Violência na sociedade contemporânea (Violence in contemporary society)

July 24, 2017 | Autor: Jorge Felix | Categoria: Violence, Sociologia, Estudios sobre Violencia y Conflicto, Violencia Política, Violência
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Tempos de vorazes O ciclo Mutações, tradicional evento criado pelo filósofo Adauto Novaes, reúne intelectuais e pesquisadores internacionais para debater a onda de violência na sociedade contemporânea. Por Jorge Felix1, para o Valor, de São Paulo Publicado em 1 de agosto de 2014 – págs. 4 a 8 do caderno Eu&FimdeSemana

O caso ocorreu no bairro dos Jardins, zona nobre da capital paulista. Era uma manhã de um dia de semana, totalmente ordinário na rotina de uma moradora de um edifício de classe média alta, localizado em algum ponto da Alameda Lorena. Na portaria, cumprimentou o porteiro, como rezam as boas maneiras, e saiu para seus compromissos cotidianos. Banca de jornais, uma compra ou outra de ingredientes encomendados pela cozinheira para completar o almoço. De repente, a mixórdia de gritos, buzinas e correrias até a esquina a deixou estática ainda na calçada. Não conseguia identificar com clareza o que estava acontecendo, mas também teve receio de aproximar-se ainda mais da confusão desconhecida, anormal para um trecho de rua sempre tão previsível. Eis que surge em sua frente, atravessando em zigue zague pelos carros, um rosto familiar. Ou pelo menos que ela assim o considerava até então. Era um seu vizinho antigo e ela imaginou que, finalmente, desvendaria o mistério e o azo da confusão. Qual nada! Com as mãos trêmulas, erguidas para ela, aquele senhor, supostamente tão conhecido, gritava fora de si: “Faltou pouco para eu dar um soco nele! Faltou pouco para eu dar um soco nele!”. Estava inconformado porque a presa lhe escapou por entre os dedos. Tratava-se de um pivete. Talvez um ladrão oportunista pego em flagrante pelos transeuntes, ajudados por seguranças à paisana, bem no momento de um assalto frustrado. Cercado pela turba em fúria, o moleque ficara no chão, chutado e xingado, livrou-se do linchamento porque a polícia chegou rápido. Ficou na mente daquela senhora, uma professora universitária, a imagem daquele vizinho em chamas sem nenhum resquício que pudesse lembrar aquele homem educado, cordial, que, durante décadas, ela julgou civilizado. Estava transmutado pela selvageria e a gana de fazer justiça com as próprias mãos. O relato pode soar como ficção, mas é absolutamente verídico. É apenas um caso vulgar de tantos fatos randômicos, para usar a palavra da modernidade cibernética, que desfilam diante de nós como um catálogo de episódios de violência. Seu particular entre tantos outros noticiados todos os dias à exaustão pela mídia é a figuro do senhor 1

Doutorando em Ciências Sociais (bolsista CAPES), mestre em Economia Política e professor da PUC-SP

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com sede vingança. Foi escrito “justiça com as próprias mãos”. Mas não é isso. Justiça, com preza da Filosofia do Direito, é algo impessoal, regulado por um estatuto, por agentes de um Estado democraticamente instituído. Havia algo na mente daquele senhor que o transformou naquela manhã e o fez acreditar na hipótese de uma violência legitimada pela revolta. Que sentimento é este? É ele o responsável pela onda de violência dos nossos dias? Quanto de humano, de individual, de pessoal abarca a cota de violência do nosso tempo? Um grupo de acadêmicos, intelectuais e pesquisadores está intrigado em responder a essas e outras questões inquietantes da morfologia da violência do século XXI. Se as guerras entre palestinos e israelenses ou entre russos e ucranianos mundializam o problema, por outro lado, os esquartejamentos em série, casos como o do menino Bernardo ou o fato de um médico e de um enfermeiro assistirem, na porta de um hospital, a morte de um homem infartado sem prestarem socorro emprestam um componente pulsional a esses crimes. De 14 de agosto a 8 de outubro, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, o grupo debaterá o tema, em 22 conferências, na 8ª edição do ciclo “Mutações”, tradicional evento criado pelo filósofo Adauto Novaes. Este ano o tema é “Fontes passionais da violência”. Do ponto de vista da Sociologia, evidente, os fatores sociais e históricos sempre aparecem como protagonista das análises e estudos sobre a violência. Deste a constituição da ciência social, Émile Durkheim (1858-1917) enxergou a sociedade como um grande Godzilla a esmagar qualquer tentativa de uma vontade única do indivíduo. Sua existência era moldada pelos vários papéis assumidos nos grupos sociais, pela divisão social do trabalho, que provocaria uma solidariedade orgânica e garantiria a coesão social, sempre intermediada por regras resultantes da Educação e do Direito. O crime ou o suicídio seriam anomalias com origem na própria constituição do social. Embora com maiores atribuições ao indivíduo, os outros dois fundadores da Sociologia, Max Weber (1864-1920) e Karl Marx (1818-1883) justificavam os crimes, a insegurança urbana ou o advento das multidões - a grande obsessão sociológica – com ênfase maior ao em torno socioeconômico. A questão imposta é como explicar a violência quando o indivíduo violento tem acesso às condições estabelecidas pelos fatores que, em tese, garantiriam a coesão social. Não apenas renda. Mas educação, informação, discernimento do certo e do errado e, apesar de tudo, um sentimento de raiva, desespero, ódio, incerteza impera sobre seus atos. “A tendência sempre é esquecer as paixões quando se discute violência, como se não houvesse o humano, como se o ódio não pudesse se instalar na mente das pessoas”, afirma Novaes. Em sua visão, encontrar saídas para mitigar a onda de violência depende de uma análise de toda a constelação de causas. “Neste momento não são as fontes sociais ou históricas mas as pulsionais que chamam a refletir sobre a natureza constitutiva desse animal (o Homem) para além da sociabilidade”, defende o cientista político Renato Lessa, presidente da Biblioteca Nacional e primeiro conferencista do evento. Ele esclarece: “Não se trata de opor as

