Hiperestímulos na Contemporaneidade: jogo e exploração espacial nos videogames

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HIPERESTÍMULOS NA CONTEMPORANEIDADE: JOGO E EXPLORAÇÃO ESPACIAL NOS VIDEOGAMES Sérgio Nesteriuk18 / Diogo Augusto Gonçalves19

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Resumo: As novas interfaces e tecnologias dos games trazem hiperestímulos que fazem com que as características imersivas dentro de um ambiente virtual sejam potencializadas. A exploração espacial nos videogames inaugura novas possibilidades narrativas propiciando ao sujeito-jogador uma experiência pautada em uma interação lúdica significativa. Desta forma, pode-se entender o game designer como um arquiteto de histórias possíveis e o jogador como um demiurgo capaz de jogar a própria diegese do jogo.

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Palavras-chave: Jogo. Espaço. Games. Hiperestímulos. Diegese.

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18 Professor do PPG em Design da Universidade Anhembi Morumbi. Líder do DEED – Grupo de Pesquisa em Design, Entretenimento e Educação. E-mail: [email protected]. 19 Mestre pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor do Centro Universitário Unifafibe e da Universidade de Araraquara (UNIARA). E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO Desde o final da Segunda Guerra Mundial observamos o célere desenvolvimento das chamadas ciências da computação e a criação de dispositivos em sistemas de processamentos de dados. Lévy aborda a cultura digital em várias obras, entre as quais “A Máquina Universo” (1998), na qual já apontava o computador como uma ferramenta capaz de oferecer outras formas de experiência e de pensamento: A mediação digital remodela certas atividades cognitivas fundamentais que envolvem a linguagem, a sensibilidade, o conhecimento e a imaginação inventiva. A escrita, a leitura, a escuta, o jogo e a composição musical, a visão e a elaboração das imagens, a concepção, a perícia, o ensino e o aprendizado, reestruturados por dispositivos técnicos inéditos, estão ingressando em novas configurações sociais. (LÉVY, 1998, p. 17).

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Ao pensarmos esta reestruturação dentro do contexto do jogo, mencionado pelo autor, identificamos um interfaceamento diferenciado para as relações entre homem e máquina: os consoles de videogames. Estes dispositivos de alto poder de processamento podem se conectar a rede, e vêm trazendo cada vez mais informações para seus jogadores, transformando seus próprios juízos perceptivos. A evolução tecnológica observada nos consoles

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de videogames evidencia o fato de que a sociedade vem se preparando para absorver cada vez mais estímulos visuais e sonoros. Singer (2001) descreve como as mudanças acarretadas pela urbanização, industrialização e crescimento populacional repercutem na forma qual e tal foram compreendidas pela população durante o decorrer do século XX. Os ataques sensoriais que vitalizaram a população do inicio do século XX, alteraram e transformaram a experiência subjetiva do sujeito contemporâneo, agora marcado não mais pela passante baudelaireana, mas pelo hiperestímulo, em uma sociedade preparada para absorver os excessos visuais e sonoros do ambiente urbano. As formas de entretenimento comerciais tiveram papel fundamental nesta preparação, uma vez que grande parte dos excessos absorvidos pela sociedade foram e são introduzidos pelo entretenimento, sobretudo após os chamados meios de comunicação de massa (ALONSO, 2009). A comunicação midiática e midiatizada propicia uma circulação fluida de informação visual, sonora e narrativa por diversos meios tecnológicos, favorecendo articulações complexas do meio urbano com o meio digital. Os hiperestímulos estão cada vez mais enraizados na sociedade por meio da cultura midiática. Inseparável do crescimento acelerado das tecnologias comunicacionais, a

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Interseções Midiáticas: As Multiplas Faces da Internet cultura midiática é responsável pela ampliação dos mercados culturais e pela expansão e criação de novos hábitos no consumo de cultura. Inseparável também na transnacionalização da cultura e aliada à nova ordem econômica e social das sociedades pós-industriais globalizadas, a dinâmica cultural midiática é peça chave para se compreender os deslocamentos e contradições, os desenhos móveis da heterogeneidade pluritemporal e espacial que caracteriza as culturas pós-modernas. (SANTAELLA, 2003, p. 59).

