Violência contra as mulheres: contra uma, contra todas

June 1, 2017 | Autor: Luciana Andrade | Categoria: Violence, Violence Against Women
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Título: Violência contra as mulheres: contra uma, contra todas
Luciana Vieira Rubim Andrade – Mestranda em Ciência Política pela
Universidade Federal de Minas Gerais; Pesquisadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM


Poderíamos começar este texto apresentando o recente caso de estupro
contra uma menina de 16 anos por 30 homens, com gravações e divulgação
online. Ou com qualquer um noticiado diariamente nos jornais. Casos
dramáticos, com uso de objetos perfurantes, armas brancas e de fogo, que
terminam, comumente, com a morte da mulher. Não é difícil encontrar uma
história assim: diariamente, em páginas das redes sociais, noticiários
televisivos e impressos, em locais públicos ou privados, nas famílias, nas
escolas e universidades, em barzinhos, enfim, em todo e qualquer lugar
teríamos como extrair um exemplo.
Por isso, individualizar a situação de violência que milhares de
mulheres no mundo inteiro vivenciam cotidianamente não é o caminho que
adotaremos aqui. As violências experimentadas pelas mulheres devem ser
entendidas como uma prática social, não de caráter individual, mas
sistêmico, pois são violências dirigidas a elas pelo simples fato de serem
mulheres e pertenceram a este grupo social (YOUNG, 1990, apud, MIGUEL e
BIROLI, 2014, p. 113).

No Brasil, segundo a pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo,
em 2000, intitulada "A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado"
estima-se que, em média, 2,1 milhões de mulheres são espancadas anualmente,
175 mil por mês, 5,8 mil por dia, 243 por hora, 4 mulheres espancadas por
minuto e uma mulher violentada a cada 15 segundos (AGENDE, 2004, p. 12).
Isso se dá em função de preconceito, discriminação e machismo
historicamente/socialmente/politicamente (re)construídos e (re)legitimados.
Nossa sociedade está construída sobre bases hierárquicas em que as
mulheres, de uma forma generalizada e contínua, estão subordinadas aos
homens e são tratadas como sendo de posse deles, como meros objetos de
satisfação de prazeres sexuais, de cuidadoras do lar, dos filhos e demais
membros da família.

Há, talvez, quem possa achar que tais informações mencionadas acima
são clichês acadêmicos. Com relação a isso, concordamos com Catharine
MacKinnon (2013), sobre a situação a que estavam submetidas às mulheres
norte-americanas:



Para aqueles de vocês que acham que isso é um
monte de retórica, quero especificar os fatos
que tenho como referência. Quando falo de
dominação masculina, tenho em mente dados desta
cultura como seu conteúdo. Os dados têm a ver
com a taxa de estupro e tentativa de estupro de
mulheres nos Estados Unidos, que é de 44%. Se
vocês perguntarem a um grupo aleatório de
mulheres, "você já foi estuprada ou vítima de
uma tentativa de estupro", e não excluir o
estupro conjugal, a cifra é essa. Cerca de 4,5%
de todas as mulheres são vítimas de incesto
praticado por seus pais, outras 12%, por outros
parentes homens, chegando a um total de 43% de
todas as meninas antes dos 18 anos, se for
incluído o abuso sexual dentro e fora da família
(MACKINNON, 2013, p. 236-237).



Pelo fato de a violência contra as mulheres se constituir como a
ruptura dos direitos humanos das mulheres (estabelecido assim por tratados
internacionais e pela Lei Maria da Penha), é preciso que haja intervenção
do Estado. Segundo Saffioti (2004, p. 79), esta ruptura, demanda, via de
regra, intervenção externa para que as mulheres consigam desvincular-se do
homem violento e da relação de subordinação. As mulheres que vivenciam
violência não esperam do Estado uma esmola, mas reivindicam seus direitos,
o que implica no reconhecimento por parte do Estado de que a violência é um
problema de ordem sócio-"estrutural", isto é, ocorre em qualquer classe
social, independe do grau de industrialização, da renda, dos distintos
tipos de cultura, etc. (GREGORI, 1993, p. 112; AGENDE, 2004, p. 9;
SAFFIOTI, 2004, p. 83).
No entanto, quando essas mulheres violentadas procuram por apoio
institucional, ou em outras palavras, procuram pelo Estado, com frequência
se deparam com um formato de atendimento precário e mal preparado para
atendê-las em suas especificidades. Em uma pesquisa realizada no município
de Belo Horizonte, Wânia Pasinato (2012) ouviu as percepções de mulheres
que procuraram pelos serviços da Delegacia Especializada de Mulheres (DEAM)
e também a trajetória percorrida por elas, na busca por outras
instituições, para tentar solucionar o problema que vivenciavam. Algumas
falas são ilustrativas do tratamento concedido a essas mulheres:



