tom que se torna mais pedagógico: Edição de 1949, p.44 Muito cedo me tornei consciente de que éramos judeus. Todos os sábados o meu avó me levava à Sinagoga. Na nossa aldeia havia poucas famílias judaicas, mas esta Sinagoga era também construída para judeus que viviam noutras aldeias daquela região. Edição de 1987, p.38 Às sextas-feiras ao anoitecer e aos sábados de manhã os judeus iam à sinagoga, enquanto os cristãos veneravam o seu Deus aos domingos, na igreja. A sinagoga, edifício baixo, simples, branco, com uma cupulazinha no topo, era de tão pouca aparência que nem a estrela dourada de David e as letras hebraicas, também douradas, por cima do portal, lhe conseguiam emprestar imponência.

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Qual é a intenção de Ilse Losa ao comparar a fé judaica com a cristã, se não for pensar no alvo receptor? Esse alvo era seguramente o público infantil ou juvenil. Confírmanos esta hipótese a investigadora Ana Isabel Marques no único ensaio totalmente dedicado a Ilse Losa que nós conhecemos: Paisagens da Memória: Identidade e alteridade na escrita de Ilse Losa (2001) O mundo em que Vivi é, actualmente, um das obras aconselhadas aos alunos do sétimo ano de escolaridade como objecto de leitura orientada, no âmbito da disciplina de língua Portuguesa, integrando um leque de textos articuláveis com a disciplina de História. Este facto poderá tembém ser uma das razões que explicam as várias reedições do romance. (Marques, 2001:53, nota 2) Portanto, o primeiro mundo em que viveu Ilse Losa, a primeira forma de criação, é o que contem a voz íntima do desastre vital da autora, e o que “comunica” autenticamente um testemunho da Shoah/Holocausto nos termos que utiliza Walter Benjamin (cf. Supra). O facto de não ser traduzida em inglês, língua maioritária em que circula toda a cultura do Holocausto, a que pode ser devido? A estar escrito num âmbito cultural considerado periférico, a partir da centralidade do império americano? Estava pensado para um público português? Intuímos algumas das respostas a estas perguntas mas não dispomos de dados documentais para confirma-las. Só em 1990 é publicada em alemão “assinada por Maralde Meyer-Minnemann, com supervisão da própria autora” (apud Marques, 2001:86) Mais uma auto-tradução?

5. A testemunha galega

Poucos acontecimentos históricos foram tão analisados, escritos e romanceados como o Holocausto. É impossível abranger tudo o que há publicado sobre este tema, no entanto,

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aqueles testemunhos que se destacam pela sua, chamemos-lhe, raridade, coisa inusitada, cúmulo de infortúnios etc., conseguem fazer um eco dentro do mercado americano, pelo menos na actualidade. Estamos a pensar nas autobiografías de Margaret Buber Neuman, prisioneira de Stalin e logo de Hitler. Algo similar ocorreu com Mercedes Núñez Targa, prisioneira de Franco e logo de Hitler. Esta comunista convicta não publicou em galego, no entanto tem uma grande relação com a Galiza. Filha de pai galego e mãe catalã, esta republicana sofre a repressão nos cárceres franquistas como é relatado em Cárcere de Ventas (2005) e logo a seguir a repressão e degradação nos campos nazis. Nos últimos anos da sua vida mora en Vigo onde dá palestras sobre o Holocausto em centros de ensino e mesmo representa a Galiza na “Amical de Mauthausen” (Vidal, 2005: 75). O seu testemunho publicado em catalão com o título El carretó dels gossos : una catalana a Ravensbruck em 1980 ficou sepultado entre os mitos do Holocausto judeu e o mito da resistência francesa. Por não ser judia não foi recuperada pela memória europeia, por ser republicana não foi recuperada pela resistência francesa. Não teve tempo de reivindicar-se individualmente nem em nome dos que foram exterminados, como uma vítima republicana da barbarie nazi. Naquela luta mediática para ver quem era a vítima genuína dos campos, parecia que os que defenderam a democracia contra o totalitarismo não tinham espaço para tornar-se visível. Os sobreviventes morreram e Mercedes também e não chegaram até ao ano de 2006 para verem, pelo menos, a sua figura reabilitada. Helena González na recensão desta obra para Vieiros oferece-nos um certeiro e apaixonado perfil desta mulher lutadora que tem o título “Unha muller no campo de asasinos. Mercedes/Mercè Núñez reeditada en catalán” (2005)