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É neste contexto do pós-humano que os videogames se estabelecem como interface e artefato cultural, que possibilita, a partir da interação e da imersão, propor novos estímulos sensoriais convergindo em novas experiências narrativas. A tela ganhou mais uma dimensão por meio da visualização estereoscópica e o joystick evoluiu de um manche com um ou dois botões para controles de múltiplas funções sem fio e dispositivos de captura de movimento do corpo. Assim, as novas possibilidades de interação trazem hiperestímulos que fazem com que as características de imersão e interação dentro do ambiente virtual sejam potencializadas. A exploração dos espaços virtuais nos videogames tem relação intrínseca com a atividade lúdica a ser desempenhada em um jogo.

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O CÍRCULO MÁGICO COMO SISTEMA E A INTERAÇÃO LÚDICO SIGNIFICATIVA

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O círculo mágico (HUIZINGA, 2004) é um espaço destinado para imersão dos jogadores em alguma atividade lúdica, é o locus onde o jogo começa, acontece e termina. É o contrato de cumplicidade que todo jogador faz consigo mesmo e com os outros jogadores antes de começar qualquer atividade lúdica. Quando um jogador inicia um jogo estabelece novas regras para sua vida, dentro do período que permanecerá jogando. O círculo mágico pode possuir um componente físico, uma arena, como um jogo de tabuleiro ou uma quadra, por exemplo. No entanto, um espaço físico específico não é determinante para a realização de um jogo ou brincadeira, pois muitos destas atividades acontecem a partir da vontade dos jogadores de “brincar”, não importando o local onde a atividade ocorre. Dentro do círculo mágico os jogadores firmam uma espécie de contrato com as regras do jogo as quais florescem como sendo as leis vigentes nessa nova realidade. Esse contrato institui uma relação muito poderosa entre as partes envolvidas; a realidade ordinária passa a não ter importância em detrimento das novas possibilidades presentes nos mundos temporários disponibilizadas no interior do círculo mágico.

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O círculo mágico então representa os limites do espaço do jogo, e as regras incorporadas ao jogo passam a ter autoridade naquela realidade em uma espécie de “suspensão da descrença” (SALEN; ZIMMERMAN, 2012). Entretanto, mesmo que exista a presença de um mundo temporário com outras regras vigentes, os habitantes dessa segunda realidade trarão consigo experiências do mundo ordinário para o mundo temporário do jogo – assim como também levarão algo do jogo para o mundo ordinário. Destarte, a conexão entre estes dois mundos não ocorre apenas segundo as regras dos jogos, já que os jogos podem ser pensados como sistemas formais e culturais. Sistemas são ambientes em que um conjunto de atributos interage, formando um padrão maior e diferente das suas partes quando analisadas individualmente (SALEN;ZIMMERMAN, 2012). Para os autores, para que um sistema exista são necessários quatro elementos centrais: objetos; atributos para esses objetos; que os objetos possuam relações internas entre eles e estejam presentes em um ambiente. Ademais, um sistema pode ser aberto ou fechado, para que um sistema seja aberto é imperativo que construa relações com o contexto externo a ele; já os sistemas fechados não criam relações externas ao seu ambiente. Desse modo, os jogos podem ser entendidos como sistemas formais (fechados) em que suas regras impedem que o contexto externo a ele influencie o desenvolvimento do jogo formalmente.

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Todavia, a adesão de jogadores ao sistema carrega relações externas ao círculo mágico transformando o sistema formal em um sistema cultural (aberto), com a subjetividade e as referências advindas do mundo ordinário trazida pelos sujeitos-jogadores - o que altera fenomenologicamente a experiência do jogo em si. O jogo adquire significado, portanto, por meio da experiência de cada sujeito-jogador, fazendo com que mundos temporários sejam singulares e se crie uma interação lúdica significativa (SALEN; ZIMMERMAN, 2012). A interação lúdica significativa surge dessa relação criada a partir da interação entre jogadores e sistema. Os jogadores projetam decisões no contexto dos jogos de acordo com seus julgamentos e experiências prévios, resultando em uma resposta do sistema que exigirá outra ação do jogador em uma espécie de relação de causalidade. Essa interação entre as partes envolvidas em um jogo é o que permite tornar a experiência do jogar significativa. A partir desta noção de interação lúdica significativa é possível definir os videogames como sistemas culturais, com regras fechadas, que introduzem algum conflito, resultando em uma resposta do jogador, gerando uma experiência de constante troca de informações entre o estado do jogo e o próprio jogador. Além dessa permuta de informações no interior do sistema, o sujeito-jogador traz experiências próprias, advindas de sua vida fora

