WEINHARDT, Otávio A. G. O Sistema Penal Brasileiro no Final do Império: uma análise de casos. XV Encontro Regional de História (ANPUH-PR). Curitiba: 2016.

May 18, 2017 | Autor: Otávio Weinhardt | Categoria: História Do Direito, Infancia, Menores, Historia do direito no Brasil
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O SISTEMA PENAL BRASILEIRO NO FINAL DO IMPÉRIO: UMA ANÁLISE DE CASOS Otávio Augusto Ganzert Weinhardt Universidade Federal do Paraná

RESUMO A partir na Independência, o Brasil passa por uma gradativa reestruturação da esfera jurídica. Nessa seara, além da Constituição Política do Império do Brazil outorgada em 1824, o país vivencia o fenômeno da codificação verificado na Europa a partir do Code Civil francês de 1804. Porém, ao invés de uma codificação de leis civis, o primeiro conjunto a ser decretado aqui é o Código Criminal do Império do Brazil, em 1830, seguido por um Código de Processo Criminal, em 1832. Entretanto, analisar textos legais não faz sentido a menos que relacionados ao seu âmbito de incidência, sua aplicação cotidiana. Assim, é fundamental recorrer às fontes primárias, como processos judiciais, inquéritos policiais e publicações jurídicas do período. De outro modo, não é possível compreender se aqueles institutos realmente funcionavam e como funcionavam. A pesquisa proposta, portanto, pretende confrontar a norma prevista com o diaa-dia de sua aplicação. Como, obviamente, não seria possível exaurir toda a matéria penal desde 1830 até a República fazendo uma análise minuciosa das fontes supracitadas, há uma necessidade de limitação do objeto e período a serem estudados. Aqui, pretende-se compreender a criminalização da criança e do adolescente no período de 1871 a 1890. Quanto ao objeto, trata-se de uma tentativa de compreensão acerca de como o conceito de menoridade foi visto pelo direito e de que forma a legislação passou a adotar critérios punitivos específicos para o menor acusado de um crime. No caso em análise, eram definidas formas distintas para punir o menor de 14 anos, de 17 anos e de 21 anos. Com relação ao recorte temporal, opta-se por um período em que o sistema vigente já estava melhor consolidado, devido às alterações que sofreu ao longo do tempo. Considera-se 1871 especialmente por conta da Lei nº 2.033 daquele ano, a qual trouxe importantes alterações ao direito penal de então. Já o final, em 1890, leva em conta a revogação do Código Criminal e permite uma análise da transição desses institutos na passagem do Império à República. Além das fontes enunciadas, utilizam-se fontes que permitem compreender a própria noção de infância e juventude, bem como o pensamento jurídico e o sistema judiciário do século XIX como um todo. Todavia, como enunciado, opta-se por uma primazia dos casos concretos, alguns dos quais já foram levantados e prometem uma fecunda investigação. O objetivo é melhor compreender o funcionamento do Judiciário, seus aparatos, sua eficácia e investigar se o ordenamento vigente era, na prática, mais punitivista ou mais

protetivo, especialmente com relação ao menor, colocando à prova algumas interpretações de senso-comum. Palavras-chave: Menoridade.

Código

Criminal;

Justiça

Penal;

Processo

Criminal;

1. Introdução O século XIX foi um século de profundas mudanças no fenômeno jurídico, a partir das Codificações. Na França, em 1804, é promulgado o Code Civil e, a partir dele, vários outros países da Europa continental passam a adotar códigos, ou seja, conjuntos sistematizados de leis. O pluralismo jurídico antes vigente perde espaço na medida em que o direito se estataliza e se resume em Lei1. O Brasil acompanha essa mesma tendência, mas, diferente da França, em vez de uma codificação civil, a primeira codificação brasileira foi o Código Criminal, decretado em 1830. A ele se segue, ainda, o Código de Processo Criminal, em 1832, responsável por instrumentalizar a aplicação da lei penal, ou seja, definir a atuação dos juízes, dos tribunais, as regras procedimentais etc. O enfoque do presente trabalho encontra-se, justamente, na justiça penal. A preocupação, portanto, está em compreender como o Estado tratava a criminalidade no final do século XIX. Elege-se o período de 1871 até o final do Império, em 1889. Justificase a escolha pelo fato de que 1871 foi um ano de grandes mudanças no sistema de justiça penal brasileiro. É normal que o decurso do tempo demonstre as discrepâncias entre o texto legal e a realidade sobre a qual ele legisla, fazendo com que a norma passe por reformas. A primeira grande reforma ocorre em 1841, com a Lei nº 261 e a segunda em 1871, com a Lei nº 2.033. Desse modo, as questões de justiça criminal alteram-se sensivelmente a partir dessa segunda mudança.