Toda vez que eu procurava o 13º Batalhão eles
falavam: 'Vai na Delegacia de Mulher'. Só que eu
tinha que pedir no serviço pra mim ir na
Delegacia de Mulher, pegar uma declaração,
atestado de declaração que eu tava indo lá. Só
que eu chegava lá [na DM] eles mandavam eu
voltar pra aqui ó, no final do [bairro]
Floramar, uma delegacia que tem. Toda vez. Eles
nunca me atenderam na Delegacia de Mulher
(Isabela, 31 anos) (PASINATO, 2012, p. 61 –
grifos nossos).




Eu já to desanimada com justiça, com polícia,
com delegacia, porque a gente corre atrás, a
gente vê. Antes ainda era pior, agora parece que
tá até melhor. ... é difícil porque as vezes a
mulher custa a tomar coragem, sabe? E ela toma
coragem e eu não sei se a intenção de todas é
igual, se é diferente, mas às vezes ela toma
coragem porque quer uma distância daquilo, quer
uma solução. Às vezes tem que ter uma prisão,
outras não. Mas pra mim eu acho que não tá
adiantando nada. Eu fui na Promotoria, já corri
atrás e ninguém nunca faz nada e as ameaças
"continua", sabe? A gente não sabe se vai ter um
fim, ou se o fim vai ser a gente morrendo (...)
(Alice, 27 anos) (PASINATO, 2012, p. 76 – grifos
nossos).




Estes são apenas dois dos relatos, mas são retratos da realidade dos
atendimentos que são prestados – em delegacias especializadas ou comuns,
varas criminais, tribunais de justiça, ou mesmo em serviços de saúde ou
assistência social. O caso da menina estuprada por 30 homens também
evidencia esta perversa relação da culpabilidade da vítima, do não
reconhecimento da violência vivenciadas pelas mulheres, e, de forma geral,
do tratamento não adequado que é dado a estes casos.
O fato de o Estado não agir ou se omitir no enfrentamento da violência
contra as mulheres se configura, pois, como mais uma forma de violência.
Caracterizada como violência institucional, é praticada nas instituições –
especializadas ou não – encarregadas de fazer o atendimento às mulheres,
perpretada por agentes que, ao invés de realizar um atendimento humanizado
de forma a proteger e garantir para as mulheres o pleno acesso à justiça
incorrem em mais um formato de violência (AGENDE, 2004, p. 11). A perversa
cultura das violências, fomentadas pela cultura patriarcal e machista,
continuam, desta forma, se (re)construindo e sendo (re)legitimadas pelas
instituições.

Os entraves institucionais para o atendimento às mulheres persistem
mesmo com todas as lutas travadas pelos movimentos feministas. Estas se
reforçam, no Brasil, desde a década de 1970 e tomam contornos cada vez mais
presentes na vida da sociedade, em todas as suas esferas, nas instituições,
nos cargos legislativos (mesmo que ainda de forma subrepresentada), nas
organizações não governamentais, entre outras. Foi com base em muita luta
que os movimentos feministas e de mulheres conquistaram a legislação atual
(Lei Maria da Penha) que trata das violências contra as mulheres de forma
específica e interdisciplinar, entendendo que não é somente uma questão de
polícia, mas perpassa uma miríade de instâncias na vida das pessoas e que
precisam de "remédios" vindos de diferentes instituições, como as da Saúde,
Educação, Assistência Social, Segurança Pública, entre outras. Este
entendimento do problema como complexo e multicausal levou, desde 2003, o
foco no enfrentamento das a ser pensado a partir de uma visão integral,
multisetorial e transversal.
Há de ressaltar que as vitórias dos movimentos feministas e de
mulheres ao longo de tantos anos não diz respeito somente à promulgação da
Lei Maria da Penha. Ela pode ser considerada como o auge da luta e também
do reconhecimento do Estado de que este é, de fato, uma violação dos
direitos humanos das mulheres, como prevê os tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário.
No entanto, a legislação vigente esbarra no patriarcado público, onde
as estruturas consideradas como parte da esfera pública ocupam importância
central em sua manutenção (ASSIS, 2014, p. 32). Miguel e Biroli (2014)
sustentam que, apesar da Lei Maria da Penha, a violência contra as mulheres
se mantém em patamares significativos – mesmo se analisamos o aumento do
número de denúncias deste problema como um fator positivo para a Lei Maria
da Penha.
Por fim, mesmo com a entrada do Estado brasileiro com a Lei Maria da
Penha na esfera privada (MIGUEL e BIROLI, 2014), instituições eivadas pelo
patriarcalismo continuam caracterizando as mulheres e as culpabilizando
pelas situações de violências experimentadas, (re)colocando-as no espaço
doméstico (MATOS, 2011), constrangendo a aplicação da legislação e
implementação da política pública de enfrentamento da violência contra as
mulheres.
Tomo como exemplo a arena do Poder Judiciário. Andrade (1996) apud
Magalhães (2015) argumenta que o saber jurídico criminal, compartilhado
pelo sistema de justiça brasileiro é de uma ideologia capitalista e
patriarcal, incorporada na atuação das instituições que compõem o sistema.
Logo, a prática deste sistema seria para as autoras, sexista, classista,
racista e conservadora. Andrade (1996) apud Magalhães (2015) analisa que o
sistema de justiça não é apenas um meio ineficaz de proteção às mulheres em
situação de violência, mas é também uma instância onde a violência é
duplicada e modificada para a violência institucional, "que exerce seu
poder e impacto também sobre as vítimas, recriando desigualdades e
preconceitos sociais" (MAGALHÃES, 2015 apud ANDRADE, 1996 p.131).