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Interseções Midiáticas: As Multiplas Faces da Internet do jogo para sua vivência no círculo mágico, intensificando a significação do videogame. Os videogames não se limitam, portanto, ao ato de jogar: eles criam um universo que agrega vários elementos, culturais, sociais, comunicacionais e tecnológicos. Consequentemente a imersão acontece quando o videogame passa a ser constituído como um sistema cultural, no qual o jogador estabelece uma espécie de pacto de cumplicidade e se deixa levar pela interação e/ou narrativa, para construir um significado íntimo com o jogo resultante de sua própria experiência do jogar.

IMERSÃO E AGÊNCIA: O JOGO ENTRE O CÍRCULO MÁGICO E O ESPELHO

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O espaço de navegação virtual em videogames, aliado ao contrato estabelecido entre o sujeito-jogador e jogo, favorecem um desejo inerente ao ser humano de viver e experimentar suas dimensões imaginárias e simbólicas, graças à possibilidade de imersão em mundos fantásticos e verossímeis. Os videogames oferecem assim, uma esfera virtual para a representação de espaços históricos, contos de fadas, ficções científica entre outros gêneros narrativos, fantásticos ou não, para que uma (a)ventura seja desbravada por um jogador: uma jornada em um ambiente diferente daquele vivenciado em

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suas experiências ordinárias. A imersão é pontuada como sendo uma realidade distinta e suspensa das demais, mas é preciso atentar ao que os jogadores buscam quando tencionam entrar em outras realidades. Um jogador pode, por exemplo, buscar a imersão em uma espécie de simulador da vida em sociedade, como no jogo “The Sims” (Eletronic Arts, 2000), tentando construir uma vida que simule aspectos de seu mundo cotidiano, com base em suas regras e configurações dentro de um ambiente emergente. Por isso, um sujeito-jogador pode buscar o ambiente virtual para imergir em outro mundo, mas esse mundo não será necessariamente destituído de qualquer referência de sua realidade mais imediata. Entretanto, a sensação que os agentes buscam é derivada da experiência física de estar submerso na água, de estar envolto em uma realidade distinta, mesmo quando ela procure emular ou simular a sua própria realidade imediata (MURRAY, 2003). A imersão a partir de dispositivos eletrônicos foi profetizada pela literatura em obras como Neuromancer, de William Gibson ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A imersão é algo almejado em diversas mídias, linguagens e formas de expressão, com seus vários tipos de leitores: de textos literários, de textos audiovisuais ou de textos sonoros. No entanto, a imersão atinge outro momento quando o leitor conseguiu atravessar o espelho e passou a viver as aventuras que tanto desejavam (MACHADO, 2007). O es-

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Interseções Midiáticas: As Multiplas Faces da Internet pelho é o lugar onde vivem as imagens, entidades virtuais que mimetizam objetos e seres do mundo ordinário, contudo sua existência se restringe a uma representação visual e luminosa, tal e qual é o mundo virtual constituído a partir das imagens técnicas geradas por computador. O espelho aqui pode ser pensado da mesma forma como o círculo mágico, e assim que o jogador entra em uma dada realidade paralela e firma o contrato com este universo, é alcançado um determinado fluxo (CHEN, 2007) que modifica as convicções desse leitor que interage com a dimensão dramática em um espaço virtual. O prazer de ler o texto e interagir com ele é conquistado graças ao que Murray chama de agência (agency).

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Agência é a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas. Esperamos sentir agência no computador quando damos um duplo clique sobre um arquivo e ele se abre diante de nós, ou quando inserimos números numa planilha eletrônica e observamos os totais serem reajustados. No entanto, normalmente não esperamos vivenciar a agência dentro de um ambiente narrativo (MURRAY, 2003, p. 127).