1

GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 50.

Esse projeto tirou da polícia a competência para julgar crimes e aumentou as atribuições dos juízes municipais. Se antes polícia e Judiciário se confundiam, a partir de então a separação se tornava mais clara. Todavia, não necessariamente reduziu o poder policial, pois instituiu o Inquérito, dando amplos poderes investigatórios à polícia, que exercia profunda influência nas decisões judiciais. Além disso, a possibilidade de efetuar prisões arbitrárias, em nome da “segurança pública” era bastante presente2. Todavia, a abordagem pretendida não tem seu enfoque nas legislações, nos legisladores ou nos grandes juristas e políticos. O que importa aqui é o caso concreto. Importam os personagens anônimos que não deixaram quaisquer vestígios na História, exceto seus nomes em um ou outro registro, incluindo os judiciais. Importam as histórias que parecem sem importância, mas ajudam a montar um quebra-cabeças que permite perceber como a lei penal era aplicada na prática. É evidente que tal abordagem só se torna possível a partir de uma análise do macro, do geral. Do contrário, o estudo da casuística teria pouco a explicar. Utiliza-se, portanto, das técnicas da micro-história italiana a fim de dar verticalidade ao singular e, assim, perceber detalhes que, de outra maneira, talvez não fossem notados. Trata-se tecer relações entre o particular e o universal3. Nesse sentido, as lições de Carlo Ginzburg possuem fundamental importância. Na linha do autor, buscam-se casos que possuam especificidades, tendo em vista que, muitas vezes, podem ser mais reveladores do que aqueles “estereotipados”4 . Desses casos retiram-se nomes não só de acusados, mas dos juízes, advogados, promotores e buscam-se outros registros que possam

2

KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira (18411920). Curitiba: Juruá, 2010, p. 99-108. 3 PEREIRA, Luís Fernando Lopes. A circularidade da cultura jurídica: notas sobre o conceito e sobre método. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Nova história brasileira do direito: ferramentas e artesanias. Curitiba: Juruá, 2012, p. 33. 4 GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989, p. 177.

esclarecer fatos sobre esses agentes, fornecendo uma “imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido”5. Tal metodologia poderia ser aplicada para analisar quaisquer questões dentro do campo proposto. Poderia-se investigar, por exemplo, o tratamento dedicado a certos agentes, como mulheres, negros ou imigrantes. Poderia-se, por outro lado, focar em crimes específicos, como o homicídio, o roubo ou a vadiagem. As possibilidades são diversas. No presente caso, a escolha se deu pelos menores, considerando-se que, à época, a menoridade cessava somente aos 21 anos. Assim, pretende-se analisar nos casos concretos em que medida o sistema penal diferenciava-se quando o agente era criança ou jovem. A partir daí, espera-se obter conclusões referentes ao tratamento do menor na sociedade, ao sistema jurídico vigente e o pensamento dominante da época no que toca os temas tratados.

2. Objetivos O

Código

Criminal

do

Império

pode

ser

considerado

uma

sistematização de cunho liberal6. Entretanto, mesmo com “feições tão liberais, a lógica do sistema penal não deixou de abarcar mecanismos clientelistas em seu funcionamento concreto”7. Essas questões, evidentemente, interferem na análise pretendida e não podem ser passadas por alto. Assim, pode-se colocar como um primeiro objetivo uma melhor compreensão do sistema penal vigente, investigando a quais interesses ele atendia e de que maneira isso era refletido na prática. A partir daí, objetiva-se também conhecer a lei penal no que tange aos objetos analisados. No caso da menoridade, por exemplo, o Código estabelecia que, abaixo de catorze anos, não haveria punibilidade (art. 10), exceto se o 5

Ibid., p. 175. HISTÓRIA do Poder Judiciário do Paraná. Curitiba: Secretaria da Cultura e do Esporte; Indústria Gráfica Serena, 1982, p. 20. 6

7

ROCHA JR., Francisco de Assis do Rego Monteiro. Recursos do Supremo Tribunal de Justiça do Império: o liberalismo penal de 1841 a 1871. Curitiba: Juruá, 2013, p. 150.