Cabe ressaltar que todos e tantos entraves ainda existentes no
tratamento da violência contra as mulheres permanecem em concomitância com
os avanços institucionais que ocorreram desde 2003: criação da Secretaria
de Política para as Mulheres, com status ministerial, a elaboração dos três
Planos Nacionais de Política para as Mulheres, do Pacto Nacional pelo
Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, do Plano Nacional de
Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, da realização da Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito sobre a situação das violências contra as
mulheres no Brasil, da criação da Casa da Mulher Brasileira, entre outras.
Isto também é capaz de demonstrar o quanto é difícil lidar com o problema
da violência contra as mulheres, bastante enraizado na cultura patriarcal
brasileira. É preciso muito mais que ação da polícia nestes casos, – como
evidencia todas estas políticas públicas mencionadas acima. É preciso que
todos estes esforços tenham continuidade.
Mas, infelizmente, as conquistas das mulheres com relação ao Estado
parecem não terem se consolidado como gostaríamos. Podemos citar como
exemplo de completo retrocesso nas políticas públicas de enfrentamento da
violência contra as mulheres o Projeto de Lei 5069, em tramitação no
Congresso Nacional, e também a exclusão das teorias de Gênero dos
currículos de ensino básico e a tentativa de instituir o Projeto de Escola
Sem Partido. Ambos, em direções diferentes, atacam frontalmente os direitos
humanos das mulheres: o primeiro por não oferecer tratamento digno quando
já há a ruptura destes direitos; o segundo, por se omitir em educar e
prevenir as situações de violência – e tantas outras violações que podem e
devem ser prevenidas, através da conscientização e da desconstrução de
estereótipos preconceituosos ainda presentes. Além disso, ao passo que o
interino assumiu a presidência, houve a extinção do Ministério de Mulheres,
Igualdade Racial e Direitos Humanos. Isso sinaliza para o fato de que o
enfrentamento da violência contra as mulheres e os processos de
desigualdade a que estamos submetidas não são preocupação para o governo
que hoje está ocupando a presidência. Todos os avanços em termos de
transversalidade de gênero nas políticas públicas correm uma séria ameaça.
Sejamos fortes. Lutemos.


Referências bibliográficas
AGENDE. 10 anos da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher, Convenção Belém do Pará / Agende
Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento – Brasília: AGENDE, 2004. 36 p.

ASSIS, Michele. Um útero todo seu: público e privado nos posts sobre aborto
das Blogueiras Feministas. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais, 2014

GREGORI, Maria Filomena. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres,
relações violentas e a prática feminista – Rio de Janeiro: Paz e Terra; São
Paulo: ANPOCS, 1993

MACKINNON, Catharine. Desejo e Poder. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI,
Flávia. Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora
Horizonte, 2013.

MAGALHÃES, Nayara. Gênero e violência conjugal: Olhares de um sistema de
justiça especializado. Brazilian Journal of Empirical Legal Studies vol. 2,
n. 2, jul 2015, p. 128-155

MATOS, Marlise et al. Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na
Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a
Comunidade - Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
2011

MIGUEL, Luis Felipe e BIROLI, Flavia. Feminismo e política: uma introdução.
1. Ed. – São Paulo :Boitempo, 2014

PASINATO, Wânia. Acesso à Justiça e violência contra a mulher em Belo
Horizonte – São Paulo. Annablume; Fapesp, 2012

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência – São
Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2004
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