O prazer de agência que o mundo virtual oferece é conquistado a partir da relação criada entre uma ação executada e o feedback20 que o jogador 20 Em livre tradução, realimentação, dar resposta. O mecanismo de feedback em máquinas diz respeito a reação que um sistema envia para o usuário por meio de algum sinal, visual, auditivo, tátil ou háptico.

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recebe do sistema, de maneira que quanto maior for o efeito da ação, maior será o prazer sentido pelo usuário. A agência existe em atividades tidas corriqueiras tais como um duplo clique de um mouse até atividades mais complexas em um jogo, em que uma série de comandos necessita ser executada com exatidão em um curto período de tempo para que uma ação específica ocorra. Entretanto, é interessante mencionar que o prazer que a agência transmite não está vinculado ao ato de acionar comandos no controle do videogame em si. Para o efeito de agência ser jogadores manifestar é necessário, portanto, que as ações aconteçam a partir de escolhas efetivamente realizadas pelo agente dentro do sistema. Os jogos das atuais gerações de console focam em proporcionar agência, sobretudo por meio da navegação no espaço. Os ambientes virtuais, de uma maneira geral, buscam oferecer uma sensação de prazer aos seus usários por meio do deslocamento em espaços distintos. Mas, os ambientes virtuais presentes nos videogames propiciam construções mais elaboradas e complexas objetivando sua exploração, o que ocorre, normalmente, por meio das chamadas missões ou “quests”. As quests podem ser entendidas como narrativas fragmentadas as quais constroem um mundo ficcional amplo com muitas possibilidades de exploração (OLIVEIRA, 2010). Jogos como “Shemue” (SEGA, 1999), “Batman Arkham City” (ROCKSTEADY, 2011) e “Gran Theft Auto 5” (ROCKSTAR, 2013), estimu-

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lam a exploração do espaço não só para o desenvolvimento do arco narrativo principal da história, como também para o aprofundamento no universo do jogo por meio de uma espécie de engajamento dramático. Além das quests principais esses jogos apresentam as chamadas “side quests”, com suas próprias narrativas paralelas que procuram amplificar mais a agência do leitor do texto interativo, tornando a experiência de gameplay mais significativa. Em “Batman Arkham City”, por exemplo, enquanto o jogador controla a personagem de Batman para impedir os planos de seu algoz, Coringa, surgem missões opcionais que visam deter assaltos, evitar assassinatos e coletar objetos, que não guardam relação direta com a trama principal e que nem mesmo precisariam ser executadas para proporcionar o seu desfecho. Tais tarefas paralelas intentam complementar a experiência do jogo para além da partida, aumentando ainda o fator replay21 ao proporcionar ao jogador voltar em um determinado ponto e “rejogá-lo” por novos caminhos ou então buscar novos objetivos – estipulados pelo jogo ou mesmo pelo próprio jogador.

Sumário eLivre 21 Termo utilizado para explicitar quando um jogador decide jogar novamente um jogo terminado.

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MYST E SILENT HILL: EXPLORAÇÃO ESPACIAL COMO AGÊNCIA

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Murray menciona o jogo “Myst” (CYAN, 1993) como capaz de provocar o jogador a explorar o espaço, além de apresentar possibilidades de finais diferentes. Murray diz que dentre os três finais possíveis, é possível encontrar um final feliz, em que todos os problemas são resolvidos. Entretanto, o final com um desfecho mais interessante acaba sendo aquele que o jogador acaba traído pelos NPCs (Non-player character)22 que procurava ajudar. Desde Myst, outros jogos apareceram com essa mesma dinâmica, de vários finais possíveis atingidos de acordo com o tipo de exploração feita durante o jogo. Na opinião da autora, tais jogos proporcionam um prazer de agência maior devido ao fato do jogador realmente perceber que suas escolhas fizeram diferença no decorrer do jogo. Santella (2009) sistematizou o conceito de imersão em quatro níveis fundamentais. O nível mais profundo de imersão seria aquela vivenciada na realidade virtual. O segundo nível seria aquele proposto através de sistemas robóticos os quais permitem que um participante se sinta presente em um ambiente remoto e distante. No terceiro nível o jogador é representado por meio de um avatar em algum espaço digital, visto através de uma tela. E por 22 Livre tradução dos autores - personagem não jogável.