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causas exteriores e as interiores, é que mesmo aqueles que tratam do exterior devem considerar a dimensão da interioridade”. Segundo Lessa, nos nossos dias, é uma obrigação moral dos intelectuais analisarem a violência para além dos lugares comuns. Muitas reflexões na literatura das ciências sociais, na filosofia ou na psicologia foram esquecidas ou carecem de interpretação à luz dos acontecimentos recentes. Só desta forma seriam possível explicar o avanço da barbárie nos nossos dias. A intenção desse grupo de intelectuais é resgatar algo que o pensamento do século XX deixou de lado com medo de ser acusado de ignorar o social em nome do existencialismo. Lessa cita o economista Vilfredo Pareto (184801943) como exemplo. Sempre mais conhecido por sua teoria da otimalidade econômica (quando o benefício de um não significa redução do bem-estar do outro), Pareto também sustentou que o comportamento humano – assim como o de outros animais – abriga um traço pré-cognitivo, um impulso alógico, que cristaliza-se depois com a influência da sociedade, ou seja, do meio em que vive. É o que Sigmund Freud (1856-1939) chamou de “dimensão pulsional”. A análise da violência, portanto, estaria contaminada pelo vazio do sujeito, como se o animal humano não carregasse nenhuma característica originária sobre a qual a sociedade exerceria seu papel. “É um desafio para o pensamento contemporâneo explicar porque uma mãe de família sai para comprar pão, no Guarujá, e é linchada, por exemplo”, cita Lessa, referindo-se ao assassinato da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, cujas imagens do espancamento público circularam pela internet de forma viral. Qual o componente humano dessa revolta seja para os moradores da periferia do Guarujá ou o senhor da Alameda Lorena? “A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível”, escreveu Albert Camus (1913-1960) em seu livro “O homem revoltado”, uma das tentativas notórias para explicar esse componente humano da violência. Em “Eichmann em Jerusalém”, Hannah Arendt (1906-1975) elaborou o seu conceito de “banalidade do mal”, quando constatou que a obediência cega jamais pode ser julgada como neutra porque é um pilar da “burocracia do assassinato”. Ou seja, seguindo o raciocínio de Arendt, um médico, enfermeiro ou qualquer funcionário de um hospital nunca poderiam negar socorro a um ser humano que agoniza em sua porta com a justificativa de acatar qualquer tipo de ordem superior ou normativa, sobretudo, a falta de uma carteirinha de plano de saúde em seu bolso. A análise proposta pelo grupo de Adauto Novaes parte, porém, de uma evolução histórica para investigar as motivações humanas. Depois de três dias de discussões internas, os intelectuais estabeleceram a I Guerra Mundial, que completa 100 anos, como marco inauguratório de uma forma de violência ainda perene. “Foi quando o mundo se transformou em trincheira, quando a guerra não é mais nos campos de batalha, mas passa a atingir a população civil, isto é, a violência já não está mais longe”, explica a professora Olgária Mattos, uma das palestrantes do “Mutações” deste ano. O conflito, o primeiro a ocorrer nos cinco continentes, como se sabe, somou 10 milhões de mortos e 20 milhões de feridos. De acordo com o historiador inglês Eric