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A súa é unha biografía non prevista, como aconteceu con moitas outras da súa xeración, mais o carácter enérxico e comprometido de Mercedes/Mercè levárona a superar a experiencia vital e escribir a memoria dos horrores vividos, primeiro baixo o franquismo, no Cárcere de Ventas, verquido ao galego, e despois baixo o nazismo neste El carretó dels gossos ("o carretón dos cans"). Entre a publicación do seu primeiro libro publicado en París e estoutro en Barcelona transcorren trece anos nada doados: os dos estertores do franquismo, as emocións encontradas da transición... e para ela, o momento do regreso, a cabalo de Barcelona e Vigo. Activista política infatigable no seo do legalizado PCE, asume un papel destacado como delegada en Galicia da Amical Mathausen en tempos ben diferentes aos de hoxe nos que o pacto de silencio impedía restituír a memoria dos que perderan. Unha Amical que botaba a andar para facer efectivo un labor que o Estado non asumía: o levantamento da historia. O mesmiño se procuraba con El carretó dels gossos: explicarnos o vivido polo miúdo, en primeira persoa, pero sempre con conciencia de levantar libro de actas da humillación, a explotación, a inanición, a morte, o abandono, e tamén as sabotaxes, esas pequenas vinganzas daquelas mulleres obrigadas a traballar en condicións infrahumanas na industria armamentística nazi. Tan afeitos estabamos a sentir a memoria do holocausto desde a voz masculina, que sorprenden estas memorias cargadas de cotidianeidade de mulleres combativas. O 27 de xullo de 1945. Mercedes/Mercè Núñez declara contra un Gestapo, de pé, amparando o corpo nos brazos lañados polo sufrimento. Esa é a fotografía da portada desta segunda edición das súas memorias do Holocausto. Logo do xuízo, relata o fillo, "nun estado deplorable, Mercè ingresou nun sanatorio do Socorro unitario, no sul de Francia". Para esta muller de ideas fortes a procura da xustiza non remata aí e por iso publica o seu texto en 1980,

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nunha edición espida, sen notas biográficas nin limiares explicativos, pero, iso si, na mesma colección que Edicions 62 reservaba para o ensaio, ateigado de clásicos e novos pensadores do marxismo internacional e catalán. Esta segunda edición rescata o libro do silencio e, tamén, da lectura militante (unha modalidade moi habitual naqueles anos). Axéitase o libro para chegar ao lector de hoxe en día con máis información e un corpo de letra maior, iso si, sen lle trocar unha coma da súa dureza. "Un testemuño comprometido cunha mensaxe sen florituras literarias", así define o seu fillo no limiar estas memorias. Por veces, é certo, o relato reséntese dun catalán hiperenxebre que resulta difícil de poñer en boca dunha muller que viviu na encrucillada de tantas linguas e lugares. En calquera caso, texto publicado co prace da autora e, o que é máis importante, un testemuño estarrecedor que nos avisa contra o lobo que levamos dentro e tamén dá leccións de dignidade. Cómpre ler esta mostra de literatura do holocausto, cómpre dala a coñecer (a reedición pasou con pés de la polos aparadores de novidades en catalán) e cómpre, por suposto, verquer o libro ao galego, non só porque os seus últimos anos os viviu vencellada a Galicia, a Vigo (forma parte da "nosa" memoria), senón porque cómpre rescatar estas biografías e estes corpos tan lañados sesenta anos despois, porque desde occidente seguimos montando campos de asasinos. Mudan as formas pero non a barbarie.