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fim, o último nível de imersão seria o menos profundo que é experimentado através da navegação pela Web. Segundo a autora, apesar de os videogames possuírem um nível de imersão representativo, os jogos exigem dos jogadores um alto nível de concentração nas ações dos estados característicos dos jogos. Isto posto, os videogames proporcionariam dois estágios de imersão simultâneos, a imersão no ambiente e a imersão profunda da percepção do jogador. Essa imersão no ambiente resulta no prazer que motiva o jogador a continuar em sua jornada de diversão, descoberta, desafios e de outas motivações, intrínsecas ou extrínsecas, que o levam a seguir adiante. Essa experiência é sentida de forma muito intensa graças aos estímulos físicos e emocionais que transformam uma vida ordinária em um evento fantástico. Além disso, existe um forte apelo emocional, na maioria dos jogos, pelo instinto básico de sobrevivência: lutar ou fugir, viver ou morrer, estimulando o jogador a criar uma ligação mais visceral com a narrativa do jogo (SALEN; ZIMMERMAN, 2012). A experiência imersiva nos videogames proporciona um objetivo que necessita ser alcançado, em um meio em que nada, ou muito pouco, do cotidiano mais imediato importa. A existência do jogador é como que apagada do “mundo além do jogo” e no lugar dela surge uma segunda natureza na qual ele é capaz de realizar proezas distintas. A imersão nos jogos, nesse

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Interseções Midiáticas: As Multiplas Faces da Internet sentido, pode ser entendida como um meio para se alcançar um estado de bem estar e prazer por meio de uma experiência diferente daquela que estamos acostumados a ter. Quando o jogador está imerso no jogo, ele se encontra em um espaço diferente, com características próprias que justificam sua própria existência.

OS GAMES E O LABIRINTO: O JOGO DO ESPAÇO Os mundos digitais criados para videogames propiciam um grande potencial emergente para conter narrativas resultando em um engajamento dramático por parte do jogador em um ambiente simultaneamente familiar e desconhecido, que instiga a exploração e resolução de seus problemas. No contexto aqui exposto, será traçado um paralelo entre a hipermídia, a qual pode ser entendida em suas manifestações jogáveis como os videogames (Nesteriuk, 2002), e labirintos. Capa Sumário eLivre

Na mitologia grega, Dédalo escapa de seu próprio labirinto voando por cima dele com suas asas de cera, mas os cretenses podiam simplesmente pular os muros, como o moderno navegante da hipermídia pode “clicar” o botão Quit e desistir do percurso. O problema, na verdade, era como avançar sem perder-se: o labirinto funcionava, portanto, como um desafio para medir a astúcia do visitante... O melhor percurso não era aquele que

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Interseções Midiáticas: As Multiplas Faces da Internet permitia chegar mais depressa ao fim, mas o que possibilita visitar o maior número possível de lugares, sem ficar repetindo infinitamente o mesmo caminho. (MACHADO, 1997, p. 149).

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Assim como o labirinto de Dédalo, os videogames são espaços intrincados com inúmeras possibilidades de resolução para seus meandros, construindo para os desafiantes uma busca que os leva a solução dos caminhos pela exploração que é conquistada após um estudo e a definição de diferentes estratégias para lidar com todas as combinações possíveis entre suas diferentes passagens. Machado (1997) ressalta os três aspectos fundamentais dos labirintos e traça um paralelo com a hipermídia. O primeiro aspecto evidenciado é o convite que um labirinto faz para a sua exploração e este convite possui traços irrecusáveis perante o desafiado. A ideia é chegar a percorrer todos os caminhos possíveis voltando a pontos do percurso já visitados anteriormente. Os videogames são bastante convidativos a esse tipo de exploração, pois este processo pode revelar caminhos ocultos para segredos obscuros do enredo que complementam a história ou ajudam a fortalecer o contrato firmado entre o jogador e o jogo a partir da empatia construída com a personagem ou pelas micronarrativas encontradas durante os inúmeros trajetos existentes. A franquia “Bioshock” (2Kgames, 2007), por exemplo, constrói sua nar-