agente tivesse agido com “discernimento” (art. 13). Já se tivesse entre catorze e dezessete anos, a pena poderia ser bastante reduzida e, entre dezessete e vinte e um, um pouco menos reduzida (art. 18). Entretanto, nenhuma investigação sobre o passado jurídico pode ficar restrita ao fenômeno legal. É preciso observar que diversos fatores, como a morosidade do Judiciário ou as dificuldades técnicas que enfrentava, podem contribuir para que as leis não sejam precisamente cumpridas8. Ou seja, “entre as leis formais e a efetividade delas, cria-se um lapso não perceptível para os que analisam um sistema penal tão somente a partir dos diplomas legais”9. Com isso, demonstra-se a necessidade daquele que é o principal objetivo: estudar a aplicação concreta da lei penal. Através dessa análise mais ampla do sistema penal do período eleito, permite-se finalmente ir para a fonte primária e ver como a lei era transformada em sentença. Daí permite-se aprofundar diversas questões, como a correspondência entre a norma e sua aplicação, o comportamento dos magistrados, as características sociais dos acusados etc. Entretanto, ainda é preciso reconhecer o processo como uma fonte limitada. Contrariando um conhecido brocado latino, o que está no mundo nem sempre está nos autos10. Desse modo, é de se esperar que nem todo ato de subversão gere um processo formal. Uma alternativa para suprir tal lacuna são os relatórios de governadores das províncias, dos ministros da Corte, dos chefes de polícia. Neles, são explicitadas as opiniões desses agentes sobre diversas questões, tornando-se possível inferir qual o pensamento dominante daqueles que influenciavam o aparato punitivo estatal. Nesse sentido, há também o objetivo de investigar como magistrados, delegados de polícia, ministros etc. pensavam as questões de justiça penal no período.

HESPANHA, Antônio Manuel. Da “iustitia” à “disciplina”: textos, poder e política penal no antigo regime. In: HESPANHA, Antônio Manuel (Org.). Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 298. 8

9

ROCHA JR., Francisco de Assis do Rego Monteiro. Op. Cit., p. 154-155. Diz tal brocado: “Quod non est in actis non est in mundo”, ou seja, “o que não está nos autos não está no mundo”. 10

3. Resultados Como a proposta pretende servir para analisar casos concretos, nada melhor do que demonstrar a aplicação das ideias sugeridas na análise de um dos processos encontrados. O caso escolhido é o de Joaquim Gonçalves de Moura, um menino de 13 anos que foi preso pelo homicídio do irmão 11. As circunstâncias do crime são um tanto confusas. Simeão, irmão de Joaquim, pediu à mãe que pudesse castigá-lo com um chicote. A mãe não assentiu, mas Simeão foi atrás do irmão mesmo assim. Todavia, de alguma maneira, foi Simeão quem acabou morto. As peças processuais encontradas não esclarecem como, mas um relatório de província permitiu saber que ele foi esfaqueado12. Assim, o aparato estatal chega à fazenda onde a parda Bertholina vivia com os filhos a fim de punir o agressor. Joaquim foi acusado pela morte do irmão e preso por homicídio. Embora esse processo possua características bastante próprias, há diversos outros relatos no período de crimes semelhantes, cometidos contra irmãos, primos ou outras crianças/jovens próximos. Pode-se citar Pedro, acusado de matar o irmão, Alfredo13, Clemente, de dezesseis anos, acusado de matar seu primo14 e Avelino, de dez anos, que esfaqueou Faustino, de apenas oito15. No caso de Joaquim, o juiz municipal, Dr. Joaquim Bernardino Pereira de Queiroz, decidiu absolvê-lo, com base no art. 10 do Código, já que não havia elementos para declarar que o menor havia agido com discernimento.

11

Algumas das peças que compõe o processo, incluindo a narrativa dos fatos, encontram-se da Edição 35 de 1886 da Gazeta Jurídica, p. 495-498. 12 FALLA que o Exm. Dr. Antonio Gonçalves Chaves dirigio à Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes. Ouro Preto: Typographia do Liberal Mineiro: 1884. 13 RELATÓRIO do Presidente de Província Henrique Pereira de Lucena. Porto Alegre: 1886, p. 128. 14 GAZETA JURÍDICA. Edição 10 de 1776, p. 293-304. 15 RELATÓRIO do Presidente de Província Conselheiro José Antônio de Souza Lima. Porto Alegre: 1883, p. 123-124.