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Hobsbawn (1917-2012), em seu “A Era do Império”, as únicas quantidades medidas em milhões, antes de 1914, eram na astronomia ou a população dos países ou a produção do comércio e das finanças. Depois da guerra, “nos acostumamos a ter números de vítimas de tais magnitudes”. Além da grandiosidade da catástrofe, Hobsbawm sublinha um dos pontos mais intrigantes desse momento para a análise da violência: as hecatombes, no século XIX, se situavam no mundo do atraso ou da barbárie, fora do âmbito do progresso e da civilização moderna. Essas atrocidades notadas nos continentes subdesenvolvidos eram vistas como regressão à selvageria. A guerra de 1914-1918, porém, fez dos métodos de atrocidade parte integrante do mundo civilizado e encobriram os avanços contínuos da tecnologia, da razão, isto é, do progresso. A I Grande Guerra decretou a falência daquilo que o sociólogo alemão Nobert Elias (1897-1990) chamou de “processo civilizatório”. Durante três séculos, a Humanidade apostou que a construção de um arcabouço social moldaria as relações interpessoais em um ambiente pacífico. “Essa acumulação civilizatória é destruída pela guerra, as regras, o Estado democrático, a diplomacia, sobretudo a razão, a educação, e como destaca Elias, até a etiqueta, as boas maneiras, tudo isso mitigaria as potencialidades letais do indivíduo”, explica Lessa. Segundo Elias, uma complexa conexão social forjada no ambiente cultural europeu impôs um autocontrole daquilo que Freud chamou de super-ego e, assim, arrefeceu o instinto violento do ser humano, permitindo a harmonia na convivência. Em busca de explicações para este processo de bancarrota do homem civilizado, os participantes do “Mutações” reencontram, de certa forma, as mesmas causas da I guerra. Em 1914, o capitalismo experimenta o apogeu de seu lado imperialista, expansionista e, consequentemente, bélico. “Desde então, o homem, como observou Walter Benjamim, vai perdendo o valor da cultura, da educação, da filosofia, daquele verniz de cultura que determinaria a civilidade e substitui tudo pelo econômico, esse passa a ser o único valor, consumir, ter passou a ser o padrão comportamental”, analisa Olgária Mattos. “Quando o econômico é fetichizado, o conhecimento perde valor e tudo é brutalista”. Nada tornou-se mais brutal nesse período pós-civilizatório do que o tempo. “Aquilo que retarda os resultados econômicos tem que ser excluído e esse sentimento, muitas vezes subjacente, implícito desperta paixões violentas”, destaca Olgária. Se é preciso consumir muito, há menos tempo para ganhar dinheiro, logo, desaparece o tempo para reflexão, discussão, debate. É o sumiço da palavra. “Primeiro é a violência, se não der certo, negocia”, diz. De acordo com Olgária, essa falta de diálogo é também um desdobramento do “politicamente correto”, um tipo de violência contemporânea. “As pessoas não podem criticar, dizer, por exemplo, que é um absurdo metade dos candidatos nas eleições deste ano não ter nível universitário. Logo a pessoa é classificada de elitista, mas a falta de preparo para a atividade parlamentar também gera violência.” Mesmo a palavra se estabelece em forma de violência em terreno onde devia evitá-la, como na diplomacia. Chamar um país de “anão diplomático” é apenas usar uma das formas de violência previstas pela ciência política.

