Viola Davis: a mulher negra de mentira é real?

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Artigo publicado originalmente em 05/10/2015 na página http://www.miguelarcanjoprado.com/2015/10/10/mariana-queen-nwabasili-viola-davis-a-mulher-negra-de-mentira-e-real/
Viola Davis: a mulher negra de mentira é real?

Por MARIANA QUEEN NWABASILI

Quando o amigo e jornalista Miguel Arcanjo me convidou para escrever neste site, disse a ele "mas você já sabe sobre os temas que tenho interesse em falar dentro da área de cultura: cinema, questões de gênero, negritude e classe". Condição aceita, retorno a um tema sobre o qual já me debrucei brevemente em textos para o antigo blog de Cultura do Miguel no Portal R7: representatividade e representação negra no audiovisual nacional e internacional.
O fato de a atriz norte-americana Viola Davis, 50, ter sido a primeira mulher negra a ganhar a o prêmio de melhor atriz no Emmy Awards, que tem 66 anos de existência (para o espanto daqueles que dizem que artigos com recortes de raça é que são racistas e não a sociedade), e o fato de esse feito ter sido muito comemorado por outras mulheres negras nas redes sociais, fizeram-me pensar sobre algo que nos estudos multiculturais sobre narrativas audiovisuais é uma constante: a influência da ficção na "realidade" onde ela se propaga.
Ficções influenciam a realidade?
Segundo reportagem do jornal O Globo, Viola Davis foi a terceira mulher não branca a ganhar da SAG Awards em janeiro deste ano também pela atuação em How to Get Away with Murder. A atriz também fez parte da série Law and Order: SVU e foi indicada ao Oscar de melhor atriz por sua atuação em História Cruzadas (2011) e de melhor atriz coadjuvante pela atuação em Dúvida (2006).
Vou fazer um contorno estratégico e fugir aqui dos questionamentos teóricos sobre existência ou não de uma "realidade pura" dentro da filosofia da linguagem e pedir logo auxílios para tratar de questões que têm me ocorrido na tentativa de estudar representatividade no audiovisual. Até que ponto as mudanças sociais que ocorrem na realidade (como a ascensão social de mulheres e homens negros nas Américas, construídas sob a marca da escravidão negra) se tornam objeto para tornar as produções ficcionais audiovisuais mais verossímeis e vendáveis (não vamos esquecer que estamos falando aqui de mídia de massa e de indústria cultural, de lucros garantidos pelo ibope)? Em outras palavras, a realidade vivida por nós força mudanças de representação nas ficções ou ocorre o contrário: as ficções como possíveis obras de artes vanguardistas trabalham com fatos de uma "realidade não factual" (não esmiuçarei a visão de que as narrativas factuais também são ficcionais) a partir da criatividade e idealismos dos autores e produtores e, assim, influenciam a nossa realidade?
Arrisco que seja um pouco das duas coisas. Mas, para pensar no assunto, recorro primeiro a um trecho do discurso de Viola Davis ao ganhar o Emmy em 21 de setembro: "A única coisa que separa a mulher negra das outras é a oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não existem". Escaparei também, estrategicamente, da abordagem polêmica de cotas para negros em espaços de poder (obviamente, eu defendo cotas raciais) e de todas as outras diferenças que distinguem as mulheres negras das demais além da oportunidade, para me ater à questão da representação, que, sim, está ligada a todas essas outras.
Negra como protagonista advogada
Ao avaliar as questões de representatividade no cinema mundial, o professor multiculturalista da Universidade de Nova York Robert Stam pontua no livro Introdução à Teoria do Cinema que historicamente em Hoolywood os atores negros sempre tiveram de interpretar papéis que os diretores (em sua esmagadora maioria brancos) consideravam ser "papéis de negros", enquanto aos atores brancos era garantido o desafio de "atuar plenamente" para interpretar qualquer papel de ser humano.
"Para uma boa parte da história de Hollywood, era praticamente impossível fazer que os afro-americanos ou norte-americanos nativos representassem a si mesmos. O racismo estava inscrito nos regulamentos oficiais (por exemplo, a proibição do Código Hayes a representação da miscigenação) e em práticas não-oficiais (o preconceito de Louis B. Mayer de que s negros deveriam ser mostrados apenas com engraxates ou porteiros)".
Ocorre que, na série How to Get Away with Murder, que chegou à Sony Brasil apenas em fevereiro deste ano, Viola Davis interpreta a protagonista Annalise Keating, uma advogada brilhante, sexy e cruel. A "existência" da protagonista da forma como é construída e o fato de os resultados da interpretação de Davis terem sido prêmios e comemorações me fazem pensar que a série gera uma dupla subversão quanto aos lugares historicamente situados de presença e representação do negro na "vida real" e nas ficções. E isso tem muito a ver com o que a própria Davis disse em seu discurso de recebimento do prêmio, pois dar lugar de representatividade para mulheres negras nas ficções implicou, de fato, em dar lugar para essa representatividade em um âmbito real de visibilidade.