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rativa por meio de cartazes, propagandas, pichações encontradas durante o percurso e também por gravações em áudio que podem ser encontradas e escutadas pelo jogador após a exploração do cenário. O aspecto seguinte do labirinto é o percurso sem mapa; sem a visão do mapa o explorador necessita fazer cálculos intuitivos sobre sua disposição espacial, resolver puzzles23 para tomar decisões que resultarão em sucessos ou falhas em suas missões. A maioria dos jogos que envolvem deslocamentos espaciais apresenta um mapa, bússola ou alguma espécie de guia para indicar o caminho para o jogador. No entanto, mesmo conhecendo o caminho, o jogo oferece encruzilhadas e desafios que serão vencidos e posteriormente conectados. Em jogos como os da série “Silent Hill” (Konami, 1999-2012), o jogador mesmo dispondo de um mapa com sua localização e a indicação do caminho, necessita cumprir tarefas e resolver diversos quebra cabeças para conseguir liberar portas que o impossibilitam de avançar. Sob esse ponto de vista, mesmo com o conhecimento espacial prévio, o labirinto ainda fornece uma intricada série de desafios para o jogador resolver por meio da exploração feita no espaço do jogo. O último aspecto do labirinto é o exercício cognitivo que o transeunte realiza para escapar das armadinhas do percurso e das variações infindáveis 23 É um problema presente no jogo para o jogador resolver. Existem diversos tipos de puzzles, que variam de acordo com a jogabilidade de cada jogo e gênero, podendo exigir diferentes tipos de habilidades.

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de caminhos sem solução que se apresenta. O navegador de espaços aprende com os erros, formula hipóteses, traça caminhos possíveis, pensa nos riscos de suas decisões, pondera sobre como seus recursos serão utilizados. A conquista do jogo ao vencer o labirinto não é resultado aleatório, devido à sorte, mas sim fruto de uma sequencia de decisões baseadas na experiência adquirida durante todo o trajeto. No caso dos videogames, a mecânica do jogo prevê caminhos e puzzles que atribuam conhecimentos gradativos para a resolução das questões inerentes ao jogo. Cada obstáculo é projetado para que o jogador adquira experiências gradativas, para resolver o puzzle maior que é o jogo em sua totalidade. A metáfora de um labirinto que deve ser explorado pelo jogador vem a corroborar com a ideia de construção de mundos virtuais. Talvez os videogames sejam a mídia que por excelência melhor trabalha a narrativa por meio dos espaços (MASSAROLO, 2009), uma vez que a dinâmica dos espaços é planejada de acordo com o game design, sendo os espaços do jogo estruturados basicamente como mapas de cognição, repercutindo de maneira indissociável na própria dimensão narrativa do jogo. A partir da perspectiva espacial, Jenkins (2004) propôs um caminho alternativo para o pensamento de narrativa dentro dos jogos. Para o autor, os jogos poderiam ser considerados menos como histórias e mais como espaços com possibilidades narrativas. Isso pois, é possível considerar que nem

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todo jogo conta uma história per se; jogos como “Tetris” objetivam entreter o jogador pelos desafios propostos, e não prioritariamente como uma experiência narrativa. Assim, a discussão sobre os jogos não necessita ser feita necessariamente com enfoque em seus aspectos narrativos, pois os jogos são obras audiovisuais que possuem mecânicas de jogo. A experiência do jogador em um game não pode ser limitada à dimensão narrativa: o jogo é mais do que seu enredo, mais importante que a história em si, estão as relações que são construídas entre a interatividade presente no sistema e o jogador (JENKINS, 2004). Assim, Jenkins (2004) entende o game designer como uma espécie de arquiteto de histórias, observando a existência de cinco formatos essenciais de narrativas a partir das relações espaciais. O primeiro formato é composto pelas Histórias Espaciais, o game designer mais do que desenvolver um jogo digital, deve criar mundos e configurar espaços. Aqui, uma das principais preocupações do game designer reside em desenvolver questões relativas ao enredo ou às motivações das personagens, mas sim criar uma fase intrigante e desafiadora, que, assim como os labirintos, motivem os jogadores a explorarem esses ambientes. A ampliação dos espaços em jogos favorece a inserção de diferentes experiências, que podem ser enriquecidas por meio de associações que o espaço pode fazer com referencias conhecidas previamente pelos jogadores