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A política é, portanto, o ponto de chegada na corrida da investigação de saídas para a violência contemporânea. A falência do homem civilizado coincide com o malogro dos políticos e das instituições como mediadoras da convivência social. Na opinião dos intelectuais, sem resgatar o político será impossível deter a barbárie. Seria imprescindível repensar o econômico e remodelar as instituições para trazê-las de volta ao papel de mediação. Em busca da hipertrofia de seus ganhos, sobretudo financeiros, o econômico sequestrou o político, e sua hegemonia criou um capitalismo de incertezas, volatilidade e desigual. “A imprevisibilidade é a maneira mais difusa com a qual a violência afeta o seu corpo físico, mas o fato de você se sentir numa vida imprevisível, isto em si é uma dimensão constitutiva da maior violência que o ser humano pode sofrer”, explica Lessa. Talvez em nenhuma outra dimensão essa imprevisibilidade se manifeste com tanta clareza do que no mercado de trabalho. Depois da crise financeira de 2007, as tendências mundiais foram de grandes incertezas para os jovens, principalmente na Europa, embora a deterioração das relações trabalhistas seja notada a partir do fim dos anos 1970. O sociólogo Guy Standing, autor de “O precariado, a nova classe perigosa”, escreve que uma vida laboral de adaptação infinita, insegura, constantemente ameaçada deteriora o sentido moral. Standing une o indivíduo sem relação de trabalho formal, o precarizado, com o assalariado, e sustenta que este é tomado pela raiva e pela revolta em se sentir sempre explorado ou ameaçado de perder o pouco que tem. “A mente do precariado é alimentada pelo medo e motivada pelo medo, causando desengajamento político e intolerância”, escreve. As mutações no mercado de trabalhado são uma das explicações para a deterioração da representação política e da confiança nas instituições. Elas provocam uma fragmentação dos objetivos, das reivindicações, das bandeiras políticas. As manifestações de massa são reduzidas a meros aglomerados, com poucas chances de obter resultados do governo, das instituições reclamadas e ampliam a frustração com o poder constituído. “Essas diferenças é que precisam ser apagadas, essas fronteiras da democracia”, diz Novaes. “O Direito, o Estado, a revolução não foram eficientes em regular essa igualdade, convém agora instalar no centro da política a luta contra as formas de violência”. A questão é que o Estado ainda tem o papel de ser o grande mediador, mas falha também quando responde à situação emergencial com mais violência. Essa suposta resposta, como aponta o sociólogo Zygmund Bauman, em “O mal-estar da pósmodernidade”, só alimenta a “economia do cárcere”, isto é, toda uma indústria, em inúmeros países, que produz presos e um exército de profissionais que vive deles, como advogados, servidores públicos e todos os tipos de prestadores de serviço para os presídios. O Brasil tem a terceira população carcerária do planeta, com 715.655 presos, perde apenas para os Estados Unidos (2.228.424) e a China (1.701.344). O problema é que a prisão, aos olhos de grande parte da população, é insuficiente como penalidade. “Para as pessoas o Estado prende e solta ou não dá conta

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de prender, e a sensação é de insegurança, logo, o indivíduo dispensa a mediação do Estado e acredita que pode fazer justiça por conta própria”, afirma Ariadne Natal, pesquisadora do tema linchamentos no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Ela analisou 385 casos ocorridos na região metropolitana da capital paulista em 2009. Muitos casos podem estar subnotificados, pois, quando a polícia prende uma pessoa como aquele ladrão da Alameda Lorena, em geral, registra o fato como roubo, agressão corporal. “A própria vítima do linchamento não tem capital social para registrar o ocorrido”, lembra. Os casos de linchamento oferecem mais uma prova da falência do “processo civilizatório”, pois, a ideia dos algozes só encontra relação com a noção de Justiça do período pré-iluminista ou medieval. Remete às práticas de tortura. “É uma visão que o Direito, a Justiça só têm valor se houver o castigo físico”, observa Ariadne. “A violência é vista como forma de educar e punir. Se isso não acontecer, a Justiça não foi feita. Essa é uma declaração que ficou muito presente nos entrevistados na minha pesquisa”. A socióloga destaca que esse sentimento tem o mesmo fundamento daqueles que acreditam que a criança deve apanhar para aprender ou mesmo da pena de morte. Mas, neste caso, com um agravante. “Nos países onde a pena de morte é legal, embora seja um ponto polêmico, a forma é a mais asséptica possível, pelo menos a legislação prega uma ausência de dor. No linchamento, o objetivo é a exposição social, a dor física, a ideia de sofrimento.” Na pesquisa de Ariadne, o sentimento de vingança é comum a todas as classes sociais e níveis educacionais. Essa uniformidade atua também sobre aqueles que estão no papel de exercer as regras do chamado “processo civilizatório”, isto é, os policiais. Esse é o próximo tema de pesquisa da socióloga. “O policial também faz a mesma avaliação de que o Estado, a Justiça não honram o trabalho dele, porque depois liberta o preso, então, ele parte para a execução por conta própria”, diz, citando como exemplo o caso dos policiais militares do Rio de Janeiro que foram filmados ao assassinar um garoto no Alto da Boa Vista (Sumaré). Outro aspecto contemporâneo é intrigante para os intelectuais envolvidos na discussão da violência. Assim como as regras de convivência e regulatórias se mostraram promissoras para frear os instintos mais primitivos do seres humanos, o processo de esclarecimento do século XVIII com um maior fluxo de informação racional foi a aposta de fazer do homem o ser civilizado. Pois é justamente no momento em que a internet permite o maior acesso à informação, provocando uma espécie de “iluminismo cibernético” que recrudesce a violência desumana, as guerras, a carnificina movida pelo ódio. Seria uma materialização da violência praticamente a todo instante no espaço virtual quando, por exemplo, alguém bloqueia outro alguém em sua rede social? “A lei hoje é: se me incomodar, elimino”, diz Olgária. Talvez este seja mais um fator a ser levado em conta para conhecer os motivos intrínsecos ou naturais daquele senhor dos Jardins ávido pela vingança. Ou para justificar a conclusão de que a violência fez do ser moderno aquele que sofreu um trauma.

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