Lugar de negro, lugar de branco
Pensando em narrativas audiovisuais que não têm base em narrativas históricas (aquelas que recriam personagens que "existiram" na história), que acho que requerem mais delicadeza nas análises, acredito que toda a construção de personagens como Annalise Keating, de alguma forma, mesmo que de forma incipiente, subverte esse "lugar de negro/lugar de branco" (dentro e fora da ficção) espelhado, respaldado e sedimentado a partir de esterótipos sociais negativos associados aos negros na vida real.
Os movimentos gerados pelo seriado também me fazem pensar sobre o fato de que dar visibilidade nem sempre é tudo para gerar movimentos de subversão das formas hegemônicas de narrativas audiovisuais e possibilitar identificação dos "povos/personagens ditos subalternos reais" com os "povos/personagens ditos subalternos ficcionais". É preciso uma representatividade subversiva (quanto aos discursos hegemônicos) que seja aceita pelos representados, já que foram eles que não tiveram historicamente lugar de fala na "vida real" (que dirá na vida ficcional) para criar, em primeira instância, discursos sobre seus próprios corpos e realidades.
Nesse sentido, é interessante pensar sobre como o fato de a identificação ser algo mutável (segundo, Stuart Hall) e, portanto, em algum grau, algo relativo e mediado por discursos, faz com que a construção da advogada de How to get away with murder como uma personagem cruel e complicada não implique em uma não identificação de espectadoras negras e não negras "boas" com a personagem e, consequentemente, com a atriz que a interpreta. Afinal, personagens negras, "reais" ou fictícias, são tão complexas quanto quaisquer outras. Mas, aparentemente imitando a "vida real", as produções midiáticas só garantem tal complexidade aos personagens brancos.
Discurso
Quando o discurso de Davis, ao receber o prêmio do Emmy, evidência as discrepâncias de lugares de representação entre mulheres negras e não negras nas produções audiovisuais norte-americanas (colocando também em questão a necessidade de emprego para atrizes e atores negros que, obviamente, são capazes de interpretar todo o tipo de papel), ela ganha adeptas de identificação para além de sua personagem ficcional.
Afinal, no evento de premiação, Davis teve acesso a um forte espaço de fala sobre questões compartilhadas por atrizes e mulheres negras na "vida real". Tudo por conta de uma representatividade que se deu em um espaço ficcional, que também se configura como lugar de poder de fala em um ambiente ainda segregado quanto às questões de raça, gênero e classe, que é a indústria televisiva e cinematográfica mundial.
É interessante pensar também que ao invés de poder não falar nada sobre as questão raciais em um momento de premiação (o não falar também é falar, ou explicita as desigualdades de fala, mas pulemos isso também por ora), Davis reivindica sua identificação com demais atrizes negras e fala sobre questões específicas das mulheres negras; questões que, se não há quem construa lugares e se aproprie desses lugares para serem ditas, em um mundo de falas sociais e raciais hierarquizados historicamente, não seriam explicitadas em âmbito internacional.
O que há em jogo
Obviamente, essas observações não deixam de dimensionar, mais uma vez vale dizer, que estamos falando de uma produção de massa (no sentido de alcance e também de suposta alienação dos produtos, pensando em Benjamin e Adorno respectivamente). Nesse sentido, não estamos defendendo as produções industriais do audiovisual norte-americano, que ainda mantém e reproduz dinâmicas desiguais de trabalho e representação. Mas, posto que esse tipo de dinâmica e dos discursos oriundos dela são historicamente situados e construídos, pequenos movimentos diferentes nas formas de representação aparecem como fissuras importantes rumo a possibilidades e necessidades de formas diferentes de narrar e fictivizar a realidade e vise-versa.
Para que essas fissuras se tornem mudanças de fato será preciso considerar um processo histórico (e aí estou falando de décadas ou séculos).
E é como diz Stam, lembrando Hall: o fato de as representações e traduções audiovisuais terem, naturalmente, maior comprometimento com a ficção "não significa que não há nada em jogo". Elas dizem respeito e influenciam diretamente a nossa realidade.



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