Todavia, a decisão final cabia ao juiz de direito, que entendeu em sentido contrário. No sistema vigente, o juiz municipal era responsável por um Termo (subdivisão da Comarca) e sua nomeação era feita pelo Governo da Província. Não era necessário que fosse bacharel em Direito. O juiz de direito, por sua vez, era um bacharel e sua nomeação era feita pelo Imperador. Ele era o responsável pela Comarca16, sendo, portanto, superior ao juiz municipal. Quando se tratava de menor, o juiz municipal não podia decidir o caso em definitivo, cabendo tal decisão ao juiz de direito17. O magistrado em questão era o Dr. Antônio Carlos Monteiro de Moura, uma figura polêmica. Recorrendo às buscas por indícios através do nome, descobriu-se que a população do Serro, onde ocorreu o crime, não o tinha com bons olhos. No jornal Gazeta de Notícias, foi descrito como o “principal causador de males e atraso do Serro” 18. Além disso, suas decisões eram bastante rigorosas com relação a determinadas camadas sociais. Em 1877, por exemplo, apenou o escravo Theophilo, acusado de agressão, em 300 açoites, além da obrigação de usar um gancho de ferro no pescoço durante seis meses. A sentença foi revista pelo Tribunal da Relação, que reduziu a pena para 150 açoites e dois meses com o gancho no pescoço19. Quanto a Joaquim, o magistrado decidiu considerar que agira com discernimento, posto que não havia prova em sentido contrário. Não cabia ao juiz condená-lo, pois tal decisão estava sujeita ao Juri; todavia, seria possível inocentá-lo, como quis Queiroz, o que Moura recusou. O caso de Joaquim, todavia, ainda precisava ser reexaminado pelo Tribunal da Relação, instância que exercia o segundo grau de jurisdição. Por força da Lei 2.033 de 1871, art. 20, por Joaquim ser menor, caberia apelação ex-officio, uma forma de reexame do processo pela instância superior. 16

HISTÓRIA do Poder Judiciário no Paraná. Op. Cit., p. 34. TINÔCO, Antonio Luiz Ferreira. Código Criminal do Império do Brazil annottado. Rio de Janeiro: 1886, p. 34. 17

18 19

GAZETA DE NOTÍCIAS. Edição 197 de 1881, p. 3. GAZETA JURÍDICA. Edição 27 de 1880, p. 155-161.

Todavia, a sorte de Joaquim não muda. No dia 20 de abril de 1886, os Desembargadores Francisco Leite da Costa Belém, José Antonio Alves de Brito, Aurélio A. Pires de Figueiredo Camargo e Joaquim Caetano Silva Guimarães20 decidem manter a decisão que tornava o menor imputável. Agora, definitivamente, Joaquim deveria sentar-se no banco dos réus e esperar a compaixão do Juri. Não foi possível descobrir o que aconteceu depois. A oitiva de testemunhas, produção de provas e também a carga axiológica dos jurados pode ter contribuído para uma decisão tanto em um sentido quanto em outro. Suposições do destino de Joaquim são, de todo, improfícuas. Por outro lado, tal questões suscita outros dois pontos a serem abordados: o pensamento em torno do menor no período e os possíveis destinos de um menor apenado. De maneira breve, o menor representava um paradoxo: era, ao mesmo tempo, problema e solução. Já era presente um discurso que colocava o menor como o “futuro da pátria”21, de maneira que precisava de atenção e cuidado por parte do Estado, que devia fornecer “o ensino moral e religioso”, uma “educação moral e profissional”22. Do contrário, corria-se o risco de que esses jovens

tornassem-se

“cidadãos

inúteis

e

muitas

vezes

perigosos

à

sociedade”23. Dos menores “problemáticos”, não é de se surpreender que figurassem figuras como “o órfão, o enjeitado, o filho de uniões ilícitas, [...] da miséria e do

20

No acórdão, consta apenas o sobrenome dos desembargadores. Todavia, foi possível retirar o nome completo dos magistrados na FALLA que o Exm. Sr. Desembargador José Antonio Alves de Brito dirigio à Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes. Ouro Preto: Typographia do Liberal Mineiro: 1885. 21 RELATÓRIO apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de São Paulo. São Paulo: 1872. 22 RELATÓRIO apresentado pelo Vice-Presidente Joaquim Jacintho de Mendonça ao Presidente de Província Rodrigo de Azambuja Villanova. Porto Alegre: 1888, p. 46. 23 RELATÓRIO com que o Exm. Sr. Presidente Dr. Venâncio José de Oliveira Lisboa abriu a 1ª sessão legislativa provincial do Paraná. Curitiba: Typographia da Viuva e filhos de G. M. Lopes, 1872, p. 43.