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fora do círculo mágico, construindo assim relações que vão além do jogo. O espaço evoca e transmite informações a partir da mise-en-scene24 para o jogador, relatando possíveis caminhos, estratégias, ou fatos inerentes ao enredo capazes de prover uma potencialidade narrativa para as tramas do jogo. Os Espaços Evocativos são o segundo formato de construção de narrativa por meio da arquitetura dos níveis. Evocar histórias consolidadas no imaginário coletivo por meio de um determinado referencial espacial pode ser uma maneira de criar interação com o jogador, oferecendo diversas possibilidades narrativas. Jenkins (2004) cita o exemplo do jogo “American McGee’s Alice” (Eletronic Arts, 2000), em que a história original de “Alice in Worderland” foi reinterpretada. Após anos desde sua experiência no país das maravilhas, Alice tem várias alucinações e não sabe mais o que pode ser considerado realidade, então volta novamente para o país das maravilhas em busca de sangue. Vários cenários da obra de Lewis Carrol são evocados e reconstruídos de acordo com o propósito do jogo, para estabelecer um novo sentido de novas decisões narrativas, estéticas e funcionais do jogo. Evocar referencialmente espaços, que jazem no imaginário do jogador, é uma poderosa ferramenta de criação narrativa, manipulando e esculpindo novos sentidos às obras já existentes, podendo criar experiências singulares e autônomas para cada meio. 24 Termo utilizado para representar os processos de construção dramática de uma cena.

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O terceiro nível de construção narrativa se dá a partir da Representação das Histórias, em que o jogador possui o poder de conduzir os eventos dos jogos, definir seus objetivos primários, localizar os incidentes a serem enfrentados. Ou seja, o autor do enredo, em certo nível, é o próprio jogador – que se torna assim, uma espécie de demiurgo, mais que o próprio game designer. A organização geográfica dos conflitos no âmbito do jogo estimula o engajamento emocional do jogador, encorajando a busca pelas micronarrativas existentes nos espaços dos níveis, sendo que cada unidade narrativa desenha situações melodramáticas capazes de criar momentos significativos para o jogador. A participação do jogador é resultado da tensão causada por seu desempenho no palco do jogo, e sua exposição aos desafios propiciam sua encenação dentre dessa atração que os jogos concedem. O jogador acaba tornando, por meio de seu avatar, um ator que percorre todo o espaço dramático do jogo, improvisando suas cenas, de acordo com aquilo que lhe é apresentado (JENKINS, 2004). O penúltimo formato, Narrativas com a Adesão do Espaço, são as construções feitas com o auxilio de pistas deixadas para que o jogador possa arquitetar e reformular suas hipóteses quanto aos acontecimentos. É, portanto, semelhante ao exercício mental que o jogador realiza dentro de um intrincado labirinto para que encontre os caminhos possíveis. As formulações são feitas a partir do próprio entendimento do jogador, levando em conta seu

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conhecimento e experiência no que tange os modelos narrativos e os próprios modelos de desafios. O último formato essencial de narrativas a partir das relações espaciais são as chamadas Narrativas Emergentes, conhecidas por disponibilizar ao jogador o poder de (co)criação dos espaços e da própria narrativa. O melhor exemplo desse tipo de construção é a série “The Sims” (Eletronic Arts, 2000 – atual), em que o jogador cria e desenvolve atributos e parâmetros ligados à dimensão emocional da personagem. Desta forma, a personagem controlada pelo jogador responde dramaticamente ao ambiente, imprimindo significado emocional para o desenvolvimento da experiência. Essa taxonomia criada por Jenkins (2004) sobre as diferentes construções narrativas a partir do espaço pode ajudar a compreender sobre a figura do mundo virtual na experiência imersiva dos jogos. Todavia, dentro do escopo deste texto, é possível simplificar tal taxonomia em um conceito elementar: o espaço virtual como um fomentador cultural, no qual o jogador terá na mise-en-scene dos jogos todos os aspectos referentes a narrativas revelados. Assim, o ambiente que será explorado cria a atmosfera, mostra a verdade dos mundos virtuais. As pistas narrativas, a evocação dos espaços e os próprios espaços em si, transmitem a narrativa do videogame como uma representação cultural pautada nos hiperestímulos da contemporaneidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS OU TRAJETÓRIA RUMO AO HOLODECK O espaço narrativo nos videogames carrega um grande potencial de imersão: tal como o holodeck, os jogos possuem a capacidade de criar espaços digitais cada vez mais envolventes e imersivos. Com o desenvolvimento tecnológico aumentam as possibilidades técnicas e criativas para projetar experiências imersivas mais próximas àquelas descritas no universo de ficção científica de Jornadas nas Estrelas.