Na Galiza declarou-se que 2006 seria o ano da Memória e, passados três anos, aínda não temos tradução desta obra apesar dos tímidos intentos por parte das instituições públicas galegas para fomentar operações de recuperação das memórias dos vencidos da guerra civil. Fizeram-se investigações que trouxeram á luz pelo menos os nomes e as figuras humanas dos mortos sepultados pela imposição e o mesmo pacto de silêncio da ditadura

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franquista, mas as lutas pelas memórias estão muito vivas e em Espanha ainda não se fechou a ferida da guerra civil.

6. Conclusões

A Shoah/Holocausto enquanto acontecimento com discurso ou discursos próprios é um fenómeno cultural que transcende fronteiras e esta é uma das suas originalidades mas que por sua vez vai servir os fins políticos e culturais de cada momento e situação. A língua a partir da qual mais se traduz no mundo é o inglés, pois paradoxalmente, existem muito poucos títulos escritos originalmente em inglês. O cânone em inglês da literatura do Holocausto criou-se basicamente através de literatura traduzida para esta língua e não obstante esse cânone de autores e obras é o que triunfa no mundo. A insistência da tradução para o inglês vem motivada pela capacidade de arraste que a indústria cultural americana tem sobre o mundo ocidental. Um êxito editorial americano sería imitado por outras línguas centrais que provocaria o mesmo perante as periféricas, e das períféricas entre si. Desde os anos oitenta houve uma política de tradução de quanto testemunho do Holocausto tivesse sido escrito no mundo por muito exótica que fosse a língua em que estivesse escrito financiada institucionalmente. Porque é que nenhum destes autores aparece na enciclopedia da Literatura do Holocausto? Primeiro, porque não foi traduzido em inglês. No caso brasileiro, porque a verdade que destila o Inferno em Sobibor, negando a existencia de Deus, evidenciando que os próprios judeus se viram obrigados a participar no exterminio ao criticar os Judenrat, não estava de acordo com a ideologia redentora americana nem com a política de vitimização que desde a guerra dos seis días leva a cabo Israel. Desde aí que fracassou aquele augúrio do autor do prefácio de que ía ser traduzido em todas as linguas do mundo.

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A Shoah ou o Holocausto judeu começou a tornar-se visível internacionalmente quando interessou politicamente na América e que desde aí se exporta um discurso redentor. No caso de Ilse Losa e O Mundo em que vivi, e apesar de estar traduzido em alemão em 1990, não chegou a ter a devida repercussão internacional, pelo facto de que quem a salva do exterminio são os portugueses e não os americanos. Mercedes Núñez Targa, duplamente perseguida, dirigida ao abismo e republicana e ainda comunista, não abdicou da sua ideologia nem em vida nem nos seus textos. Os três testemuños do âmbito lusófono correspondem a un tipo de literatura da Shoah/ Holocausto, á perseguição, ao campo de concentração e ao campo de extermínio e no entanto não chegaram a um público maioritário através da sua tradução. Será porque foram editados numa língua periférica, o português e o catalão? Não cremos que seja devido á pouca “qualidade” ou elaboração literária. Quais foram as causas para que apesar da actualidade de Inferno em Sobibor: a tragédia de um adolescente judeu, não se traduzisse em inglês. A primeira e fundamental será que o conteúdo do relato não correspondia à ideologia dominante que reinava no mercado editorial americano nesses anos. Os testemunhos do Holocausto lusófonos são textos da periferia que não são capazes de influir no centro cultural através da tradução, sem que sejam alterados ou violados no que interessa ideologicamente. Os nossos autores traduzem o acontecimento por palavras e por texto, mas não há paratradução. Eles conseguem dar voz ao desastre mas a recepcão é que falha, não conseguem transmitir o que pretendem.

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