pauperismo”24. Também apareciam com frequência menores imigrantes, especialmente italianos25. A “solução” para o menor criminoso já estava prevista no próprio art. 13 do Código: deveriam ser enviados a casas de correção. Haviam as “companhias dos menores dos arsenais de marinha e guerra”26, nas quais o menor era treinado para o serviço militar e outras instituições que deveriam misturar ensino escolar e formação profissional, como o instituto dos menores artesãos. Na prática, as condições desses locais eram assustadoras. O ensino e formação profissional, precários. Faltavam recursos elementares. Não raro, faltava comida e roupa para os menores, que adoeciam constantemente27. Não à toa, os Governos de Província tivessem, em geral, dificuldades em recrutar jovens para a Companhia de Aprendizes da Marinha, por exemplo. Nos relatórios de governo, eram frequentes as reclamações sobre a “repugnância quase invencível que os pais manifestam em entregar seus filhos à companhia”28. Outro fato importante é que não havia profundas distinções entre o menor que cometia um crime e o menor marginalizado por ser negro, órfão, abandonado ou simplesmente pobre. No instituto dos menores artesãos, no Rio de Janeiro, por exemplo, havia uma ala para criminosos e outra ala para “vadios,

vagabundos

e

abandonados”29,

uma

forma

de

condenar

antecipadamente o menino pobre.

24

RELATÓRIO apresentado à Assembléa Geral Legislativa. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1873, p. 30. 25 RELATÓRIO apresentado á Assembléa Geral Legislativa. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1875. 26 RELATÓRIO apresentado á Assembléa Geral Legislativa. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883. 27 MARQUES, Vera Regina Beltrão; PANDINI; Sílvia. Feios, sujos e malvados. Os aprendizes marinheiros no Paraná oitocentista. Revista Brasileira de História da Educação nº 8 jul./dez. 2004, p. 85-104. 28 RELATÓRIO com que o Excellentissimo Senhor Doutor Frederico José Cardoso de Araújo Abranches abriu a sessão da Assembléa Legislativa Provincial. Curitiba: Viúva Lopes, 1874, p. 23 29 RELATÓRIO apresentado ao Exm. Snr. Doutor Rodrigo Octavio de Oliveira Menezes pelo Chefe de Polícia. Curitiba: Perseverança, 1879.

4. Considerações finais Do tema proposto, é possível retirar uma série de conclusões preliminares, que prometem ser ampliadas conforme a pesquisa avance. Primeiramente, pode-ser perceber que o Judiciário a partir da Constituição de 1824 e das Codificações, quanto mais das reformas que as consolidam, conta com uma estrutura já bastante complexa e, também, burocratizada. Na referida estrutura, os magistrados possuíam grande poder, mas também estavam profundamente vinculados a interesses políticos, o que, ao menos no plano legal, parece melhorar após 1871, embora certamente persista. Também é necessário atentar ao papel da polícia, dotada de grandes poderes e liberdade de atuação. Outra conclusão interessante é que a metodologia proposta parece funcionar bem para a questão proposta e parece que funcionaria bem para outras propostas correlatas. As mesmas estratégias de fazer uma revisão bibliográfica, analisar a Lei, as discussões do período, enfim, estruturar um arcabouço teórico para então entrar em casos concretos teriam resultados semelhantes para tratar, por exemplo, de escravos ou imigrantes. Na análise das fontes primárias, por sua vez, a busca por nomes, casos semelhantes, notícias sobre o mesmo caso, atuação de magistrados em outras ações etc. pode ser bastante reveladora. Já com relação ao menor, uma nova série de conclusões é possível. Embora o caso de Joaquim ganhe destaque na presente análise, diversos outros foram vistos a fim de traçar comparações. Fica claro que o menor visto como marginal, delinquente, criminoso era, em regra, o desfavorecido, tanto por origem quanto por classe. Dessa forma, ainda que o direito vigente, comparado ao anterior, fosse mais protetivo com relação ao menor, haviam mecanismos que permitiam criminalizá-lo quando conveniente. Permitir que o “discernimento” do agente fosse investigado era, claramente, uma forma de punir uns e deixar outros livres. A esse respeito, Tobias Barretto foi um grande crítico, destacando que

tal discricionariedade permitia atribuir discernimento aos mais pobres e retirar as intenções dos abastados30. Além disso, percebe-se que as soluções oferecidas eram mal estruturadas e ineficientes. Não cumpriam o propósito para o qual foram criadas. Pelo contrário, serviam como um depósito de menores “feios, sujos e malvados”31, que não possuíam espaço fora dos muros dessas instituições. De todo modo, o quadro não é de completo pessimismo. Ao menos, a preocupação com o menor torna-se mais frequente. Já é bem evidente que seu tratamento deve ser diferenciado daquele dado ao adulto e que ele merecia a atenção do Estado, ainda que, naquele momento, fosse uma atenção extremamente utilitarista e moralizante.