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Apresentado pela primeira vez em Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, em 1987, o holodeck consiste em um cubo negro e vazio coberto por uma grade de linhas brancas sobre a qual um computador pode projetar elaboradas simulações, combinando holografias com “campos de força” magnéticos e conversão de energia em matéria. O resultado é um mundo ilusório que pode ser parado, iniciado e desligado à vontade, mas que parece e se comporta como o mundo real e que inclui lareiras, chá bebível, e personagens como Lorde Burleigh e sua governanta, que podem ser tocados, inquiridos e até mesmo beijados. (MURRAY, 2003, p. 30).

Inovações tecnológicas como visão estereoscópica, captura de movimentos por sensores e óculos de Realidade Virtual, além do desenvolvimento da Inteligência Artificial nos games, sinalizam uma perspectiva na qual a ideia

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Interseções Midiáticas: As Multiplas Faces da Internet do holodeck talvez não seja algo tão distante em um futuro próximo. A ideia de imersão, usando a estereoscopia, medição da direção dos olhos e outras tecnologias para criar a ilusão de estar dentro de uma cena gerada pelo computador é uma das funções da Realidade Virtual (RV). A ideia de navegar, criando o modelo computacional de uma molécula, ou uma cidade e habitar o usuário a se mover como se estivesse dentro delas, é o outro elemento fundante. (SANTELLA, 2003, p. 193).

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A utilização da estereoscopia nos videogames a partir da sétima geração de consoles (2005-2012) foi difundida em vários jogos: até então poucos jogos possuíam o recurso da estereoscopia para contribuir na construção do espaço de atuação dos jogos. Nesta mesma época, a visão estereoscópica no cinema (3-D) trouxe uma nova relação no processo de fruição da obra: o espectador passou a estar dentro da diegese25. A transferência do espectador para dentro da ação pode reconfigurar toda a relação linguística que o cinema clássico construiu. Segundo Bazin (1991), a profundidade de campo seria o procedimento narrativo essencial do cinema moderno, pois colocava o espectador dentro da realidade da obra audiovisual, permitindo planos sequencias mais ricos em detalhes de 25 É um conceito de narrativas que se refere a acontecimentos ficcionais que acontecem dentro da obra narrativa

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mise-en-scene e uma conservação da unidade temporal do filme. Para os videogames o acréscimo narrativo e imersivo é amplificado, pois o jogador atua efetivamente dentro da diegese. A estereoscopia proporcionou a ampliação da profundidade de campo por meio da aquisição de mais um eixo de movimentação para os objetos e para as próprias personagens. Desta forma, devido à alteração da dinâmica espacial, potencializa uma nova rede de significados resultando em novas perspectivas de interações entre jogo e o sujeito-jogador. Pensando na classificação dos jogos proposta por Callois (2001), o videogame pode passar a poder ser pensado concomitantemente como experiências de agon (competição), alea (sorte), mimicry (mimese) e, agora também, ilinx (vertigem). As personagens, câmera e os objetos de cena podem se deslocar e serem efetivamente percebidas visualmente nas três dimensões do espaço (largura, altura e profundida). Assim, a perspectiva de volume, tamanho e proporção entre os diferentes elementos visuais podem levar a experiência do jogo para outro estágio de significância.

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REFERÊNCIAS

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