5. Referências

5.1. Fontes primárias a. Relatórios FALLA que o Exm. Dr. Antonio Gonçalves Chaves dirigio à Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes. Ouro Preto: Typographia do Liberal Mineiro: 1884. FALLA que o Exm. Sr. Desembargador José Antonio Alves de Brito dirigio à Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes. Ouro Preto: Typographia do Liberal Mineiro: 1885. RELATÓRIO com que o Excellentissimo Senhor Doutor Frederico José Cardoso de Araújo Abranches abriu a sessão da Assembléa Legislativa Provincial. Curitiba: Viúva Lopes, 1874.

30

31

MENEZES, Tobias Barretto de. Menores e Loucos. Sergipe: 1926 [1886], p. 14.

Alusão ao supracitado artigo: MARQUES, Vera Regina Beltrão; PANDINI; Sílvia. Feios, sujos e malvados. Os aprendizes marinheiros no Paraná oitocentista. Revista Brasileira de História da Educação nº 8 jul./dez. 2004, p. 85-104.

RELATÓRIO apresentado á Assembléa Geral Legislativa. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1875. RELATÓRIO apresentado á Assembléa Geral Legislativa. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883. RELATÓRIO apresentado à Assembléa Geral Legislativa. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1873. RELATÓRIO apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de São Paulo. São Paulo: 1872. RELATÓRIO apresentado ao Exm. Snr. Doutor Rodrigo Octavio de Oliveira Menezes pelo Chefe de Polícia. Curitiba: Perseverança, 1879. RELATÓRIO apresentado pelo Vice-Presidente Joaquim Jacintho de Mendonça ao Presidente de Província Rodrigo de Azambuja Villanova. Porto Alegre: 1888. RELATÓRIO com que o Exm. Sr. Presidente Dr. Venâncio José de Oliveira Lisboa abriu a 1ª sessão legislativa provincial do Paraná. Curitiba: Typographia da Viuva e filhos de G. M. Lopes, 1872. RELATÓRIO do Presidente de Província Conselheiro José Antônio de Souza Lima. Porto Alegre: 1883. RELATÓRIO do Presidente de Província Henrique Pereira de Lucena. Porto Alegre: 1886.

b. Periódicos GAZETA DE NOTÍCIAS. Edição 197 de 1881. GAZETA JURÍDICA. Edição 10 de 1776. GAZETA JURÍDICA. Edição 35 de 1886, p. 495-498.

c. Fontes bibliográficas MENEZES, Tobias Barretto de. Menores e Loucos. Sergipe: 1926 [1886], p. 14. Obra digitalizada disponível em: . Acesso em: 03/04/2016.

TINÔCO, Antonio Luiz Ferreira. Código Criminal do Império do Brazil annottado. Rio de Janeiro: 1886, p. 34. Obra digitalizada disponível em em: . Acesso em: 04/07/2016.

5.2. Fontes secundárias GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. HESPANHA, Antônio Manuel. Da “iustitia” à “disciplina”: textos, poder e política penal no antigo regime. In: HESPANHA, Antônio Manuel (Org.). Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 287-379. HISTÓRIA do Poder Judiciário do Paraná. Curitiba: Secretaria da Cultura e do Esporte; Indústria Gráfica Serena, 1982. KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira (1841-1920). Curitiba: Juruá, 2010. MARQUES, Vera Regina Beltrão; PANDINI; Sílvia. Feios, sujos e malvados. Os aprendizes marinheiros no Paraná oitocentista. Revista Brasileira de História da Educação nº 8 jul./dez. 2004, p. 85-104. PEREIRA, Luís Fernando Lopes. A circularidade da cultura jurídica: notas sobre o conceito e sobre método. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Nova história brasileira do direito: ferramentas e artesanias. Curitiba: Juruá, 2012. ROCHA JR., Francisco de Assis do Rego Monteiro. Recursos do Supremo Tribunal de Justiça do Império: o liberalismo penal de 1841 a 1871. Curitiba: Juruá, 2013.

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